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Por essas declarações se percebe quão controverso o Dilúvio bíblico permanece. Não há consenso algum sobre a sua relação com determinado acontecimento histórico. E a falta desse consenso é interpretada, por historiadores e arqueólogos, como sinal de que o acontecimento bíblico é uma ficção.
Porém, embora Woolley tenha interpretado incorretamente a sua descoberta como evidência do próprio Dilúvio, parece-me ainda possível associá-la ao contexto do Dilúvio bíblico. Isso porque a Bíblia insere o Dilúvio num contexto mais amplo, que começa com a união dos filhos de Deus com as filhas dos homens em Gênesis 6:2.
O fato de essa união vir logo após a menção dos 500 anos de Noé, em Gênesis 5:32, tem levado os intérpretes a entender que ela se deu muito tempo após o nascimento do construtor da arca. Porém, a verdade não parece ser essa, pois cada novo relato, em Gênesis 1 a 11, é introduzido por um recuo narrativo. O relato da criação, no capítulo 1, termina com o descanso divino do sétimo dia, quando o homem já existia. Porém, os versos seguintes, em vez de continuar a história a partir desse ponto, retornam ao período em que o homem ainda não existia para narrar a criação de Adão de outra perspectiva (Gn 2:4).
Esse mesmo tipo de recuo ocorre cada vez que o narrador sagrado muda de história, nos capítulos 1 a 11. Por exemplo, o capítulo 4 se encerra com a lista dos descendentes de Caim; e o capítulo que se segue não prossegue a partir desse ponto, mas retrocede (pela segunda vez) ao dia em que Deus criou o homem. Do mesmo modo, o capítulo 10 termina com a difusão das nações pela Terra, e o 11 retorna à construção da Torre de Babel ocorrida antes.
Não é diferente com a história do Dilúvio, encontrada em Gênesis 6 a 9. O capítulo 5 termina com a menção dos 500 anos de Noé e a geração dos seus filhos Sem, Cão e Jafé. Porém, em vez de continuar desse ponto, o capítulo 6 retorna ao período em que os homens começaram a se multiplicar sobre a terra. Não é essa a época de Sem, Cão e Jafé, mas dos primeiros descendentes de Adão que tiveram “filhos e filhas”, logo após o nascimento de Enos.
O recuo a esse tempo remoto tem grande importância, pois nos permite fixar a época em que a história do Dilúvio realmente começa. Ela não principia quando Deus prediz a inundação a Noé, mas nos primórdios da humanidade, quando os homens começaram a se multiplicar na terra, e os filhos de Deus desposaram as filhas dos homens. Nas palavras de Gênesis: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram” (Gn 6:1-2).
Essa união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens é o marco inicial da história de Noé, pois o relato bíblico mostra que Deus se indignou contra ela e decidiu reduzir a vida do homem para 120 anos: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3).
A limitação da vida do homem a 120 anos é uma das declarações mais obscuras dos 11 primeiros capítulos de Gênesis. Os estudiosos perguntam se ela indica que a extensão da vida humana foi reduzida para 120 anos ou se, em 120 anos, a humanidade seria dizimada pelo Dilúvio, como o versículo 7 menciona: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.
Contra a primeira interpretação milita o fato de a vida dos patriarcas de Gênesis só atingir extensão inferior a 120 anos no último capítulo: “José habitou no Egito, ele e a casa de seu pai; e viveu cento e dez anos” (Gn 50:22). Todas as personagens bíblicas cuja morte é datada, antes de José, viveram mais que 120 anos. Geralmente, centenas de anos mais. Portanto, mais de dois milênios transcorreram até que uma personagem bíblica cumprisse o dito de Deus em Gênesis 6:3.
Por outro lado, os 120 anos foram claramente estabelecidos por causa da união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:2-3), ao passo que o Dilúvio foi consequência da multiplicação da violência na terra (Gn 6:5-7). A Bíblia parece ensinar-nos que a essas causas diferentes corresponderam consequências também distintas.
Diante dessas dificuldades interpretativas, só nos resta apegar-nos ao sentido claro do verso em que lemos: “Os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3). Em Gênesis, sempre que a palavra “dias” é seguida por “anos”, como em 6:3, a intenção é designar a duração de uma vida. Em 5:5, lemos “Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos”. Seguem-se declarações semelhantes sobre todos os outros patriarcas. Mais tarde, de Abraão, Isaque e Jacó, é dito: “Foram os dias da vida de Abraão cento e setenta e cinco anos” (Gn 25:7), “Foram os dias de Isaque cento e oitenta anos” (Gn 35:28) e de novo: “Perguntou Faraó a Jacó: Quantos são os dias dos anos da tua vida? Jacó lhe respondeu: Os dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos” (Gn 47:8-9).
