quarta-feira, 26 de março de 2014

Planejamento (4): A Nova Roma

No fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética arrebatou os territórios do leste europeu à Alemanha nazista e impôs às nações aliadas o fato consumado da sua influência naquela parte do mundo. Por isso, apesar das negociações realizadas para redesenhar o mapa da Europa, desde a Carta do Atlântico, não foi possível evitar que os países surgidos no Leste Europeu, após a Guerra, se tornassem satélites dos invasores soviéticos e socialistas assim como eles.
Esses acontecimentos marcaram o início do aumento da influência soviética no mundo. Muitos outros países fizeram-se socialistas, depois, a maioria sob influência maior ou menor da União Soviética. E chama a atenção que, enquanto perdurou a distribuição do poder mundial em dois blocos (um capitalista, outro socialista), a teoria social refletiu-a fielmente.
Aliás, a reflexão da ordem mundial no espelho da teoria não se limitou aos aspectos objetivos dela. Mais do que retratar os dois blocos como realidade surgida do sacrifício e do sucesso militar da União Soviética na Segunda Guerra, os estudiosos da sociedade passaram a acreditar que a bipolaridade mundial refletia duas interpretações e dois grandes modos de pensar a sociedade, cujos pilares econômicos eram, respectivamente, o livre mercado e a propriedade estatal dos meios de produção.
Assim, enquanto vigorou a ordem mundial bipolar, a vanguarda intelectual aderiu ou ao menos simpatizou com o socialismo e, não raro, com o marxismo, ao passo que o pensamento conservador tendeu à justificação do regime capitalista. E é bom lembrar que, em ambos os casos, as elaborações doutrinárias foram do extremo das propostas autoritárias ao extremo contrário da plena democracia.
Porém, o alinhamento entre teoria e práxis é tal e tão profundo que, no início da década de 90, com o desmoronamento do mundo soviético, a preponderância teórica do socialismo desfez-se, sem que, em lugar das suas teorias características, se elevassem outras com o mesmo alcance e influência. É verdade que, por algum tempo, doutrinas de inspiração neoliberal ganharam terreno, após a queda do Muro de Berlim, mas a sua escalada não alcançou a proporção anterior do socialismo, por duas ou três razões: em primeiro lugar, porque o sucesso dos regimes que adotaram ideias neoliberais não foi bastante duradouro, mas também pela prevenção arraigada contra o liberalismo clássico e pela falta de consenso mínimo sobre quais seriam as ideias nucleares do novo liberalismo. O Consenso de Washington, proposto em novembro de 1989 e adotado pelo FMI na década seguinte, chegou a ser apontado como expressão autorizada do ideário neoliberal emergente, mas sua gênese no setor financeiro logo tornou visível a impossibilidade de utilizá-lo como núcleo de uma teoria suficientemente ampla da sociedade.
Entramos agora num momento histórico aparentemente distinto do que se caracterizou pelo desmoronamento do socialismo real e teórico. Distinto porque nos coloca o desafio de encontrar um alinhamento entre práxis e teoria social que reflita, ao mesmo tempo, a derrocada do socialismo e a insuficiência do liberalismo. Pergunta-se frequentemente que espécie de práxis emerge das transformações por que o mundo passou, nos últimos 25 anos. Sem dúvida, o desmoronamento do socialismo continua a compor o pano de fundo do nosso mundo social, já que as experiências com aquele regime foram tão malsucedidas, e a liquidação do mundo soviético, tão fragorosa que o aprendizado que produziram orientou boa parte das transformações das últimas décadas.
Mas outro aspecto do mundo atual precisa ser levado ainda mais em conta que a dissolução do socialismo. Refiro-me ao sucesso econômico de proporções gigantescas dos Estados Unidos. Verdade é que o modo de produção dos EUA reproduziu, simplesmente, o dos países europeus, notadamente o da Inglaterra, do qual se originou. Porém, se diferenciarmos o conceito de modo de produção do de modelo produtivo, concluiremos que, apesar de terem mantido o regime capitalista, os Estados Unidos criaram uma variante específica dele: um modelo de produção próprio e muito bem-sucedido.
Não é possível entender a variante norteamericana do capitalismo à parte da intervenção estatal. A economia dos Estados Unidos funda-se em bem sedimentados princípios de liberdade econômica. Tem, por isso, clara e profunda orientação liberal. Mas é, ao mesmo tempo, um capitalismo emergente do New Deal, em que a intervenção do Estado desempenha papel primordial.
Tudo isso é verdadeiro, mas, até aí, o modelo norteamericano não se diferencia suficientemente do de países que não alcançaram pujança semelhante à dele. Muitos ou mesmo todos os países capitalistas combinam liberdade econômica com intervencionismo estatal. Por que, então, o modelo norteamericano se cobriu de tamanho sucesso, sem emitir sinais claros de exaustão, enquanto aqueles países permanecem em níveis bastante inferiores de produção? A diferença há de estar não na combinação de liberdade e intervenção, mas no modo peculiar como isso acontece nos Estados Unidos.
