segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (11): A Visão

No período inicial da Filosofia, foram propostas duas teorias sobre a visão. Uma delas, a mais antiga, foi adotada pelos primeiros filósofos e é essencialmente física. A outra é de cunho metafísico, surgiu com Platão e foi aperfeiçoada por seu discípulo Aristóteles. A primeira teoria explica o ato de ver como resultado do encontro físico do objeto ou de algo desprendido dele com aquele que vê. Um de seus defensores, Epicuro, escreveu: 
“Há impressões semelhantes à figura dos corpos sólidos, que por sua sutileza superam consideravelmente as coisas que aparecem aos nossos sentidos” (EPICURO. Epístola a Heródotos. In LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2ª ed. Brasília: UnB, 2008. p. 293). As impressões a que Epicuro se refere são eflúvios que se desprendem das coisas. Ele assim as denomina, porque preservam a figura dos corpos de que emanam, portanto são semelhantes a eles:
“As emanações conservam a mesma disposição e a mesma sequência dos átomos dos corpos sólidos, dos quais provêm; damos a essas impressões o nome de imagens. E seu movimento no vazio, desde que nada impeça e nada oponha resistência, leva-as a percorrerem qualquer distância imaginável num lapso de tempo inconcebivelmente breve” (idem).
Para Epicuro, tudo o que existe é um corpo ou vazio. Os corpos são feitos de átomos dispostos em determinada ordem. As impressões ou imagens, que se desprendem deles, são feitas de átomos, que conservam a mesma sequência e a mesma ordem que tinham nos corpos. É por isso que elas se chamam imagens: porque reproduzem a organização exata dos corpos, como o reflexo de uma pessoa no espelho.
Porém, para entendermos essa teoria, precisamos não só ter ciência do seu conteúdo, mas também das dúvidas cuja operação ela suspende ou mantém. Ao desenvolver a sua física, Epicuro separou nitidamente o que se passa na terra do que transcorre nos céus. Desenvolveu, assim, uma doutrina dos céus e a ensinou à parte da física terrena.
O traço que mais distingue a doutrina dos céus da física terrena de Epicuro é o caráter incerto desta. Por isso, ao enfrentar problemas de movimento celeste, Epicuro formula várias explicações, às quais reconhece idêntica força elucidativa. Por exemplo, “o surgir e o pôr do sol, da lua e dos outros astros podem verificar-se por acendimento e apagamento [...] Tais fenômenos podem também ser produzidos por aparição sobre a terra e novamente por ocultação” (idem. p. 304).  Do mesmo modo, “é possível que a lua tenha luz própria, mas também é possível que a receba do sol” e “os eclipses do sol e da lua podem dever-se à extinção de sua luz, como observamos que acontece também nos fenômenos terrestres, mas podem ainda dever-se à interposição de outros corpos” (idem. p. 305).
A física da terra, na qual se insere a teoria da visão de Epicuro, não se constroi por esse método da possibilidade. Pelo contrário, o filósofo a extrai por necessidade de um número de premissas. A primeira é a de que os sentidos constituem a fonte de toda verdade. Como os sentidos nos mostram que o real é feito de corpos e de vazio, devemos admitir esses dois elementos. E, como eles nos revelam que os corpos são compostos, ou admitimos a divisão infinita deles em partes cada vez menores, ou sustamos o pensamento em entidades que não podem ser divididas (os átomos).
Assim, movendo-se de premissas às suas consequências, Epicuro descreve o mundo sublunar por um método de certezas que se impõem sobre possibilidades concorrentes. Não que as certezas que ele encadeia em sistema estivessem a salvo de todo questionamento possível. Não estavam, mas Epicuro suspende as dúvidas que podem ser formuladas a propósito delas. A partir desse ponto, as verdades lógicas dos corpos, do vazio, dos átomos e dos outros elementos do seu sistema passam a valer como crenças.