Em todos esses versículos, a palavra dias seguida de um número de anos indica a extensão de uma vida. Esse é o sentido do termo também em Gênesis 6:3. Cento e vinte anos são, ali, a vida de um indivíduo humano. A intenção de Deus ao fixar esse limite foi garantir que o seu espírito [em hebraico, ruach, sopro de vida] não permanecesse por tempo maior no homem, “pois este é carnal” (Gn 6:3). A luta do espírito contra a carne já se delineava e devia ser limitada para que o ser humano não sucumbisse a ela.
Claro que isso implica que as centenas de anos dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 não são literais. Não são idades de indivíduos, mas de clãs, famílias ou povos. Enfim, de coletividades. Não me é possível tratar desse ponto, aqui, mas remeto os interessados aos textos “A idade de Adão” e “E Matusalém?”, publicados em lobaomorais.blogspot.com.br nos dias 29/11/12 e 13/02/13.
A história do Dilúvio é antecedida pela união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:1-3), porque o descontentamento de Deus com a humanidade teve início nessa época. E, se começou tão cedo, pode-se concluir que o julgamento divino das pessoas envolvidas naqueles erros principiou na mesma época. É possível que as grandes cheias dos rios Tigre e do Eufrates tenham sido interpretadas como tais julgamentos, pelos homens da Antiguidade.
As cheias mesopotâmicas mais antigas conhecidas são exatamente as que Woolley, a princípio, associou ao Dilúvio. Elas se deram entre 4.000 e 3.000 a. C. Como a Bíblia situa o nascimento de Noé, por volta de 3.200 a. C., é possível entender que aquelas inundações ocorreram durante a sua vida e podem ter constituído o antecedente necessário para que o patriarca construísse a arca muito antes do Dilúvio desabar sobre a terra. Se tiver sido assim, Noé não construiu seu navio, sem ter presenciado qualquer inundação semelhante à que Deus lhe anunciou, mas tendo visto, vivido ou recebido notícia de várias delas.
Embora o Dilúvio não se confunda com qualquer das inundações ocorridas entre 4.000 a 3.000 a. C., ele se insere no contexto delas. Uma sequência de grandes catástrofes ocorreu na época e no lugar em que Noé e os outros patriarcas de Gênesis 4 e 5 provavelmente habitaram.
Para nos certificarmos disso, é útil recordar que o território do Éden ficava “na banda do oriente”, como lemos em Gênesis 2:8. Do ponto de vista do narrador, oriente é o oriente da Terra Santa, pois nenhuma outra coordenada de espaço é dada antes, no texto. Sem outro referencial de espaço, devemos adotar a posição em que o narrador e os destinatários do texto se situavam, isto é, a da Palestina. Como Gênesis 3:23-24 afirma que Deus expulsou o homem do paraíso, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”, devemos concluir que, ao deixar o horto, Adão rumou para o leste. Caim, por sua vez, ao se retirar da presença do Senhor, foi para a “terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Se o jardim que Deus plantou ficava no Éden, pois se diz que era “um jardim no Éden” (Gn 2:8), ao ser expulso do jardim, Adão não saiu propriamente daquele território. Caim foi o primeiro a fazê-lo, pois foi morar em Node, não ao oriente do jardim, mas “ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Vários acontecimentos são, assim, localizados, sucessivamente, no leste: o Éden ficava ao leste da Terra Santa, Adão foi para o leste, ao sair do jardim do Éden, e Caim foi para o leste não só do jardim, mas do próprio Éden, ao sair da presença de Deus. Isso nos aproxima muito da Mesopotâmia e nos induz a entender que os fatos de Gênesis 4 a 9 transcorreram naquela região.
E se tanto Adão como Caim e os descendentes deles viveram na Mesopotâmia e vizinhanças, não há equívoco algum em associarmos a Noé as inundações descobertas por Woolley, naquela região, as quais ocorreram entre 3.200 e 2.900 a. C. Trata-se de acontecimentos arqueologicamente comprovados e situados tanto no lugar como na época em que Noé viveu. Chega a ser improvável que tanta coincidência de tempo, lugar e tema não se deva a uma relação real.
Pergunto-me se esses dados não sugerem outra reviravolta, na interpretação das descobertas de Woolley. Se não indicam que o Dilúvio não é ficção, mas verdade, ainda que os detalhes narrativos de Gênesis tenham sido dourados para pôr em destaque a fidelidade de Noé a Deus e, portanto, inspirar a fé.
Na Idade Média, os pedaços da cruz de Cristo vendidos no mundo davam para construir muitas arcas, e os pedaços da arca bastavam para uma cidade. Semelhantemente, ainda há quem procure os restos da arca no Monte Ararate. De tempos em tempos, não coram em anunciar inclusive que a acharam. Mais de uma arca foi localizada ali, nos últimos anos. Mas isso não quer dizer que não haja pesquisa série sobre o grande acontecimento ou que se trate de pura lenda. Penso que o cerne dessa pesquisa, no campo da Arqueologia, encontra-se nas descobertas de Woolley e seus sucessores. Mas há evidências igualmente relevantes em outros campos. No próximo texto, trataremos dos registros literários da devastadora inundação que sacudiu o antigo mundo mesopotâmico.