Após discorrer sobre
a condenação universal e a salvação de judeus e gregos realizada por Deus em
Cristo, Paulo não dá sua exposição do evangelho por encerrada. Passa a
enfrentar o duro fato de que uns recebem essa salvação e outros, não.
Enfrenta-o, em particular, no seio do seu próprio povo, Israel: “Tenho grande
tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema,
separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a
carne” (9:2-3).
Paulo tem esse cruel sentimento, por causa dos judeus que não receberam
Cristo como o Messias e o Filho de Deus e que, por isso, não foram salvos:
“Israel que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por quê?
Porque não decorreu da fé, e, sim, como que das obras. Tropeçaram na pedra de
tropeço” (9:31-32). Seria muito fácil explicar a rejeição dos judeus só pelas obras. Paulo já havia estabelecido a condenação universal. Havia também mostrado que Deus, em Cristo, provera o remédio para essa situação. Seria consequente, da sua parte, afirmar que, se alguém rejeitasse o remédio, continuaria com a moléstia e morreria dela, isto é, que tanto os judeus como os gregos incrédulos permaneceriam sob condenação.
Mas Paulo não adota o princípio das
obras e sim o da graça. Por meio de Cristo, Deus salva gratuitamente o homem
perdido nos seus pecados. E, se assim é, como explicar o fato desconcertante de
que alguns não abraçam a fé e permanecem na condenação? Se não vem do homem
crer no evangelho, pode vir dele o não crer?
Fiel ao seu princípio de exposição,
Paulo não vacila em enfrentar essa dificuldade do mesmo modo como lidara com a
justificação, ou seja, olhando-a pelo ângulo de Deus e não do homem. Como a
salvação procede de Deus, não é diferente, em princípio, com a rejeição do
evangelho. O ato de Deus escolher a uns implica o de não escolher a outros,
pura e simplesmente.
Assim, a rejeição do evangelho pelos que não creem é descrita como o resultado
de uma predestinação negativa. Repito que isso está implícito no fato de Deus
escolher alguns para serem salvos. A eleição implica a não eleição. Por isso,
os que não foram escolhidos para serem salvos foram destinados à rejeição e a
permanecerem sob condenação. Paulo chora e deplora esse fato, mas o aceita,
pois nada pode fazer para mudá-lo, se Deus sumamente bom não pôde. Paulo pode
ter “grande tristeza e incessante dor no coração”, e estamos certos de que Deus
também as sentiu, mas nada é possível fazer quanto a isso. Precisamos, porém, introduzir uma diferenciação entre a predestinação positiva e a negativa, isto é, entre a predestinação à glória e à perdição. A primeira é absoluta. Não admite, por isso, o menor contraste. Nenhuma obra humana, seja interna, do coração, seja externa, do comportamento, pode ser causa da salvação. Isso porque a salvação é a concessão de um dom divino, e o divino é incomensurável, incomparável com qualquer coisa humana. Ou Deus o concede esse dom ao homem, ou ele permanecerá totalmente inacessível. Porém, quando entramos no campo da predestinação negativa, o contrário se torna verdade. A Bíblia afirma, o tempo todo, que o ímpio perece por causa das suas obras. A morte é o salário do pecado (6:23), não o dom gratuito de Deus. Isso exige uma reformulação da doutrina, no tocante à predestinação negativa. Essa modalidade de determinação deve consistir num condicionamento e não no estabelecimento de um destino inescapável. As circunstâncias da vida do pecador são condicionadas de maneira a incliná-lo à perdição, porém ela pode ser evitada, mediante o arrependimento.
Isso não significa que o pecador possa alcançar a glória a que Deus predestina seus eleitos. Se essa glória é inalcançável por meio das obras, ninguém a pode lograr pelo arrependimento, mas apenas pela eleição divina. Porém, deve haver destinos e estados eternos que não se confundem com a bem-aventurança à qual Deus predestina, nem com a perdição. Esses destinos intermediários, que não equivalem ao purgatório, são uma consequência necessária da doutrina da predestinação como Paulo a formula em Romanos.
