sábado, 30 de novembro de 2013

O Dilúvio (3): A Inundação Local

O termo hebraico empregado para designar o Dilúvio (mabbul) só aparece duas vezes na Bíblia. A primeira é nos capítulos 6 a 9 de Gênesis. A segunda é num versículo isolado do Salmo 29, que afirma que “o Senhor se assentou sobre o dilúvio” (Sl 29:10). Muitas outras passagens referem-se a tempestades, mas essas são as únicas em que mabbul aparece. É o caso de perguntarmos o que justifica o uso de termo tão especial: o alcance universal da inundação ou outra característica?
A Bíblia afirma que o Dilúvio foi causado por chuvas torrenciais e pela abertura das fontes do abismo (Gn 7:11). A palavra abismo indica as profundezas da terra ou do mar. A abertura das suas fontes, portanto, pode significar o rompimento da própria terra ou o aumento das águas do mar por uma forte agitação no seu solo.
No século XIX, G. H. Pember adotou a segunda interpretação, ao descrever o Dilúvio nos seguintes termos: “Um rugido aterrorizante vindo do mar anunciou que alguma poderosa convulsão [...] começara nas grandes profundezas. Todas as suas fontes fechadas foram explodindo. Deus removera os limites do oceano, e suas ondas orgulhosas não deveriam mais permanecer, mas elevar-se com tumulto prodigioso e começar a avançar, mais uma vez, em direção à terra seca” (PEMBER. G. H. As eras mais primitivas da terra. São Paulo: Editora dos clássicos, 2002. Tomo 1,p. 217).
Vê-se que Pember referiu-se à abertura das fontes do abismo como um acontecimento no mar, que afetou também a terra. Por isso aludiu ao “rugido aterrorizante vindo do mar”, à “poderosa convulsão nas profundezas” e à remoção dos limites do oceano. Que pode ter sido essa remoção, a não ser uma inundação da terra pelo oceano? Mas, se for esse o caso, o Dilúvio terá sido um tsunami!
A narrativa bíblica é clara, ao afirmar que os eventos catastróficos começaram, no dia em que Noé entrou na arca: “Nesse dia, romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram [...] Nesse mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos” (Gn 7:11,13).
Porém, embora o cataclisma tenha-se iniciado no dia do embarque de Noé, somente após sete dias, as águas inundaram a terra: “[Os animais] entraram para Noé, na arca, de dois em dois, macho e fêmea, como Deus lhe ordenara. E aconteceu que, depois de sete dias vieram sobre a terra as águas do dilúvio (Gn 7:9-10). Esse é um pormenor muito significativo. Sabemos que chuvas torrenciais causam inundações quase instantaneamente. Todavia, não é isso que a Bíblia relata ter ocorrido no Dilúvio. Se a inundação da terra começou sete dias após a abertura das comportas dos céus e das fontes do abismo, é improvável que ela tenha sido causada por chuvas. Mais provável é que tenha sido provocada por um devastador tsunami. E, como esse fenômeno é geralmente relacionado a terremotos, não deve ser descartada a possibilidade também desses últimos.
Somos assim levados a um evento cujo potencial de destruição foi muito superior ao de inundações causadas apenas pelo transbordamento de rios. A conjugação de chuvas torrenciais com um tsunami e um ou mais terremotos explica tão bem o caráter devastador do Dilúvio que não precisamos supor que ele tenha sido universal para entender por que foi chamado mabbul (Grande Dilúvio). A inundação pode ter sido considerada tão peculiar pela violência que o fenômeno triplo assumiu.
