quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Crise na Ucrânia (2)

Nunca o mapa cultural coincidiu tanto com o resultado de uma eleição. Em 2010, ao serem abertas, as urnas da Ucrânia mostraram que o candidato Viktor Yanukovich vencera em todas as províncias de maioria russa, e Yulia Timoshenko, em todas as de maioria ucraniana. Como a Ucrânia não tinha só quatro ou cinco províncias (oblasts), mas 24, a perfeita coincidência das urnas com a situação cultural do país confirmou a importância dos temas relacionados à identidade, na História europeia recente. Porém, em fevereiro de 2014, Yanukovich se tornou o primeiro governante europeu, em anos, a ser derrubado por um movimento popular. E um movimento voltado não à aproximação da Rússia, mas da União Europeia.
A revolução de fevereiro tem sido interpretada como consequência política da divisão cultural na Ucrânia. Mas ela também tem claras motivações econômicas, já que a posição pró-Rússia implica a preservação de relações históricas entre as duas repúblicas tanto quanto uma guinada na direção do capitalismo russo. Por outro lado, a posição pró-União Europeia importa o alinhamento da Ucrânia com o Ocidente e as variações do capitalismo ali implantadas. Assim, numa visão de conjunto, se os conflitos não exprimem a passagem de um modo de produção a outro, expressam por certo a luta pela adoção de um ou de outro modelo produtivo.
Essas motivações econômicas estão longe de ser imaginárias. Decorrem do contexto das lutas em andamento na Ucrânia. Embora dono de uma agricultura pujante e de setores industriais desenvolvidos, a segunda república mais poderosa da antiga União Soviética ainda tem um alto percentual da população (35%) situado abaixo da linha da pobreza. E a tendência do alinhamento com a Rússia é concentrá-la progressivamente nas regiões de língua ucraniana, às quais a ajuda econômica russa chega em menor volume. O histórico de dependência da Ucrânia em relação ao gás russo também a sujeita ao risco de cortes na taxa de crescimento, por embargos no fornecimento ou pelo encarecimento daquela fonte energética. O peso dessa exploração se expressa na dívida externa ucraniana, hoje próxima de US$ 100 bilhões.
Boa parte dessa dívida vem do comércio de gás natural. É, portanto, um problema antigo, mas que jamais foi tão grave, uma vez que, com a queda do regime pró-Rússia, o líder Vladimir Putin cobrou de uma vez US$ 2,2 bilhões em dívidas relativas à venda de gás natural à Ucrânia. E, não satisfeito, ainda ameaçou cortar o fornecimento de gás ao país.
Tudo isso mostra que a crise da Ucrânia está longe de se originar apenas de questões culturais. Quando Yanukovich decidiu não assinar o acordo de associação com a União Europeia, em 2013, não estavam em jogo somente línguas, costumes e tradições, mas o problema do gás natural e a orientação econômica do país ao Ocidente ou à Rússia. Podemos afirmar que estava em jogo tudo o que, direta ou indiretamente, mas de maneira efetiva, influiu na decisão recente do país de retornar ao capitalismo.
Na Ucrânia, essa decisão é exposta de maneira exemplar. Antiga república soviética, ela não se manteve unida à Rússia, quando o arcabouço político gerido pelo Kremlin desmoronou. Todos sabem que a quebra política que então ocorreu teve relação com a anterior quebra econômica da União Soviética. Portanto, com a opção que o país realizara pelo socialismo de Estado, O que raramente se recorda é que o retorno da Ucrânia ao capitalismo envolve uma série de problemas cuja solução não pode ser encaminhada pela aplicação de um só modelo econômico no leste e no oeste. Em outras palavras, o mapa atual da Ucrânia pode não corresponder às exigências do retorno das duas regiões ao capitalismo, uma vez que o leste não quer (e talvez não possa) abrir mão dos benefícios que lhe proporciona a Rússia, enquanto o oeste precisa contar com a ajuda da União Europeia, inclusive, para combater a pobreza galopante.
Ontem como hoje, a motivação econômica básica do povo ucraniano é a busca da prosperidade. Porém, em outras épocas, essa busca materializou-se na transição de um modo de produção a outro. Nos séculos XIX e XX, por exemplo, a implantação do socialismo era uma obsessão tanto para os que desejavam promovê-lo quanto para os que queriam evitá-lo. Hoje, a busca da prosperidade não está tão atrelada à escolha do modo de produção quanto da modalidade dele. Já não se trata de passar do capitalismo ao socialismo, mas de buscar a variação mais adequada daquele.
No entanto, a História não mudou de natureza, a não ser em países, como a Noruega e os Estados Unidos, nos quais a luta de classes se reduziu drasticamente. Não é esse o caso da Ucrânia ou da Rússia. Assim como estava atrasado em relação à Europa Ocidental e aos Estados Unidos, no século XIX, o desenvolvimento desses países continua defasado hoje. Por isso, a crise que os envolve não deixa de ser a luta das classes ucranianas oprimidas pelo estamento no poder na Rússia. Não é uma luta de classes típica, por não opor camadas situadas no mesmo país ou nas mesmas empresas, mas é uma luta de classes travada sobre os muros da divisão política e das identidades culturais.
As populações de idioma ucraniano lutam contra a opressão do Kremlin que, para exercer-se, necessita cooptar as populações de língua russa e tem tido amplo sucesso nisso. Porém, ao desenvolverem essa luta, elas não desejam, como os revolucionários do século XIX, substituir o capitalismo pelo socialismo, mas uma modalidade de capitalismo por outra. Querem implantar um modelo de capitalismo inspirado em nações da União Europeia, portanto mais aberto e dinâmico que aquele que a Rússia tem para oferecer.
