quinta-feira, 1 de maio de 2014

Livre Exame de Romanos (28): A Humildade

Os 20 séculos que nos separam da época de Paulo impedem-nos de compreender certas partes dos seus escritos. Dificilmente entendemos por que Paulo passa do culto (latréia) a Deus, em 12:1-2, à distribuição de dons e à exortação dos membros do corpo de Cristo à humildade, nos versos 3 a 8. Que relação pode haver entre o culto, os dons e a humildade, como Paulo os aborda?
Porém, quando olhamos a carta de perto, a relação aparece-nos bastante estreita. Qual é a síntese do pecado do homem grego, a não ser o abandono do culto a Deus, seguido do culto aos ídolos? E em que se resume a sua salvação, a não ser na adesão àquele primeiro culto? A igreja romana cultua Deus, em grave contraste com os gentios, que perseveram no abandono dessa adoração.
Mas o culto a Deus não é algo que o homem consiga realizar por si mesmo. Como a própria salvação, o culto é também uma dádiva. Isso significa que, para cultuar a Deus, não basta querer cultuá-lo. A vontade humana não é capaz, por si mesma, de adorar a Deus em espírito e verdade (Jo 4:24). Deve passar por um processo que a habilite para o culto, que Paulo chama transformação (metamorphósis) da mente por um novo tipo de pensar “com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).
Esse pensar não é ocasional, mas um hábito. Poderíamos descrevê-lo como um pensar com humildade. Embora Paulo não use a palavra humildade, mas moderação e medida, a descrição que nos dá do pensar cristão corresponde ao conteúdo daquela virtude. Muitos pensam na humildade como algo exterior: um modo de trajar-se, de gesticular e, principalmente, de falar. Paulo a concebe como o hábito de pensamento a que a primeira bem-aventurança se refere: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5:3).
A humildade do espírito é, pois, o cerne do culto prestado a Deus no Novo Testamento. “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes pense com moderação [sothroneín] segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3). Nesse versículo, a preocupação do apóstolo e, poderíamos dizer, a de Deus por meio dele não recai em qualquer pensamento. Deus vela sobre todos os pensamentos do homem, mas não sobre todos da mesma maneira. O que mais lhe importa é o que pensamos sobre nós mesmos.
A palavra sothroneín, em 12:3, é a chave para entendermos o que torna pecaminoso o pensamento do homem sobre si. O homem perde a humildade, quando pensa imoderadamente nas suas qualidades. A ênfase da exortação de Paulo está posta na intensidade, não na verdade ou no erro do pensamento. Uma pessoa feia pode achar-se bonita e inchar-se de orgulho, mas o caso comum é os belos caírem na vacuidade do orgulho. O mesmo pode ser dito dos inteligentes e dos portadores de todas as outras virtudes.
O princípio do pecado não é, pois, o equívoco sobre si, mas o pensamento imoderado a respeito das próprias qualidades. Não é errado alguém entender-se belo ou inteligente. Porém, é pecaminoso entender-se assim além da conta. E qual é a conta? Qual a medida que Deus fixou para o pensamento a respeito das próprias qualidades? Paulo aponta dois limites: o reconhecimento da medida das nossas qualidades e da sua origem.
Todos temos carismas, mas carismas limitados: assim profecia como ministério, ensino, exortação, contribuição, liderança, misericórdia (12:6-8). Ninguém recebeu toda a palavra de Deus ou palavras de Deus sobre tudo. Muito longe disso. Ninguém é capaz de ensinar tudo, exortar em toda situação ou contribuir sempre. Embora divinos, os dons que nos foram repartidos são limitados.
Pensemos em Salomão. Ele podia discorrer sobre as plantas, desde o cedro que está no Líbano até o hissopo que brota no muro, e também sobre os animais, as aves, os répteis e os peixes (1 Rs 4:33). Era-lhe, portanto, lícito crer na extensão da sua sabedoria. Mas não lhe era lícito pensar que sabia mais do que realmente sabia ou ignorar o quanto não sabia. Conheça quanto conhecer, o homem ignora infinitamente mais do que conhece. Por isso, a diferença entre a verdadeira sabedoria e a sabedoria aos próprios olhos reside na profundidade desse último conhecer.
Mas Paulo não se contenta com traçar à arrogância o limite da extensão dos dons. Além de reconhecer que os dons têm medida, que alguém tem de Deus profecia, ministério, ensino, exortação e todas as outras capacidades em determinadas medidas, ele situa em Deus e não no homem a origem dessas medidas. Esse reconhecimento implica que as qualidades que possuímos são dádivas, não artefatos. Foram dadas por Deus, não construídas por nós. Nós cooperamos para que as qualidades se desenvolvam, mas essa cooperação não anula a presença no dom de tudo o que ele se torna, assim como a árvore está na semente.