Quando nos debruçamos sobre o livro de Aristóteles acerca da alma, verificamos que propõe uma explicação muito distinta do funcionamento dos sentidos. Se a teoria de Epicuro e as pré-socráticas eram essencialmente físicas, por se basearem no contato direto do conhecido com o conhecedor, a de Aristóteles deve ser chamada metafísica, pois abstrai em grande parte esse contato e se põe como passagem do conhecimento potencial ao conhecimento em ato. Diz esse filósofo:
“Tudo o que possui o poder de sensação é em potência o que o objeto percebido é em ato. Assim, no começo do processo de percepção, os dois fatores em interação [o sujeito e o objeto] são dessemelhantes, porém, ao final, o que recebe a ação do objeto é assimilado a ele e se torna idêntico em qualidade ao objeto” (ARISTÓTELES. On the soul. I, 5, 418a. In Great books of the western world2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol 7. p. 648). Essa é a essência do ato de percepção para Aristóteles: uma assimilação, que só ocorre quando o órgão sensorial é em potência o que o objeto é em ato. Dada essa condição, quando o objeto age sobre o sujeito, a potência transforma-se em ato, isto é, não no ato do próprio objeto, mas em algo idêntico a ele.
Esse algo idêntico é a forma do objeto. “Na alma”, explica Aristóteles, “a faculdade [...] da sensação é potencialmente os objetos sensíveis. Portanto, ela deve ser ou as próprias coisas, ou as suas formas. A primeira alternativa é claramente impossível: não é a pedra que se faz presente na alma [quando o sujeito a vê], mas a sua forma” (idem. III, 8, 431b. p. 664). Por forma, não devemos entender a figura visível, mas a essência do objeto, aquilo que nele permanece estável, enquanto continua a existir.
Perguntemos, então, que dúvidas as teorias de Epicuro e Aristóteles suspendem. Epicuro afirma que o ser é constituído por átomos e por vazio. Mas isso introduz um problema considerável: se o ser é formado por átomos, ele também é explicado por esses átomos, suas formas e movimentos. E se é de algum modo explicado, o ser já não é obscuro, o que viola o que temos visto a respeito dele até aqui.
Mais do que isso, se é constituído por átomos que são ejetados dos objetos e vistos ao atingirem o sujeito, segue-se que o ser também pode ser visto. E, se o pode, concluímos de novo que não é obscuro. Mas isso é, no mínimo, duvidoso. O universal é visível? Sabemos que não. E o ser não constitui o conceito de maior universalidade? Como pode, pois, ser visto? Epicuro deixa de considerar esses problemas, após estabelecer que tudo que existe é formado de corpos e de vazio.
Aristóteles suspende dúvidas diferentes das de Epicuro, ao explicar a visão. Suspende, por exemplo, as que podem ser propostas sobre os conceitos de potência e ato. Afirma que o órgão sensorial é a visão em potência, e o ato é a forma do objeto visto, que nasce na alma durante a visão. Mas, se a forma é destituída de matéria, como pode surgir na matéria de que o aparato sensorial é feito? Aristóteles supera essa impossibilidade por um passe de mágica, que faz o ato (a forma) surgir de uma potência (a matéria sensível) que por definição o exclui.
Assim, nem o ser das coisas pode ser visto com elas, como sugeriu Epicuro, nem a visão é a percepção da forma, como declarou Aristóteles. Devemos avançar para outras teorias, se quisermos entender em que consiste o ato de ver. Mas, como a teoria de Aristóteles vigorou, com modificações, por tempo extremamente longo, só vemos um número significativo de pensadores adotarem outra teoria, a partir da revolução kantiana.
O problema é que a teoria da sensação de Kant não é bem aceita pelos cientistas dedicados ao estudo da luz e da visão. Filósofos e cientistas vivem um desacordo às vezes dissimulado, mas muito real sobre esse ponto. E, se nos satisfazemos com a refutação das teorias antigas, a indefinição do debate contemporâneo nos deixa sem uma opção claramente aceita sobre a visão.
Que pensar sobre esse quadro indefinido? Um ponto de partida válido, na busca de uma solução, é considerar que as posições possíveis continuam as mesmas: ou a visão é um fenômeno físico, ou é algo metafísico. No texto anterior, vimos que qualquer fenômeno pode ser pensado, com Teilhard de Chardin, como dotado de um lado de Fora (seu aspecto físico) e outro de Dentro (o aspecto metafísico). Assim proposta, a interpretação metafísica continua a ser uma possibilidade.
Os primeiros filósofos cristãos estiveram na encruzilhada a que me refiro, pois as posições de Epicuro e Aristóteles já haviam sido defendidas antes deles. É útil, portanto, verificarmos que avaliação eles fizeram das alternativas em jogo. Ao fazermos isso, somos surpreendidos com a constatação de que duas das maiores autoridades patrísticas em Filosofia, Santo Agostinho e Boécio, adotaram o ponto de vista físico de preferência ao metafísico. Porém, adotaram-no na versão modificada que lhe deram os filósofos neoplatônicos.
