segunda-feira, 21 de abril de 2014

A Filosofia Perene (3): Que é Filosofia Cristã?

A Filosofia Cristã é uma seção do discurso filosófico multimilenar. Podemos considerá-la o tratamento específico que pensadores com formação filosófica e teológica desenvolveram sobre o sentido do Universo e da existência humana.
Porém, embora tenha temas diversos, a Filosofia Cristã concentra-se num objeto principal, que sobressai aos demais. Refiro-me ao ser enquanto ser, como ele foi denominado na tradição peripatética e aristotélica. No século XVIII, Emmanuel Kant propôs a realização de um giro copernicano, na Filosofia, consistente em não mais a centrar na questão do ser e em fazê-la gravitar ao redor do conhecer. Essa revolução filosófica só pôde ser propugnada tão tarde, na História, porque, de fato, a Filosofia tinha-se debruçado, até então, de modo preponderante, no ser. Porém, ao propor-se, ela colocou em xeque a Filosofia Cristã, com sua histórica inclinação ao ser.
Na Encíclica Fides et ratio, João Paulo II anali-sou o papel da Filosofia no conhecimento e as suas relações com a fé. Nesse histórico documento, que filtra e apresenta o sentir e o pensar dos católicos ao longo de séculos, percebemos o enorme relevo atribuído pelo Pa-pa o problema do ser. Para João Paulo e a Igreja Católica, “o contributo específico [da Filosofia] é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta” (JOÃO PAULO II. Fides et ratio – sobre as relações entre fé e razão. 7ª ed., São Paulo: Loyola, 1999. p. 6). Porém, na medida em que ela o faz, “é possível reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem” (idem. p. 7).
João Paulo não hesita em afirmar que “esses e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos nos quais é possível ver uma espécie de patrimônio espiritual da humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita” (idem. p. 7). E identifica, a seguir, essa “filosofia implícita” como “os princípios primeiros e universais do ser”, dos quais é possível “deduzir correta e coerentemente conclusões de ordem lógica” (idem). Em outras palavras, para a Igreja, a Filosofia Cristã é uma reflexão sobre o ser e, só secundariamente, sobre outros problemas filosóficos. O ser comanda e deve comandar todo o questionamento filosófico.
Assim concebida, porém, a Filosofia Cristã torna-se incompatível com o giro de Kant, pois não admite o que ele propõe com maior urgência: o deslocamento das reflexões sobre o ser do centro para a periferia do pensamento filosófico. E o que espanta é que essa posição da Igreja não assenta em qualquer espécie de equívoco filosófico demonstrável, nem constitui resistência infundada ao moderno. É, antes e tanto quanto se perceba, uma maneira válida de ver e interpretar toda a Filosofia já dada.
A Filosofia Cristã resiste ao giro copernicano, pois essa reviravolta da reflexão está à raiz do enfraquecimento do saber sobre Deus construído, ao longo de séculos, na tradição filosófica do ser. Ouçamos em que termos João Paulo II o expressa: “A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral” (idem. p. 8).
Essa posição filosófica tem o mérito de uma coragem extrema, pois desafia o núcleo do que se convencionou considerar o corte filosófico entre o pré-moderno e o moderno: precisamente o giro copernicano. Mostra-nos, ademais, que a Filosofia Cristã pode ser interpretada como resistência àquele giro e, enquanto tal, a toda a Filosofia Moderna e Contemporânea.
Mas é preciso ressaltar: nem por ser entendida assim, a Filosofia inspirada na fé deve ser considerada reacionária, pois não resiste a todos os aspectos do moderno e do contemporâneo. Pelo contrário, a Filosofia Cristã critica o giro copernicano por não o reconhecer como o ponto decisivo da Modernidade na Filosofia, muito menos da Modernidade em geral. Trata-o mais como equívoco do que como legítima revolução.
A posição de Heidegger, no panorama da Filosofia Contemporânea, é semelhante à católica, pois também ele afirma a preponderância do ser e, por aí, se alia à resistência ao giro copernicano. Claro que, em muitos outros aspectos, Heidegger e a Filosofia Católica divergem. Porém, no tocante à centralidade do ser, eles se dão as mãos. Pergunto: seria Heidegger reacionário ou antimoderno? Bem, não é essa a avaliação que a maior parte dos filósofos, que o considera integrante legítimo da vanguarda filosófica, no século XX.
Poderíamos afirmar o mesmo de outros filósofos proeminentes, inclusive de céticos como Nietzsche. Mas basta o exemplo de Heidegger para assentar que a rejeição do giro copernicano não torna uma reflexão ultrapassada, nem a relega à condição de relíquia ou antiguidade.
