terça-feira, 29 de abril de 2014

Josué em Jericó (1)

Nos séculos XVIII e XIX, desenvolveu-se a abordagem revolucionária que se tornou conhecida como Crítica Histórica e Literária dos textos bíblicos. Há hoje um consenso, entre os especialistas dessa disciplina, de que o Livro de Josué integra uma das primeiras narrativas historiográficas conhecidas: a que principia em Deuteronômio e atravessa Josué, Juízes, 1º e 2º de Samuel e 1º e 2º dos Reis. Por depender amplamente das ideias semeadas no último livro do Pentateuco, essa narrativa se tornou conhecida como História Deuteronomista.
Os estudiosos críticos compararam os livros de Deuteronômio a 2º dos Reis com escritos de outros povos e com as evidências arqueológicas disponíveis sobre o mesmo período. Concluíram que “o Dtr [autor da narrativa] foi ao mesmo tempo um editor, já que editou fielmente documentos e materiais mais antigos, mas também um autor, já que construiu uma complexa visão da história de Israel” (RÖMER, Thomas. A chamada História Deuteronomista – Introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. p.33). Como autor, o Deuteronomista (Dtr) é “comparável aos historiadores helenistas e romanos, que também usam tradições mais antigas às quais dão um novo arranjo. A atitude de Dtr para com suas tradições é a de um corretor honesto” (idem. p. 32).
Portanto, para a maioria dos críticos, a História Bíblica propriamente dita começa com a obra do Deuteronomista. As narrativas sobre o período anterior pertencem ao território da lenda. As de Deuteronômio em diante pertencem à História. Mas Deuteronômio narra a peregrinação de Israel no deserto: devemos concluir disso que ela é parte do que os críticos reconhecem como inquestionável na narrativa bíblica? Aqui, os problemas da Crítica Histórica e Literária começam a aparecer.
A resposta mais coerente com as premissas da própria Crítica é a que reconhece que, se a narrativa de Deuteronômio a Reis foi composta pelo mesmo autor-editor, com base no mesmo método, a parte incluída em Deuteronômio é tão histórica quanto as demais. Mas, se assim é, temos de admitir um Moisés histórico muito bem definido (o de Deuteronômio) e um Josué histórico idem (o do Livro de Josué), o que está longe de ser pouca coisa para os padrões de uma História tão recuada.
O autor Deuteronomista não esconde a vantagem técnica e material dos cananeus sobre os israelitas, quando os dois povos se defrontaram, a princípio de maneira hostil, depois mais pacificamente. Pelo contrário, ele a admite: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro” (Js 17:16). E de novo: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro” (Jz 1:19) e “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Jz 4:3).
A falta de carros de ferro devia-se à incapacidade dos israelitas de fundir o ferro nesse período, como 1º de Samuel 13:19-20 claramente atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice”. Se no tempo de Saul os israelitas já estabelecidos em Canaã não fundiam o ferro, que dizer durante a peregrinação e as lutas sob a liderança de Josué?
Temos, portanto, dois povos a se confrontarem, um dos quais dominava o ferro, e o outro, não. É possível que os israelitas tenham fabricado instrumentos de bronze, pois passaram próximo de uma jazida desse minério, em Edom (Nm 21:4), durante a peregrinação. O arqueólogo Nelson Glueck provou que “o cobre era extraído [nesse local] em data bem antiga” (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Não podemos esquecer que, por essa época, Moisés foi capaz de forjar uma serpente de bronze (2 Rs 18:4; Nm 21:4). Porém, as armas de bronze dos israelitas eram inferiores às de ferro que os cananeus possuíam, de modo que a vantagem técnica do povo local deve ter-se refletido no campo de batalha e sido responsável por Josué e seus comandados terem conquistado Canaã de modo apenas parcial.
