Pascal entendeu como poucos que a condição do homem define-se pelo conhecimento: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante” (PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Edipro, 1996. p. 154). Por isso, a sua função é pensar. Mas, feliz ou infelizmente para ele, o conhecimento que alcança quase sempre é tão rico em pequenas coisas quanto nulo em maiores, a exemplo da ordem que rege o Universo. O homem sabe tão mal o que mais lhe importa: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar” (idem. p. 12).
A ignorância a que Pascal se refere não é total, pois o homem tem certo conhecimento das coisas. É, porém, o produto das dúvidas sobre o que ele conhece. Se essas dúvidas não forem suspensas por meio da fé, o resultado será a ignorância profunda agravada pela expectativa da morte, a que Pascal se refere. E se contorce de espanto ante a frivolidade com que o homem reage ao seu imenso desconhecimento: “O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova” (idem. p. 13).Pascal desenvolve esse arrazoado, a partir da dúvida sobre a mortalidade da alma. Em momento nenhum, ele a dá como certa, mas acrescenta que não é preciso ter certeza da imortalidade para temer as consequências dela. Se admitir a sobrevivência da alma à morte e o encontro futuro com Deus como meras possibilidades, o homem terá motivos de sobra para considerar insensata a busca desenfreada de bens temporais, pois não lhe garante a felicidade futura e pode roubá-la dele.
A dúvida é o que basta para o homem levar a sério Deus e a fé cristã. Não é preciso alcançar, desde logo, a fé para que esse resultado se produza. Pascal continua: “Deus é ou não é. Mas, para que lado pendereis? A razão nada pode determinar aí [...] Mas é preciso apostar: isso não é voluntário; sois obrigados a isso” (idem. pp. 18-19). Por que somos obrigados a apostar se Deus existe? Porque, ao menos de um ponto de vista racional, a questão é importante demais para ser evitada para sempre ou abandonada na cova do esquecimento.
Essas lições de Pascal tornaram-se clássicas. Considero oportuno recordá-las não só a propósito da existência de Deus, mas de toda dúvida remexida constantemente na História e jamais resolvida. Chamo esse tipo de dúvida axial. Axis em latim significa eixo. Dúvida axial é, pois, a que não incide em qualquer tema, mas sobre o próprio eixo dos questionamentos humanos.
Houve um tempo em que o ser humano resolvia todas as suas dúvidas axiais, por meio da fé. Mas esse tempo parece ter definitivamente passado. Em lugar da resolução da dúvida pela fé, surgiram duas novas atitudes: a descrença e a dúvida permanente. A primeira cumpre função semelhante à da fé, qual seja a de resolver a indefinição introduzida pela dúvida. Enquanto a fé dissolve a incerteza numa afirmação, a descrença o faz numa negação. Assim, tanto a fé como a descrença servem para eliminar ou enfraquecer estados de indefinição cognitiva.
A dúvida permanente, por sua vez, é distinta tanto da fé como da descrença. Sua principal característica é não resolver de maneira alguma a indefinição introduzida pela dúvida. É não a afastar seja por afirmações, seja por negações, mas simplesmente a arrastar no tempo.
Porém, os modos alternativos de tratamento da dúvida apresentam problemas lógicos. O da descrença consiste em tanto ela como a fé terem o objetivo de substituir a prova de um fato. Quando não temos prova de algo, cremos que é real ou que não o é. O problema é que a prova de que algo é real é muito mais fácil de produzir do que a prova de que é irreal. Por exemplo: é mais fácil provar que há cisnes negros do que demonstrar que não há. Basta achar um cisne negro para mostrar que existem, mas é preciso vasculhar o Universo todo para afirmar com razão que não existem.
Essa diferença estrutural entre a prova de que algo é real e a de que não o é reflete-se nas atitudes de fé e de descrença. Como é mais fácil provar a existência de algo, a fé é geralmente mais justificada do que a descrença. Ou, para dizer o mesmo de outra maneira, é mais provável que a fé esteja certa e a descrença errada, já que a fé importa a existência, e a descrença, a inexistência de algo. Claro que esse princípio não se aplica quando a existência do objeto é por alguma razão impossível. Mas as dúvidas fundamentais têm por característica não permitirem ao sujeito decidir se a existência ou a inexistência entre as quais ele vacila podem ser descartadas como impossíveis. Sei que a esse tipo de dúvida a fé oferece resposta mais coerente do que a descrença.
