Em 1929, o cientista inglês Leonard Woolley comunicou ao mundo a descoberta de evidências do Dilúvio bíblico, durante uma campanha de escavações na Mesopotâmia. As evidências foram detalhadas por ele, no livro Ur e o Dilúvio, publicado dois anos depois. Após a descrição delas, segue-se a reafirmação de que “a descoberta demonstra a realidade histórica do dilúvio ao qual se referem as narrações suméricas e hebraicas, embora nada provasse, evidentemente, quanto aos detalhes de uma ou de ambas as narrações. Foi uma catástrofe local, não universal, limitada ao baixo vale do Tigre e do Eufrates, que se abateu sobre uma região de aproximadamente 600 km de comprimento e 150 de largura: mas para seus habitantes, aquilo era o mundo inteiro!” (WOOLLEY, Leonard. Ur e o Dilúvio. Leipzig, 1931).
Saudada, a princípio, como verdadeira evidência do Dilúvio, a descoberta de Woolley foi pouco a pouco reinterpretada. O historiador Robin Lane Fox reconhece que ela "permanece, com justiça, num pináculo da arqueologia, mas suas interpretações nos recomendam cautela”. Porém, “de 1929 para cá, o Dilúvio de Woolley foi se encolhendo e se tornando cada vez mais local e não espalhado por uma área de 100 mil quilômetros quadrados". O encolhimento deveu-se à descoberta de que as inundações em diferentes pontos dessa enorme área ocorreram em épocas distintas. Por isso, Fox conclui que "não há razão para se atribuir as origens dos relatos mesopotâmicos e hebraicos sobre o Dilúvio a alguma enchente determinada; é provável que a ficção hebraica se tenha desenvolvido a partir de lendas mesopotâmicas. São relatos ficcionais, e não históricos” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 202-203).Por essas declarações se percebe quão controverso o Dilúvio bíblico permanece. Não há consenso algum sobre a sua relação com determinado acontecimento histórico. E a falta desse consenso é interpretada, por historiadores e arqueólogos, como sinal de que o acontecimento bíblico é uma ficção.
Porém, embora Woolley tenha interpretado incorretamente a sua descoberta como evidência do próprio Dilúvio, parece-me ainda possível associá-la ao contexto do Dilúvio bíblico. Isso porque a Bíblia insere o Dilúvio num contexto mais amplo, que começa com a união dos filhos de Deus com as filhas dos homens em Gênesis 6:2.
O fato de essa união vir logo após a menção dos 500 anos de Noé, em Gênesis 5:32, tem levado os intérpretes a entender que ela se deu muito tempo após o nascimento do construtor da arca. Porém, a verdade não parece ser essa, pois cada novo relato, em Gênesis 1 a 11, é introduzido por um recuo narrativo. O relato da criação, no capítulo 1, termina com o descanso divino do sétimo dia, quando o homem já existia. Porém, os versos seguintes, em vez de continuar a história a partir desse ponto, retornam ao período em que o homem ainda não existia para narrar a criação de Adão de outra perspectiva (Gn 2:4).
Esse mesmo tipo de recuo ocorre cada vez que o narrador sagrado muda de história, nos capítulos 1 a 11. Por exemplo, o capítulo 4 se encerra com a lista dos descendentes de Caim; e o capítulo que se segue não prossegue a partir desse ponto, mas retrocede (pela segunda vez) ao dia em que Deus criou o homem. Do mesmo modo, o capítulo 10 termina com a difusão das nações pela Terra, e o 11 retorna à construção da Torre de Babel ocorrida antes.
Não é diferente com a história do Dilúvio, encontrada em Gênesis 6 a 9. O capítulo 5 termina com a menção dos 500 anos de Noé e a geração dos seus filhos Sem, Cão e Jafé. Porém, em vez de continuar desse ponto, o capítulo 6 retorna ao período em que os homens começaram a se multiplicar sobre a terra. Não é essa a época de Sem, Cão e Jafé, mas dos primeiros descendentes de Adão que tiveram “filhos e filhas”, logo após o nascimento de Enos.