No entanto, apesar dessa vantagem bastante nítida, nas batalhas de Jericó, Gibeão e Hazor e na tomada de outras cidades, ela não garantiu a vitória aos cananeus. As lutas por tais cidades estão narradas nos capítulos 6 a 12 de Josué. Robin Lane Fox escreveu sobre elas: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções [da ocupação nesses lugares]: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão [...] Na Palestina, a passagem da média para a alta Idade do Bronze coincide com a presença conspícua de um certo tipo de cerâmica (a Bicromia Cipriota) nos níveis relevantes dos sítios. Este tipo de cerâmica data do século XVI a. C.” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 209-210).
Notem que Fox alude a “duas interrupções”, não a uma só, o que sugere duas épocas em que várias cidades de Canaã foram destruídas, ao mesmo tempo. Uma dessas épocas corresponde à data do Êxodo e das conquistas preferida pelos historiadores: o século XIII (passagem da “alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro”, no texto de Fox). Porém, a outra coincide com o período em que a Bíblia e Flávio Josefo situam o Êxodo, a saber: o século XVI a. C. Essa é a data do Êxodo que defendi nos textos sobre o Moisés histórico. Vejamos os reflexos dela na conquista de Canaã.
Alfred Läpple relata: “Em Tell-es-Sultan, lugar da antiga Jericó [...] há um montão de ruínas de 21 m. de altura. É atestada já no período neolítico (antes de 4000 a. C.) a existência de uma cidade munida de poderosas torres de defesa, que se estendia sobre uma área de 30 hectares mais ou menos. Sucessivamente foram construídas outras três cidades. A primeira, da época do Bronze Antigo, ficou de pé até 2000 a. C. aproximadamente. A segunda surgiu na época do Bronze Médio, em torno do ano 1700 a. C. e representa, entre todas as ocupações que se sucederam nesta colina, a mais extensa. A terceira cidade construída depois de 1580 a. C. sofreu em seguida uma tremenda destruição” (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. pp. 73-74).
A Crítica considera que a cidade da época do Êxodo não foi qualquer dessas. Foi, pois, uma quinta Jericó. Mas o problema é que não há sinais de destruição dessa quinta cidade, ao passo que a anterior “sofreu uma tremenda destruição”. Claro que, para os críticos, a destruição de Jericó narrada na Bíblia é miraculosa, portanto não ocorreu. Porém, Läpple nos diz que a quarta cidade foi efetivamente destruída. Miraculosa ou não, a sua destruição foi narrada pelo Deuteronomista. Portanto, deve ter ocorrido.
Läpple afirma sobre a destruição da quarta cidade: “Montes de tijolos avermelhados, pedras quebradas, madeira carbonizada e cinzas encontrados por John Garstang atestam um grande incêndio” (idem). Por que considerar que as conquistas se deram no século XIII a. C., se a Jericó dessa época não foi destruída? E por que não considerar que os filhos de Israel entraram em Canaã no século XVI, como a Bíblia e Josefo afirmam, se a Jericó que então existia foi de fato destruída?
Claro que há dúvidas arqueológicas sobre as características da cidade destruída e da própria destruição. Mas as dúvidas não se estendem aos dados básicos de que houve uma Jericó, no século XVI, e ela foi destruída. Arqueólogos da Universidade La Sapienza descobriram que a muralha dessa cidade foi parcialmente derrubada, mas não há nela sinais de saque (Folha de S. Paulo. 19/06/1997. p. 1-16). E não sei por que motivos eles concluíram que isso contraria o relato bíblico. Josué 8:2 esclarece que Jericó não foi saqueada: “Farás a Ai e a seu rei o que fizeste a Jericó e a seu rei; somente que para vós outros saqueareis os seus despojos”. As palavras “somente que para vós outros saqueareis” significam que Ai foi saqueada, e Jericó, não. Portanto, a descoberta dos arqueólogos confirma até o ponto desse pormenor o relato bíblico.