Voltemo-nos, pois, para a dúvida permanente. Se a descrença tem o problema inerente da improbabilidade maior, a dúvida que não se resolve jamais é distinta. Seu mal é outro. É destruir o caráter dialético do conhecimento, ao manter a dúvida e eliminar a fé. Essa destruição desfigura o próprio conhecimento, que é por natureza dialético. O princípio da aposta de Pascal supõe exatamente isso. Ele considera que é preciso apostar, pois a mente humana funciona dessa maneira. Ela resolve dúvidas por meio de fés, e questiona fés por meio de dúvidas. Difícil é romper essa dialética.
A dúvida perpétua é contrária à natureza do conhecimento. Todo conhecimento é prático. Existe em razão de um fim. O engenheiro usa o cálculo para construir, o advogado cita a lei para requerer, e o filósofo usa o questionamento para entender como o real é ou deixa de ser. Todo conhecimento tem alguma utilidade. Consideramos o nada absurdo, antes de tudo, por servir para nada.
A dúvida tem também suas funções, como visto. Serve para enfraquecer os erros, confirmar e aprimorar as verdades. Porém, esses ganhos que a dúvida proporciona só se verificam até certo ponto. Tudo o que é humano requer medida. Torna-se mau quando se faz extremo, absurdo, quando se absolutiza. A dúvida não é exceção. Ao se perpetuar, ela perde todo sentido. Deixa de ser útil seja para enfraquecer erros, seja para confirmar ou aprimorar verdades. Isso é o que em Lógica se chama reductio ad absurdum: algo que começa como verdade e se torna absurdo pelo exagero. A dúvida é lógica enquanto comedida; torna-se absurda quando exagerada. E o faz por perder toda utilidade.
Por isso, o velho critério da aposta de Pascal oferece melhor solução para as aporias do pensamento do que a descrença ou a dúvida permanente são capazes de fazer. E o princípio da aposta ainda pode ser ampliado. Podemos aplicá-lo não só à existência de Deus, como fez Pascal, mas a todas as dúvidas permanentes, já que para nada serve duvidar para sempre. Se o conhecimento é dialético, se envolve dúvida e fé, mais cedo ou mais tarde, é preciso resolver as dúvidas por algum tipo de fé.
Mesmo assim, o marasmo em que a vida humana transcorre leva as pessoas a deixarem intocadas suas dúvidas axiais. Tornemos a Pascal: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”. Nossas dúvidas fundamentais são insolúveis e, porque o são, tendemos a adiar, indefinidamente, a assunção de posição a respeito delas. Mergulhamos em tal estado de torpor a respeito de nossas dúvidas que nos acomodamos a elas e assim as perpetuamos.
O princípio da aposta combate exatamente isso. Reconhece que é lícito ao homem ter dúvidas, até mesmo dúvidas axiais. Porém, não lhe é conveniente duvidar para sempre. Todo homem precisa apostar, assumir atitude de fé quanto às dúvidas axiais. É em última análise o que significa ser uma alma. Se alma é o princípio da atividade e não da passividade, ser uma alma é produzir aquela parte da existência que cabe unicamente ao ser vivo. É não se arrastar na sombra da passividade.
Uma das dúvidas axiais da Filosofia é a que se estabelece a respeito da imagem que temos do mundo. Vemos o céu sobre nós, os astros que nele brilham, o ar que nos envolve por todos os lados, a terra e a água intercaladas nos espaços inferiores. E vemos cada qual dessas estruturas enxameada por um número incalculável de seres pequenos em comparação com elas, com os quais interagimos e dos quais falamos uns aos outros o tempo todo.
O giro de Kant foi chamado copernicano, porque negou que essa imagem seja determinada pelos objetos. Para Kant, o sujeito e não o objeto é quem determina o conteúdo da sua imagem do mundo. Daí a imagem ser incerta ou, para usar a palavra fundamental desta série, duvidosa. Se o mundo, com as estruturas e os seres que mencionamos, realmente existem, é algo que não podemos comprovar. Por isso, Pascal afirmou desolado: “Não sei o que é o mundo”...
