A situação do mundo é quase sempre abordada, do ponto de vista dos países centrais, principalmente dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, o que pode viciar a análise, já que os países periféricos desempenham papel histórico muito relevante, não apenas em razão do seu número, mas também porque, de tempos em tempos, novas potências emergem da periferia para o centro do sistema internacional. Neste e no próximo texto, tratarei das crises deflagradas, recentemente, na Ucrânia, sob o ponto de vista da sua relação com a economia do país.
Para entendermos a relação entre a economia e a crise ucranianas, a primeira pergunta a ser feita é sobre o tipo de formação econômica que se desenvolveu naquele país. Precisamos identificar, a seguir, quais as direções prováveis de mudança do regime econômico e sua relação com a crise.Nunca é demais lembrar que esse método de análise se justifica pela limitação epistemológica que expus em textos anteriores: se não formos capazes de identificar um subsistema que responda pela maior parte das transformações numa sociedade, não teremos método científico algum para tratar dos dados históricos, já que um método exige, antes de tudo, um princípio de orientação a priori. E, sem um método, não teremos como chegar a uma teoria da história. Esse é um problema formidável demais para ser desprezado ou desconsiderado. Portanto, melhor é dispensarmos a ele a atenção devida.
Para os menos informados, pode parecer estranho que Marx tenha oferecido a maior contribuição teórica para a identificação do principal subsistema responsável pelas transformações históricas de longo prazo. No entanto, foi exatamente ele quem ofereceu essa contribuição, ao nos legar a maior e mais vasta demonstração de que o subsistema da produção, chamado modo de produção, é aquele do qual emanam as mais profundas e duradouras mudanças na configuração das sociedades.
Mas o reconhecimento desse mérito de Marx não é suficiente para fazer de alguém um marxista. É que, além de pensador social, Marx foi também filósofo e, como tal, nos deixou um pensamento mais vasto que a sua teoria da História. Ser marxista é adotar as principais bases dessa filosofia. Nesse terreno mais amplo e somente nele, é que a adesão a Marx ganha nitidez e se consuma.
Concordo extensamente com a teoria da História de Marx, mas não me considero marxista por não convergir com outros pontos básicos da filosofia desse autor, assim como o materialismo em sentido amplo e a dialética hegeliana. No próprio terreno da História, tendo a valorizar mais o método (baseado no modo de produção) do que as conclusões a que Marx chegou pela aplicação dele. Isso porque, quando se faz ciência e teoria, a História adquire uma inflexão inevitável sobre o futuro. E as análises e conclusões de Marx sobre o futuro da Europa estão sujeitas a dúvidas tanto quanto a merecidas críticas.
Por isso, ao lançarmos mão do instrumental de análise de Marx e Engels, devemos tomar cuidado para utilizar mais o seu método do que as conclusões prospectivas a que chegou, ou seja, a sua visão de futuro. Isso é particularmente verdadeiro no que tange aos países com amplos contingentes populacionais russos, como a Ucrânia.
Na primeira parte de sua obra central (O capital), Marx expôs a formação do modo de produção capitalista, na Inglaterra e na Europa Ocidental, mais amplamente considerada. E, devido à influência maior desse livro, somos às vezes levados a considerar que Marx não tratou do desenvolvimento social de outras regiões do mundo, como os Estados Unidos e a Rússia. Mas não foi esse o caso. Embora tenha apresentado as suas ideias sobre esses outros países em textos esparsos e mais concisos, Marx tratou efetivamente deles. Vejamos, em poucas linhas, o que ele escreveu a respeito da Rússia, com a qual a Ucrânia atual tem a mais estreita relação.
Na carta que endereçou ao editor de uma revista russa que havia publicado o artigo “Karl Marx diante do tribunal do sr. Jukovski”, nosso autor prestou um esclarecimento importante: “Para poder julgar com conhecimento de causa o desenvolvimento econômico da Rússia contemporânea, aprendi a língua russa e depois estudei durante longos anos as publicações oficiais referentes a esse tema, entre outras” (MARX, Karl. “Carta à redação da Otchestvenye Zapiski". In MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classe na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 66). Portanto, apesar de não ter escrito tanto sobre a Rússia quanto sobre a Inglaterra, por exemplo, Marx estudou-a bastante detidamente.
Ele identificou, na Rússia, condições econômicas muito distintas das existentes nas nações ocidentais da sua época. Descreveu-a não como um país capitalista, mas pré-capitalista e agrário. Achou-a, portanto, sujeita a um modo de produção semifeudal. E, em razão das especificidades do modo de produção russo, Marx pensou que ele estava em condições de evoluir tanto para um modo de produção capitalista como para um socialista.