No átimo em que reconhece a procedência divina das suas qualidades, o homem esvazia-se de toda exaltação. Coloca-se, por assim dizer, no seu verdadeiro lugar. E qual é esse lugar? É o lugar do barro de que ele é feito. Pois “temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (2 Co 4:7).
Esta é a lição primeira de toda a Escritura. A lição sem a qual não há lição segunda a aprender. É também o passo sem o qual não há segundo passo. Só reprovação e incapacitação. Na Bíblia, uma lição antecede o que ela ensina a respeito de Deus. É a lição sobre o homem. Sem aprendê-la, o homem não pode saber quem é Deus, já que este o criou à sua imagem, o que significa que fixou o espelho em que se mostrará.
“Que é o homem, que dele te lembres?” (Sl 8:4), é a pergunta primeira da Bíblia. E, como só Deus é capaz de responder o que pergunta, devemos buscar na própria Escritura a resposta dela. Encontramo-la, é certo, espalhada por toda parte, mas também concentrada em algumas passagens. Em sua máxima concentração, só a vemos, talvez, em Gênesis 2: “Formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). E também: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2:15).
O homem feito da terra foi dado à terra. Tem, pois, na terra a sua natureza física e, pelo trabalho, a sua natureza moral. Humus, em latim, é terra. A natureza terrena do trabalho que o homem realiza, ao arar o chão, ensina-lhe quanto ele é vil e humilde. Não há nisso rebaixamento algum. É antes a natureza e o ser do homem.
Porém, a história da natureza humana, em sua totalidade, é muito pior do que isso. Por ter, desde o início, uma essência física e outra moral, ao cair no pecado, o homem sofreu a corrupção de ambas as suas naturezas. É o que Gênesis 3 ensina e Paulo reafirma em Romanos. Que significa essa degeneração? Significa, em síntese, que a natureza moral do homem corrompeu-se totalmente, e a sua natureza física, parcialmente.
Como a natureza moral está associada ao trabalho e depende dele, Deus disse a Adão, quando este pecou: “Visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:17-19).
Tenho dificuldade em aceitar a doutrina da corrupção física e moral do homem, nos termos em que é geralmente afirmada. Não por causa da degeneração moral, que aceito inteiramente, mas da corrupção física como a apresentam. Defendi os motivos históricos disso, no post “Criação: o que é, o que não é”. Do ponto de vista teológico, o problema é que a alma e o corpo são incomensuráveis. Portanto, a corrupção de um não se compara à do outro, nem pode ser a paga dela. O que ocorre é, para mim, mais simplesmente, que a degeneração moral leva o homem a praticar atos tais que afetam o seu corpo.
A corrupção de que a Bíblia nos fala é, portanto, integral apenas no âmbito moral. E não o é em razão das palavras pronunciadas por Deus após a queda, que se limitam a afirmar que Adão passou a viver num novo contexto, mas em razão do que o próprio homem fez desde então. De fato, a confrontação com a natureza hostil, inexistente no Jardim do Éden, gerou para Adão a escassez, e a escassez fez multiplicar-se o pecado, principalmente em forma de violência e opressão. Nisso consistiu a corrupção da natureza moral do homem. Fisicamente, somos matéria; moralmente, somos o que pensamos e fazemos. A matéria é a nossa primeira natureza, dada; o que somos e fazemos é a natureza segunda, construída.
A degeneração moral gerou toda sorte de injustiça, mas teve por fastígio a violência e a opressão do homem pelo próprio homem. É o que vemos, não como outra lição, mas como a mesma, em Gênesis 4, quando Abel é morto por seu irmão. Reencontramos o princípio desse pecado no dito de Caim, que transborda sangue (Gn 4:14-15), e na sua descendência, que desenvolve ainda mais a violência: ”Disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me: vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn 4:23-24). A violência é ainda o motivo sintético e consumado do Dilúvio (Gn 6:11-13). Só não pensemos que pode ser descontextualizada ou desarraigada de sua relação com o trabalho: não pode, sob pena de a palavra de Deus a Adão nada valer.
A doutrina das duas naturezas, a anterior e a posterior à queda, é importante demais para ser saltada ou relegada ao museu como coisa conspícua, mas superada. Para dizer como Billy Graham, ela é tão atual quanto o jornal de amanhã. Enquanto houver céus e terra e natureza humana, aquela doutrina continuará atual. O pecado mudou totalmente a natureza moral do homem. De sua condição original inculpável, ele passou a outra degenerada. E é preciso fincar que a degeneração se dá no contexto do seu trabalho, não de uma tábua de leis que ele tenha transgredido, pois ela simplesmente não existia.