A partir da sua conversão, pelo menos, Santo Agostinho passou a afirmar a teoria neoplatônica da visão. Em A grandeza da alma, lemos: “A visão se projeta para fora e por meio dos olhos se arremessa para longe, atingindo todos os lados para poder perscrutar o que vemos. O resultado é que enxergo melhor onde está o que enxergo do que de onde saí [unde erumpit]” (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. São Paulo: Paulus, 2008. p. 308).
A projeção da visão para fora, a que a passagem se refere, é uma variação da teoria pré-socrática dos eflúvios criada na tradição platônica. Não nega que as coisas emitam partículas tênues e invisíveis, mas admite que os olhos também são coisas e, portanto, emitem seus próprios eflúvios. A visão resulta do encontro desses eflúvios, mas principalmente do modo como se processam os que emanam dos olhos.
Em outros lugares, Agostinho chama raios o eflúvio que emana dos olhos: “A vastidão do oceano se apresenta incomparável; mas, por maior que seja, é preciso que antes os raios de nossos olhos atravessem o ar que está sobre ele, e, depois, tudo o que está além e, então, finalmente, nossos olhos chegarão ao sol que vemos” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 164). E, para que não haja dúvida sobre a materialidade desse processo, nosso autor esclarece: “Este é certamente um raio de luz corpórea, que se projeta de nossos olhos e que atinge com tamanha rapidez o que está colocado tão distante a ponto de não se poder avaliar ou comparar [sua velocidade com outra]” (idem).
Boécio abraça a mesma teoria: “A circularidade de um corpo esférico não é encontrada do mesmo modo pela vista e pelo tato. O olho, estando distante, percebe-o de uma só vez, graças aos raios que emite” (BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). Vemos que, em vez de usarem a metafísica para explicar a visão, Agostinho e Boécio usaram a teoria física.
Curioso é que eles aliaram sua explicação física ao conhecimento da forma dos objetos. O primeiro escreveu: “A alma produz pelo espírito semelhanças das coisas corporais, ou contempla as apresentadas anteriormente [durante a sensação]. Se ela produz essas semelhanças, são somente imaginações; mas se ela contempla as apresentadas antes, são visões” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. p. 470). As “semelhanças das coisas corporais” a que Agostinho alude são formas.
Boécio tampouco se afasta da concepção platônica: “Os sentidos percebem [um objeto] do ponto de vista da matéria que lhe serve de suporte, enquanto a imaginação avalia apenas a forma, abstraindo a matéria” (BOÉCIO, Severino. Op. cit. loc. cit.). Nessa passagem como na anterior, imaginação é o conhecimento que se segue à percepção. Vimos que Aristóteles tinha localizado nesta a forma despojada de matéria. Agostinho e Boécio transferiram-na para um momento posterior à percepção. Não confundiram, portanto, a criação da forma abstrata com a visão, que explicaram pela teoria física.
É admirável que, apesar de terem sido platônicos, Agostinho e Boécio adotaram uma teoria física e não metafísica da visão. De algum modo, essa teoria pareceu-lhes mais próxima da visão de Universo cristã, já que a explicação alternativa estava associada ao materialismo que o cristianismo combatia.
O exemplo deles pode ser seguido de certa maneira ainda hoje, já que a teoria que descreve a visão como processo físico, embora antiquíssima, foi confirmada por descobertas científicas fundamentais. Examinemo-las sucintamente.
Por muito tempo, pensou-se no espaço como vácuo ou vazio absoluto. Essa ideia foi utilizada, inclusive, na própria Física newtoniana. Porém, Einstein mostrou que o espaço não é vazio:
“Einstein esforçou-se para explicar por que seu tipo de espaço é tão diferente do de Euclides e do de Newton [...] Espaço vazio não tem significado prático: espaço não pode existir separadamente daquilo que enche o espaço, e a geometria do espaço é determinada pela matéria que ele contém” (CALDER, Nigel. O universo de Einstein. 2ª ed., Brasília: UnB, 1994. p. 63).
