Ao ouvir Jesus declarar que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, Pôncio Pilatos imediatamente lhe perguntou o que é a verdade. Sua questão assinala o encontro histórico da cultura romana com a fé judaico-cristã, após o primeiro olhar frontal trocado pelos seus líderes. Encontro tão predestinado que haveria de mudar a História. E o mais curioso a respeito dele é que foi, ao mesmo tempo e em toda sua densidade, um encontro de duas verdades: a verdade absoluta, da qual Jesus veio dar testemunho, e a relativa, a que Pilatos se referiu por só a conhecer.
“Jesus respondeu [a Pilatos]: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” [...] Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?” (Jo 18:37-38). O representante da verdade relativa referiu-se à absoluta como se fora um poder mundano. É o que está implícito na declaração: "Tu dizes que eu sou rei". Mas a testemunha da outra verdade deslocou a questão do poder para a realidade suprema e sem limitação: a verdade absoluta. Por isso, afirmou: “Eu vim ao mundo a fim de dar testemunho da verdade”.
Como Pilatos, somos condicionados a acreditar que só a verdade relativa existe e tem no poder o seu clímax. Por isso, o testemunho da verdade absoluta se faz necessário. Essa verdade, como Jesus a apresenta, é antes de tudo ele mesmo, pois disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14:6). Mas a chocante declaração não impede que a verdade seja, ao mesmo tempo, algo mais abstrato do que uma pessoa. Não impede que seja aquilo que chamamos ser.
O ser é real e eterno. Por isso é absolutamente verdadeiro. Quem o negará? Mas, ao mesmo tempo (e nisso consiste um grande mistério), ele permeia tudo o que existe, inclusive o fugaz e o relativo. Tudo o que é participa do ser. Existe de algum modo nele. Nesse sentido, o ser é a verdade absoluta.
Mas a que, mais precisamente, nos referimos quando dizemos ser? É possível apresentar esse conceito melhor do que quando, simplesmente, nos referimos a ele? Penso que sim, porém não muito, já que o ser é essencialmente misterioso. Pode-se, por exemplo, representá-lo como a essência de alguma coisa. De quê? Não de algo muito particular, pois o ser encontra-se em tudo. Talvez o possamos representar como a essência do Todo.
A união do ser com a matéria dá origem ao que chamamos ente. Quando isso acontece, o ser passa a incluir ao menos duas variedades: o ser originário e o derivado (os entes). Só o ser originário é eterno. O derivado é temporal. Na linguagem judaico-cristã, afirmamos que ele foi criado. Dessa maneira, o real é composto do ser e dos seres ou entes.
A efemeridade dos entes, sua existência limitada no tempo, exige a admissão de um elemento diferente do ser, com o qual ele se combina para formar o real. Por diferenciar-se do ser, somos tentados a chamar esse elemento não-ser, mas essa designação pode induzir confusão com o nada. O que se liga ao ser para formar os entes não pode ser um nada. Tem de ser alguma coisa. Não poucos filósofos cristãos o associaram à matéria, que é uma espécie de ser derivado. Essa matéria derivada do ser originário une-se a ele para formar os entes também derivados. Assim, o ser derivado se forma ao longo de várias gerações, vale dizer, do tempo.
A união do ser com a matéria para formar os entes é metafísica. Não foi e provavelmente nunca será comprovada por meios empíricos. Mesmo assim, é filosoficamente útil, fecunda e, talvez, necessária. Não temos como pensar a mudança, o devir, sem admitirmos algo que permanece e não temos como pensar o que permanece sem admitirmos a eternidade, portanto o ser.
