sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Transfiguração do Lucro

A produção de qualquer mercadoria inicia-se com a realização de um duplo investimento: em salários, para remunerar a força de trabalho empregada para produzi-la, e em meios de produção (energia, matéria-prima, máquinas etc.). A parcela do investimento despendida em salários chama-se capital variável. A outra é denominada capital constante ou fixo.
Os nomes atribuídos às duas partes orgânicas do investimento não são casuais. O capital que remunera os trabalhadores é chamado variável, porque o seu montante se altera durante o processo de criação da mercadoria. O outro se chama constante, porque a sua quantidade não sofre variação alguma. Essa é uma pedra fundamental da teoria econômica lançada pela Escola Clássica.
Poucos compreendem quanto o materialismo histórico depende dessa fundamentação do processo produtivo. Ela é a pedra fundamental da filosofia da História de Marx e, em particular, da sua explicação do capitalismo. Só Marx e as escolas que o seguiram tiraram todas as consequências da afirmativa de que o capital investido em salários é variável, porque se expande durante a produção, e essa expansão constitui a mais-valia.
A atribuição da mais-valia ao trabalhador, pedra de toque do sistema de Marx, justifica-se porque a mudança de forma dos elementos (a energia e a matéria-prima) que faz surgir o produto deve-se à atuação do trabalhador. Se, no fim do processo de fabricação, a mercadoria é vendida por valor maior que a soma de tudo o que se gastou, é porque esse plus, mais-valia ou sobrevalor, está associado à forma final do produto, ausente no início daquele processo. E, quem lhe atribui essa forma não é o dono do capital, nem os fornecedores dos insumos usados para produzir, mas unicamente os trabalhadores.
Marx distingue-se por ter demonstrado a validade dessa explicação elementar da mais-valia em todas as etapas do capitalismo, a despeito da complexidade interna de cada uma. Ao longo dessas etapas, o processo produtivo complica-se pelo emprego crescente de conhecimento e tecnologia, porém a mais-valia continua a ser gerada pelo trabalhador e, portanto, a lhe pertencer. Essa é a particularidade da compreensão do capitalismo por Marx. É também o ponto em que ele rompe com a Escola Clássica.
Muitos consideram que a ideia de que o capital investido em salários é variável, por gerar mais-valia, é adequada a uma época em que a produção se caracteriza pela pequena complexidade. A partir de quando a industrialização altera os métodos de produção, a diferença entre o custo e o produto deixa de ser atribuível com tanta simplicidade ao trabalhador, pois outros sujeitos, assim como o criador da tecnologia e o produtor do conhecimento, se tornaram decisivos para a transformação dos elementos no produto final. Sem a tecnologia corporificada na máquina, para citar um exemplo, o trabalhador não é capaz de produzir tão rapidamente quanto produz. Por isso, a mudança que faz surgir o produto a partir de seus elementos deixa de ser atribuível exclusivamente a ele.
A teoria econômica de Marx envolve a demonstração de que a atribuição da mais-valia ao trabalhador se mantém, nas condições do capitalismo avançado. Por isso, a mudança pela qual essa atribuição é negada, nas condições específicas da industrialização, constitui um erro com graves consequências sociais. Para Marx, a observação de que o trabalhador, o produtor do conhecimento e o das máquinas contribuem, ao mesmo tempo, para a transfiguração que faz surgir a mercadoria não é simplesmente verdadeira, já que, em termos econômicos, o trabalhador continua a ser o responsável exclusivo por ela.
Para chegar a essa conclusão, Marx se vale da distinção entre trabalho vivo e morto. O primeiro é o que entra na relação material de causa e efeito que faz surgir a mercadoria. O que leva à mudança de forma dos elementos é sempre uma energia presente ou “viva”. Nunca uma energia despendida no passado e, por isso, “morta”. O trabalho de produzir as máquinas e outros materiais usados na produção, por se incorporar a eles, não tem, como o trabalho vivo, a virtualidade inerente de transformar os elementos no produto final. Por isso, a mudança de forma dos elementos, na etapa industrial do capitalismo, deve ser atribuída aos trabalhadores que despendem o trabalho vivo e somente a eles.