Como ele chegou a essa conclusão? Para entendê-lo, é preciso, antes, nivelar nossa informação com a de Marx. Ele sabia que, em tempos primitivos, a organização social de todos os países da Europa se baseara numa instituição conhecida como comuna agrícola, na qual a propriedade da terra, dos instrumentos de trabalho e, às vezes, também do produto dos campos era coletiva. Porém, essa instituição recuara ao ponto do desaparecimento quase total, a não ser num lugar: exatamente a Rússia.
“A Rússia é o único país europeu”, escreveu Marx, “em que a comuna agrícola se manteve em nível nacional até os dias atuais” (MARX, Karl. Carta a Vera Ivanovna Zasulitch. Primeiro esboço. In Lutas de classe na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 94). Na visão dele, isso tornava a Rússia um caso único, no tocante à possível evolução para o socialismo, pois a extensão da organização comunista a inclinava nessa direção.
Porém, a comuna russa estava ameaçada de desintegração. Ela estava “extenuada pela carga fiscal que pesa sobre ela”, em razão da qual tinha-se tornado “matéria inerte passível de ser facilmente explorada pelo comércio, pela propriedade fundiária e pela usura. Essa opressão vinda de fora desencadeou no seio da própria comuna o conflito de sua decomposição. Mas isso não é tudo. À custa dos camponeses, o Estado deu forte impulso aos ramos do sistema capitalista ocidental [...] mais apropriados para facilitar o roubo de seus frutos pelos intermediários improdutivos [...] A menos que seja rompido por uma potente reação, esse concurso de influências destrutivas naturalmente deverá levar a comuna rural à morte” (idem. p. 97).
O modo de produção russo, uma variação específica do feudalismo, enfrentava, portanto, um estertor correspondente ao do capitalismo ocidental. Se esse regime agonizava, na Inglaterra e em outros países, na Rússia, a comuna é que estava em vias de desaparecer. Em ambos os casos, Marx enxergava oportunidades sem paralelo para a passagem à organização socialista, embora por razões diferentes. Na Rússia, porque os remanescentes do comunismo tradicional favoreciam tal transição. Na Inglaterra, porque a técnica capitalista havia concentrado os trabalhadores nas fábricas e forçado-os à cooperação.
Vejamos o caso russo, que nos interessa de perto neste artigo. “De um lado", escreveu Marx, "a propriedade comum da terra permite transformar de modo direto e gradual a agricultura parceleira e individualista em agricultura coletiva, sendo que os camponeses russos já a praticam em pradarias indivisas [...] De outro lado, a contemporaneidade da produção ocidental, que domina o mercado mundial, permite à Rússia incorporar à comuna todas as conquistas positivas produzidas pelo sistema capitalista sem passar por seus forcados caudinos [alusão à cidade de Caudium, em cujas proximidades os sanitas infligiram humilhante derrota a um exército romano, em 321 a. C.]” (idem. p. 94).
A principal diferença que Marx enxergava entre a tendência ocidental e a russa à organização socialista era o caráter muito mais fatal da primeira do que da última. “A produção capitalista [ocidental]”, anotou ele em O capital, “engendra a sua própria negação com a mesma fatalidade que conduz as metamorfoses da natureza” (idem. p. 67), pois “a propriedade capitalista, baseada de fato num modo de produção coletivo, só pode transformar-se em propriedade social” (idem). A Rússia, porém, tinha dois caminhos prováveis à sua frente: o capitalismo e o socialismo. “Ou o elemento da propriedade privada implicado [na comuna] prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre o primeiro. Essas duas soluções são a priori possíveis, mas para que ocorra uma ou outra é preciso, evidentemente, que haja ambientes históricos completamente díspares” (idem. p. 93).
Se o caráter certo da previsão para o Ocidente e incerto da que fez sobre a Rússia já chama bastante atenção, um ponto ainda mais saliente é o fato de Marx sujeitar as possibilidades históricas a um conjunto tão limitado de modos de produção. Do feudalismo ele reconhece que a Rússia podia passar ao capitalismo ou ao socialismo. E do capitalismo as nações ocidentais só podiam transitar em direção ao socialismo. Pensava sempre, portanto, em função desses poucos modos de produção, além dos quais a História só oferecia a alternativa do regime escravagista.
