quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (7): A Fé, a Dúvida e o Conhecimento

Se por audácia entendermos o abandono de modos tradicionais de pensamento e de vida, teremos de concluir que, em nenhuma outra época, o ser humano foi mais audacioso do que hoje, pois nunca ousou enterrar, como nos nossos dias, o que as gerações anteriores consideraram mais venerável. E, entre os objetos que têm sido assim enterrados, o que mais se destaca, pela transcendental importância que teve para as gerações passadas, é a fé religiosa.
Trata-se, pois, de entender se os motivos do estranho descarte da fé são justificados. Para isso, é útil questionar o papel das fés no pensamento humano. Sabemos que até os conhecimentos dos quais estamos mais assegurados são, de algum modo, duvidosos. No diálogo Contra os acadêmicos, Santo Agostinho procura provar que há conhecimentos certos. Diz-nos, por exemplo, que as folhas do oleastro são amargas, ao que um de seus interlocutores objeta que elas apetecem às cabras. Agostinho responde não saber o que as folhas são para as cabras, mas ter certeza de que, para ele, são amargas. O amigo insiste: “Talvez haja algum homem para quem não são amargas”. E o santo responde: “Queres cansar-me? Por acaso eu disse que são amargas para todos? Disse que são amargas para mim, e não afirmo que isso é sempre assim. Não acontece que, por uma causa ou outra, a mesma coisa uma vez tem gosto doce, outra vez amargo?” (HIPONA, Agostinho de. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. p. 127).
Esse breve diálogo mostra como as certezas mais firmes, quando questionadas, adelgam-se até desaparecerem. O oleastro é amargo, isso é tido como coisa certa. Mas o é para os homens, não para as cabras, o que estreita um pouquinho o alcance da proposição. E é possível que não o seja para todos os homens. Não estamos certos de não existir alguém com parecer diferente sobre o gosto daquela planta. Assim, a afirmação se encolhe ainda mais. E, até para os que o consideram realmente amargo, o oleastro pode não parecer sempre assim, o que impõe ainda outra redução ao alcance inicial da proposição.
Notem que as dúvidas sobre a proposição aparentemente indesafiável “O oleastro é amargo” surgem, conforme a deslocamos para o plano perceptual de diferentes seres. Experiências de degustação variáveis levam ou podem levar a conclusões também variáveis sobre o sabor do oleastro. Poderíamos aprofundar o questionamento indagando o que é o paladar, como se forma, se nos revela realmente algo sobre o que entra em contato com a nossa boca ou se é enganoso. E, em caso de ser enganoso, qual é a extensão dos enganos a que nos pode levar. Poderíamos até questionar se os outros quatro sentidos também são enganosos e em que casos o são. Claro que essas questões mais amplas podem enfraquecer a conclusão de que o oleastro é amargo ainda mais do que experiências individuais de degustação. De modo que o ato de duvidar tem princípio, mas não parece ter fim.
Sobre praticamente todas as proposições podem ser suscitadas dúvidas. Não há certeza estabelecida que não possa ser enfraquecida por meio de dúvidas razoáveis, desde que haja alguém para procurá-las. Duvidar ou não duvidar é, pois, questão de decisão e de ocasião. Dúvidas sempre as há disponíveis. Podemos procurá-las ou não e cultivá-las ou não ao encontrá-las, conforme deliberarmos ou formos levados a fazer.
Por muito tempo, os filósofos consideraram a verdade uma relação entre o pensamento e o real. Quando as dúvidas sobre essa relação aumentaram, porém, a verdade passou a ser concebida como relação entre duas representações do real pelo pensamento. Esses são, até hoje, os modos comuns de conceber a verdade. Ambos a relacionam ao real. Seja ao real em si, seja ao real enquanto pensado por um sujeito. Mas, se o problema do conhecimento pode ser colocado do modo que venho de apresentar, a verdade deve ser concebida como uma tensão entre fé e dúvida ou entre fé e conhecimento duvidoso. Mais do que isso, se o real é essencialmente duvidoso, parece que o que chamamos verdade não surge sem a suspensão de certas dúvidas para diminuir a incompreensibilidade do que conhecemos.
Não estou a negar que o conhecimento seja sempre relativo a um objeto. Só acho que esse objeto é essencialmente duvidoso e que, para sermos capazes de moldar um conhecimento sobre ele, temos de suspender algumas dúvidas por meio da fé. É o que fazemos ao criar o nosso conhecimento. Por isso, além de ser relativo ao objeto, pode-se afirmar que o conhecimento também é relativo a um regime de fé e dúvida.