Encontramos, assim, o pecado por toda parte. Não foi Paulo quem o criou com a sua pregação, em Romanos. Foram os atos humanos. O corpo tampouco o criou, só sofreu as consequências dele. E a origem de todo esse mal, Gênesis a apresenta como a perda da natureza segunda do homem, da sua natureza moral. Essa natureza era originalmente humilde, por ser terrena: “Deus colocou [Adão] no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 3:15). Mas se corrompeu ao se tornar violenta e opressiva.
Num ponto, porém, Romanos parece desencaixar-se da história da origem da depravação adâmica: a epístola diz que o pecado tem como núcleo a idolatria, não a violência ou a opressão do homem. Apresenta, assim, o pecado como ofensa a Deus, não ao homem, como questão do culto (latréia) a ídolos e não a Deus. E relega a violência, a opressão e todos os outros males à condição de consequências do pecado. Mas por que é assim?
A resposta só pode ser que o culto aos ídolos está ligado à perda da humildade por parte do homem. Essa perda é o extravio humano. Os atos que se seguem são sua consequência. E, como o Novo Testamento coloca as coisas, nada exprime tanto aquela perda quanto a idolatria. Isso é bastante claro. Mas, se o é, o ídolo não pode ser apenas madeira, bronze, ferro ou ouro. Tem de ser também a projeção do eu humano. Tem de ser o eu alienado, o eu em forma de coisa. Quando o ferreiro forja o ídolo, forja a si mesmo, atribui àquele ser a sua condição, as suas qualidades. O ferreiro pensa, logo o ídolo pensa; sente, portanto sua obra sente. Ele exagera os seus atributos ao projetá-los no ser que plasmou e supô-lo mais poderoso que ele próprio. Pede, portanto, que o ídolo o livre. Mas o exagero não impede que o ídolo continue a ser o próprio homem, fortalecido e tornado imortal. Nesse ponto, Feuerbach está certo. Nesse ponto, sua tese se aplica. Pena que se trate do ponto em que a idolatria rouba o troféu do pecado à violência e leva a degeneração humana ao clímax da audácia.
Por isso, Paulo se preocupa tanto com o culto. Em todas as eras, o pecado é uma coisa só. Como o arcanjo orgulhou-se e atentou contra o culto a Deus, os descendentes de Adão procederam da mesma forma e chegaram ao mesmo resultado. Projetar-se no ídolo foi, para eles, um modo de passar de adorador a adorado, de crente ou devoto a deus. Foi e continua a ser a forma suprema da perda da humildade.
Mas a história da idolatria tem duas fases e não uma só. Elas se sucedem, ao mesmo tempo em que se interpenetram. A primeira coincide com o período bíblico, mas o ultrapassa. Declina à proporção em que o cristianismo faz seu avanço. Seu princípio regulador é a idolatria ou a adoração do homem em forma de ídolo. A segunda etapa, por sua vez, coincide com a História do Império Romano, mas também a ultrapassa. O princípio regulador dela é a antropolatria ou a adoração consciente do homem como deus. Embora a adoração de seres humanos após a morte tenha sido praticada em tempos remotas, a apoteose (divinização post mortem dos Imperadores) é que a tornou regular e até mesmo um direito. Por outro lado, se os primeiros a serem adorados em vida foram os soberanos selêucidas (Bíblia de Jerusalém. 5ª impr., São Paulo: Paulus, 2008. Jd 3:8, nota c), os Césares parecem ter sido os primeiros a contar com um culto regular. Com eles, portanto, a idolatria ingressou numa nova fase.
A cena central do filme “Noé” talvez seja aquela em que sua mulher o acusa de injustiça. Ao ouvirmos as acusações, temos a impressão de que não se referem só a Noé, mas a Deus como autor do Dilúvio. Nada no filme tem uma só natureza: nem os gigantes, nem os homens, talvez nem as coisas. Tudo tem duas: o bem e o mal, o amor e a violência. O filme depende tanto dessa oposição que beira o maniqueísmo, mas um maniqueísmo cujos polos se decidiram a coabitar. Deus não é exceção alguma. É só o maior exemplo. Ele é culpado da violências suprema, a do Dilúvio, e só ao se regenerar se transforma em amante. Quem o leva a regenerar-se é, porém, o homem, ou melhor, as mulheres. Que outra força, afinal, poderia mudar o Criador, se o homem o formou à sua própria imagem sanguinária?
É bem uma mensagem, mas uma de que o homem pode todas as coisas, pois pode dispor de Deus. Só não pode recuperar a humildade perdida. Só não pode reconciliar-se com a terra e evitar que sua história termine no culto a si mesmo. Só Deus o pode.