Escola de Atenas: tema de Filosofia ou de fé? Este afresco de Rafael ornamenta o Palácio Apostólico do Vaticano. |
Temos acompanhado o percurso do erro
consistente em atribuir substancialidade às ideias, ao longo da História da
Filosofia Cristã. Deste ponto da nossa dissertação em diante, procuraremos entender
como essa Filosofia pode-se desenvolver sem incidir naquele equívoco histórico.
Para isso, lançaremos mão dos sentidos,
mas também, e de modo primordial, do conhecimento que adquirimos pela observação
de nós mesmos, isto é, da alma. Não pretendemos, com isso, sugerir que o desenvolvimento
da Filosofia deva ocorrer sem o concurso dos sentidos, mas que a contribuição por
excelência que a fé pode ofertar a essa disciplina deve ocorrer na via interior,
na via da auto-observação e da introspecção, se é que o pensamento cristão se destaca,
precisamente, pela interiorização.
Comecemos por explicar que essa espécie de compreensão do real a fé tende
a promover. Adiantemos que essa compreensão não é, em si mesma, filosófica, teológica
ou teórica. É, antes, uma postura perante o mundo, um modo de viver e uma
proposta de vida válida para o século XXI. Como o nome já diz, a proposta
envolve a compreensão e a fé: compreensão, pois não é possível ao homem ter os
pés plantados no século XXI e desprezar o conhecimento que acumulou até este
momento; fé para os que pensam que o olhar para o alto não há de ser abandonado
exatamente agora. É alentador considerar que ainda existe, na Terra, uma maioria
que deseja evitar esse abandono, essa inversão da docta ignorantia ou
essa nova sabedoria de néscios.
Devemos a Leibniz a expressão philosophia perennis, que empregou para se referir a uma filosofia que não abre mão da fé, da transcendência e da eternidade. Concebo a compreensão pela fé como o método mais eficaz desenvolvido e testado, na História, de alcançar tal filosofia e viver por meio dela. Tenho procurado explicá-la em diversos textos, o que me dispensa de expô-la de novo aqui. Só lembrarei que a compreensão pela fé pressupõe a experiência de crer, em toda a sua profundidade e riqueza, mas não está subordinada a qualquer doutrina ou dogma religioso.
Em tempos como os de hoje, em que a supremacia da razão como diretriz de vida para o homem encontra-se em crise, o recurso à fé parece mais justificado que nunca. Mas que razão está em crise nos nossos dias? A que corresponde ao sentido mais amplo do termo, o que inclui tanto a razão comum quanto a científica. Para sermos bem claros: a razão que se encontra em crise é o pensamento baseado em regras objetivas, por meio das quais todas as pessoas são capazes de conceber o mundo a partir do mesmo conjunto de ideias básicas.
Pode parecer que nenhuma razão possui tal caráter universal. Tenho de concordar. Mas essa é uma convicção mais ou menos recente e é exatamente por causa dela que pensamos nos encontrar numa crise da razão. Por muitos séculos, o homem considerou existir uma razão universalmente válida. Sua convicção estava relacionada à impressão de ordem que os gregos, mas não somente eles, sempre tiveram ao olhar para o Universo. Razão era o modo pelo qual o intelecto compreende essa ordem. Não foi em outro sentido que, por tanto tempo, os gregos e os povos que receberam o legado deles conceberam o ser humano como animal racional. Porém, o progresso do conhecimento foi capaz de pôr em xeque essas convicções arraigadas.
O motivo da desconfiança que se criou foram dúvidas sobre as ideias que constituem o fundamento da razão. Aristóteles chamou essas ideias categorias e fez assentar sobre elas a ordem que os gregos reconheciam no cosmos. O mundo encontra-se em ordem, pois está disposto em conformidade com as 10 categorias do ser, o que significa que pode ser pensado em termos de substância, relação, quantidade, qualidade, tempo, lugar, ação, paixão, posição e hábito.
Aristóteles considerava que as categorias estão objetivadas no mundo, pois é por meio delas que percebemos a ordem existente nele. Pode-se, pois, afirmar que as categorias são características objetivas do mundo, o qual é composto de substâncias localizadas no tempo e no espaço, que se apresentam em certas quantidades, possuem qualidades, relacionam-se, agem, sofrem ações, assumem posições e podem contrair hábitos. O problema é que, por volta do século XIV, um número crescente de filósofos começou a pensar que a objetividade das categorias resulta da projeção de ideias humanas no mundo.