Nenhum desses regimes é absoluto, pois sempre é possível crer e duvidar de modos distintos do mesmo objeto. Ou, dito de outra maneira, sempre é possível suspender dúvidas diferentes das que nós ou alguém suspendemos ao definir um conhecimento. A única coisa não relativa, no conhecimento, é a coexistência da fé e da dúvida no seu ventre. É a infalível suspensão de certas dúvidas por meio de certas fés.
A só exceção a essa regra é o conhecimento do ser. Só ele é absoluto e não o é por ser absolutamente claro, mas, ao contrário, por ser obscuro. Concordo com Heidegger a esse respeito: “O conceito de ser é o mais obscuro [...] O conceito de ser é indefinível. Essa é a conclusão tirada de sua máxima universalidade” (Heiddegger, Martin. Ser e tempo. 15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. p. 29). Na verdade, o ser é tão obscuro que, ao contrário de todo outro objeto, não conhecemos sequer as dúvidas que são possíveis a respeito dele. Não vemos que dúvidas é cabível levantar sobre o ser. Sabemos que ele é real e que a tudo subjaz todo o tempo. Nada mais.
Assim concebido, o ser é intocável pela dúvida. É o único conceito que não se molda à noção de verdade que apresentei, o único que não resulta de uma tensão entre fé e dúvida. Por isso, temos de diferenciar a verdade relativa (a tensão entre fé e dúvida) da absoluta, que é unicamente a verdade a respeito do ser.
Não me parece absurdo assimilar o conceito de ser a Deus. Deus é, Deus é eterno, Deus é a verdade e Deus é obscuro. Por um lado, ele é a verdade absoluta, tão forte e patente que não a podemos negar. Por outro lado, é o Deus absconditus, o Deus que se esconde. Isaías não exclamou com razão “Em verdade, tu és um Deus que se esconde!” (Is 45:15)? E o ser, não é também tudo isso?
Claro que a Bíblia e a experiência nos apresentam Deus como uma pessoa. Mas isso não é inteiramente compatível com a identificação entre Deus e o ser? O Deus pessoal não é proclamado, de modo misterioso mas efetivo, por cada ente no espetáculo da natureza? Se alguma evolução há, no Universo, não consiste em passar de formas impessoais a formas pessoais? E de formas menos pessoais às mais pessoais? Os seres vivos não se aproximam progressivamente da personalidade, conforme se tornam mais complexos? Se não têm personalidade individual, os animais são dotados, ao menos, de personalidade genérica. Todos pensam e sentem do modo característico da raça ou da espécie a que pertencem. Esse pensar e esse sentir constituem uma aproximação da personalidade ligada ao gênero. Daí a designação personalidade genérica. Será o caso de só o ser supremo, vértice do Universo, não ser pessoal?
Não quero, porém, me ocupar tanto, aqui, da verdade absoluta, da verdade do ser, embora me pareça que existe. Quero deter-me, antes, na relativa, que é a que mais nos diz respeito, pois vivemos imersos nela. Ao pensar a verdade relativa como uma tensão entre fé e dúvida, não estou a sugerir que ela seja extremamente variável. A verdade é, sim, variável, por estar sempre sujeita a dúvidas. Mas não é demasiado variável. Pelo contrário, é próprio da verdade ter certa estabilidade e se sujeitar a um número de regras.
Esses lineamentos sobre o papel da fé e da dúvida no conhecimento não reproduzem, nem se confundem com o que Descartes escreveu sobre o tema. Primeiramente, porque a dúvida cartesiana constitui um momento do conhecimento, ao qual se segue o momento mais importante da certeza. A dúvida momentânea serve para eliminar "os juízos afoitos que obstam que alcancemos agora o conhecimento da verdade, e, de tal modo nos fazem confiantes, que não existe sinal aparente de não podermos nos livrar deles se não tomarmos a iniciativa de duvidar, uma vez durante a existência, de tudo aquilo em que notarmos a menor suspeita de incerteza" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 69). Pela dúvida cartesiana, eliminam-se falsos conhecimentos, preconceitos e inverdades, não para que a própria dúvida permaneça no lugar deles, mas para que possamos alcançar o conhecimento do que Descartes chama verdades claras e distintas. O fim do conhecimento são essas verdades, das quais o filósofo acusa os "espíritos apressados" de se afastarem não por eliminarem a dúvida, mas por "introduzirem a dúvida e a incerteza em meu modo de filosofar" (idem. p. 67). Essas declarações bastam para demonstram que a dúvida de Descartes é transitória e distinta da que se mantém em permanente oposição à fé.