Mas é preciso admitir que, em algum ponto, a Filosofia Católica se complica, no combate à modernidade filosófica. Penso identificar esse ponto não com a crítica à supervalorização da filosofia do conhecimento, mas com a variedade específica de filosofia do ser que a Igreja professa. Essa filosofia ainda é a de São Tomás que, inexcedível na sua época, apresenta limitações que a mantêm em descompasso com o conhecimento atual.
Em que pesem os méritos substanciais de Tomás como filósofo, ele não representa a maturidade da reflexão sobre o ser. O século em que viveu, o décimo-terceiro, foi um dos mais convulsionados da História da Filosofia. Foi o século em que as águas do pensamento se bifurcaram numa corrente ligada à Metafísica clássica e outra a ciência emergente.
Um dos maiores estudiosos desse período da Filosofia, Étienne Gilson, cita Duhem, que datou “de 1277 o início da ciência moderna (Études sur Léonard de Vinci, t. II, pp. 411-412)”. E acrescenta que, “em outro texto, o mesmo historiador propõe outra data mais tardia: ‘Se se quiser separar, com uma linha precisa, o reinado da Ciência antiga do reinado da Ciência moderna,seria preciso traçá-la, acreditamos, no instante em que João Buridano concebeu essa teoria [do impetus], no instante em que cessou-se de ver os astros como movidos por seres divinos, em que se admitiu que os movimentos celestes e os movimentos sublunares dependiam de uma mesma mecânica’ (Op. cit., t. III, p. XI)” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.p. 604).
No ano 1277, citado por Duhem e Gilson, passou-se, de fato, a condenação de uma longa série de proposições filosóficas e teológicas, por Étienne Tempier, com o objetivo de conter o movimento averroísta e o avanço de teologias (como a de São Tomás) calcadas em Aristóteles.
Os principais adversários de tomistas e aristotélicos, naquela época (os franciscanos), seguiam as pisadas de Boaventura, que ensinou que não precisamos de conceitos muito abstratos para chegar a Deus, já que a compreensão do mundo, como ele é, nos leva a ele. Os franciscanos inclinavam-se à doutrina agostiniana do conhecimento como iluminação de Deus e, com base nela, eles resistiam ao averroísmo e ao tomismo. Tornaram-se, assim, o grande celeiro medieval de pensadores empiristas aos quais Duhem se refere como fundadores da ciência moderna e que, desde cedo, ofereceram uma alternativa viável ao tomismo.
Pode ser, pois, demonstrado que a filosofia tomista, adotada entusiasticamente pela Igreja Católica, surgiu na bifurcação entre o pensamento metafísico e o científico. E a verdade é que, desde o início, ela não se situou muito bem, no tocante à bifurcação, pois forjou sua identidade em oposição ao empirismo. Assim, mesmo após a correção dos excessos metafísicos, a filosofia do ser restante, na tradição católica, nas palavras de João Paulo II, “assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência”, mas “move-se apenas com a luz do intelecto” (JOÃO PAULO II. Ob. cit. p. 11).
Assentar na percepção, no sistema tomista, é se conformar à máxima aristotélica segundo a qual nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Não é muito mais do que isso e é muito menos do que se exige para colocar o pensamento em razoável conformidade com o empirismo radical que a ciência moderna introduz. Nesse sentido, como João Paulo bem o expressa, é que a Filosofia Católica não se move pelos sentidos, mas pelo intelecto e somente por ele. Ela é, de fato, em larga medida, independente dos sentidos.
Na independência dos sentidos, reside a fragilidade da filosofia do ser da Igreja Católica. Os próprios exemplos de “filosofia implícita” citados pelo Papa (a não contradição, a finalidade, a causalidade e a pessoa humana) são, para ele, universais, naturais, portanto imutáveis. Essa a posição católica. Podemos questionar, seriamente, se existem, de fato, conceitos imutáveis ou revestidos de validade universal.
A História, tanto da Filosofia como das Ideias, é pródiga em invalidações de conceitos que um dia foram considerados independentes da experiência. Não é diferente com a não contradição e os outros princípios mencionados por João Paulo. Se a Filosofia deve ser considerada uma disciplina crítica, como penso ser o cso, cabe-lhe mais criticar aqueles conceitos e contribuir para a sua invalidação do que para criar a ilusão de que permanecem válidos independentemente da experiência que ocorre no tempo e no espaço.
