A philosophia perennis relaciona-se intimamente com a mística, portanto também com a fé. Ao mesmo tempo, não é uma religião, mas um saber, o que a põe em coordenação com a razão. E essa dupla relação da filosofia faz ver que ela pressupõe não só a compatibilidade da razão com a fé, mas a aliança entre elas. Encontro o ponto de partida de tal aliança na concepção de que o conhecimento está associado à fé e à dúvida.
Essa concepção é dialética, pois se baseia na tensão, mais do que na ausência de contradição, entre os três elementos fundamentais. O conhecimento nutre-se o tempo todo da dúvida, que se mantém em tensão e equilíbrio com a fé. No entanto, a História da Filosofia mostra, paradoxalmente, que o conhecimento desenvolveu-se com parca consciência da dialética à base dele. As ciências antigas e contemporâneas sempre buscaram obsessivamente a exatidão e a certeza. Por isso, sempre se construíram sobre o que, em cada época, pareceu realizar o ideal de um conhecimento certo. A Filosofia, por sua vez, desenvolveu-se como reflexão paralela às ciências. Na Antiguidade e na Idade Média, o Trivium e o Quadrivium desempenharam o papel de ciências oficiais. A Filosofia não estava incluída neles. Não era uma arte ou ciência particular, como a Gramática, a Lógica, a Retórica, a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia. Como ciência de todas as ciências, a Filosofia se dedicava a refletir sobre os fundamentos dos outros saberes.
Não foi diferente, a partir de quando o rol de ciências do Trivium e do Quadrivium começou a ser desafiado e modificado. O coroamento desse processo se deu com o aparecimento da Física e dos outros saberes modernos sobre a natureza. Mesmo então, a Filosofia continuou a exercer seu papel de reflexão sobre os fundamentos das ciências, com a única diferença de que por ciências já não se entendia mais o Trivium e o Quadrivium, mas as modernas ciências naturais e, mais tarde, também as sociais.
Assim, as etapas de desenvolvimento da Filosofia coincidem, aproximadamente, com as das antigas e modernas ciências. Como a História das Ciências divide-se no longo período do Trivium e do Quadrivium e no reinado das ciências naturais e sociais, a Filosofia se desenvolveu numa etapa centrada na descrição do ser e numa outra voltada à descrição do saber. Entre as épocas da História das Ciências, situa-se a revolução que conduziu ao aparecimento das ciências naturais. Entre as da História da Filosofia, encontra-se o giro copernicano de Kant.
As categorias do ser de Aristóteles constituíram o aparato conceitual da Filosofia e das outras ciências, durante a primeira etapa. As categorias kantianas desempenharam o mesmo papel, no segundo período. Contudo, uma diferença distingue os dois períodos, no tocante às categorias. Na Antiguidade e na Idade Média, reinou substancial concordância entre a Filosofia e as ciências a respeito delas. Tanto a primeira como as últimas aceitavam o mesmo rol de categorias e as entendiam aproximadamente da mesma maneira. Hoje, as categorias de Kant são adotadas apenas nominalmente, nas ciências da natureza, pois os cientistas referem-se a elas, mas não lhes atribuem o sentido subjetivo que Kant lhes emprestou.
Esse dissenso entre a Filosofia e a ciência, no tocante às categorias, tem passado despercebido, mas pode ser interpretado como uma falha geológica, no território do conhecimento moderno, pois decorre de uma crise do conhecimento baseado na certeza das categorias. A crise representa uma rara oportunidade para o conhecimento não categorial e mais consciente do papel da dúvida. Não uma oportunidade para a introdução do ceticismo, já que a dúvida a que me refiro tem por função estimular a investigação, reduzir o espaço do desconhecido e colocar-se em equilíbrio com a fé, não generalizar a incerteza. Nesse sentido, a dúvida é a porta de entrada da fé no conhecimento.
