O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz declarou no ano passado que, para se salvar, a União Europeia talvez tenha de deixar o euro morrer. Stiglitz deplorou a inoperância das autoridades daquele bloco de nações para implementar medidas favoráveis ao crescimento econômico e não apenas de austeridade fiscal. Mas reconheceu que essas medidas pressupõem um aumento de várias ordens de grandeza (quase explosivo) do orçamento da União e a consequente redução dos orçamentos dos Estados em relação ao dela.
No fundo, a proposta de Stiglitz equivale a converter a União Europeia numa federação, pois o que dá vida a essa forma de Estado não é a carcaça político-jurídica de que se reveste, mas o grau suficientemente elevado de concentração do poder econômico dos Estados-membros na União. Sem dinheiro para a União desenvolver suas políticas, o Estado Federal permanece uma ficção. Daí se comentar que o problema europeu, cada vez mais, assume configuração parecida com o das antigas colônias norteamericanas, que em 1776 se uniram sob a forma de confederação e em 1787 foram forçadas a transformar a sua união em federação.
Porém, na medida em que é consequência da crise financeira de 2008, a situação atual da Europa parece resultar de um processo de transformação muito mais lento e longo, que se desenvolveu desde 1929 e não guarda relação direta ou imediata com a união de países. No início desse processo, os países da região sentiam os efeitos devastadores da industrialização desenvolvida por mais de um século, que não foram muito diferentes dos que eu descrevi no artigo anterior desta série e podem ser resumidos como o desemprego elevado e empobrecimento geral da população. A solução encontrada para tal situação, tanto na Europa como nos Estados Unidos, foi não apenas o aumento dos investimentos públicos, mas a assunção pelo Estado da responsabilidade de proteção social da população. Porém, na Europa, o oferecimento de uma vasta rede de serviços públicos de saúde e seguro social (welfare state), entre outros, foi muito mais longe que nos Estados Unidos, o que implicou a oneração também maior dos cofres públicos.
Tudo isso se construiu planejadamente, por gerações. Daí a sua importância para o tema desta série. Em termos macroeconômicos, o processo pode ser descrito como uma transferência do ônus do capitalismo avançado das famílias para o Estado. Esse é o significado primeiro do welfare state, cuja utilidade como amortecedor do impacto inicial e posterior da industrialização é indiscutível. Porém, a transferência não dissipa os desequilíbrios daquele processo, mas os compensa e mascara . Por isso, permite que eles continuem a atuar, sem contraste, por um tempo mais longo.
O processo de contenção e mascaramento a que me refiro produziu resultados opostos aos do recente aumento da produção industrial na China. Em ambos os casos, o Estado aumentou muito em tamanho e arrecadação. E também nos dois casos, esse aumento se exteriorizou como ação estatal planejada, mediante políticas públicas. Contudo, na Europa, o crescimento do Estado se fez com o escopo de aumentar (e efetivamente aumentou) o amparo social à população, enquanto na China o processo teve por objetivo a atuação do Estado como empreendedor.
Não se discute que o welfare state foi uma brilhante e profícua criação política. Também não há dúvida de que ele beneficiou, em grande medida, a população europeia e de onde mais se reproduziu. Porém, a crise de 2008 e os acontecimentos que se seguiram foram decisivos para mostrar que a dose de proteção social do modelo europeu foi, ao que tudo indica, demasiada. No mínimo, fizeram perguntar por que os países da Europa ocidental, que não possuíam relação dívida-PIB maior que a de tantos outros países, viram-se repentinamente tragados por dívidas e déficits galopantes, após a crise financeira?
A crise na Europa tem duas vertentes. É, ao mesmo tempo, uma crise bancária e das dívidas soberanas. Embora os problemas nos dois setores estejam relacionados, as causas profundas de uns e de outros são distintas. A rápida deterioração dos balanços dos bancos europeus, a partir de 2008, aponta para causas mais circunstanciais ou conjunturais, ao passo que o alto nível de endividamento dos Estados antes da crise de 2008 sugere uma causa muito mais estrutural da dívida pública. Daí a indissociabilidade entre a crise europeia e os limites do Estado de bem-estar.
Talvez o motivo mais básico da deterioração dos balanços bancários tenha sido a insuficiência das informações disponíveis dentro dos próprios bancos e especialmente entre eles sobre o valor dos ativos de cada instituição. O problema tornou as operações diárias dos bancos cada vez mais deficitárias, pois a opacidade dos balanços afugenta os capitais. É, porém, um mal menos estrutural do que o da dívida soberana, tanto é que foi mais rapidamente potencializado pela crise de 2008.