Na filosofia de Aristóteles, o ser é considerado análogo, ou seja, dotado de variações. No platonismo, suas variações se reduzem à unidade. Mas, apesar dessas distinções, durante séculos, o platonismo e o aristotelismo reconheceram um só ser. Se a Filosofia fosse religião, seria heresia pensar de modo distinto dessas escolas, já que elas inspiraram boa parte do pensamento filosófico. Mas me pergunto hereticamente se, em vez de um só ser, não devemos admitir um originário e outro derivado, já que chamamos ser tanto o efêmero quanto o eterno. Vemos o efêmero, não vemos o eterno, mas somos forçados a admiti-lo para justificar a permanência no interior do devir universal. E, se isso for mesmo possível, deveremos doravante nos referir a dois seres, a duas realidades dotadas do mais alto grau de universalidade.Mas, da admissão de um ser eterno ao lado do temporal, decorre a afirmação da verdade absoluta. O ser eterno é absolutamente verdadeiro, pois não somos capazes de duvidar dele. A imunidade à dúvida decorre da obscuridade do ser eterno, mas é uma verdade mais forte que a do nosso próprio eu. Penso, logo existo é uma máxima evidente, mas que se situa no plano da verdade relativa. O eu não é o mesmo que o ser. Podemos imaginá-lo falso e inexistente, sem arranhar a sensação, forte e evidente, que temos da sua existência. Portanto, o eu é uma verdade relativa. Mas diferente é a verdade absoluta do ser, que não pode ser negada sequer pela imaginação.
Os filósofos modernos tendem a colocar a verdade do eu acima de todas as outras, pois conhecemos as outras verdades, ao passo que o eu não só conhecemos como o experimentamos. Somos o nosso próprio eu. Daí a evidência dele ser considerada superior. Mas me pergunto se o é realmente. Se a dúvida persegue o pensamento, o pensamento de si é também duvidoso. No Cogito cartesiano, a palavra logo indica uma consequência: penso, logo (consequentemente) existo. Porém, o caráter consequente do pensamento não é algo demonstrado. Penso, sim, existo, sim, mas não tenho certeza de que existo porque penso.
O Cogito é modernamente interpretado como “Penso, logo tenho certeza de que existo”. No entanto, seria melhor entendê-lo como uma afirmação de fé: “Penso, logo creio que existo”. Isso porque não temos certeza de que o pensamento seja consequente. Temos certeza de que pensamos, não de que pensamos consequentemente. Acreditamos que pensamos consequentemente, o que é diferente. Na verdade, suspendemos as dúvidas sobre o caráter consequente do pensamento por meio da fé.
Nos Solilóquios, Agostinho dialoga com a sua Razão. Esta lhe pergunta: “Sabes que existes?” Ele responde: “Sei.” Até aqui, tudo caminha como no Cogito de Descartes. Mas a Razão continua o seu interrogatório: “De onde o sabes?” E ele: “Não sei” (HIPONA, Agostinho de. Solilóquios. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2010. p. 55). A pergunta “De onde o sabes?” quer dizer “Como o provas?”. E é importante notar que o Santo não responde “Porque penso consequentemente”. Diz simplesmente “Não sei.”
De novo, a Razão indaga a Agostinho: “Sabes que te pensas?” Ele responde: “Sei.” “Portanto, é verdade que pensas?” E ele: “É” (Op. cit. loc. cit.). Vemos que o antecedente e o consequente de Descartes (o pensar e o existir) foram admitidos também por Agostinho, porém não o “logo”, não o liame entre os dois. Agostinho não pensava nos termos do Cogito, pois não reconhecia liame algum entre o pensar e o existir. Admitiu pensar, admitiu existir, mas não admitiu existir por pensar ou pensar por existir. Isso porque o liame entre ambos não lhe pareceu evidente como para os filósofos modernos.