Deus não tem de que se queixar, se alguns o rejeitam em razão de um decreto imutável dele próprio. Mas não ter de que se queixar não é o mesmo que não sentir “grande tristeza e incessante dor no coração”. Podemos crer que Deus as sentiu e sente. Dirão: mas se sente, por que não escolheu os que rejeitam o evangelho para serem salvos também? Seria tão fácil para Deus pôr fim a essa tristeza...A resposta de Paulo é que seria fácil, mas não justo. Ele pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” E responde: “De modo nenhum” (9:14). Podemos, pois, responder o questionamento sobre a não eleição dos que se perdem, admitindo que seria fácil para Deus sobrepor sua vontade à deles, mas não o faz porque não é justo. Dirão por acaso que essa explicação nos leva de volta às obras? Leva, de fato, mas a Escritura diz, todo o tempo, que o ímpio perece pela sua impiedade, isto é, pelas suas obras. Só não diz que o justo se salva pela sua capacidade, mas por um dom de Deus.
Podemos, pois, admitir que, em algum ponto e de alguma maneira, a justiça obriga Deus a não ouvir a “grande tristeza e a incessante dor no coração”. Sei que os adversários dessas ponderações não se contentarão com a minha explicação. Dirão insaciáveis: por que não ouvir a tristeza e a dor, em vez de a justiça? Diante disso, só nos resta replicar: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (9:20).
A tristeza e a dor pela perdição de alguns não devem obstruir o caminho da justiça de Deus, que consiste em estender a muitos o mérito de um só. O Universo tem todos esses motivos de lamento. Mas eles não devem parar a história da salvação. Nem nos devem levar a desassociar a salvação da graça e a associá-la às obras. Paulo paga o alto preço da tristeza e da dor para manter a verdade basilar da graça.
E vai buscar na Escritura o fundamento para a sua posição: “Ainda não eram os gêmeos [Esaú e Jacó] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já lhe fora dito: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9:11-13). Paulo vê o amor e o aborrecimento de Deus como sinais de eleição. Deus amou porque escolheu, não escolheu porque era amável. Aborreceu, porém, Esaú, porque era digno de aborrecimento.
A indignidade de Esaú aparece com todas as letras em Hebreus 12:16-17: “Não haja algum impuro, ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto, vendeu o seu direito de primogenitura. Pois sabeis também que, posteriormente, querendo herdar a bênção, foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o tivesse buscado”.
Esses versos alijam Esaú completamente da bênção a Israel. Excluem-no não por ter dado origem a outra descendência, mas por não ser parte de Israel em espírito, isto é, por não ter o coração circuncidado. Um homem assim, ainda que busque a bênção com lágrimas, não um só dia, mas mil, não a alcançará, pois não possui o princípio necessário para alcançá-la. Esse princípio é a eleição de Deus.
Notem que Esaú cria em Deus. Mas essa fé era uma construção sua. Não vinha de Deus. Não era um dom divino. Portanto, nem mesmo a fé, como gênero, basta para garantir a bênção de Deus. O que basta é a fé que é dom. Em Apocalipse 3:14, Cristo é chamado o Amém. Nenhum vocábulo simboliza tanto a fé nas promessas de Deus quanto esse que se pronuncia ao final de toda palavra inspirada. No entanto, o amém não está em nós, não vem de nós: é o próprio Cristo. Dele é a fé que Esaú não possuía.
Assim Paulo responde a inquietação sobre a eleição dos santos, que implica a dos incrédulos. Assim ele demarca com força, no chão da própria casa de Isaque, o campo dos que se salvam e o dos que não se salvam. É levado a isso pela contemplação do terrível espetáculo da incredulidade dos judeus. Paulo olha para tantos compatriotas, amáveis sob outros aspectos, e chora a sua incredulidade. Olha, por outro lado, para si, para os outros apóstolos e para os judeus cristãos e diz: há também vasos de misericórdia. Na mesma casa, ele vê “vasos de ira, preparados para a perdição” e “vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (9:22-23).