O recuo a esse tempo remoto tem grande importância, pois nos permite fixar a época em que a história do Dilúvio realmente começa. Ela não principia quando Deus prediz a inundação a Noé, mas nos primórdios da humanidade, quando os homens começaram a se multiplicar na terra, e os filhos de Deus desposaram as filhas dos homens. Nas palavras de Gênesis: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram” (Gn 6:1-2).
Essa união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens é o marco inicial da história de Noé, pois o relato bíblico mostra que Deus se indignou contra ela e decidiu reduzir a vida do homem para 120 anos: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3).
A limitação da vida do homem a 120 anos é uma das declarações mais obscuras dos 11 primeiros capítulos de Gênesis. Os estudiosos perguntam se ela indica que a extensão da vida humana foi reduzida para 120 anos ou se, em 120 anos, a humanidade seria dizimada pelo Dilúvio, como o versículo 7 menciona: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.
Contra a primeira interpretação milita o fato de a vida dos patriarcas de Gênesis só atingir extensão inferior a 120 anos no último capítulo: “José habitou no Egito, ele e a casa de seu pai; e viveu cento e dez anos” (Gn 50:22). Todas as personagens bíblicas cuja morte é datada, antes de José, viveram mais que 120 anos. Geralmente, centenas de anos mais. Portanto, mais de dois milênios transcorreram até que uma personagem bíblica cumprisse o dito de Deus em Gênesis 6:3.
Por outro lado, os 120 anos foram claramente estabelecidos por causa da união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:2-3), ao passo que o Dilúvio foi consequência da multiplicação da violência na terra (Gn 6:5-7). A Bíblia parece ensinar-nos que a essas causas diferentes corresponderam consequências também distintas.
Diante dessas dificuldades interpretativas, só nos resta apegar-nos ao sentido claro do verso em que lemos: “Os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3). Em Gênesis, sempre que a palavra “dias” é seguida por “anos”, como em 6:3, a intenção é designar a duração de uma vida. Em 5:5, lemos “Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos”. Seguem-se declarações semelhantes sobre todos os outros patriarcas. Mais tarde, de Abraão, Isaque e Jacó, é dito: “Foram os dias da vida de Abraão cento e setenta e cinco anos” (Gn 25:7), “Foram os dias de Isaque cento e oitenta anos” (Gn 35:28) e de novo: “Perguntou Faraó a Jacó: Quantos são os dias dos anos da tua vida? Jacó lhe respondeu: Os dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos” (Gn 47:8-9).
Em todos esses versículos, a palavra dias seguida de um número de anos indica a extensão de uma vida. Esse é o sentido do termo também em Gênesis 6:3. Cento e vinte anos são, ali, a vida de um indivíduo humano. A intenção de Deus ao fixar esse limite foi garantir que o seu espírito [em hebraico, ruach, sopro de vida] não permanecesse por tempo maior no homem, “pois este é carnal” (Gn 6:3). A luta do espírito contra a carne já se delineava e devia ser limitada para que o ser humano não sucumbisse a ela.
Claro que isso implica que as centenas de anos dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 não são literais. Não são idades de indivíduos, mas de clãs, famílias ou povos. Enfim, de coletividades. Não me é possível tratar desse ponto, aqui, mas remeto os interessados aos textos “A idade de Adão” e “E Matusalém?”, publicados em lobaomorais.blogspot.com.br nos dias 29/11/12 e 13/02/13.
A história do Dilúvio é antecedida pela união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:1-3), porque o descontentamento de Deus com a humanidade teve início nessa época. E, se começou tão cedo, pode-se concluir que o julgamento divino das pessoas envolvidas naqueles erros principiou na mesma época. É possível que as grandes cheias dos rios Tigre e do Eufrates tenham sido interpretadas como tais julgamentos, pelos homens da Antiguidade.