Há mais. Os pesquisadores de La Sapienza declararam que “o local onde surgiu a cidade esteve abandonado entre os anos 1.550 a. C. e 1.000 a. C.” (idem). Robin Lane Fox, de Oxford, confirma essa informação: “Pode ter havido uma aldeia de tamanho razoável em Jericó em torno de 1320 a. C., mas não havia nada que pudesse lembrar uma cidade ou muros intransponíveis. Desde 1.300 a. C., não houve qualquer ocupação humana no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. pp. 210-211). O problema é que, se entraram em Canaã no século XIII, os israelitas devem ter encontrado grande dificuldade para destruir uma cidade que não existia!
Depois de Jericó, caiu a cidade de Ai, que também foi saqueada e destruída (Js 8:27-28). A diferença é que os indícios da destruição não foram encontrados, no local tradicionalmente identificado como Ai. Pode ser que a lacuna se deva às escavações terem sido feitas no lugar errado, já que o sítio de Ai (et-Tell) não esteve ocupado entre 2.210 e o século XI a. C.
Aliás, mesmo antes, "as escavações mostram que houve uma ocupação pré-urbana de Ai desde 3.200 a. C." Essa ocupação pré-urbana era uma aldeia, razão pela qual é mister concluir que "ainda não foram encontradas evidências arqueológicas sobre a própria Ai” (CHAMPLIN, Russel Norman. Dicionário. In O Antigo Testamento interpretado – versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2001. Verbete Ai, p. 3758). Lane Fox também escreveu que “alguns camponeses começaram a construir uma aldeia no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. p. 211).
Contrariamente a essas evidências, o Deuteronomista nos fala de um local murado, que possuía um rei, repeliu a primeira agressão dos israelitas e só foi derrotada com a intervenção de milhares de guerreiros. É o que se depreende do fato de os habitantes de Ai terem deixado “a cidade aberta” (Js 18:17), da grande derrota dos três mil que subiram contra a ocupação ali existente (Js 7:4-5), das alusões ao rei de Ai (Js 8:1-2, 14) e dos milhares de israelitas que participaram da emboscada bem-sucedida contra a cidade (Js 8:3,12).
Portanto, a Ai descoberta pelos arqueólogos não é a que foi derrotada pelos israelitas. Josué nos informa que esta ficava junto de Bete-Áven, ao oriente de Betel (Js 7:2), enquanto a aldeia descoberta pelos arqueólogos (et-Tell) ficava ao oriente de Betel, mas não junto de Bete-Áven: “Enviando, pois, Josué, de Jericó, alguns homens a Ai, que está junto a Bete-Áven, ao oriente de Betel, falou-lhes”. Por tudo isso, a Ai descoberta pelos arqueólogos, localizada a três quilômetos de Betel (LÄPPLE, Alfred. Ob. cit. p. 75), não pode ser a cidade situada junto de Bete-Áven a que a Bíblia se refere.
Sabemos que Ai, em hebraico, significa ruína. Atentos a isso e às dificuldades envolvidas na localização tradicional, alguns estudiosos propuseram, recentemente, sítios alternativos para Betel e Ai, que permitem a identificação para Beth-Áven. Sua proposta consiste em alterar a localização tradicional de Betel da moderna vila de Beitin para El-Bireh, situada a apenas três quilômetros de distância. Com isso, Beth-Áven passaria a ser Beitin, e Ai, uma fortaleza descoberta, nessa cidade, e datada da Idade do Bronze Média e Alta (www.biblearchaeology.org/post/2008/04/Beth-Aven-A-Scholarly-Conundrum.aspx#Article).
A localização alternativa corresponde, muito melhor, às informações bíblicas, pois não apenas fornece um lugar para Betel e Ai, mas também para Beth-Áven. Com ela, o triângulo entre essas três localidades se fecha. Além disso, ficamos com uma Ai que existiu, exatamente, no período de Josué (entre a Média e a Alta Idade do Bronze). Como o local nunca mais foi reconstruído, temos de concluir que, quando o Livro de Josué foi redigido, ele estava em ruínas. Por isso, era denominado Ai. Seu rei pode ter sido o mesmo de Betel ou outro. 