Embora preserve uma tradição judaica, sabemos que a história bíblica do Dilúvio sofreu inegável influência de narrativas mesopotâmicas assemelhadas. No acervo constituído pela literatura da Antiga Acádia, vários relatos de inundações semelhantes podem ser encontrados. Porém, a Epopeia de Gilgamesh se refere à inundação por meio do termo abubu, que corresponde a mabbul em acádico. É provável que esse termo tenha chamado a atenção dos autores de Gênesis, que encontraram e percorreram com assombro a epopeia na famosa biblioteca de Assurbanípal. E talvez por isso, o autor sagrado tenha-se referido ao Dilúvio por meio de uma palavra tão rara no vocabulário bíblico quanto mabbul.
Porém, a memória do fenômeno descrito pela palavra mabbul não se encontra apenas em Gênesis. Conservou-se, de maneira clara, também em outras partes das Sagradas Escrituras. Talvez a mais eloquente delas seja 2ª de Pedro 3:5-6, que afirmam que os críticos da mensagem cristã, nos primeiros dois séculos, "deliberadamente esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo afogado em água"
Que afogamento do mundo antigo em água é o mencionado no verso 6, a não ser o causado pelo Dilúvio. A intenção do autor sagrado foi comparar a atitude dos críticos do evangelho, nos primeiros séculos desta era, à dos descrentes do tempo de Noé - as únicas pessoas que a Bíblia afirma terem morrido afogadas em água, em grande número, na Antiguidade. No entanto, as águas que os afogaram são descritas como as mesmas das quais a terra surgiu, no terceiro dia da criação, quando “disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar e apareça a porção seca. E assim se fez” (Gn 1:9).

Essa relação das águas do Dilúvio com as que cobriam a terra quando ela emergiu, em Gênesis 1:9, significa que o Dilúvio só pode ter sido um tsunami, já que a terra não emergiu de chuvas e sim do mar, naquele versículo. Portanto, o Dilúvio não consistiu só em chuvas torrenciais e prolongadas, mas também num devastador tsunami causado por um maremoto. 
O caráter duplo do Dilúvio como uma sequência de fortes chuvas concomitante com a abertura das fontes do abismo foi tomada pelo autor de Gênesis de relatos hebreus antigos e da Epopeia de Gilgamesh. Em tudo, a atitude do escritor sagrado consistiu em recepcionar os fatos contidos naqueles escritos e rejeitar o sentido religioso da narrativa babilônica. E, quando falamos em recepcionar os fatos, o primeiro de todos eles parece ter sido o alcance da inundação da qual Noé escapou.
A Epopeia de Gilgamesh preserva a memória de um Dilúvio amplo. Contudo, ao lermos cuidadosamente o seu texto, percebemos que esse ponto não é enfatizado. O alcance geral só aparece na descrição do resultado da inundação: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62). Além disso, a narrativa de Utnapishtim, no grande épico, começa com a contextualização dos acontecimentos em Shuruppak, que por isso deve ser entendida como o teatro da inundação.
Temos, assim, a alusão a uma catástrofe sem precedentes, como o termo abubu denota, mas não necessariamente a um evento universal. De acordo com a Epopeia de Gilgamesh, o Dilúvio foi geral, pois atingiu todos os seres vivos, porém seu alcance territorial, como o de Gênesis, não é claramente definido.A presunção é de que não se estendeu muito além de Shuruppak.
E o texto bíblico, que diz a respeito do alcance da inundação? Diz, repetidamente, que o Dilúvio atingiu “toda a terra” e que o tudo o que havia “debaixo do céu” pereceu. Porém, essas expressões parecem indicar apenas a terra que os descendentes de Adão habitavam. Se seguirmos os passos dessa descendência, em Gênesis 2 a 9, veremos que ela nunca deixou as vizinhanças do território denominado Éden. Tudo o que o narrador do livro conta passa-se nesse território. De sorte que não há razão para entendermos que “toda a terra” e “debaixo do céu” signifiquem o planeta inteiro.
Jeremias clamou: “Ó terra, terra, terra! Ouve a palavra do Senhor” (Jr 22:29). Nem por isso quis referir-se ao planeta inteiro. Os índios da América não estavam incluídos na exortação do profeta. Do mesmo modo, Zacarias 1:9-11 menciona cavalos que percorrem “toda a terra”, porém não o planeta inteiro. Em ambas as passagens, terra é o contexto geográfico imediato dos profetas: a terra de Israel.