Essa maneira de ver o processo de produção sob o primado da energia presente é negada, nas sociedades concretas, sempre que o lucro é considerado um acréscimo ao capital constante, já que isso rompe o princípio da preservação da quantidade dos investimentos em meios de produção. Insistir nessa ruptura é negar o que acontece, efetivamente, durante a transformação dos elementos. E a consequência social desse erro é a espoliação do trabalhador: uma grave injustiça.
Não se pode negar que a análise da produção industrial por Marx é consequência de um materialismo filosófico muito mais profundo do que se suspeita. Marx pensava o mundo inflexivelmente em termos de causa e efeito materiais. Assim como, numa relação causal, o efeito segue-se à causa direta e é atribuído exclusivamente a ela, a mais-valia se segue ao dispêndio de trabalho vivo e só a ele é atribuível.
O problema é que essa é uma interpretação reducionista. Reduz relações humanas à causalidade e a noção de causa ao antecedente físico imediato do efeito. Ignora todos os antecedentes que vêm antes do trabalho físico de produção, assim como o trabalho de produzir as máquinas e o conhecimento incorporado a softwares e outros materiais utilizados na produção. E, por esse método, atribui o efeito (a mercadoria) à causa material imediata.
Outra limitação da interpretação de Marx consiste em entender o processo produtivo exclusivamente em termos do passado. Se adicionarmos o futuro à análise, a mais-valia não precisará ser explicada em termos dos gastos efetuados com capital variável, máquinas e outros meios de produção. Poderá ser vista como a antecipação do valor necessário para iniciar, imediatamente, outro ciclo de produção.
Para entendermos melhor esse ponto, basta admitir que o lucro pode ou não ser acrescido ao preço das mercadorias produzidas. Se não o for, a mercadoria será vendida pelo custo de produção, e o valor da venda será idêntico ao investimento realizado no início do ciclo de produção. Isso se repetirá à exaustão, em todos os ciclos produtivos, sem que à produção se acresça um só centavo.
Porém, em tal contexto, o empresário não terá interesse em reiniciar a produção a não ser o de prover as suas necessidades de subsistência. Adiará, portanto, o início do ciclo produtivo seguinte até que a necessidade bata à sua porta. Isso mostra que a cobrança do lucro tem a função indiscutível de antecipar o início dos ciclos de produção, o que se traduz em aumentar o volume da produção no tempo. Não podemos ignorar que o significado do lucro, assim concebido, se extrai também do futuro e não só do passado e do presente.
O lucro é semelhante ao imposto que o Estado arrecada. Assim como o Governo não troca o que já fez ou fará imediatamente pelo imposto, o lucro não é cobrado em troca de um bem passado ou presente, mas do investimento que iniciará um novo ciclo produtivo. De sorte que tanto um como o outro têm clara orientação ao futuro, do qual retiram o que há de mais fundamental no seu significado.
Em Marx, o imposto é uma participação compulsória do Estado na mais-valia. Por isso, absorve a natureza desta. Como a mais-valia é o efeito de um trabalho presente (o trabalho vivo), o imposto é esse efeito apropriado pelo Estado.
Apontamos, porém, novamente, que essa é uma concepção preterista da produção. Numa concepção mais ampla, o imposto e o lucro são parcelas pagas por atos futuros: no caso do Estado, por todos os atos que a lei lhe atribui; no do empresário, pelo ato de início de um novo ciclo produtivo. Por isso, ao cobrar o imposto, o Estado não é obrigado a apresentar uma contrapartida semelhante à mercadoria que o vendedor dá em troca do preço. E, ao cobrar o lucro, o empresário não tem de praticar um ato ou oferecer um bem que lhe corresponda em troca.
