A Filosofia existe há dezenas de séculos, mas, até hoje, os filósofos se perguntam a que ela se presta. É um fato chocante, pois não se reproduz com qualquer outro saber humano. E, talvez por vislumbrarem isso, quando as belas-letras voltaram à cena, durante o Renascimento, espíritos jocosos afirmaram que a “Filosofia é uma ciência tal que o mundo, com ou sem a qual, continua tal e qual”. Nenhuma definição (de um estado de espírito, é claro) poderia ser mais lapidar.
Mas, longe de desmoralizar a Filosofia, a repetição da pergunta sobre a sua finalidade realça a inusitada importância dessa disciplina. Comparemos um instante nossa disciplina com a dos biólogos. Estes perguntam, frequentemente, o que é a vida e, com idêntica frequência, confessam não o saber. A verdade nua é que a ciência da Biologia gira em torno dessa pergunta sem resposta. Nem por isso a consideramos uma ciência vã. Pelo contrário, a repetição da pergunta sobre o seu objeto realça que a vida é algo tão profundo que uma ciência inteira se faz necessária para formular a pergunta a respeito dela e respondê-la só de modo parcial.
A situação da Filosofia é, porém, ainda mais dramática, já que os filósofos não se perguntam só sobre o objeto da sua ciência, mas sobre a própria ciência. Assemelham-se, assim, ao aluno que estuda a lição e não só não a aprende como sequer desconfia o que seja estudar. Convenhamos que esse tipo corre mais risco de vir a ser considerado um asno que aquele que não aprende a lição, mas compreende, ao menos, o que é estudá-la.
Precisamos lembrar, porém, que a Filosofia não deve ser tão antiga, nem possuir uma História de mais de 25 séculos à toa. Algo estudado, por grandes mentes, durante 25 séculos, não há de ser considerado mero perfume acadêmico. De sorte que a perplexidade que a Filosofia nos causa pode ser mais devida ao mistério que a envolve do que à sua inutilidade.
Entre outras coisas, a Filosofia é misteriosa por ser um saber negativo. É comum esperarmos que um conhecimento sirva para alguma coisa ou, como se usa dizer, para “fazer alguma coisa”. Não há outro remédio que reconhecer que os que criticam a Filosofia por não nos ajudar a fazer coisa alguma estão certos, pois ela nos ensina não a fazer, mas a desfazer coisas. Ao menos, é a desempenhar essa função que a observamos no corpo da História.
A Filosofia é um saber bastante determinado, com objeto e partes bem estabelecidos e uma História luminosa. Mas, ainda assim, é um saber que serve para desfazer coisas, ou melhor, ideias. Especialmente para desfazer ideias que se impuseram ao longo de tanto tempo que se fizeram convencionais. Em outras palavras, a Filosofia serve para criticar o senso comum.
Ao menos desde Dionísio, o Areopagita, falamos e ouvimos falar de teologia negativa. A expressão só se justifica se tomarmos a teologia no sentido estrito de um conhecimento da essência de Deus. Estamos em amplo acordo sobre a incompreensibilidade de Deus. Nunca encontrei meio teólogo que discordasse dessa assertiva. Sabemos também que, se a essência de Deus é incompreensível, só podemos conhecer o que ela não é, jamais o que é. Essa é a afirmativa básica da teologia negativa.
No entanto, se não tem o que dizer sobre Deus, é absurdo a teologia aventurar-se a estabelecer o que ele não é, já que isso envolve uma contradição. Se pudermos entender o que Deus não é, não ficará implícito que ele é todo o resto ou parte do resto? Deus não resultará parcialmente determinado por essa via? E a teologia negativa não desaguará na negativa de si mesma? Essas dúvidas enfraquecem as propostas, de outro modo atraentes, da teologia negativa.
Chegamos, assim, a um paradoxo e dos mais profundos: a teologia é um conhecimento que divisa, de um lado, com a incompreensibilidade de Deus e, de outro, com a incompreensibilidade da teologia negativa. Só lhe resta, portanto, um caminho para existir: espremer-se o melhor que puder entre esses limites e reconhecer que, se não nos fala da essência divina, ela nos diz, necessariamente, das obras de Deus. Retornamos, assim, ao que Deus é ou aos reflexos do seu ser sobre o ser do mundo. Retornamos à teologia positiva e penso que nela devemos permanecer.
Porém, algo muito distinto se passa com a Filosofia. Ela é um saber negativo, por nos mostrar muito mais o que não sabemos do que o que o efetivamente conhecemos. Filosofia é o perguntar que serve para erodir e rebaixar as montanhas do saber humano. Na medida em que o faz, ela prepara o caminho para as ciências assertivas, assim naturais como sociais.