Kant chamou copernicana a revolução consistente em instalar o conhecimento no centro da Filosofia, por meio da dúvida sobre o real. Mas é o caso de perguntarmos quem foi o verdadeiro Copérnico. O próprio Kant ou algum outro? Vários séculos antes de Kant, os filósofos que se tornaram conhecidos como acadêmicos mostraram que as dúvidas básicas não podem ser resolvidas. E o mais impressionante é que eles o afirmaram pelos motivos mais fundamentais que poderiam ser invocados. Na sua obra sobre esses filósofos, Agostinho diferenciou duas Academias. Os integrantes da primeira já afirmavam a impossibilidade de se conhecer a verdade. Porém, foram os representantes da última que calcaram essa impossibilidade no princípio mais acertado:
“A dissidência que deu origem à nova Academia não se dirigia tanto contra a doutrina antiga [dos primeiros acadêmicos] como contra os estoicos. Nem se pode considerá-la como dissidência, porque se tratava apenas de refutar e discutir uma nova opinião introduzida por Zenão [de Cítio, fundador do estoicismo]. Pois não foi sem razão que se pensou que a doutrina do não conhecimento da verdade, ainda que não fosse objeto de controvérsias, não era estranha aos antigos Acadêmicos [...] Todavia eles não introduziram nas escolas a discussão dessa questão nem pesquisaram especificamente se era ou não possível conhecer a verdade. Este foi o novo problema bruscamente lançado por Zenão, afirmando que só se podia conhecer aquilo que de tal modo é verdadeiro que se distingue do falso por marcas de dessemelhança, e que o sábio não devia opinar. Tendo ouvido isso, Arcesilau [fundador da segunda Academia] negou que o homem pode encontrar algo do gênero” (HIPONA, Agostinho de. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. pp. 82-83).
As “marcas de dessemelhança” mencionadas por Agostinho eram impressões dos objetos na alma. No texto sobre a visão, vimos que os antigos atomistas consideravam que os objetos emitem eflúvios que se imprimem como marcas no sujeito do conhecimento. Os estoicos adotaram uma concepção semelhante a essa e denominaram apresentação a impressão do objeto no sujeito. Mais do que isso, Zenão fez da apresentação o critério da verdade. Verdadeiro é o que é conforme a apresentação. Porém, Arcesilau e sua escola negaram a possibilidade de o homem conhecer essa apresentação.
Isso mostra que os acadêmicos não só duvidaram da possibilidade de se conhecer a verdade em geral como duvidaram especificamente da possibilidade de se extrair qualquer conhecimento dos sentidos. Essa é a dúvida fundamental, que Kant afirmou impedir que o conhecimento revele o real ao sujeito. Por causa dela, ele propôs que o conhecimento deve girar em torno do sujeito e ser descrito em função dele, o que constituiu sem dúvida um giro, mas um giro tipicamente acadêmico. Ou será que Kant não pode de modo algum ser visto como um continuador do trabalho daqueles filósofos, como um restaurador da dúvida acadêmica?
Giro copernicano, giro acadêmico. Dúvida acadêmica: essa é a dúvida que, tenho afirmado, não deve ser perpetuada. O homem tende a perpetuá-la, é verdade. E o kantismo é a defesa filosófica dessa atitude, seu coroamento com o grau da ciência. Mas isso tudo se faz bagatela, quando assumimos um ponto de vista dialético. A dúvida permanente não favorece o homem. Quando não o entorpece, corroi-o infalivelmente. Corroi o seu coração como um ácido. E nada lhe acrescenta em compensação, pois a dúvida permanente não tem função.
Tomo a aposta de Pascal como metáfora. A fé é “como uma aposta”. Mas, por ser como, não é uma aposta. E não o é por não ser um jogo. Crer não é jogar: é viver, e é conhecer. Ou não nos devemos curvar à evidência de que o nosso conhecimento é, em tão grande medida, fé?
Nesse sentido, a exortação de Pascal ressoa: apostar é preciso! E, na aposta em Deus, as alternativas são peculiarmente relevantes: “Se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis”. Pode haver algo mais razoável a fazer que apostar desse modo? “Apostai, pois, que Deus é, sem hesitar” (PASCAL, Blaise. Ob. cit. p. 19).
“A vida é um lance de dados", afirmaram os romanos. Dizem os cristãos que é questão de fé. Lançando, pois, dados metafóricos ou crendo a fé real, tenhamos funda esperança, como o semeador. Lembremos que a terra em que ele arroja a semente é emblema do seu coração. E que a planta que cresce na terra é a esperança que aquece o coração. Agricultura é psicologia: não há lavoura, sem esperança.