Se Romanos 12:1 não tivesse sido escrito, jamais um cristão atual faria as declarações que ali se encontram, pois a mentalidade que levou Paulo a escrever aquele verso não existe mais. Quando queremos falar de consagração, referimo-nos à entrega da alma, não do corpo, como Paulo escreveu. E temos enorme dificuldade para entender o que pode significar um culto prestado com a razão.
Paulo, porém, referiu-se à consagração do corpo e ao culto mais racional. Essas declarações dizem algo muito importante sobre a antropologia da época. Para Paulo, o homem era uma alma, que possuía um corpo. Cabia, portanto, à alma governar o corpo e não o contrário. Por isso, era ela que apresentava o corpo como sacrifício a Deus.
As afirmações do apóstolo confirmam o que temos visto diversas vezes neste comentário: que a alma ou a mente, se preferirem, é a parte principal do homem e o centro da salvação de Deus. Por ser a parte principal e o centro, a mente é simbolizada pela mulher do capítulo 7, cujo primeiro marido morre, o que lhe permite casar-se com outro (Cristo).
A superioridade da mente ao corpo é uma lição tão simples quanto esquecida. Porém, é o que permite à alma consagrar o corpo a Deus. Encontramos essa lição repetida por toda parte no Novo Testamento. Às vezes, ela é afirmada de modo implícito, como em João 1:12, que estabelece que a regeneração não consiste em nascer do sangue, nem da vontade da carne ou da vontade do homem. O sangue, como elemento corpóreo, opõe-se à vontade, que é o elemento psíquico, porque o corpo é distinto da alma. Do mesmo modo, em Romanos, por meio do culto racional, a alma deixa de ser guiada pela carne e passa a guiá-la. Apresenta-a como sacrifício vivo e agradável a Deus.
Essas são as ideias com as quais Paulo abre a longa seção a respeito da conduta dos que creem em Cristo. Ele as utiliza, pois pensa que o cumprimento da lei se obtém pela liderança da mente sobre o corpo. Fazer a coisa certa é agir racionalmente. E agir racionalmente é o mesmo que a mente governar o corpo.
As palavras de Paulo supõem o dualismo mente-corpo? Sem dúvida. E a cultura atual: nega esse dualismo? Nega-o, mas em parte. A alma continua a ser uma categoria do pensamento contemporâneo e, como tal, continua a se opor ao corpo. Não há como concebê-la, a não ser nessa oposição.
Romanos 12:1 reafirma, sinteticamente, o lugar reservado à razão em tudo o que é humano. Tanto o ser como o dever-ser do homem são racionais. O homem é guiado pela razão, queira-o ou não. Esse é o seu ser, a sua natureza. Mas ele também deve ser guiado por ela: esse é o seu dever-ser. A racionalidade é, portanto, um fato e um mandamento para o homem. Como fato, ela tem sua origem na criação; como mandamento, sua fonte é a lei.
Poderiam indagar se a fé não é uma experiência da afetividade. Se Deus e a experiência de Deus não se situam no sentimento. Situam-se. É o que significa a declaração “Com o coração se crê para justiça” (10:10). O coração significa, aí, o mesmo que em Deuteronômio 6:5: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”. Quem duvida de que o coração, nesse último verso, se distingue da razão fria? O coração é, portanto, a razão enquanto sente. Por isso, ao citar Deuteronômio 6:5, Jesus acrescentou a cláusula: “e de todo o teu entendimento” (Mc 12: 30; Lc 10:27).
A cláusula não pode ter sido inserida por um copista descuidado. “Shema, Israel [Ouve, Israel], o Senhor teu Deus é o único Deus. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” é um verso fundamental demais para ter sido citado de maneira errada por simples falta de cuidado. Errar ao citá-lo é como errar ao santificar outro nome em vez do nome de Deus. Portanto, ao inserir a cláusula “de todo o teu entendimento”, em vez de deturpar o versículo, Jesus entregou-nos a chave interpretativa dele. Tanto o coração como a alma e as forças têm no entendimento sua fonte primordial, porque o ser e o dever-se do homem são a sua razão.