Em outras palavras, o problema da Filosofia Católica e das correntes filosóficas cristãs influenciadas por ela não é assumir posição metafísica, mas não desenvolver a crítica metafísica. Após o surgimento da ciência moderna, é impossível à Filosofia proceder à revelia dela. Claro que o método da Filosofia não é o daquela ciência, mas, para exercerem o papel que lhes é reservado, as proposições filosóficas hão de ser desafiáveis por dados científicos e não independentes deles.
Em suma, a Filosofia Cristã continua a ser relevante, hoje como no passado, mas penso que deve evitar o pressuposto de que “a história do pensamento mostra que certos conceitos básicos mantêm, por meio da evolução e da variedade das culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposições que os exprimem” (idem. p. 72). Chego a pensar que a missão da Filosofia Cristã consiste, ao contrário, em dirigir sua crítica aos conceitos básicos mencionados por João Paulo e demonstrar que eles podem ser invalidados, em certas condições.
 Assim, a Filosofia Cristã continua a ser uma preparação para a fé. Continua a ser, igualmente, uma filosofia do ser. Conquanto a abertura ao empírico abra-a a tantos desenvolvimentos possíveis que o caminho adiante da Filosofia Cristã chega a ser imprevisível, por outro lado, não pode esse ramo do pensar filosófico deixar de ser o que a História o tornou, entenda-se uma filosofia do ser.
De todo modo, a preparação de tal filosofia realiza-se fora da fé. Ela não consiste em criar certezas, mas em dissolvê-las por meio da razão. Com efeito, se a fé é certeza, a preparação para ela deve estar fora dessa certeza. Deve, pois, consistir na num tratamento da dúvida. Há dúvidas que são vizinhas da certeza: identificá-las é a missão da Filosofia Cristã ou perene.
Claro que, como o homem não é capaz de conduzir suas obras à perfeição, a Filosofia tampouco tem o objetivo de dissolver todas as certezas. Como já sinalizei, seu escopo é muito mais seletivo. Consiste em identificar as exatas certezas que convém dissolver para em seu lugar implantar a dúvida e, pela dúvida, propor a fé.
Há talvez, aqui, uma inversão do papel histórico da Filosofia Cristã, mas uma inversão relativa. Embora cristalizada em certezas, pela atuação das igrejas, a reflexão dos filósofos cristãos nunca deixou de introduzir abundantes dúvidas. Esse foi sempre o seu papel principal. Procurarei separá-lo do trabalho de cristalização da reflexão em dogmas, realizado pelas igrejas, com a Católica à frente, e continuá-lo pela explicitação de minhas próprias dúvidas, para que se exerça com força máxima.
Porém assim esclarecida, a missão da Filosofia só se cumpre, passando em revista a História do Pensamento sob uma nova perspectiva, a saber: a da dúvida. Essa é a perspectiva que mais faz jus ao trabalho filosófico como a História o apresenta. Registre-se que ele é perfeitamente apto a preparar os espíritos para a fé, se esta nasce e se alimenta da dúvida, como penso que o faz.
Não é, pois, de estranhar que a apresentação da Filosofia Cristã neste livro percorra, de início, as escolas filosóficas, não com o objetivo de apresentá-las inteiramente, mas de apresentar as dúvidas que podem ser formuladas sobre as doutrinas centrais delas. Só a esse preço, a philosophia perennis se torna capaz de exercer o seu magistério.
Claro que, para exercer tal tarefa, a Filosofia deve dialogar com as ciências positivas e utilizar os dados delas. Do contrário, sua validade permanecerá confinada no território metafísico. Porém, ao fazê-lo, ela deve saber incorporar aqueles dados à sua reflexão específica a respeito do ser.
Esse parece ser o melhor caminho de desenvolvimento para a Filosofia Cristã, no tempo atual. E o é por não ser um caminho necessário. Para abrir caminho à fé, pela razão, não é preciso recorrer à certeza. Basta estabelecer bem a dúvida. Basta revisitar, revisar e, se possível, desintegrar conceitos. Principalmente os que fundamentam os quadros amplos do real que pintamos ao andar pelo mundo.
Principalmente os que fundamentam os quadros mais amplos que pintamos ao andar pelo mundo, quase sem perceber que os pintamos para desintegrá-los, como seres formados na contradição e não apenas na lógica.Vinícius e seu parceiro Toquinho escreveram sobre o Dilúvio, logo após terem dito “Herodes natural”: “Escute, amigo/ Se foi pra desfazer/ Por que é que fez?” A pergunta ressoa em todos os corações. E o faz tanto mais quanto vamos pela vida a pintar e a destruir, a destruir e a pintar nossos mundos filosóficos.