Isso implica que o lucro não é cobrado só em função do que se fez ou se faz, mas também do que se fará. E que se fará com ele? Como temos visto, o lucro será usado para iniciar um novo ciclo de produção, antes que os imperativos de subsistência obriguem o empresário a isso. De forma que, tudo considerado, a produção com base no lucro é o que explica o crescimento da economia.
Há injustiça nessa concepção do lucro? Há nela autorização para a expropriação dos trabalhadores? De modo nenhum. Há apenas avaliação do processo produtivo em função do passado, do presente e também do futuro. Há, ao mesmo tempo, uma visão ampla o bastante desse processo para abranger relações não incluídas no rol estreito das que levam à criação física da mercadoria.
Vemos, assim, que a mais-valia e o lucro, que é a sua forma mais importante, não implicam a expropriação dos trabalhadores do que lhes pertence de direito. Talvez tenha sido esse o caráter deles, quando a produção era bastante simples para que a mais-valia derivasse, direta e inequivocamente, do capital variável. Mas o processo de geração da mais-valia alterou-se, com a alteração das condições em que a produção como um todo se desenrola.
No Manifesto comunista, Marx e Engels mostraram que a História é marcada pela exploração. Cada modo de produção distingue-se por uma técnica ou método produtivo que implica a exploração. Sem esta, nenhuma técnica produtiva é capaz de se pôr historicamente, vale dizer, de se tornar dominante a ponto de engendrar um modo de produção.
Os métodos de exploração típicos do capitalismo, para Marx e Engels, são a manutenção dos salários em torno do mínimo indispensável à sobrevivência do trabalhador e a subtração sistemática da mais-valia. Vimos em textos anteriores que o fordismo iniciou um processo de descolamento dos salários do mínimo vital que continuou e continua, até hoje, nas economias que o adotaram. Assim, o primeiro mecanismo de exploração foi amplamente superado.
Se a mais-valia puder ser considerada não um meio de expropriação do que foi produzido pelo trabalhador, no passado, mas de financiar o aumento da produção e o desenvolvimento das forças produtivas, no futuro, não restará método algum pelo qual a exploração se exerça de maneira contínua no capitalismo. Chegaremos à conclusão de que uma ampla regeneração do regime produtivo se pôs em andamento, do ponto de vista da sua relação com a justiça social, e que uma regeneração ainda mais evidente se verificou no processo de formação do lucro. Chegaremos à transfiguração do lucro num meio lícito e justo de produção do crescimento econômico.
Nos manuscritos não publicados em vida por Marx, há um trecho em que ele analisa o caso imaginado por Adam Smith de duas empresas que empregam o mesmo número de trabalhadores, pagam-lhes o mesmo salário, porém investem valores inteiramente díspares em meios de produção (MARX, Karl. Teorias da mais-valia - História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. pp. 69-70). O exemplo antecipa a situação paradigmática que a Revolução Industrial haveria de introduzir. É, por isso, particularmente elucidativo.
Ao enfrentá-lo, Marx admite que a empresa que investe mais em meios de produção tem um custo maior e, como o lucro é geralmente calculado sobre o custo da produção, a mais-valia que aufere é também maior. Mas, como era de esperar, ele não extrai desses dados que o lucro deriva, ao mesmo tempo, do capital constante e do variável. Fazê-lo seria negar todas as suas premissas. Seria negar que o pertencimento do lucro ao trabalhador não depende das valorações do mercado, mas de uma relação causal concebida em termos rigorosamente materiais. Mas será mesmo possível conceber a sociedade como um feixe de relações causais amputadas de todo vínculo com o que vem antes da produção física da mercadoria?
Minha admiração pelo materialismo histórico é grande, mas não o bastante para me submeter ao seu criador nesse ponto. Vou com ele até onde sua visão aguda desentranha os mistérios da realidade social. Não o acompanho nas direções a que ele é arrastado por Feuerbach, mentor do materialismo abstrato. Não o sigo enquanto cultiva o hábito de cravar o cinzel e eliminar os sentidos que transcendem a produção física da mercadoria.