Se a identificação de um conjunto mais determinante de causas dos eventos históricos não puder ser realizada em abstrato, mas apenas numa situação real, não teremos como chegar a uma concepção de conjunto da História. Poderemos, no máximo, ascender à compreensão de partes limitadas dela. Concepções de conjunto ou teorias da História só podem ser construídas pela determinação prévia ou a priori das causas mais influentes das transformações sociais.
Esse é um problema epistemológico, sem a compreensão do qual a ciência social se torna impossível ou se condena a ser uma ciência de migalhas, de fragmentos. E o mais dramático no pensamento social é que o problema raramente é compreendido. O que justifica o cuidado de nos lembrarmos dele e de lhe fazermos referência.
A obra de Marx reveste-se de especial importância para a compreensão da História, porque nela encontramos a reflexão de maior alcance sobre as causas das tendências duradouras e a demonstração mais completa de que as motivações econômicas são as mais determinantes para o traçado geral dos acontecimentos. Procurei indicar esse fato nos textos anteriores. Resta entender que, dentre as várias vertentes da economia, uma se destaca como a mais fundamental. Refiro-me à produção dos bens materiais, que Marx mostrou conformar mais decisivamente as transformações sociais. Tudo se passa como se a sociedade fosse um sistema dividido em subsistemas, dos quais o econômico é o mais fundamental, e esse subsistema, por sua vez, fosse influenciado de modo determinante por outro ainda menor situado no seu interior: o subsistema da produção.
O reconhecimento da importância maior da produção foi o que levou Marx a estudar a História, sob o ponto de vista do que ele denominou modo de produção. A palavra modo não foi escolhida por qualquer motivo. Quer expressar que o elemento estruturante da produção, no subsistema econômico, é uma técnica ou método de criação de bens materiais.
Infelizmente, há quem reflita sobre a sociedade como quem segue a moda. Procura a última teoria ou tendência sociológica, como se lhe facultasse uma compreensão melhor do real. Mas a relação da verdade com a novidade não é assim tão direta! A idade de uma teoria não dispensa a consideração do seu conteúdo para se determinar se é verdadeira ou falsa. E, no que tange à compreensão da História, embora um sem-número de obras tenham sido recentemente publicadas, parece-me que o valor específico da de Marx não foi superado por qualquer delas.
O capitalismo, para Marx, é um modo de produção que pode ser estudado por dois métodos: o primeiro privilegia a análise do capital individual, de cada empresa ou empresário; o segundo tem como foco o capital social. Esses métodos correspondem ao que os economistas chamam micro e macroeconomia. Rosa Luxemburgo escreveu que uma teoria completa da sociedade deve enfocar os processos econômicos “não a partir do ponto de vista da superfície do mercado, ou seja, do capital individual”, mas “a partir do ponto de vista – em última instância, o único correto e decisivo – do capital social” (LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital. Apêndice. p. 10).
Se o método que se centra no capital social não é absolutamente superior ao outro, é no mínimo o mais adequado à compreensão do funcionamento a longo prazo do modo de produção. Podemos admitir que a consideração do capital individual permite compreender melhor o que se passa com agentes econômicos situados numa situação limitada, no tempo e no espaço, porém a compreensão do que se passa com a sociedade inteira, em períodos maiores de tempo, é muito mais promovida pela investigação do capital social.
Por isso, uma das partes mais importantes da obra de Marx, senão a mais importante de todas, é aquela em que ele analisa o que ocorre com o capital social e não com os capitais individuais, no modo de produção atual. Curiosamente, esse estudo surge e se adensa, de modo repentino, no segundo e no terceiro tomos de O capital. Como testemunha da revolução introduzida pela grande indústria, nesse trecho de sua mais importante obra, Marx devota-se a entender a que parte a industrialização haveria de conduzir as sociedades. Independentemente de concordarmos ou não com ela, a conclusão a que Marx chega nesse ponto merece ser considerada a mais relevante de sua obra.