Quando Deus disse a Sofonias “Consumirei todas as cousas sobre a face da terra. Consumirei os homens e os animais, consumirei as aves do céu e os peixes do mar e as ofensas com os perversos; e exterminarei os homens de sobre a face da terra” (Sf 1:23), não anunciou um segundo Dilúvio. Previu uma destruição relevante, mas não de todo o planeta. Do mesmo modo, Gênesis narra o Dilúvio em relação ao território em que os capítulos 2 a 11 se passam.
Nesses capítulos, quando a palavra terra é usada para indicar um lugar diferente daquele em que a narrativa se centra, ela é anexada a outro nome, como Node, para onde Caim se dirigiu (Gn 4:16). Do contrário, é a terra em que a  maior parte dos acontecimentos transcorre, à qual Caim se referiu ao exclamar: “Hoje me lanças da face da terra” (Gn 4:14). Em nenhum versículo de Gênesis 2 a 11, a palavra é usada para indicar o planeta todo.
Desde a apresentação do Jardim do Éden, nos capítulos 2 e 3 de Gênesis, a narrativa bíblica gira em torno da Mesopotâmia. É o que a menção dos rios Tigre e Eufrates, em Gênesis 2:14, claramente indica. A palavra terra é, portanto, utilizada para indicar essa região. E não é diferente, na narrativa do Dilúvio, que se abre com a alusão à multiplicação dos homens. Devemos entender que isso se deu na Mesopotâmia e vizinhanças (Gn 6:1), onde os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens (Gn 6:2), e os gigantes resultantes dessa união também habitaram (Gn 6:4).
Diz a Escritura: “Naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e estas lhes deram filhos, os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os herois dos tempos antigos”. A inserção das palavras “e também depois”, no versículo acima, indica que os nefilins continuaram a existir, após o Dilúvio. Como a palavra designa uma raça diferente dos enaquins, refains e emins (Dt 2:10-11), devemos entender os nefilins como uma estirpe ou descendência específica. Números 13:33 registra a presença deles na Palestina, muito tempo depois depois do Dilúvio, o que indica que a estirpe sobreviveu àquela catástrofe. Portanto, a presença dos nefilins, na Palestina, depois do Dilúvio, é uma primeira prova de que este não foi universal, mas local.
Outra prova pode ser encontrada em Gênesis 4:20-21, que afirma que Jabal e Jubal foram pais dos que habitam em tendas e possuem gado, bem como dos que tocam harpa e flauta. O tempo verbal presente, nesses versículos, indica que Jabal e Jubal foram ancestrais de pessoas que estavam vivas, na época em que Gênesis foi redigido. Do contrário, o escritor do livro não teria feito referência “aos que habitam” em tendas, “aos que tocam” harpa e flauta e “aos que possuem” gado. E, se entendermos que Gênesis 2 a 11 trata continuamente de linhagens, teremos de concluir que os pais dos que habitam em tendas, dos que tocam harpa e flauta e dos que possuem gado não foram precursores sem relação de sangue com eles, mas ancestrais de povos específicos que tinham aqueles costumes. Portanto, assim como os nefilins, os descendentes de Jabal e Jubal também devem ter sobrevivido à catástrofe de Gênesis 6. E só o fizeram porque ela foi local.
Não é diferente com os “filhos de Sete” mencionados em Números 24:17-18, junto com os povos de Moabe e Edom. Como os descendentes de Sete poderiam estar vivos na época a que Números se refere, se o Dilúvio tivesse sido universal? Ou, se os filhos de Sete fossem todos os descendentes de Noé, por que se diz que habitavam num território particular (o de Moabe e Edom)? Na verdade, Números 24:17-18 quer afirmar que, na época de Balaão, os filhos de Sete eram um povo da Palestina, assim como Moabe e Edom.