Por que tão poucas possibilidades produtivas de alcance geral? A História não é eminentemente imprevisível e diversificada? Sem dúvida. Porém, para Marx, a sua diversidade se contém num exíguo número de modos de produção esgarçados por variações sem conta, que ele classifica como primárias, secundárias, terciárias etc. Assim, por exemplo, “a história da decadência das comunidades primitivas [ou seja, do modo de produção primitivo] ainda está por ser escrita, e seria um erro colocar todas elas no mesmo patamar; assim como nas formações geológicas, há nessas formações históricas toda uma série de tipos primários, secundários, terciários etc.” (idem. p. 101).
No pequeno número dos modos de produção possíveis, encerra-se um grande mistério. Talvez o maior de toda a história econômica. Só destruindo esse rol tão estreito, é possível demonstrar o erro cabal das predições de Marx sobre os caminhos de desenvolvimento possíveis a partir do capitalismo ocidental e do feudalismo periférico (russo, mas também de outras regiões, a América Latina à frente).
Mas não é fácil alguém demonstrar que, em vez de quatro, os grandes modos de produção históricos são vinte ou trinta. Portanto, se o capitalismo ocidental estava à beira do abismo, no último quartel do século XIX, e se a comuna agrária podia dissolver-se ou ser revigorada, na Rússia, que Marx devia prever? Devia prever o retorno dos ingleses ao feudalismo, ou o da Rússia, ao escravagismo? Os ingleses trocariam a produção industrial pelo cultivo dos campos com base em instituições feudais? Os russos emulariam os avanços tecnológicos do Ocidente pelo retorno à produção baseada em mão-de-obra escrava? Se hipóteses como essas deviam ser descartadas por serem absurdas, Marx não errou tão grosseiramente quanto se afirma ao propor que os ingleses estavam às portas do socialismo, e os russos, equidistantes do socialismo e do capitalismo. As alternativas a essas transformações eram poucas e a maioria, improvável demais.
Devemos, porém, acautelar-nos. Os países da Cortina de Ferro se tornaram socialistas, por métodos muito diferentes dos que Marx previu. Neles, a comuna não tinha a importância que possuía na Rússia, quando o socialismo se instaurou. Portanto, o processo histórico dos outros países que se fizeram socialistas foi diferente do da Rússia.
Mas o que mais contrariou as predições de Marx não foi a salvação do capitalismo industrial ou a implantação do socialismo em países sem antecedentes comunistas claros ou vigorosos. Foi, antes, o fragoroso desmoronamento do socialismo não só soviético, mas também de outras cepas, a partir de 1991. Se a tendência ao socialismo era tão arraigada, como tantos países puderam reverter, ao mesmo tempo, ao capitalismo? E, se a construção do socialismo devia ocorrer por transformação gradual de uma estrutura social de outro tipo, porém análoga, por que a reversão ao capitalismo foi abrupta e simultânea em países tão diferentes? Não basta explicar a coincidência ocorrida por causas políticas.
O fato é que, por ter vivido no século XIX, Marx não teve a menor condição de antever desmanche tão rápido do socialismo. Mas, nos termos em que ele colocou o problema, devemos entender o socialismo do século XX em relação muito mais estreita com o de molde primitivo do que normalmente se pensa. Marx só teve tanta confiança no advento do socialismo, porque, para ele, esse modo de produção nada mais era que uma variação superior do comunismo primitivo. O socialismo devia vir, porque já existira. Porque o que teve tantas razões para existir devia necessariamente retornar.
Mas por que, interpretado dessa maneira, o socialismo terminou tão abruptamente? Provavelmente porque, embora análogo ao modo de produção primitivo, ele estava pouco arraigado nas condições econômicas dos tempos modernos. Marx superestimou o enraizamento do socialismo nas condições da sociedade atual, ao prever um soerguimento tão iminente e inevitável daquele modo de produção.
Esse é um problema recorrente do marxismo. Se Marx estava certo, então estava errado. Se os grandes modos de produção são tão poucos, o capitalismo ocidental e o regime semifeudal da Rússia deviam dar lugar ao socialismo. A História confirmou essas predições ao menos em parte. Mas, se o comunismo desapareceu há tanto tempo, embora uma conspiração de fatores tenha tornado o seu retorno provável, por que ele deveria consolidar-se a ponto de se tornar o regime do futuro como fora o do passado? Marx estava certo em tantos pontos, mas exatamente por isso estava errado ao esbanjar confiança no triunfo universal do socialismo.
Que isso tem a ver com a crise na Ucrânia? Pode parecer que pouco, mas é a introdução necessária à compreensão do contexto econômico daquele país, ao qual pretendo retornar no artigo seguinte.