Afirma o filósofo e economista que a industrialização tende a levar o capitalismo a um colapso seguido de desintegração. Isso porque ela se resolve no aumento mais ou menos constante dos investimentos em máquinas e outros meios de produção, em detrimento dos investimentos em salários. Como os trabalhadores pagos com salários são os produtores da mais-valia, quanto menos salário, menos mais-valia. E quanto menos mais-valia, mais o capital é abalado. Consequência disso é que a luta de classes se acirra, e a organização social é revolucionada. E, quando esse processo chega ao limite, em lugar do capitalismo, emerge o modo de produção socialista.
Mais uma vez, podemos concordar ou não com Marx. Em qualquer caso, será difícil negar que a sua análise da industrialização é a que produz consequências mais claras sobre o futuro do capitalismo e a que mais ajuda a entender o que aconteceu, no mundo, entre o final do século XIX e o início do XXI. Vejamos sucintamente como Marx chegou a elaborá-la.
Tanto para ele como para os economistas de modo geral, a taxa de lucro é fundamental para o modo de produção capitalista, pois expressa a razão entre a mais-valia e o capital total numa sociedade. Por mais-valia, devemos entender o valor que o capitalista cobra pelas suas mercadorias além do que gasta para produzi-las. Essa valia ou valor é chamada mais por exceder os gastos com a produção. A queda da taxa de lucro significa, portanto, que a mais-valia se torna cada vez menor em relação ao capital total investido.
Por que isso ocorre? A resposta de Marx é que, nas condições introduzidas pela industrialização, a queda da taxa de lucro decorre do aumento constante do investimento em máquinas. Quanto maior a mecanização da produção, maior a capacidade de produzir com margens de lucros cada vez mais estreitas, já que as máquinas permitem tirar lucro igual ou maior do volume crescente da produção, mesmo que a parcela de lucro implícita em cada produto seja menor. É o que ocorre, por exemplo, quando o preço de produtos tecnológicos despenca sem que os seus fabricantes deixem de vendê-los e de auferir o seu lucro.
Marx associa o investimento crescente em meios de produção, que caracteriza a Revolução Industrial, ao investimento decrescente em salários. Mais máquinas permitem menos trabalhadores, portanto menos salários. Mas, como a mais-valia recebe esse nome porque os trabalhadores a acrescentam aos produtos que fabricam, o investimento menor em salários significa menor acréscimo de mais-valia. Ao longo do tempo, esse processo implica que a participação total do lucro na produção nacional decresce.
Não podemos fugir à conclusão de que o desenvolvimento da indústria tem as mais graves consequências para o modo de produção capitalista. Levado suficientemente longe, ele tende à desintegração da economia e da sociedade e o faz por uma razão clara e específica: a queda da taxa de lucro.
Que podemos comentar sobre essa predição de Marx? Em primeiro lugar, é preciso exaltá-la pelo método por que é formulada. Marx analisa a produção capitalista com base em conceitos muito precisos, como o de taxa de lucro, que é a razão entre a mais-valia e o capital total. Constroi, assim, pela primeira vez na história do pensamento, uma teoria sobre o futuro das sociedades baseada em considerações científicas, como Thomas Piketty reconheceu (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 16).
Porém, a cientificidade de Marx molda-se nas ciências da natureza. Como em Biologia ou em Física uma formulação não é científica se não permitir predições, Marx antevê o futuro com base na análise econômica. Como não o faz de modo temerário, mas com base na conceituação mais precisa disponível na sua época, chega a uma realização surpreendente e tão mais magnífica quanto mais soubermos valorizar as dezenas de milhares de páginas que ele escreveu à mão em preparação dessa tese.
Porém, a vantagem proporcionada pelo século e meio de História e pelo cabedal estatístico e literário disponibilizados nesse período permite-nos concluir que ele estava errado. A predição do fim do capitalismo não se cumpriu. Nem por isso, é claro, a reputação de Marx fica arranhada. Até porque é ainda a História que nos mostra que o capitalismo chegou perto da dissolução por colapso durante a Grande Depressão.