Por mais que seja um país abastado, do ponto de vista natural, a Rússia sofre com suas limitações econômicas. Seu desenvolvimento passado deu-se com base na exploração de classe, o que não a favorece. Além disso, a população russa, que ocupa o maior território do mundo, tem diminuído há bastante tempo e é, hoje, de aproximadamente 140 milhões. Não é esse o sinal de uma economia em expansão ou para ser imitada. E, para complicar, parcela cada vez menor da população russa terá de sustentar o crescimento do país no futuro, devido ao envelhecimento geral da população. Embora outras economias enfrentem ou estejam fadadas a enfrentar tal problema, num futuro próximo, ele é mais grave na Rússia.
Esses fatos têm levado os ucranianos ocidentais a perceber as desvantagens da união com a Rússia e a se opor a ela. Por outro lado, grupos pró-Rússia do leste têm adotado posição oposta. E, com o triunfo do movimento de aproximação do Ocidente, os grupos favoráveis ao Kremlin organizaram forte reação para desmembrar a Ucrânia em diversos países ou reuni-la à Rússia.
O ideal de ocidentalização não é exclusividade do movimento que derrubou Yanukovich. É compartilhado por vários grupos e populações da antiga Cortina de Ferro. Como no século XIX o ideal revolucionário da Europa era substituir o capitalismo decadente pelo socialismo, a aspiração mais comum, nos países da Europa Oriental de hoje é adotar um modelo produtivo de feitio claramente ocidental. E, como a troca do modo de produção é um processo de natureza econômica, a substituição de uma variante dele também o é. O problema é que não é simples, para as duas metades do país, renunciarem aos benefícios que qualquer um dos países-líderes dos modelos variantes oferece. Portanto, o  que o tempo atual revela não é o declínio dos condicionamentos econômicos em favor dos políticos, mas a prioridade da escolha da espécie ou modelo de capitalismo em relação ao modo de produção.
No auge da crise introduzida pela industrialização, Marx escreveu que “os povos entre os quais [a produção capitalista] teve o seu maior avanço na Europa e na América aspiram tão somente romper suas correntes e trocar a produção capitalista pela produção cooperativa e a propriedade capitalista por uma forma superior do tipo arcaico de propriedade, isto é, pela propriedade comunista” (MARX, Karl. Carta a Vera Zasulitch. In MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 104). Esse era o anseio típico do século XIX, com seus problemas não menos típicos. O anseio de hoje é outro. É encontrar a variedade mais eficiente de produção capitalista, que não é a mesma em todas as situações, mas varia extremamente com elas.
No século XIX, a Ucrânia e a Polônia afastaram-se da Rússia ao superarem a produção comunal. De acordo com Engels, “na Europa ocidental, incluindo a Polônia e a Pequena Rússia [nome da Ucrânia no século XIX], a propriedade comunal converteu-se, em certo estágio do desenvolvimento social, em amarra, em entrave da produção rural, sendo gradativamente posta de lado” (ENGELS, Friedrich. Literatura de refugiados – artigo V. In ob. cit. p. 50).
Desde essa época, o desenvolvimento da Ucrânia divergiu do da Rússia. E não faltaram motivos para isso, já que as populações polonesas (abundantes na Ucrânia ocidental) e as de língua ucraniana sofriam forte opressão do czar (idem. pp. 34-35). A dissolução da comuna, na Pequena Rússia, a que Engels se referiu, foi fruto dessa opressão. E, apesar da reversão forçada ao coletivismo, no período soviético, quando a URSS desmoronou, a Ucrânia pôde retomar a privatização da agricultura e a trajetória econômica anterior.
É verdade que não o fez sem grandes dificuldades e que o principal entrave ao desenvolvimento do país continuou a ser a opressão russa. A revolução de fevereiro de 2014 foi só o último capítulo dessa luta. Sua diferença específica foi orientar-se à transição de um modelo de produção dependente da Rússia a outro de inspiração ocidental.
A transição sempre foi e continua a ser difícil, como os fatos recentes demonstram. A primeira dificuldade consiste em selecionar, dentre as variações do capitalismo que o Ocidente oferece, a mais adequada ao país. Além do modelo em metamorfose na Inglaterra, Alemanha e França, a Ucrânia tem diante dos olhos e considera, que sabe, aderir ao capitalismo escandinavo. Porém, no fundo, a versão escandinava do capitalismo é a mesma dos países europeus ocidentais e até mesmo dos mediterrâneos. O ideal de um capitalismo celta muito mais igualitário tem menos substância do que cores e formas. Pode ter sido bem-sucedido em países menos povoados, mas é improvável que o sucesso se repita nos mais povoados. Por isso, o oeste da Ucrânia deverá assimilar o modelo da União Europeia. A questão é o que ocorrerá, no médio prazo, no leste.
Chegamos, assim, à mais incômoda de quantas questões a reflexão social nos coloca, a saber: a questão do futuro. Por mais que se incline ao erro ao prever o futuro, o pensamento social não pode evitar debruçar-se sobre ele, já que o presente está grávido do porvir. O caso da Ucrânia coloca-nos o mesmo problema.
Não sabemos o que ocorrerá, no curto prazo, no mais ocidental dos países de população russa. Sabemos, porém, que as tendências econômicas dirigem o médio e o longo prazos muito mais do que determinam o futuro próximo. E não há como evitar a conclusão de que, nessa perspectiva mais ampla, a Ucrânia e os países influenciados pelo seu exemplo buscarão libertar-se da exploração e da luta extremada de classes, sem perceberem, é claro, que à medida em que o fazem, redimem-se e redimem ao mesmo tempo a História.