Raymond Aron mostrou que quase todos os sistemas de poder da História caracterizaram-se pelo equilíbrio de forças. Tenderam, por isso, a dois tipos de organização principais: o dos sistemas multipolares e o dos bipolares. Em ambos, o poder de uma nação ou grupo sempre encontrou o devido contraste no de outra nação ou grupo. Não que certos países não tenham lançado empreendimentos mais vastos de dominação, mas os que o tentaram foram nisso frustrados, mais ou menos rapidamente.
O princípio do equilíbrio de poder se enuncia de maneira simples: “Nenhum Estado deve possuir uma força tal que os Estados vizinhos sejam incapazes de defender, contra ele, seus direitos” (ARON, Raymond. “Os sistemas pluripolares e os sistemas bipolares”. In Curso de Introdução às Relações Internacionais – relações internacionais de poder. 2ª ed., Brasília: UnB, 1983. p. 13). A mais importante e notável exceção histórica a esse princípio, segundo Aron, é Roma: “Se os antigos passam por haver ignorado a política do equilíbrio de forças, isto se deve à espantosa história do império romano. De fato, Roma pôde subjugar, um após o outro, todos os seus adversários, sem que estes tivessem sido capazes de concluir as alianças que os teriam preservado” (idem. p. 12).
Não há dúvida de que o sucesso de Roma em ampliar seu poder teve causas políticas. As alianças com outros povos e a tolerância de diferenças culturais, no espaço da República e depois do Império, foram algumas delas. Porém, questão mais profunda é a das causas econômicas da dominação romana. Identificaremos essas causas ao percebermos que, na Antiguidade, o poder econômico e a expansão territorial praticamente se confundiam. A agricultura era a principal fonte de riqueza. Por isso, a conquista de novas terras era o meio precípuo de enriquecimento.
A interpenetração de economia e expansão, na Antiguidade, permite-nos estender o equilíbrio do poder mencionado por Aron tão bem ao aspecto político quanto ao econômico. Permite-nos entender, até mesmo, que o sucesso incomum alcançado por Roma consistiu em romper esse duplo equilíbrio não tanto por meios políticos quanto por econômicos. De fato, apesar do sucesso militar que alcançou e que foi tantas vezes exaltado, Roma conheceu reveses bastantes, na guerra, para pôr em risco a expansão do seu Estado, a qual sempre foi, no fundo, um processo econômico. Aníbal é apenas um exemplo disso. Os perigos que arrostou, no campo político e militar, só não foram fatais para Roma, como para outros povos, porque ela foi capaz de romper, em seu favor, o equilíbrio econômico e colocar essa ruptura a serviço da sua contínua expansão.
Para entendermos como isso se deu, é útil sondar as bases de funcionamento da economia romana. Kautsky escreveu: “O modo de produção, nos países que o Império [Romano] abarcava, era a agricultura. Além desta havia, em muito menor escala, a indústria artesanal e o comércio” (KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 69). Ele próprio esclareceu, porém, que, “além da escravidão existiam duas outras formas de exploração na sociedade antiga [...] a usura e a pilhagem das províncias subjugadas pelo poder central” (idem. p. 109) e que “a aristocracia romana considerava a usura uma ocupação decente, não o comércio” (idem. p. 111).
É um bom resumo da economia romana, mas serviria igualmente para descrever o modo de produção de outros povos. Do que se conclui que a diferença específica de Roma não consistiu em gerar riqueza de maneira distinta de outras nações, mas em produzir por mais tempo da mesma maneira que elas, o que equivale a afirmar que Roma conseguiu conquistar e pilhar outros povos por tempo mais longo, sem sucumbir a inimigos externos e a lutas intestinas.
Não que essas lutas não tenham ocorrido. A expansão territorial produziu contingentes plebeus com direitos inferiores aos dos patrícios romanos de modo mais ou menos contínuo, na História da República e do Império. Quanto mais distantes essas classes estavam do núcleo do poder situado em Roma mais difícil se tornava controlá-las. Por isso, as rebeliões de plebeus, invariavelmente, terminavam com a vitória das classes novas sobre a antiga aristocracia. No entanto, na prática, isso não se traduzia em outra coisa que na ampliação da aristocracia pela incorporação das classes novas. Haja vista a concessão da cidadania romana a contingentes cada vez maiores, até Caracala universalizá-la em 212.