Guilherme de Ockham, por exemplo, recorreu a Boécio ao pensar as categorias de uma nova maneira: "Boécio pretende, em diversas passagens de seu Comentário às categorias, que o Filósofo [Aristóteles] trata naquele livro de palavras faladas e, assim, consequentemente, chama substâncias primeiras e segundas as próprias palavras" (OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: PUC-RS/USF, 1999. Vol. III, item 42, p. 235). Se são palavras, as categorias estão na mente do homem, não no mundo fora dele. E se Aristóteles as entendeu como categorias “do ser”, somos forçados a concluir que se equivocou.
Como tudo o que sabemos do mundo foi construído com base nas categorias, a crítica de Ockham nos leva a desconfiar se realmente conhecemos o mundo como ele é. Não podemos ter certeza, por exemplo, de que aquilo que entendemos por qualidade existe realmente, ou seja, se os entes possuem qualidades. O mesmo pode ser dito de todas as outras categorias.
Assim, a imagem humana do mundo se apaga, embaça-se e descolore-se, perde enfim os contornos. Kant percebeu-o com nitidez. Por isso, deslocou as categorias do mundo, onde Aristóteles as havia situado, para o entendimento. E, além de o ter feito, ainda modificou o rol das categorias, que passou a constar de unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade. Na filosofia kantiana, o espaço e o tempo também assumiram sentido subjetivo como condições da sensibilidade.
A passagem da Filosofia Clássica à Moderna depende, em grande medida, do juízo que se fizer sobre a crítica das categorias aristotélicas e a concepção posta em lugar dela. De Ockham a Kant, foi esse o trabalho mais relevante de corrosão da visão de mundo que vi-gorara na Antiguidade.
Kant seguiu a tendência de Ockham, porém outros filósofos e escolas resolveram o problema das categorias de forma bastante diversa. É o caso dos filósofos da linguagem que rejeitaram a solução kantiana em prol da conclusão de que o discurso sobre as categorias e a Metafísica como um todo são irrelevantes. Porém, a solução mais atraente da questão, ao menos para mim, é a que foi sugerida por David Hume, à qual retornarei em outro texto.
A posição de Kant, porém, foi a que mais logrou reconhecimento geral como contraponto à Metafísica Clássica. Nunca é demais repetir que as categorias, para Kant, são modos pelos quais o entendimento constroi o real. Não sabemos como a realidade é em si. Só sabe-mos o que construímos a respeito dela. Assim, o conhecimento continua subordinado a regras e a ter validade, na medida em que se mantém em conformidade com elas. Verdade e erro também continuam a existir, assim como as regras de acordo com as quais os identificamos. No entanto, eles deixam de se referir ao real para se referirem ao próprio pensamento.
O problema é que, assim como as categorias de Aristóteles foram abaladas pela crítica filosófica, as de Kant também se envolveram em dificuldades. Na sua célebre História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell pronunciou o seguinte juízo sobre as categorias do espaço e do tempo kantianas: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os compri-mentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve ha-ver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingre-diente do sistema das causas não percebidas dos per-ceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XX, p. 267).
Aristóteles tinha incluído o espaço e o tempo entre as categorias do ser. Kant negou a existência deles. Para ele, o espaço e o tempo são formas ou condições da sensibilidade: exigências, portanto, da mente para organizar os dados sensoriais. Assim, o espaço e o tempo perderam toda objetividade. Porém, por meio da Física e da Matemática Moderna, sem negar a existência de representações espaciais com atributos próprios, Russell reafirmou a existência do espaço objetivo.
A “semelhança estrutural” entre o espaço e a sua representação mental, a que Russell alude, nada mais é que um retorno do espaço como entidade real e independente de nós. É uma refutação do espaço subjetivo de Kant. E, se quisermos extrair todas as consequências dela, é também uma ferida aberta no giro copernicano daquele filósofo.
Russell tece afirmação semelhante a respeito do tempo kantiano: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268). Portanto, de novo, encon-tramos a correlação. Daí Russell afirmar que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268).
Assim como há um espaço objetivo relacionado, regularmente, ao espaço mental, há uma sucessão objetiva relacionada à nossa percepção. Russell não se sente obrigado a negar o caráter subjetivo das representações do espaço e do tempo para afirmar a existência de algo semelhante a eles no mundo ao nosso redor. Ele não pensa que a representação do espaço ou do tempo tem de ser reprodução daquele algo. Mesmo assim, estabelece a “correlação”, a “semelhança estrutural” entre eles.
Russell refuta a concepção kantiana de espaço e de tempo com maior brevidade, mas maior precisão em outra obra: "Muitas vezes se diz que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal" (RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83).
A equivalência entre as estruturas do mundo objetivo e os fenômenos impede a subjetividade que Kant atribui ao conhecimento. A correspondência entre o conhecimento e o real não se dá em razão de acessórios, mas da estrutura, que é a mesma nos dois. Russell explica em que consiste essa equivalência estrutural: "Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisas que é obscuramente significada pela palavra estrutura" (idem).