Pode ser útil dar exemplos históricos do uso negativo da Filosofia. A Lógica e a Metafísica, como da Filosofia, trabalham intensamente com categorias, isto é, com conceitos que fundam todos os outros conceitos. Exemplos de categoria são a substância, a quantidade, a qualidade, o tempo, o espaço, entre outras. Se olharmos para a História da Filosofia como um contínuo, perceberemos que o que umas escolas sustentam anula o que as outras afirmam sobre as categorias. Ficamos, assim, sem a certeza mínima sobre o que tais conceitos realmente podem significar.
Não há nisso qualquer autoaniquilação da Filosofia. O saber filosófico não é autofágico, pois não foram os filósofos que inventaram as categorias. Mas eles demonstraram tão bem as impropriedades no uso desses conceitos que terminamos sem eles. Não sem os filósofos, por sorte, mas sem as categorias.
É absolutamente normal e benéfico a Filosofia ser assim usada para desconstruir o saber humano. Ao fazê-lo, ela mostra, mais do que todas as outras disciplinas, que o saber tem limites essenciais e não apenas acidentais. Essa é a função primordial da Filosofia, até porque é difícil achar outra na massa de reflexões que a História nos apresente sob o nome de filosofia.
Quero dizer que, ao contrário de outras ciências, como a Física e a Biologia, que tantas contribuições ofereceram para o conhecimento humano, a Filosofia só faz o conhecimento avançar, positivamente, ao expor, de uma nova maneira, o que antes já se conhecia. No Organon, por exemplo, Aristóteles mostra como o conhecimento comum se processa. Alguém duvida de que os que o liam e o leem com avidez já o sabiam?
A oposição das escolas é apontada como o movimento geral mais nítido da História da Filosofia. E é bom que se lembre que as escolas se oporem nem sempre significa anularem-se, mas quase sempre se traduz em uma enfraquecer a outra. Em uma escola mostrar mil dúvidas que a posição da outra envolve. Maimônides é fundamental por ter aquilatado isso com tanta acuidade que nos legou o Guia dos perplexos (Maimonides, Moses. The guide for the perplexed. 2nd. edition, New York: Dover, 1956) como roteiro para todos os que reconhecem as dúvidas insolúveis a que essa disciplina conduz.
Mas a oposição das escolas não é o único motivo para negarmos que a Filosofia contribua, positivamente, para o conhecimento humano. O motivo maior é o fato de nossa disciplina ser muito mais destrutiva do que assertiva, muito mais crítica do que demonstrativa. É, enfim, o fato de ela servir tão bem para desfazer as ideias mais arraigadas que se albergam no interior das culturas e as regem, a saber: as que constituem o senso comum de cada época.
A crítica do senso comum é, portanto, o escopo da Filosofia. Ela se dá, primordialmente, pela revisão e superação das categorias que fundamentam esse acervo básico de pontos de vista e concepções. Por isso, a Filosofia não sintetiza categorias: critica-as. Não as sintetiza, primeiramente, porque sua finalidade não é positiva, mas negativa. É claro que não vou ao ponto de propor que os filósofos, enquanto tais, nunca descobrem algo ou mostram algo novo. Eles até o fazem, mas não o demonstram. Demonstram, somente, e bem, aquilo que criticam.
Essa vocação, a meu ver tão nítida, ilumina com matiz tão especial o tempo presente, no qual se percebe não só a ausência de uma escola triunfante no campo da Filosofia, mas também nos territórios da Teologia, da Psicologia, da Antropologia, da Política e da Economia. Por que não há vencedores claros, no embate das doutrinas? Uma das razões talvez seja a existência da Filosofia, que realizou e continua a realizar seu trabalho com proficiência suficiente para não o permitir. Ela se hipertrofiou a tal ponto e gerou um arsenal tão imenso, ao longo dos séculos, que ele é comumente usado para destruir o que se apresenta como triunfante na História das Ideias.
Porém, esse trabalho de limpeza do terreno, que caracteriza a Filosofia, não é um fim em si mesmo. O terreno não é limpo por ela e por outros saberes para permanecer vazio. E utilizá-lo é, no caso, erguer novas doutrinas, após a remoção do entulho. Portanto, o trabalho filosófico pede o complemento de um saber positivo que erga, no terreno descontaminado, o templo de um novo conhecimento.
Que saber é esse e que templo há de construir? Não há perguntas mais cruciais do que essas a que a razão humana possa elevar-se. Se o trabalho crítico (que não cabe apenas à Filosofia, mas lhe cabe principalmente) tem sido bem-sucedido, o feliz resultado deve encorajar-nos a buscar o saber que sobreviveu a ele.