Não vacila em escrever desses últimos: “os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (9:24). Ao observar a piedade sincera em alguns, Paulo não se reprime: admite-a como sinal de eleição. Chama vasos de misericórdia os que têm o coração repleto dessa piedade. Isso pode parecer preconceituoso, na medida em que tantos outros são excluídos por ele de idêntica condição. Mas é consistente com o princípio em que toda a exposição de Romanos se baseia. Esse princípio é o da evidência empírica. Paulo escreveu Romanos 1 a 3 constrangido pela impiedade que grassava no mundo à sua época. Mas, se admitia o fato evidente da impiedade, por que Paulo não admitiria a piedade de outros? Por que deveria olhar para os ímpios e reconhecer que eram ímpios e olhar para os justos e calar que eram justos?
A evidência da piedade existente no mundo levou Paulo a identificar os vasos de misericórdia como determinadas pessoas. E não há erro algum nisso. Só não devemos pensar que a identificação tenha validade absoluta. Podemos considerar alguém um vaso de misericórdia hoje e amanhã concluir que não é. O conhecimento dos vasos de misericórdia é essencialmente provisório. Só se sedimenta após longo tempo. Para usar a linguagem de Santo Agostinho, só podemos ter certeza de quem perseverará até o fim, após ter perseverado.
Quando se refere à bênção introduzida pelo evangelho, Paulo tem em vista a vida eterna em glória. Afirma que Deus dará a vida eterna aos que procuram glória, honra e incorruptibilidade. Lembra que a criação aguarda a glória e a liberdade da glória dos filhos de Deus (8:19,21). E que aqueles a quem Deus, de antemão, conheceu e predestinou também os chamou, justificou e glorificou (8:29-30). Por fim, reitera que os vasos de misericórdia foram preparados para a glória (9:23).
A salvação tem em vista um fim, que é a glória, a não salvação, outro fim: a perdição (9:22). Embora especulemos, não sabemos como será a glória a que o apóstolo se refere. E, se há algum equilíbrio na revelação de Deus, tampouco sabemos em que consistirá a perdição dos ímpios. Sobre esse ponto, é preciso fazer reinar um prudente silêncio.
Mesmo assim, aquilo que não sabemos o que é estamos certos de que virá. O Livro de Apocalipse, ao revelar-nos “as coisas que hão de acontecer” (Ap 1:19), não nos confunde com uma série de julgamentos finais e uma série de paraísos vindouros, mas apresenta um só juízo e uma só Nova Jerusalém. Isso torna absolutamente claro que não haverá mais do que dois destinos finais para os que viverem até aquele momento.
Esses destinos constituem um limite importante para os purgatórios localizados no futuro. Não há lugar, no pensamento de Paulo ou no Apocalipse, para tais lugares intermediários. Talvez por isso, por volta do ano 150 d. C., tenha vindo a lume um livro chamado O pastor de Hermas, que trata do arrependimento dos cristãos que retornaram ao pecado. A lição do livro é de que essas pessoas podem alcançar estados os mais diversos e receber tratamentos também diversos de Deus. Porém, isso acontece no período em que a igreja é edificada, não no tempo de vida de cada pessoa na Terra.
Talvez o mais significativo sobre O pastor de Hermas tenha sido a acolhida que teve no meio cristão, durante os primeiros séculos. Muitas igrejas incluíram o Pastor no rol das Sagradas Escrituras para mais tarde excluí-lo, não sem razões. Porém, a ideia fundamental da obra continuou a ser aceita por muitos e discutida por um número ainda maior. E não pode haver dúvida de que ela constituía um novo desdobramento do problema enfrentado por Paulo em Romanos 9: se a salvação é pela graça, que envolve a predestinação, torna-se difícil admitir que todos os eleitos que recaem em pecado sejam restaurados antes da morte. No entanto, o próprio Paulo não se manifestou sobre esse ponto. Nunca houve silêncio mais eloquente...