Russell pretende que a equivalência estrutural entre o real e o conhecimento tem sentido matemático e assim deve ser compreendida. Assim ele refuta o subjetivismo de Kant por meio da Matemática. Sabemos que Russell e Whitehead mostraram que a Matemática é parte da Lógica, o que alargou o alcance dessa disciplina. Desse modo, quando ele próprio alude ao funda-mento matemático da correspondência entre o conhecimento e o real, ao objetivo é minar o fundamento lógico da filosofia de Kant.
Mas a que parte do espectro das ideias metafísicas somos conduzidos por essas considerações? Tentarei fornecer uma resposta a essa indagação adiante. Mas cumpre esclarecer, desde logo, que as ponderações de Russell nos aproximam do lugar filosófico ocupado por Hume, cuja crítica das categorias nos afasta da posição clássica e dogmática que vê nesses conceitos verdadeiros dados da realidade.
Antes de tratarmos da posição de Hume, consideremos mais detidamente o que Russell afirma sobre o tempo e o espaço. Pode parecer que a crítica dele não atinge todas as categorias aristotélicas e kantianas. Porém, Kant mostrou, com bons argumentos, que as suas categorias se deduzem do espaço e do tempo, o que nos faz entender que a crítica do tempo e do espaço repercute, necessariamente, nas categorias.
Mas, se assim é, a que conclusão havemos de chegar sobre o tema? As categorias são dados objetivos, conceitos da mente ou objetos que se referem a algo objetivo, sem deixar de constituir conceitos subjetivos? É muito difícil estabelecer uma conclusão. A maior parte dos filósofos contemporâneos se inclina a adotar a teoria de Kant; a maioria dos cientistas e mate-máticos prefere a posição de Russell, que podemos identificar com o realismo básico.
Antes de tratarmos da posição de Hume, consideremos mais detidamente o que Russell afirma sobre o tempo e o espaço. Pode parecer que a crítica dele não atinge todas as categorias aristotélicas e kantianas. Porém, Kant mostrou, com bons argumentos, que as suas categorias se deduzem do espaço e do tempo, o que nos faz entender que a crítica do tempo e do espaço repercute, necessariamente, nas categorias.
Mas, se assim é, a que conclusão havemos de chegar sobre o tema? As categorias são dados objetivos, conceitos da mente ou objetos que se referem a algo objetivo, sem deixar de constituir conceitos subjetivos? É muito difícil estabelecer uma conclusão. A maior parte dos filósofos contemporâneos se inclina a adotar a teoria de Kant; a maioria dos cientistas e matemáticos prefere a posição de Russell, que podemos identificar com o realismo básico.
Tudo isso mostra que a dúvida sobre as categorias é a dúvida filosófica mais básica, na medida em que tem como consequência a incerteza não sobre uma ou outra concepção do real, mas sobre todas elas. Da questão das categorias dependem outras tão relevantes quanto ela: se o que sabemos do mundo depende de categorias, sobre as quais pendem dúvidas sérias, a imagem que temos do mundo é válida ou vivemos imersos na ilusão? O giro copernicano de Kant, seguido maciçamente nos últimos séculos, é um eco de tal pergunta.
A dúvida paira como uma sombra: a sombra do conhecimento. Que fizeram Aristóteles, Kant, Russell, ao pensar as categorias, a não ser deslocar a dúvida daqui para ali e de lá para cá? Que fizeram a não ser retirá-la da relação das categorias com o real e depositá-la nos conteúdos subjetivos do conhecimento, como Aristóteles? Ou sacá-la dali e a colocar na relação com o real, de acordo com Kant? Ou ainda distribuí-la entre esses dois lugares, em conformidade com Russell? Nesses casos e em todas as outras discussões acaloradas sobre todos os outros objetos, o conhecimento não se revela, afinal, um regime de dúvida? E, na medida em que fazemos a dúvida bailar daqui para lá e de lá para cá, não fazemos a fé transitar sempre em sentido contrário? Os lugares que esvaziamos de dúvida não enchemos de fé? E os que esvaziamos de fé não enchemos de dúvida? E a fé, assim como a dúvida, não tem uma função primordial no conhecimento? Enfim, não é justo perguntar se o conhecimento é ele próprio, dúvida ou fé? Ou se não é os três ao mesmo tempo?
Mas, se o conhecimento é também dúvida e fé, e o é de um modo tão essencial, por que não podemos compreender pela fé? Por que não nos é autorizado construir o conhecimento a partir da maior de todas as experiências de fé, pela qual nos relacionamos com o Deus que é amor? Podem-nos indagar o que nos autoriza a pensar o conhecimento em relação tão estreita com a fé. Respondo que a dúvida. E espero mostrar por que nas postagens seguintes.