Esse modo específico de resolução da luta de classes aperfeiçoou-se a tal ponto, na História, que os reveses frente a inimigos não foram capazes de enfraquecer o vigor romano a ponto de restaurar o equilíbrio de poder com outros povos. Pelo sucesso alcançado na resolução de suas contradições internas, Roma sempre obteve o tempo e as condições necessários para superar alianças de inimigos que a teriam derrotado, em outro espaço de tempo e sob condições distintas.
Assim, “a democracia, ou o domínio sobre toda a população do Império [...] exercida por algumas centenas de milhares de cidadãos romanos, transformou-se em um dos meios mais efetivos de expandir a pilhagem ao mais alto grau e ao mais completo saque das províncias, na medida em que cada um deles [cidadãos romanos] levava consigo uma legião de amigos, que os tinham ajudado a eleger-se e, como recompensa, roubavam e pilhavam sob sua proteção” (idem. p. 124).
A capacidade de resolver contradições internas sem se desintegrar foi a causa precípua da longevidade do mecanismo de produção romano, a qual lhe permitiu acumular maior poder que todos os outros impérios antigos. Simplesmente, não observamos o mesmo mecanismo a funcionar tão bem ou tão prolongadamente em outros povos. Com base nele, os romanos foram capazes de escapar do equilíbrio de poder que caracteriza não só os sistemas políticos, mas também os econômicos.
Ao olharmos para os Estados Unidos de hoje, somos tentados a perguntar se o seu sucesso não nos oferece outro caso de dominação unipolar raríssimo na História. Assim como em Roma, a capacidade de resolver suas contradições sem golpes de Estado e com um único conflito interno de grandes proporções explica o sucesso da organização norteamericana. Mas, diferentemente de Roma, a resolução dos conflitos internos, nos Estados Unidos, não serviu apenas para aumentar o tempo durante o qual o modo de produção foi mantido em funcionamento, mas para aumentar a intensidade do funcionamento dele. A intensidade da produção americana é o que explica o sucesso econômico dessa nação, assim como o sucesso econômico explica a dominação política, a chamada pax americana.
A obra de Marx ajuda-nos a entender como esse processo pôde ocorrer, até porque foi deliberadamente composta para explicar o desenvolvimento capitalista. Marx acertou quase todas as vezes em que se debruçou sobre o passado e o presente; quando se referiu ao futuro, errou muito mais. E, se esse balanço da sua obra nos permite uma conclusão, é a de que a luta de classes pôs fim às grandes organizações sociais do passado. Em Roma, encontramos a confirmação dessa regra pela exceção. Roma desafiou o princípio da dissolução quase sempre rápida (em termos históricos) das grandes organizações sociais. Por mais de um milênio, ela não se desintegrou. Por quê? Porque soube desintegrar as lutas de classes que a ameaçaram.
O mesmo acontece, em princípio, com a segunda grande exceção ao equilíbrio de poder que encontramos na História: os Estados Unidos da América. Esse país foi capaz de escapar ao equilíbrio de outras nações por ter resolvido as suas contradições de classes com rara eficiência. Uma das mais graves delas explodiu sob a forma da Guerra de Secessão, mas terminou com a derrota do escravagismo e maior harmonia de classes. O empobrecimento causado pela Grande Depressão também se reverteu numa década, sem que um regime fascista emergisse. A limitação dos salários ao mínimo vital foi superada, de modo pioneiro, na época do fordismo. E, apesar de ter sido o epicentro da crise financeira de 2008, o país se tornou a primeira nação adiantada a superar os efeitos nefastos dela. Note-se que essa série de intempéries sociais foi vencida, sob a regência de uma e a mesma Constituição, portanto com incrível demonstração de estabilidade política.
Por ter anexado a Crimeia, a Rússia sofre, hoje, sanções internacionais. País após país e organismo após organismo internacional ergue sua voz para impor-lhe certas restrições e prometer outras mil. É o modo moderno que as nações encontram de exercer o controle de poder umas sobre as outras. Suas sanções não chegam com atraso, já que o poder da Rússia está hoje tão sob controle quanto é historicamente possível estar. Na época da União Soviética, as superpotências opunham-se restrições recíprocas. Assim se produzia o que Aron denominou sistema bipolar de equilíbrio. Hoje, tantas nações opõem-se ao mesmo tempo à Rússia, enquanto os Estados Unidos escapam ao equilíbrio de poder. 
Pergunto se o desmoronamento do socialismo e o aumento exponencial do poderio econômico americano, que se seguiu, não são um e o mesmo processo: o escape dos EUA ao equilíbrio do poder sob um sistema bipolar ou multipolar. Dirão que não houve aumento algum do poder americano? Que a economia da América do Norte estava à beira do abismo, e a crise de 2008 empurrou-a abismo abaixo? Indago, de minha parte, se essa visão de mundo não se obtém com óculos coloridos. Os que distribuem os óculos sustentam que estamos num brave new world multipolar. Pergunto se não estamos nos tempos da Nova Roma.