Para ter noção da magnitude dos problemas que então ocorreram e ainda acontecem, no fim de 2010, o déficit público da Irlanda explodiu para 32,4% (Fonte: Eurostat. Folha de S. Paulo. 27/04/2011. p. A 20), quando o percentual recomendado é em torno de 3%. No mesmo ano (e depois novamente), tanto a Irlanda como Portugal e Grécia tiveram de ser socorridos pelo Fundo Monetário Internacional, para poderem saldar os seus compromissos.
É tristemente comum “analistas de esquerda” explicarem a crise europeia pela cupidez e ganância desenfreadas dos banqueiros ou pelos desequilíbrios congênitos da produção capitalista. Mas a cupidez, a ganância e os desequilíbrios não constituem a própria crise? E, se o fazem, como podemos explicar a crise por ela mesma? Como podemos encontrar nela a sua própria causa? Não é preferível lembrar a lição do velho Aristóteles de que, em ciência, não nos é permitido explicar uma coisa por ela própria?
O exemplo da Grécia é particularmente elucidativo, pois lá a crise foi particularmente severa. No início de 2012, o Governo grego anunciou privatizações da ordem de 50 bilhões de euros. Não é crível que isso tenha ocorrido, porque o modelo de Estado implantado na Grécia deu certo! Ou que os problemas gregos foram meramente conjunturais. A reação do governo, ao reduzir o tamanho do Estado, foi criticada, mas confirmou, pragmaticamente, que o problema europeu se concentra na insolvência dos seus Estados de bem-estar social.
Perguntemos então por quê. E refinemos a pergunta, indagando por que os políticos gregos aprovaram uma redução de 22% no salário mínimo e de 15% nas aposentadorias e pensões, quando tomaram o segundo empréstimo do FMI? Para perder votos na eleição seguinte? Ou porque o salário mínimo, as aposentadorias e pensões são despesas estatais, e o Estado é que estava quebrado.
Podemos ter como certo, que a crise europeia atual não incide, primariamente, no setor privado da economia. Os vícios verificados nesse setor (a cupidez, a ganância e os desequilíbrios) existem desde que há capitalismo. Talvez desde o escambo. Analisar a crise europeia atual não pode ser encarado como a arte de se determinar o pecado original do modo de produção capitalista. Não se trata disso. O capitalismo é, e o mercado existe. Portanto, existem também a cupidez, a ganância, os desequilíbrios e a profusão de outros defeitos desse regime. Porém, nada disso serve como explicação minimamente aceitável seja da crise de 2008, seja da europeia atual.
Mas o problema dos ideólogos que teimam em proceder com base em definições defasadas de “esquerda” e “direita”, é a obstinação em fazer ver que tudo se debita e se deve debitar, se explica como se deve explicar por defeitos gerais do capitalismo e do homem. É o seu hábito de só recuar para avançar, novamente, mais por objeções do que por demonstrações. Para dizer, por exemplo, que Grécia, Portugal e Irlanda não são os melhores exemplos de welfare state existentes em solo europeu. Por que Estados de bem-estar que oferecem proteção maior que os daqueles países não quebraram antes ou mais estrepitosamente que eles? Por que a Suécia, a Noruega, a Alemanha, a própria Inglaterra não foram tão afetadas?
O problema desses eternos críticos é a solitária que trazem no ventre. Nada os satisfaz, nem a elas. Recorrerão, pois, a outro Prêmio Nobel, Paul Krugman, que declarou que, dos países afetados pela crise europeia, só a Itália está entre os cinco com maiores gastos sociais do continente. Mas essa problemática pode ser vista de outro ângulo. Se dividirmos os países da Europa Ocidental em detentores de maior riqueza absoluta (Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha), detentores de riqueza menor, mas com população reduzida (Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Islândia, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça) e detentores de riqueza ainda mais reduzida com baixa população (Portugal e Grécia), veremos que os que viveram as maiores agruras da crise foram os do último grupo e os mais pobres dos dois primeiros (Itália e Espanha no grupo 1, Irlanda e Islândia no 2).
Uns mais, outros menos, os países de todas as três categorias adotaram o Estado de bem-estar social. Adotaram também economias de mercado. Tinham, portanto, as mesmas condições gerais. Porém, nos dois primeiros grupos, a riqueza per capita sempre foi e ainda é muito mais elevada do que no terceiro. Isso significa que a pujança do setor privado deles é também muito maior que a dos países do terceiro grupo, comparativamente às respectivas populações. Como o Estado só pode arrecadar tributos de particulares, quanto maior for a relação riqueza-população de um país, maior será o poder de arrecadação estatal. Ou, inversamente, quanto menor essa relação, menor a capacidade de financiamento dos Estados.