As cheias mesopotâmicas mais antigas conhecidas são exatamente as que Woolley, a princípio, associou ao Dilúvio. Elas se deram entre 4.000 e 3.000 a. C. Como a Bíblia situa o nascimento de Noé, por volta de 3.200 a. C., é possível entender que aquelas inundações ocorreram durante a sua vida e podem ter constituído o antecedente necessário para que o patriarca construísse a arca muito antes do Dilúvio desabar sobre a terra. Se tiver sido assim, Noé não construiu seu navio, sem ter presenciado qualquer inundação semelhante à que Deus lhe anunciou, mas tendo visto, vivido ou recebido notícia de várias delas.
Embora o Dilúvio não se confunda com qualquer das inundações ocorridas entre 4.000 a 3.000 a. C., ele se insere no contexto delas. Uma sequência de grandes catástrofes ocorreu na época e no lugar em que Noé e os outros patriarcas de Gênesis 4 e 5 provavelmente habitaram.
Para nos certificarmos disso, é útil recordar que o território do Éden ficava “na banda do oriente”, como lemos em Gênesis 2:8. Do ponto de vista do narrador, oriente é o oriente da Terra Santa, pois nenhuma outra coordenada de espaço é dada antes, no texto. Sem outro referencial de espaço, devemos adotar a posição em que o narrador e os destinatários do texto se situavam, isto é, a da Palestina. Como Gênesis 3:23-24 afirma que Deus expulsou o homem do paraíso, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”, devemos concluir que, ao deixar o horto, Adão rumou para o leste. Caim, por sua vez, ao se retirar da presença do Senhor, foi para a “terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Se o jardim que Deus plantou ficava no Éden, pois se diz que era “um jardim no Éden” (Gn 2:8), ao ser expulso do jardim, Adão não saiu propriamente daquele território. Caim foi o primeiro a fazê-lo, pois foi morar em Node, não ao oriente do jardim, mas “ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Vários acontecimentos são, assim, localizados, sucessivamente, no leste: o Éden ficava ao leste da Terra Santa, Adão foi para o leste, ao sair do jardim do Éden, e Caim foi para o leste não só do jardim, mas do próprio Éden, ao sair da presença de Deus. Isso nos aproxima muito da Mesopotâmia e nos induz a entender que os fatos de Gênesis 4 a 9 transcorreram naquela região.
E se tanto Adão como Caim e os descendentes deles viveram na Mesopotâmia e vizinhanças, não há equívoco algum em associarmos a Noé as inundações descobertas por Woolley, naquela região, as quais ocorreram entre 3.200 e 2.900 a. C. Trata-se de acontecimentos arqueologicamente comprovados e situados tanto no lugar como na época em que Noé viveu. Chega a ser improvável que tanta coincidência de tempo, lugar e tema não se deva a uma relação real.
Pergunto-me se esses dados não sugerem outra reviravolta, na interpretação das descobertas de Woolley. Se não indicam que o Dilúvio não é ficção, mas verdade, ainda que os detalhes narrativos de Gênesis tenham sido dourados para pôr em destaque a fidelidade de Noé a Deus e, portanto, inspirar a fé.
Na Idade Média, os pedaços da cruz de Cristo vendidos no mundo davam para construir muitas arcas, e os pedaços da arca bastavam para uma cidade. Semelhantemente, ainda há quem procure os restos da arca no Monte Ararate. De tempos em tempos, não coram em anunciar inclusive que a acharam. Mais de uma arca foi localizada ali, nos últimos anos. Mas isso não quer dizer que não haja pesquisa série sobre o grande acontecimento ou que se trate de pura lenda. Penso que o cerne dessa pesquisa, no campo da Arqueologia, encontra-se nas descobertas de Woolley e seus sucessores. Mas há evidências igualmente relevantes em outros campos. No próximo texto, trataremos dos registros literários da devastadora inundação que sacudiu o antigo mundo mesopotâmico.