Mas, se não é vazio, que é o espaço? A Física contemporânea ensina que ele é um campo, pois é formado de energia em maior ou menor concentração. Fritjof Capra esclarece: “Na teoria quântica dos campos, todas as interações são representadas com a troca de partículas virtuais. Quanto mais forte a interação, isto é, quanto mais forte a força resultante entre as partículas, mais frequentemente ocorrerá a troca de partículas virtuais [...] As partículas virtuais podem passar a existir espontaneamente e desaparecer novamente neste último, sem que esteja presente qualquer outra partícula que interaja fortemente” (CAPRA, Fritjof. O tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1983. pp. 166-168).
O espaço existe não só entre os corpos, mas também no interior destes. Todo corpo, por mais maciço que possa parecer, é quase inteiramente vazio, o que quer dizer ocupado por campos energéticos. A impressão de solidez que temos ao observá-lo decorre do movimento velocíssimo dos átomos que o compõem. E a energia dos campos, no interior dos objetos, também faz surgir partículas virtuais a todo instante. Essa é a primeira descoberta crucial para a compreensão do ato de ver.
Outra descoberta da ciência recente com potencial de afetar nossa compreensão da visão é a do poder que tem a luz de mover objetos. Embora os fótons, que compõem a energia luminosa, sejam desprovidos de massa, fenômenos como o efeito fotoelétrico demonstram que a luz é capaz de deslocar objetos. Nesse efeito, elétrons são liberados da superfície de um corpo pela incidência da luz (RYDER, J. D. “Photoelectric effect”. Grolier Multimedia Encyclopaedia. EUA: Grolier, 1996). Algumas modalidades do fenômeno fotoelétrico são produzidas, inclusive, por luz de baixa frequência (idem. “Photochemistry”).
O efeito fotoquímico, considerado uma variação do fotoelétrico, é responsável pela tendência dos objetos coloridos a desbotar, quando expostos à luz. Mário Schenberg explica que “esse desbotamento implica a destruição de moléculas de pigmento [do objeto] por parte da luz” (SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. 5ª ed., São Paulo: Landy, 2001. p. 105).
Porém, a movimentação de objetos pela luz não se manifesta só no efeito fotoelétrico e suas variações. O ozônio também “é produzido na atmosfera pela interação de luz ultravioleta do Sol e oxigênio normal. A luz decompõe o oxigênio em átomos individuais, e estes, por sua vez, reagem com o oxigênio para formar ozônio” (WARD, Peter D.  e BROWNLEE, Donald. Sós no universo. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 275).
Quando combinadas, as descobertas acima permitem entender melhor o que ocorre durante a visão. A primeira confirma que os objetos materiais emitem energia o tempo todo. A segunda prova que a luz é capaz de extrair essa energia da esfera dos objetos e conduzi-la através do espaço. Não é preciso acrescentar que tudo isso é perfeitamente compatível com a teoria física da visão.
Que acontece quando a luz carregada com energia dos objetos chega ao olho de um observador? Hoje se sabe que o olho transforma a luz numa corrente elétrica que é conduzida pelo nervo ótico até o cérebro. Sabe-se também que, a despeito do comprimento de onda e da frequência sempre variável da luz que chega, a corrente transmitida pelo nervo é sempre igual. Domenico Ravalico o afirma: “O sinal transmitido ao longo do nervo ótico não varia em amplitude, mas permanece constante; é modulado na frequência com base em determinado código”. Só por isso, explica o autor, a intensidade da luz recebida não queima o nervo ótico, deixando-nos cegos (RAVALICO, Domenico. A criação não é um mito. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1977. pp. 194-195).
Mas, se os impulsos que percorrem o nervo ótico são todos iguais, por que a mensagem que conduzem é interpretada como objetos tão diferentes quanto os que compõem o mundo ao nosso redor? Por que não é interpretado sempre da mesma maneira? Os físicos, geralmente, afirmar que as variações devem-se ao fato de as ondas elétricas chegarem a diferentes regiões do cérebro, que as interpretam diferentemente. Mas essas leituras diversas distorcem a uniformidade dos impulsos elétricos. Deformam, portanto, o real, em vez de representá-lo. 
A teoria física livra-nos dessa tremenda dificuldade, ao mostrar que os impulsos são interpretados como objetos, porque contêm energia extraída deles pela luz ambiente. O cérebro é como a tela de um aparelho ultracomplexo, aonde essa energia chega e pode finalmente ser vista. Somente nele, ocorre o ato psicológico de ver, a física se faz psicologia ou, como diziam os antigos, a alma vê, já que é ela que vê. É?