Vê-se, portanto, que a crise atingiu precisamente os Estados em que a relação é mais baixa. Ou, em outras palavras, que o esgotamento que ela descobriu não foi, simplesmente, o do Estado de bem-estar, mas o da capacidade de financiamento dele pela arrecadação de tributos do setor privado. Quem não entender ou não crer nessa interpretação da crise europeia deve considerar um instante por que, justamente, os países da região mais rica do mundo (excluída a América do Norte) foram atingidos tão gravemente pela recessão. Porque eram os donos dos bancos que ficaram com os títulos podres? Não mais, certamente, que os Estados Unidos. Por que então lá e não nos EUA se vive uma depressão, como Stiglitz afirmou, só mascarada pela obstinação em não a admitir? A má sorte os terá atingido? Não é mais razoável pensar que foram contaminados pela suscetibilidade muito maior a que a relação entre os gastos estatais e a capacidade de arrecadação do Estado os expunha?
Se, num primeiro momento, a crise de 2008 não produziu recessão mais grave na Europa que em outros lugares e se eles não tinham uma relação dívida-PIB maior que a média dos países desenvolvidos, por que o day after foi pior lá do que em praticamente todos os outros continentes? E se a produção foi sempre tão elevada na Europa Ocidental e a sua população, nem tanto, por que lá os Estados tiveram tanta dificuldade para se financiar? A resposta é que, no Oeste da Europa, um dos termos da relação (os gastos estatais) foi mais comprometido pela combinação de gastos sociais excessivos e dispêndio maior com o socorro de instituições financeiras insolventes.
A Grande Depressão foi o mais importante divisor de águas do capitalismo avançado. Ela sepultou o modo de produção das revoluções industriais que o fordismo abalara e criou condições propícias para o soerguimento dos regimes fascistas, que desencadearam a Segunda Guerra Mundial. Sabemos que, nos Estados Unidos, a Grande Depressão foi combatida com o New Deal. Digamos, portanto, que os dois principais planos em que essa política de Roosevelt se materializou tenham servido para fixar o primeiro modelo de intervenção planejada do Estado na economia que o mundo conheceu ou, pelo menos, o primeiro depois do modelo socialista implantado na União Soviética.
A intervenção implícita no Estado de bem-estar social foi tão diferente da consagrada no New Deal quanto da que vimos implantar-se na União Soviética. Ela estabeleceu um terceiro modelo de intervenção planejada do Estado na economia, que se reproduziu em tantos lugares, inclusive nos Estados Unidos da América. Nós mesmos criamos o nosso Estado de bem-estar, no Brasil, de 1988 ao presente.
Mas, se considerarmos o New Deal um modelo keynesiano de intervenção, cuja aplicabilidade se limita a condições também keynesianas de subinvestimento grave, e se considerarmos ainda a derrocada geral do modelo de intervenção socialista, concluiremos que o Estado de bem-estar introduziu a intervenção mais bem-sucedida em todo o último século. Porém, é hora de vermos que esse modelo de intervenção planejada requer medida, e a medida não há de ser fixada pelo voluntarismo político deste ou daquele grupo, deste ou daquele partido. A medida dos gastos com o Estado de bem-estar deve ser imposta pelas condições objetivas de cada momento histórico. E a crise de 2008 deixou bem claro, para quem quer ver, quais são essas condições. Ela mostrou que os excessos de Estado de bem-estar tiveram de ser desmontados e que não se trata de os recriarmos.
Infelizmente, os setores desorientados da esquerda escolheram a bandeira do welfare state, entendido quase de qualquer maneira (portanto também de maneira extremada), para se reagruparem, após terem perdido outras bandeiras. E quantas eles, de fato, perderam! Porém, já é hora de evitarmos as polarizações ideológicas rançosas, as leituras do momento atual ditadas por categorias como esquerda e direita, que não só têm sentido rarefeito como não fazem sentido algum. Com a crítica dos respectivos modelos clássicos, esquerda e direita tornaram-se categorias tão esgarçadas que, com base nelas e sob a bênção de algum professor incensável, pode-se andar para todas as direções tão bem quanto para nenhuma. Talvez ainda melhor para nenhuma.