Não o reconhecer é não entender o significado dos fatos. Tão grave e sem precedentes foi a recessão daquele período, tantos regimes extremistas surgiram por ocasião dela e tanto caos produziram não em países periféricos, mas nos mais poderosos do mundo que podemos considerar o conjunto daqueles acontecimentos quase como o cumprimento da predição de Marx. Seria um cumprimento total, se no núcleo econômico da situação então produzida não se albergasse algo tão contrário ao que Marx previu. Refiro-me à diminuição dos investimentos em meios de produção e à preservação da taxa de lucro: exatamente o contrário do que Marx disse que devia acarretar o caos até o modo de produção se desintegrar.
Quanto ao primeiro ponto (a diminuição proporcional dos investimentos em meios de produção), vale lembrar que, em 1914, Ford reduziu a jornada dos trabalhadores das suas fábricas para oito horas e dobrou os salários dos seus trabalhadores. O que lhe permitiu tais medidas foi a invenção da linha de produção e a verdadeira revolução social que a seguiu. A partir dali, os salários se descolaram do mínimo indispensável à sobrevivência (reprodução da força de trabalho), em torno do qual tinham gravitado durante quatro séculos. E o fizeram de maneira sustentada, ao menos nas grandes corporações, que representam a produção capitalista de modo mais típico.
Por isso, quando a Grande Depressão explodiu, na década de 30, as condições vigentes, nas nações centrais, não eram as que Marx conhecera. Elas não consistiam mais em investimentos crescentes em meios de produção e decrescentes em salários.
Passemos ao ponto seguinte da predição de Marx: a queda da taxa de lucro. Piketty mostrou, no seu livro nascido clássico, que a situação dos detentores do capital não só melhorou como atingiu o ápice da série histórica iniciada com a Revolução Industrial, durante as décadas de 1890 a 1910. Na França, cujas estatísticas são, de longe, as melhores disponíveis, a participação do centésimo superior (1% mais rico) na riqueza total passou, nesse período do patamar já alto de 50% para inacreditáveis 60% (idem. pp. 331-333). Esses dados são incompatíveis com um cenário de queda da taxa de lucro.
A 1ª Guerra Mundial e a Grande Depressão alteraram esse cenário, porém não pelas razões antecipadas por Marx. As verdadeiras causas do que Piketty denomina compressão do décimo superior, causada por aqueles acontecimentos, não foram a queda da taxa de lucro, mas a transição forçada para a economia de guerra e o desarranjo financeiro gigantesco da década de 1930.
Porém, quando isso ocorreu, as condições gerais do capitalismo se haviam alterado ou estavam em em vias de se alterar em sentido contrário ao da previsão de Marx. A tendência do regime passara a ser de investimentos maiores em força de trabalho e taxas de lucro sob controle, que contribuíram, em grande medida, para a superação da Depressão. Aliás, lado a lado com a terceira nova condição econômica (a intervenção do Estado), elas reverteram não só a Depressão como o sentido de todo o desenvolvimento anterior do capitalismo industrial.
Talvez não seja demasiado afirmar que reverteram, ao mesmo tempo, o princípio geral de todos os modos de produção do passado, que havia sido a contradição. Isso porque o investimento crescente em salários passou a funcionar como válvula de contenção e escape da luta de classes. A meu juízo, isso nunca havia sido presenciado. O sinal da História, se nos for permitido o recurso a esse símbolo, foi alterado. O que era menos passou a ser mais, a contradição transformou-se em cooperação, e a extinção, em expansão.
Bruckberger descreve os avanços do fordismo nos seguintes termos: “O crescente fardo das misérias e servidões impostas aos trabalhadores pela primeira revolução industrial, a crença de que os recursos do mundo eram limitados, que seriam em breve insuficientes para a população global, devem ter criado uma atmosfera de catástrofe iminente [...] Num mundo de recursos limitados, a ordem de urgência impôs aos espíritos lúcidos a terrível ameaça da miséria generalizada e o problema da sobrevivência material. Capitalismo e socialismo não viram como o problema poderia ser examinado de outro modo” (BRUCKBERGER, R. L. A república americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. p. 287). Porém, “a revolução industrial moderna [fordista] coloca o problema e os próprios termos do problema de maneira inteiramente nova, e por isso permite escapar tanto à solução socialista quanto à capitalista. Peter Drucker escreveu com razão: ‘A expansão é possível, eis a grande descoberta da [segunda] revolução industrial’” (idem. p. 288).