Corretamente compreendida, portanto, a verdade é uma tensão entre a fé e a dúvida persistente e não cartesiana. É preciso acrescentar, entretanto, que a tensão a que me refiro é regular. Se não o for, ela não será capaz de constituir o que costumamos chamar verdade. Será antes um devaneio, fruto da imaginação, ideia arbitrária, nunca verdade.
A regularidade da verdade decorre das regras a que se sujeita. Pensamento não é anomia. Pensamos de acordo com regras. Nem mesmo nos sonhos, nas alucinações e em outros estados semelhantes, as regras do pensamento são abolidas. Elas podem ser relaxadas e flexibilizadas, não suprimidas.
Por que pensamos que o sol está no céu? Não é absolutamente porque dúvidas razoáveis não possam ser formuladas a esse respeito. Consideramos que o sol está no céu, porque o vemos regularmente lá. A verdade do sol deve tanto a essa regularidade! E por que sabemos que, entre dois pontos situados no mesmo plano, pode ser traçada uma e somente uma reta? Porque isso já nos pareceu óbvio uma centena de vezes. É claro que um matemático habilidoso pode desafiar não só essa afirmativa como várias outras da Geometria euclidiana, mas não a pode desarraigar ou eliminar a sua constância.
Não consideramos que proposições como a da reta situada entre dois pontos são verdadeiras por não serem duvidosas, mas por se porem de modo regular no intelecto. Claro que não me refiro a qualquer regularidade. Não me refiro, por exemplo, à regularidade por simples repetição. Uma ideia falsa, repetida mil vezes, não se torna verdade, a não ser para os incautos. Refiro-me à regularidade que decorre da subordinação às regras ou leis do conhecimento. Sabemos que o sol está no céu, porque o vemos de maneira consistente com as leis da observação. Sabemos que entre dois pontos há uma reta, porque distinguimos a ideia de ponto da de reta e o primeiro do segundo ponto, de acordo com as regras do pensamento lógico.
A regularidade do conhecimento está mais associada à fé do que a dúvida. O pensamento percorre, com maior frequência, os caminhos que a dúvida não obstrui. E por que ela não os obstrui? Porque é impedida pela fé. A dúvida é tão persistente, na mente humana, que, se não a suspendêssemos aqui e ali, por meio da fé, não seríamos capazes de construir conhecimento algum. Teríamos apenas dúvidas. Portanto, ao suspender certas dúvidas, a fé cria a possibilidade de o pensamento se desenvolver sem impedimentos, em obediência às regras que o presidem.
Esse hábito de suspender certas dúvidas e de manter outras foi extensamente adotado, ao longo da História. Por causa dele, a dúvida foi deslocada infinitas vezes de um lugar para outro, por diferentes escolas de pensamento. Em grande medida, foi isso o que definiu a arquitetura espiritual das próprias escolas. Observamos o pungente realismo (gnoseológico) dos antigos e os consideramos ingênuos. Porém, o realismo antigo era muito mais resultado da suspensão de certas dúvidas sobre a relação entre o conhecimento e o real do que sinal de ingenuidade. Em todas as épocas, representantes de diferentes escolas suspenderam certas dúvidas e mantiveram outras. Os antigos não foram exceção.
E que fez Kant ao propor tão grande giro da Filosofia quanto o que a pôs a gravitar ao redor do conhecimento e não mais do ser? Não deslocou ele as dúvidas dos filósofos para o ser? Não negou conhecermos o que o ser é em si e não fortaleceu, ao contrário, o conhecimento, ao enunciar as formas da sensibilidade, as categorias do entendimento e as espécies de juízos? Pelo exemplo dos antigos e dos modernos, vemos que conhecer é administrar dúvidas e que é possível administrá-las de modos muito diferentes. Claro que um modo de administração não vale mais do que outro, embora o conhecimento realize progressos.
Por isso, na dança da dúvida, a verdade não vale porque a fé está depositada aqui e não ali ou por certas dúvidas terem sido suspensas em lugar de outras. Ela vale pela regularidade que o pensamento é capaz de adquirir em obediência a suas regras. Nossa imagem do mundo decorre dessa regularidade.
Nos artigos seguintes, tentarei mostrar como funcionam as regras que garantem regularidade ao conhecimento. Apesar da força dos erros, o funcionamento dessas regras beira o prodigioso. Não o podemos admirar suficientemente. Enquanto os astros giram no céu sobre nós, de acordo com a lei fixa da gravidade, para usar a expressão de Darwin, formas de encanto e beleza insuperáveis brotam em nós, conforme o pensamento, em obediência a regimes diversos de fé e dúvida, abre seus sulcos e neles arroja suas mais escolhidas sementes.