A dúvida pode roer o Cogito cartesiano tão perfeitamente quanto outras assertivas filosóficas. A tomada de posição do Cogito só se tornou tão aceite, porque o deslocamento da dúvida que lhe subjaz, da subjetividade para o mundo exterior, em determinado momento histórico, tornou-se um verdadeiro hábito filosófico. Descartes escreve: “Duvidamos, primeiramente, se, de tudo aquilo que veio ter à alçada de nossos sentidos, ou que em algum tempo nós imaginamos, pode existir alguma coisa, realmente, no mundo. Duvidamos delas, por termos conhecido, pela experiência, que os sentidos muitas vezes nos iludiram” (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/ Levoir, 2010. p. 70).
Mas o próprio Descartes continua” “Duvidamos, igualmente, de todas as demais coisas que antes nos tinham parecido muito exatas, mesmo as demonstrações de Matemática e seus princípios, ainda que estes sejam muito evidentes, pois existem homens que se enganaram meditando a respeito dessas matérias” (idem). Está bem: o que conhecemos pelos sentidos su-jeita-se à dúvida, pois os sentidos podem iludir-nos. Conhecemo-nos de maneira direta, sem mediação dos sentidos. Por isso, Descartes conclui que a nossa existência não se sujeita à dúvida. Mas, se os princípios da Matemática são duvidosos, embora a sua verdade não dependa dos sentidos, por que a verdade do eu não o é da mesma forma?
Agostinho foi mais consistente do que Descartes ao estender a dúvida ao Cogito. Penso que sou, mas não sei de onde penso que sou. Portanto, meu pensar é duvidoso. O Cogito cartesiano só pareceu tão certo, durante tempo tão longo, porque a Filosofia e o conhecimento como um todo adotaram um regime de fé e dúvida que justificaram amplamente essas convicções. Mas todo regime de fé e dúvida é relativo e pode ser questionado.
A verdade a respeito do eu é fortíssima, mas relativa. Somente a verdade do ser é absoluta. Por isso, o ser é a base fundamental do conhecimento, a despeito da sua obscuridade. Infelizmente, essa base tem sido desprezada. Se a admitirmos, teremos um sólido ponto de partida para pensarmos não só o efêmero e temporal, mas também o divino. Poderemos considerar Deus não só uma pessoa, mas também o próprio ser. Poderemos reconhecer-lhe essas duas dimensões, esse duplo aspecto. Enquanto pessoa, ele se revelou, encarnou-se e viveu na Terra, como a fé cristã ensina. Como o ser, ele sustenta todas as coisas. Tanto o ser como a pessoa de Deus são invisíveis e intangíveis. Em uma palavra, eles são espirituais.
Coisas há, entre o céu e a Terra, que não podem ser explicadas pelo caráter pessoal de Deus, mas o podem pelos atributos do ser. Talvez seja esse o caso da evolução das espécies. Deus (como pessoa) criou todas as coisas, porém elas evoluem pelo impulso comunicado por Deus como o ser.
Digo-o como quem meramente especula? Não exatamente. O ser é uma exigência do pensamento. E, se o é, ele deve ter um papel fundamental. O ser não deve permanecer inerme ou indiferente ao curso dos acontecimentos. Deve ter um papel na evolução e na História. Um papel que ajuda a explicar a providência divina.
A História que Pilatos pensava fazer em parte e, em parte, ser feita pelos deuses Jesus colocava nas mãos daquele que faz nascer o seu sol sobre bons e maus e virem as chuvas sobre justos e injustos (Mt 5:45). Se entendermos a providência divina exemplificada pelo nascer do sol e o cair da chuva, de maneira metafórica, concluiremos que não decorre dos homens ou dos deuses, como Pilatos pensava, nem precisa ser sempre o ato de uma pessoa. Pode, mais simplesmente, constituir o governo silencioso do mundo por Deus. O silêncio pode ser, em suma, algo tão fundamental quanto a palavra, quanto a revelação de Deus. Só o amor com que Deus beneficia a todos desce tão certamente quanto os raios do sol e a água da chuva. Só ele é tão infalível quanto essas manifestações naturais. Tudo o mais e o método pelo qual a providência se exerce permanecem encerrados no denso mistério da alegoria.