Dois observadores da mesma realidade social podem interpretá-la de modos acentuadamente distintos. Longe de ser incomum, essa espécie de divergência é usual nas ciências sociais e ainda mais na Filosofia. Ela deixa de ser proveitosa para a reflexão, somente, quando os motivos do afastamento não são apresentados à consideração do leitor, ou seja, quando alguém diverge somente por divergir, sem justificar adequadamente a divergência.
Ao defender uma interpretação unipolar do cenário internacional, no último texto, atraí a responsabilidade de demonstrar, suficientemente, as razões dessa posição. Por que o mundo atual é unipolar e não bipolar ou multipolar? Quais os motivos da afirmação de que o poder de um Estado ou entidade política é muito superior ao dos demais do seu tempo? Para responder essas perguntas, é útil recordar que a unipolaridade é um fenômeno raro, em termos históricos. Cumpriu-se nos tempos de Roma e, se a análise do texto anterior estiver correta, na acumulação de poder alcançada pelos Estados Unidos recentemente. Em ambos os casos, o processo teve fundamento econômico claro. Pode-se propor até mesmo que a unipolaridade emergiu mais por razões econômicas do que políticas.
A reflexão a respeito do significado histórico dos fatos econômicos atingiu o máximo desenvolvimento na obra de Marx, que censurou os economistas clássicos por não terem situado os dados da sua ciência numa concepção de conjunto da História. Para remediar essa falta, Marx esforçou-se para criar tal teoria e relacioná-la à análise econômica, tendo sido esse, talvez, o maior mérito teórico dele. Assim, por exemplo, a teoria da mais-valia desenvolvida inteiramente por Adam Smith foi situada por Marx no bojo de uma concepção da História, na qual aquele dado econômico assumiu o sentido de instrumento da luta de classes.
Porém, desde que Marx exaltou a necessidade de colocar a economia em estreita relação com a História, o desafio maior da teoria social passou a ser determinar que espécie de acontecimentos costuma moldar, de modo duradouro, a História. Notem que essa pergunta coloca, de maneira clara e delimitada, o problema da História abstrata, ou seja, a teoria da História. Se não formos capazes de respondê-la, não teremos como chegar a tal teoria, já que essa é, por concepção, uma representação abstrata do real.
Em O choque de civilizações (HUNTINGTON, Samuel. Ob. cit. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010), Samuel Huntington sustentou que as civilizações são o produto final e acabado das transformações históricas. Elas constituem o nível no qual o sentido dos acontecimentos (se é que eles têm algum) se decide. A tese de Huntington reflete, intensamente, o estado da teoria social nos nossos tempos. Desiludidos com as elaborações que apontam fatores setoriais econômicos, políticos ou de outra espécie como decisivos para o traçado geral da História, os estudiosos atuais inclinam-se à conclusão de que não há fator privilegiado algum dos acontecimentos e, por isso, só podemos nos elevar a uma concepção abstrata do devir social, situando as suas causas determinantes no conjunto dos fatos, em vez de numa parte especial deles. Huntington deu voz a essa tendência, ao afirmar que a História se define por fatores civilizacionais.
Não podemos deixar de observar, entretanto, que as civilizações não resultam apenas de transformações econômicas, mas também de fatos políticos e culturais de toda espécie. Elas são o conjunto ou o todo do qual a economia, a política e as várias atividades culturais constituem setores ou, para afirmarmos o mesmo em outras palavras, as civilizações são a História, e a História são as civilizações. Assim, afirmar que a História se determina pela civilização equivale a propor que ela se autodetermina.
O problema é que essa proposição nada explica. Explicar é sempre mostrar que uma coisa se forma a partir de outra. Mostrar que se forma a partir de si mesma é nada explicar. Até prova muito robusta em contrário, o todo é o que emerge por último, não o que se coloca no princípio. É o resultado e não a causa. Por isso, ele não pode ser invocado como explicação. Tampouco pode funcionar como princípio de uma teoria abstrata do devir histórico. Só uma teoria que explique o conjunto da sociedade pelas transformações parciais que nela ocorrem merece esse nome. E, quando se trata de procurar que conjunto específico de transformações produz efeitos maiores e mais duradouros sobre a realidade social, a palma não pode escapar a Marx. Embora não tenha sido o primeiro a afirmá-lo, Marx foi quem melhor demonstrou que os fatores econômicos e os produtivos, em particular, exercem maior influência, a longo prazo, sobre o destino dos povos, do que quaisquer outros.