O livro continua: “Balaão viu  Amaleque [...] Depois viu os quenitas e pronunciou o seu poema. Disse: ‘A tua morada está segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o rochedo’” (Nm 24:20-21). Alguém duvida de que Amaleque e os quenitas são povos específicos? No entanto, os quenitas são tratados como descendentes de Caim. Como é evidente que Caim viveu muito antes do Dilúvio, concluímos que as Escrituras não consideram que a catástrofe do tempo de Noé foi universal e sim local.
As dimensões da arca também favorecem a tese da inundação local. Gênesis afirma que sete casais de cada espécie de animal limpo e de ave e um casal de cada espécie de animal imundo entraram na arca. Está implícito que o alimento necessário para sustentar essa fauna, durante um ano, também foi carregado para dentro do navio. E que uma arca com 136 x 22 x 13 metros não poderia comportar tudo isso, como Orígenes percebeu, no século III. Disse esse autor: “Os números de trezentos côvados de comprimento, cinquenta de largura, trinta de altura não permitem sustentar que a arca abrigou os animais que estão na terra, quatorze de cada espécie pura, quatro de cada espécie impura” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 321).
Mas as evidências do Dilúvio local não acabam. O fato de Ninrode ter edificado cidades, pouco depois da inundação, é outro indício do caráter local. Ninrode foi bisneto de Noé (Gn 10:1,6,8). Não devemos, portanto, supor que se passaram mais do que poucas décadas entre o Dilúvio e o seu nascimento. Se o Dilúvio foi universal, para que Ninrode construiu várias cidades menos de meio século depois de a população do planeta ter sido zerada?
Por fim, há o número de anos da vida de Metusalém. Na Bíblia grega (Septuaginta), essa personagem morreu 14 anos depois do Dilúvio; na hebraica, dois anos depois (Gênesis 5:25-28; 7:11). Quer a Escritura, com isso, afirmar que Metusalém foi o único sobrevivente do Dilúvio, dentre as pessoas que ficaram fora da arca? Não é mais natural entender que, também nesse particular, ela admitiu que o Dilúvio não foi universal?
Temos de concluir que a crença num Dilúvio universal resulta de um erro de interpretação de Gênesis. E que reinterpretar esse texto é preciso, a não ser que queiramos perseverar no erro. Por um lado, a reinterpretação reconcilia o texto bíblico com a ciência contemporânea. Por outro lado, a ciência auxilia a entender o relato das Escrituras.
Descobertas como as de Woolley e Mallowan, a que nos referimos nesta curta série, provam a ocorrência de inundações semelhantes à que a Bíblia narra, imediatamente antes e durante a vida de Noé. Nenhuma delas pode ser identificada com o Dilúvio, já que uma distância de séculos as separa da catástrofe de que Noé escapou, a qual a Bíblia localiza por volta de 2.600 a. C. São, porém, importantes para mostrar que a preocupação com enchentes foi constante, na época e no lugar em que o patriarca viveu.
Pode-se perguntar por que não foram encontrados vestígios da própria inundação de Noé. Basicamente porque as cheias de Woolley e Mallowan resultaram de transbordamentos do Tigre, do Eufrates ou de seus afluentes, enquanto o Dilúvio foi causado, ao que tudo indica, por um tsunami. Mudanças no curso de rios permanecem por muito tempo. Deixam, pois, marcas e aluviões, como os que Woolley e Mallowan descobriram. As águas de um tsunami vêm e vão. Inudam e logo refluem para o mar, deixando marcas superficiais que desaparecem em pouco tempo, mais ou menos como uma espécie que se extingue rapidamente não deixa marca no registro fóssil.
Os céticos querem que acreditemos que o Dilúvio é como a estória do coelhinho. Os fatos e os textos nos mostram que ele é muito mais parecido com a história da Guerra de Troia.