O coração é o entendimento aquecido pela palavra de Deus. Está, pois, longe do pensamento bíblico ele excluir a mente. Se o coração excluísse a mente, a afetividade do ser humano seria idêntica à do animal, o que é absurdo. Mas ele não a exclui, antes tem nela o seu ponto culminante, a sua máxima realização.
Paulo nos lembra que o fato de a fé pertencer à esfera da afetividade e do sentimento não significa que ela seja irracional. Como o Antigo e o Novo Testamentos o apresentam, o sentimento não litiga com a razão. O mandamento não diz só “de todo o teu coração”. Nem diz apenas “de todo o teu entendimento”, como se devêssemos optar por um ou por outro. Diz “de todo o teu coração e de todo o teu entendimento”, a fim de que conciliássemos os dois.
A primeira de todas as virtudes, no Novo Testamento, é a fé. Mas não a fé irracional, a fé dirigida a qualquer coisa, mas a fé dirigida à verdade. Agostinho ensinou que "crer é aceitar como verdadeiro o que se diz e a aceitação é certamente um ato da vontade" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2009. p. 81). A fé que Paulo nos apresenta não é a fé num erro. É a fé na verdade, e a verdade, a menos que queiramos alterar o seu DNA, permanece uma categoria racional.
Se a fé fosse um sentimento irracional, toda fé seria igualmente justificável, pois o sentimento não é admitido ou rejeitado em função de outra coisa a não ser de si mesmo ou de outro sentimento. Não se pode afirmar que um sentimento irracional seja certo ou errado. Ele é apenas irracional. Portanto, não temos como o censurar nessa base. De modo que, se devemos criticar a crença em mulas sem cabeça ou coisas semelhantes, é porque devemos exigir que a fé se mantenha ligada à razão.
Credo quia absurdum (creio porque é absurdo)? Essa confissão resume a História da Religião, confunde-se com ela, porque nenhum ato lógico esteve sujeito a menor controle, até hoje, do que a fé. Mas o fato de a fé ter sido, historicamente, tão associada ao absurdo não exclui, por si só, que ela tenha estrutura racional. Assim como os pecados humanos, os absurdos da fé são redimidos no cristianismo, que não oferece somente o perdão dos pecados, mas a libertação de absurdos e superstições. A verdade não agrilhoa: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8:32).
Porque a fé no absurdo tem correção, porque há redenção para ela, é preciso não entregar o ato de crer ao descontrole da irracionalidade. Crer não pode ser crer em esquisitices, em irracionalidades consumadas, em coisas incompatíveis com a vida como ela se apresenta. É preciso examinar seriamente se a fé é incorrigivelmente absurda, como hoje se alega, ou não. Se concluirmos que não o é, precisaremos erguer a voz e apontar, com coragem, a estrutura lógica do ato de crer. Precisaremos explicar que crer no absurdo é perder-se ao crer, porém crer no que não é absurdo equivale a encontrar-se.
Aristóteles divide as virtudes em intelectuais (a exemplo da verdade) e morais (assim como a bondade e a paciência). Paulo, por sua vez, declara que os gregos retêm a verdade na injustiça (1:18). Por se opor à verdade, essa não é uma injustiça comportamental, mas intelectual. Há, pois, justiça intelectual e comportamental, como Paulo reafirma em 1ª aos Coríntios 13:6, ao declarar que o amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. De novo nesse versículo, a injustiça que se opõe à verdade não é comportamental, mas intelectual.
Crer não é saber: quem discordará dessa proposição? Mas, se não o é, a fé implica a dúvida. Implica que aquilo em que se crê pode ser ou não ser. E não implica uma terceira possibilidade além dessas. Por isso, a fé é a manifestação do princípio lógico conhecido como tertium non datur (terceiro excluído) no território da transcendência. Crer é crer que Deus é ou não é. Não há terceira possibilidade. Mas há um problema nisso: nunca se propôs que o terceiro excluído fosse qualquer outra coisa, além de um princípio lógico. E, se ele o é, então a fé é lógica, na exata medida em que Deus é ou não é.