Com isso, o que os críticos têm a alegar de substancial em contrário à datação mais antiga das conquistas limita-se à ausência de sinais de destruição no sítio convencional de Ai (et-Tell), seja em Laquis ou Debir. Porém, a relocalização de Ai defendida acima, fornece um local adequado para a primeira daquelas localidades. Quanto a Laquis e Debir, o texto bíblico não afirma que foram destruídas como Jericó. A conquista delas é narrada com a de outros quatro lugares, numa sequência de poucos versículos (Js 10:28-43). Uma característica literária desse trecho de Josué é a equiparação de cada conquista a outra da mesma passagem, em vez da comparação com vitórias anteriores, como as ocorridas em Jericó ou em Ai. Assim, a tomada de Libna é equiparada à de Maquedá, a de Laquis, à de Libna, a de Eglom, à conquista de Laquis, à de Hebrom, à tomada de Eglom, e a de Hebrom, finalmente, à de Debir. Só um ponto, nessas conquistas, é assemelhado ao que ocorreu em Jericó, a saber: o fato de seus reis terem sido mortos.
Isso estabelece um padrão diferente da destruição seguida de incêndio ocorrida em Jericó e Ai. Notem que o verbo utilizado para descrever a primeira dessa nova sequência de vitórias é tomar. “Tomou Josué a Maquedá” (Js 10:28). Tomar implica não destruir. A única exceção é Hazor, que foi destruída logo depois de Debir ser tomada (Js 11:10-11). Mas em Hazor não faltam restos de destruição. Voltemos ao texto citado de Lane Fox e vejamos que ele afirma: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão”.
Assim, das duas datas mais frequentemente atribuídas ao Êxodo e às conquistas, a da História Deuteronomista parece a mais correta. Curioso é que Lane Fox chegou a conclusão diametralmente oposta a essa, mas ele o fez com base numa visão de conjunto, não de detalhe das Escrituras. Quando olhamos para o conjunto e também para o detalhe do texto bíblico e os comparamos com os dados arqueológicos, a data que prevalece é a mais remota, não a mais recente.
Esse é o tempo das conquistas, na História Deuteronomista. No entanto, os críticos estão sempre prontos a abandoná-lo. Pergunto de que adianta essa longa narrativa ter sido escrita com a melhor técnica e o maior rigor possíveis, se não a utilizamos. Adianta tanto quanto alguém ter à disposição uma Medicina avançada e tratar suas doenças com o xamã.
Em 1956, Holywood lançou "Os Dez Mandamentos", com Charlton Heston como Moisés. Lançou há pouco "Noé", com Russell Crowe. Quanta diferença no modo de ver a Bíblia essas obras expressam! A primeira não é só rente à História: revela uma preocupação mais intensa com o sagrado como a Bíblia o apresenta. Se não quer propriamente alterar a concepção do sagrado, se não quer mudar Deus ao mudar Noé entre o início e o fim do filme, a obra de Darren Aronofsky cumpre ao menos o propósito de mostrar os desafios postos à concepção bíblica do divino. O homem sofisticado, de espírito crítico, dirá que Noé erra ao desejar a destruição cabal da humanidade; o indivíduo comum pensará que ele enlouquece. Mas a loucura não é o asilo em que encerramos o que nos ameaça ou, simplesmente, não entendemos? Se Noé está errado, Deus está errado. Está errada a concepção cristã do sagrado. É o que o filme propõe.
Não estará errada a percepção do sagrado na Bíblia que o tempo atual revela?Aliás, essa percepção não escoou dos corações e seu perdeu juntamente com os fatos da história bíblica? Não terminamos vazios da história e do próprio sagrado? Mas o filme promove algo bom: a tolerância. Assistir ao Deus errado enviar o Dilúvio errado revolta, mas só um pouco. Aprendemos e devemos aprender ainda melhor a crer com tolerância, não com violência. A era da violência religiosa passou, para muitas pessoas e em muitos lugares. Isso é irrevogável. Quem lançou mão do arado da aceitação não deve olhar para trás. Do lugar em que está deve caminhar para o mundo e ará-lo com a tolerância.