Há ufanismo nessas palavras, mas os fatos em certa medida o explicam. As condições introduzidas pela Primeira Revolução Industrial levaram ao caos econômico do século XIX, porém as da Segunda Revolução conduziram para fora dele. E o mais extraordinário e o prodigioso mesmo é que, ao permitirem essa redenção, elas facultaram também a regeneração da História. A sucessão de modos de produção, que Marx e Engels tinham descrito (no Manifesto comunista) como um desfile de explorações, repentinamente, estancou. O regime de sombra da morte mantido pela remuneração dos trabalhadores em níveis de subsistência entrou em decadência em muitos lugares. Se, no tempo de Marx, era possível enxergar naquele nível remuneratório uma exploração, ela não está mais presente hoje. Pela primeira vez, na História, produzir em massa deixou de ser sinônimo de explorar. Assim, a associação umbilical do capitalismo com a exploração, simplesmente, esfumou-se.
As três novas condições (ascensão econômica do proletariado, contenção da luta de classes e intervenção estatal), somadas, mudaram o sinal da História. Deram-lhe um novo DNA. Claro que o mundo continua carregado de problemas que nada têm de pequenos. Mas parte deles é o fruto tardio de condições passadas.
A pergunta sobre a gênese dessas mudanças profundas, de modo nenhum antevistas por Marx, não pode ser evitada. Que forças geraram tantas e tão positivas transformações? Não há dúvida de que a intervenção consciente do Estado, sob a forma de planejamento científico, desempenhou um papel relevante, mas, em última análise, as forças decisivas para as transformações foram as que movem a produção capitalista há séculos: o investimento do capital, o ajuste das parcelas dele que devem ser destinadas aos meios de produção e aos salários e a determinação equilibrada do lucro. Como essas operações são realizadas, primordialmente, por uma instituição chamada mercado, não há dúvida de que o funcionamento adequado deste foi o principal responsável pela introdução das mudanças positivas.
Sob esse ponto de vista, o sucesso da organização social dos Estados Unidos apontado em textos anteriores não pode ser atribuído ao acaso, mas ao adequado funcionamento do mercado. Onde a emergência econômica do proletariado foi mais acentuada? Nos EUA. Onde a luta de classes foi mais limitada por comportas? Também ali. Nada disso foi casual. O escape da América do Norte ao equilíbrio do poder tem um lado muito negativo, sem dúvida, mas imprime clareza extrema à lição histórica de que o mercado, ao atuar dentro dos limites que a natureza e a intervenção estatal lhe impõem, promove as transformações positivas já apontadas, o aumento da prosperidade e um grau importante de distribuição da riqueza. Chega, por isso, a regenerar as partes necrosadas do tecido da História.
A visão do futuro deve nascer, de algum modo, da avaliação do passado. E o passado do capitalismo sugere, fortemente, que as forças de organização e regeneração no interior desse sistema atuam mais fortemente que as de dissolução. Somos tentados a indagar, por isso, se o próprio término do sistema, quando soar sua hora, não se dará por transformação gradual e não violenta, em vez de por exaustão.
Em Gramática, referimo-nos ao futuro do pretérito. Na gramática social, o futuro do pretérito é o presente. Quero dizer que a pergunta sobre o futuro do capitalismo já foi formulada antes, e não estamos condenados a andar às cegas em busca da sua resposta. Mais que repetição perplexa da pergunta, o presente é a sua resposta. O futuro do capitalismo de ontem não foi o caos. Comparado com épocas anteriores, foi até mesmo luz. Menos para os pobres moços, é claro, que continuam a marchar para o inferno. Marcham à procura de luz.