Crer é aceitar algo tão tremendo quanto “Deus ser ou não ser”. Infelizmente, alguns nada veem de tremendo nesse dado. Para eles, Deus ser ou não ser é o óbvio, em toda a sua extensão. Mas como é difícil viver em conformidade com o óbvio! Se Deus é ou não é, por que vivemos tão despreocupados com a eternidade, nas nossas sociedades complexas e abastadas? Pascal afirmou: a alma é mortal ou imortal. E recriminou os que vivem como se só existisse a primeira possibilidade. Se os mortos não ressuscitam, disse-nos Paulo, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1 Co 15:32). Mas, se eles ressuscitam, prestemos bastante atenção, porque amanhã viveremos.
Essa é a primeira virtude: a fé na verdade transcendente, que não conhecemos a não ser minimamente. Dela nasce outra fé, dirigida à verdade imanente, que conhecemos muito melhor. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, Deus, que só pode ser conhecido pela fé, exorta as pessoas a falarem a verdade umas às outras. Daí a instituição do juramento. Ao se pronunciar, em momentos decisivos, o homem devia fazê-lo sob juramento. Devia jurar, a fim de que a verdade fosse estabelecida. E, para que não se pense que a natureza humana é suficientemente descrita pela propensão à mentira, sem referência às meias verdades que são tão humanas quanto comuns, naquele tempo eram necessárias duas testemunhas juramentadas para que uma só verdade se constituísse.
Em Neemias, encontramos um exemplo notável da extensão do valor da verdade, no Antigo Testamento. Confrontado por uma súcia de opositores inescrupulosos, ardilosos, mentirosos e fraudulentos, enfim com a pior de todas as raças, formada por Sambalá, Tobias, Gesém e outros, Neemias não agiu de modo inescrupuloso, ardiloso, mentiroso ou fraudulento, a fim de se defender. Recebeu uma carta de dois de seus arquirrivais para que comparecesse a um encontro em Cefirim, no vale de Ono. A carta omitia a verdadeira intenção dos opositores, que era fazer mal a Neemias (Nm 6:2).
Quatro vezes os inimigos de Neemias mandaram-lhe cartas com esse falso convite. Quatro mentiras, uma a mais que as tentações do deserto. A todas, Neemias opôs uma só verdade. Disse que não ia ao encontro, por estar ocupado com uma grande obra (a reconstrução dos muros).
Na quinta vez, Sambalá escreveu-lhe que os judeus tramavam rebelar-se e constituir Neemias seu rei. Não era possível acusação mais grave, nem mais inverídica. Que replicou-lhe o líder judeu? Mentiu, para enganar seu adversário? Não, mas usou de sinceridade. Disse-lhe simplesmente: “Não aconteceu nada de semelhante ao que afirmas”. E levou a sinceridade ao ponto da acusação: “Tudo não passa de uma invenção do teu coração” (Nm 6:8).
A atitude de Neemias faz lembrar o conselho “Não vos canseis de fazer o bem” (2 Ts 3:13). Cansar-se do bem, desfalecer na adesão aos valores é, para alguns, um problema maior que o gosto pelo desvalor. Os judeus que tinham voltado para Jerusalém viviam em grande pobreza. Tinham de realizar uma obra inversamente proporcional aos seus parcos recursos. E, como se não bastassem essas dificuldades, os homens mais poderosos da província se uniram para se opor a eles e ainda usaram de falsidade para com Neemias. Que o líder dos judeus opôs a esse prodígio de orquestração e falsidade? Simplesmente a realidade. É até onde deve ir a adesão de um homem à verdade.
Este é, porém, um tempo frívolo, uma era de indiferença quanto à verdade suprema. Que dizer das demais... Quem não respeita a maior de todas as verdades, por que motivo, no céu ou na terra, respeitaria as menores? Quem foi Jesus?, pergunta uma vasta literatura. A resposta que oferecem é: “Que importa, se eu não preciso dele?” “Deus criou o Universo ou tudo se fez sem ele?”, indagam os livros. Os que ouvem replicam: “Que importância tem isso?” Claro: a verdade já não importa. Há muito deixou de importar. É o que se diz e se ouve, em boa parte do Ocidente.
Dá calafrio pensar no que significam as palavras, as demonstrações e as juras que essas pessoas fazem sobre fatos mais corriqueiros. Gela pensar no que significam os seus convites para um simples encontro....