Não é esse um saber simplesmente técnico, embora a técnica e sua cria moderna, a tecnologia, sejam uma consequência normal dele. O saber sobrevivente à tarefa negativa da Filosofia, em todas as suas etapas, é antes de tudo uma visão de mundo. A visão que o homem sempre buscou, que ele construiu e viu desabar não uma ou duas vezes, mas vezes mil. Porém, ainda assim, uma visão de mundo, pois o espírito humano tem vocação, e vocação verdadeira não se perde para o fracasso.
Não restam muitos bons candidatos a constituir a visão de mundo remanescente à crítica das disciplinas negativas. As ciências naturais têm sido bem-sucedidas. As sociais também, ainda que apenas para quem tem olhos para ver. Claro que há mil correções a serem feitas numas e noutras, mas o que justifica o crédito concedido às ciências é exatamente essa corrigibilidade.
Num dos lados do terreno que a crítica limpou, estão, pois, as ciências. Do outro lado (entrego-me ao apedrejamento), temos a Teologia. Não qualquer teologia, pois a maior parte dos sistemas propostos sob esse nome foi refutada. Temos, porém, o que, na História da Teologia, se denomina compreensão pela fé.
Com essa expressão, não me refiro tanto à fé que segue a compreensão (Intelligo ut credam), mas à compreensão que se segue à fé (Credo ut intelligam). A diferença entre as duas não é desprezível. A primeira faz parte da fé cristã, mas a grandeza do cristianismo, no campo do conhecimento, deve-se à outra. Quando nos limitamos ao Intelligo ut credam, terminamos com Deus, sim, mas com um Deus pequeno, com um Deus do tamanho do nosso intelecto. Só pelo Credo ut intelligam, chegamos a um Deus grande, ao Deus que se revelou e revela na fé, ao Deus que se deu a conhecer e não foi jamais descoberto.
Concordo com os que, ao longo da História, viram na Filosofia não um caminho em si mesma, mas um método de preparação do caminho em si mesmo, isto é, do caminho que existe independentemente dela. A Filosofia é uma preparação do caminho por Deus, pois, exercida negativamente com a persistência devida, coloca-nos na encruzilhada de dois ou três caminhos, um dos quais leva a Deus. Esse é o caminho da fé.
Reafirmo, portanto, que a Filosofia prepara para a fé. Isso é consabido. O que nem sempre se disse, de maneira clara, é que ela só exerce esse magistério em-quanto saber negativo, enquanto crítica ou, como prefiro dizê-lo, enquanto disciplina da dúvida.
O erro dos erros filosóficos não consiste em afirmar esta ou aquela doutrina sobre o real. Consiste antes em afirmar, terminantemente, seja o que for. Não é tarefa da Filosofia afirmar dessa maneira. Quando o faz, ela não leva à fé genuína, à fé que é livre, que cativou e cativa o espírito em todas as épocas. Leva tão simplesmente ao dogma.
Fui e sou criticado, às vezes, por “discordar de tudo”. Não é bem isso que faço. Mas estou pronto a admitir o quanto discordo daquilo de que discordo. E, para ajudar no trabalho de delimitação desse quantum (pois nada melhor do que delimitá-lo para entender que não é infinito, nem sequer sistemático), dou à luz o presente percurso entre os pontos fundamentais das escolas filosóficas. Nele passo de ponto em ponto, de doutrina central a doutrina central, não com o escopo de expô-las ou afirmá-las, mas de as criticar. Ou, se quiserem que se trate de expor, de expor livremente as minhas dúvidas a respeito delas.
A dúvida é, pois, a justa medida da Filosofia Cristã. Ir além dela, a fim de afirmar certezas, é errar grosseiramente na medida. É supor que o convencimento se constroi pela demonstração, quando ele só começa, de fato, por meio do abalo. E é claro que, sem o primeiro passo na senda do conhecimento, todos os outros se tornam impossíveis. De forma que ir além da dúvida é, propriamente, o pecado original da Filosofia Cristã, do qual só é possível a alguém libertar-se por meio da fé que supõe a dúvida.
Claro que há mil coisas subentendidas na confissão do meu Credo ut intelligam. Uma delas é que, se a dúvida prepara para a fé, esta não é jamais fé em Deus em si mesmo, mas nas maravilhas da sua criação, isto é, nas suas obras. Em si mesmo, Deus permanece incompreensível, mas apenas relativamente, já que a incompreensibilidade absoluta de um ser individual é o mesmo que a compreensibilidade por exclusão. Por isso, a incompreensibilidade relativa de Deus implica a compreensibilidade das suas obras. Esse é, portanto, o único conhecimento possível de Deus, a saber: o que se sujeita aos limites do que somos e do que o mundo é.
Isso pode soar louco, mas me compadeço dos que o pensam, já que a loucura se evola, perde-se para as nuvens, quando bebemos do cálice em que se leem as palavras que os séculos sussurram como uma prece: Credo ut intelligam.