Esse é o ponto de partida da teoria segundo a qual vivemos num mundo unipolar, no qual uma única organização social (a dos Estados Unidos) detém poder muito superior ao de qualquer outra e, por isso, exerce influência incomparável sobre os acontecimentos econômicos, políticos, culturais e até naturais. No fundo, a hegemonia dos EUA resulta do poder econômico muito maior acumulado por esse país.
Devemos admitir, porém, que a liderança econômica dos Estados Unidos não basta para justificar a concepção de que vivemos num mundo unipolar. Para que a unipolaridade se torne patente, é preciso mostrar não só que um país exerce a liderança econômica, mas que essa liderança resultou no acúmulo de um poder relativamente incontrastável.
Para investigar se isso acontece, podemos representar o desafio à liderança de uma nação hegemônica por meio de uma parábola, cuja curva sobe, atinge o ponto mais elevado e desce até se tornar negativa. A parte ascendente da parábola representa o período em que a produção do país hegemônico se torna cada vez maior que a do país que tenta alcançá-lo. A escolha da parábola se justifica porque, se ambos os países continuarem a desenvolver a sua produção, por longo tempo, o menos adiantado tenderá a crescer a taxas mais elevadas que o outro, já que, de modo paradoxal, o seu desenvolvimento menor funcionará como uma vantagem a seu favor. Para recorrer a uma analogia, a situação dos países é semelhante à de um adulto mais alto e robusto que um adolescente. Embora em desvantagem por ter iniciado o crescimento depois do adulto, o adolescente cresce e se fortalece mais rapidamente que ele. A parábola representa o crescimento mais rápido do país menos desenvolvido, por razões semelhantes às que levam o adolescente a crescer mais que o adulto.
Pode-se perguntar: se um país cresce mais rapidamente que o outro, a diferença de produção entre eles não deveria diminuir de modo constante, em vez de primeiro aumentar para depois diminuir, como a parábola mostra? Porém, essa situação só se verifica quando a diferença de produção dos países não é, a princípio, muito grande. Quando ultrapassa certo limite, como ocorre num mundo unipolar, embora o país menos desenvolvido cresça a taxas mais elevadas que o outro, o fato de a produção bruta de um e a de outro serem díspares faz com que, por certo tempo, o que cresce a taxas menores continue a ampliar a diferença entre a sua produção nacional e a do outro.
Vejamos um exemplo disso. Nos últimos anos, o Brasil tem crescido a taxas em torno de 2% ao ano. Mesmo assim, boa parte dos estudiosos situa o seu crescimento potencial em cerca de 3,5%. O crescimento potencial médio dos Estados Unidos, por sua vez, é estimado em aproximadamente 2,5%. Considerando que, em 2013, o total de riquezas produzidas nos Estados Unidos foi de US$ 17,1 trilhões e, entre nós, de US$ 4,8 trilhões, o Brasil tende a aumentar a sua produção em US$ 168 bilhões e os EUA, em US$ 427 bilhões, ao longo de um ano, o que significa que continuamos na parte ascendente da parábola que compara a nossa produção com a deles. Embora crescendo a taxas médias superiores às norte-americanas durante décadas e ao custo de enorme esforço, a produção do Brasil ainda não cessou de ser cada vez mais inexpressiva, em comparação com a americana.
Esse é um retrato da diferença da produção dos Estados Unidos, em relação à do Brasil. Porém, ainda não é o retrato ideal. A riqueza total não é tão bem representada pela produção de um ano quanto pela de vários anos. Se consideramos o poder acumulado pelos Estados Unidos durante dois séculos de ascensão econômica, teremos um retrato muito mais fiel (e grotesco!) da diferença que os separa do Brasil.
E olhem que a comparação com o Brasil está longe de ser a que mais diferencia o poderio norteamericano do de outras nações. O Brasil foi o país que cresceu, em média, a taxas mais elevadas, no mundo, durante o século XX. Portanto, a conclusão do poderio muito maior dos Estados Unidos é ainda mais verdadeira em relação a outros países que ao Brasil.
Durante décadas, os Estados Unidos não só cumpriram o papel de grande potência econômica como conseguiram se descolar das outras potências a ponto de se tornarem, por larga margem, o maior produtor mundial de riqueza. Na verdade, o início da emergência econômica dos EUA se situa no século XIX. E, se por emergência entendermos o distanciamento de outros países, o final do processo ainda parece estar muito longe. De sorte que a ascensão dos Estados Unidos nada tem de inconstante ou inconsistente. Pelo contrário, ela foi tão consistente, do século XIX ao XXI, que a diferença entre o seu PIB e o de qualquer outra nação desenvolvida ou em desenvolvimento é hoje imensa e a da riqueza absoluta o é ainda mais.
Se considerarmos aspectos mais sutis e não menos relevantes do que a produção bruta de uma economia, assim como a produtividade do trabalho, a situação continuará favorável aos EUA. Na verdade, a vantagem desse país tornar-se-á ainda mais aparente. A produtividade é, em grande parte, reflexo do nível educacional do país na produção. A Alemanha, a França e o Reino Unido gastam um percentual 15% menor dos seus PIB’s em educação do que os Estados Unidos (2025 global trends: a transformed world. Washington: National Intelligence Council, 2010. p. 278). Em consequência disso, os adultos americanos se submetem a mais de 12 anos de educação formal, contra sete dos italianos, menos de nove dos franceses e menos de 10 dos britânicos, japoneses e alemães (SHAPIRO, Robert. A previsão do futuro - como as novas potências transformarão os próximos 10 anos. Rio de Janeiro: Best Business, 2009. p. 235).
O valor agregado da produção também fortalece a vantagem dos Estados Unidos. Em geral, quanto mais um produto requer pesquisa e desenvolvimento, maior o seu valor agregado. Há anos, os EUA gastam 50% mais em P&D do que os países europeus mais desenvolvidos e o triplo do que gastam Japão e China.
Os Estados Unidos também investem várias vezes mais em países emergentes do que Alemanha, França e Inglaterra (idem. p. 226). O comércio americano com os emergentes também é muito maior que o europeu. Com isso, os Estados Unidos estão mais capacitados do que outros países ricos a tirar vantagem do crescimento rápido dos emergentes.
Não é à toa que, em 1940, as três maiores economias europeias juntas respondiam por 20% do PIB mundial, aproximadamente o mesmo percentual norteamericano. Porém, em 2006, esses percentuais passaram, respectivamente, a 10% e 24%.
Desde que os EUA consolidaram a sua dianteira econômica, articulistas, jornalistas e escritores apresentaram, um após outro, vários novos países que os deveriam ultrapassar. Foi assim com a União Soviética, depois com o Japão e mais recentemente com a China. Após as crises do petróleo, até a Arábia Saudita foi apontada como séria candidata a ultrapassar a produção norteamericana. A realidade talvez difícil de ser enfrentada é que, com a possível exceção da União Soviética em meados do século XX, o poderio muito maior dos Estados Unidos não foi seriamente ameaçado em qualquer desses casos. Menos ainda parece hoje exposto a um declínio prolongado.
Para que esses fatos apontam, a não ser para a existência de um mundo unipolar? Qualquer outro tipo de mundo tem existência onírica, quando confrontado com os dados que analisamos e outros que poderiam ter sido mencionados. Não falamos do poderio bélico incomparável dos Estados Unidos, único país a dispor de bases militares em praticamente todos os lugares do mundo. Tampouco nos referimos à sua influência política assombrosa.
É verdade que a influência dos Estados Unidos consolidou-se no interior de um sistema político multipolar. As Nações Unidas formam esse sistema descentralizado por concepção. Porém, a sua estrutura com vários núcleos de poder comparáveis reflete mais a conjuntura política resultante da 2ª Guerra Mundial do que a atual situação econômica. Mas, se teorizar sobre a sociedade é determinar a espécie particular de influência (econômica, política ou outra) mais relevante para as transformações cumulativas que nela se verificam, alea jacta est, a sorte está mesmo lançada. Veremos pouco adiante que face da moeda caiu voltada para a luz.