Lição crucial do conhecimento dialético é, pois, a admissão da fé não apenas no campo da religião, mas também no do conhecimento. Isso se aplica com especial propriedade à fé considerada mais nobre: a que se dirige a Deus e ao divino. Se a questão sobre a sua origem e destino é a mais difícil para o homem, as dúvidas que ela suscita apresentam-se como as mais indissolúveis. E, se a fé é uma resposta à incerteza, não é de estranhar que às dúvidas mais persistentes correspondam respostas de fé mais elevadas. Não é de estranhar que, ao caminhar na senda das dúvidas, o espírito erga-se ao cume da cordilheira da fé, ou seja, à fé em Deus.
Procuramos, porém, a base mais sólida dentre todas as que o conhecimento pode propiciar, para verificarmos se a fé, porventura, pode assentar-se nela. Encontramos tal base no ser, cujos atributos coincidem com os de Deus. O ser é real, eterno, obscuro e absolutamente verdadeiro. Além disso, ele tem dois aspectos, pois a existência do efêmero exige a de um ser quase tão universal quanto aquele, porém não eterno. Esse outro ser, que chamei derivado, procede do primeiro. Foi posto, criado, por ele. Portanto, o ser originário é, também, Criador.
A ideia de criação é, assim, consequência do ser. Se o mundo e suas mudanças existem, temos de admitir um ser derivado ao lado do eterno, de tal modo que a derivação de um a partir do outro seja entendida como criação. Assim, a criação surge como consequência de duas premissas: a verdade absoluta do ser e a verdade relativa do mundo.
Essa verdade mista decorrente, ao mesmo tempo, do ser e do mundo não é dotada de pouca força, já que a união de uma verdade infinitamente forte com outra também fortíssima, mas não absoluta, produz uma verdade infinitamente forte. Poderíamos compará-la a uma área infinita numa das suas dimensões e extremamente longa na outra. Tal área não é só imensa, mas verdadeiramente infinita, pois a multiplicação de um infinito por um finito resulta num número infinito. Por isso, afirmamos que a força da verdade da criação é infinita.
Como a verdade do ser, a da criação é mais robusta que a do eu de Descartes. Na postagem anterior, mostrei que o eu pensa e existe, embora nenhuma dessas ideias decorra da outra. Com a mesma prontidão, admito que o mundo fora do eu é real, não porque não possamos duvidar dele, mas porque a dúvida a respeito do mundo é quimérica. No entanto, a verdade da criação é superior à do eu e à do mundo, pois estes resultam apenas da experiência (interior e exterior) do sujeito, ao passo que a criação decorre também de uma ideia absolutamente certa: a ideia do ser.
A verdade da criação do ser derivado é absoluta, porque decorrente do próprio ser. Sua força excede a das verdades do eu e do mundo. Quando falamos da criação do Universo por Deus, tratamos de algo absolutamente certo. Os detalhes da criação (o modo como ocorreu, sua duração, os efeitos que produziu etc.) estão sujeitos a dúvida, pois constituem verdades relativas. Porém, a ideia de criação, como a do ser, é uma verdade absoluta e absolutamente certa.
Claro que essa conclusão pode estar errada, não porque algum erro transpareça nela, mas porque seu autor é humano. Mas, até o equívoco ser demonstrado, precisamos considerá-la firme, pois a força infinita dela combinada com a pequena força do elemento humano resulta, igualmente,infinita. Considerarei, pois, a criação a melhor de todas as bases sobre as quais é possível desenvolver o conhecimento do transcendente e a tomarei como ponto de partida da filosofia perene, na presente série. Filosofia essa que é sempre mais busca do que ensino, pergunta do que afirmação, começo do que conclusão.
O conhecimento da criação é diferente de outros, pois está ligado de modo direto ao ser. Por isso, quando o saber categorial revela-se duvidoso, como ocorreu após o descompasso entre as ciências e a doutrina kantiana das categorias, torna-se necessário buscar não outro rol de categorias, como fez o próprio Kant ao reconhecer a insuficiência das aristotélicas, mas um conhecimento não categorial, um conhecimento baseado na dúvida e que tenha dela uma consciência muito maior. Esse conhecimento pode ser denominado dialético e implica forte afirmação da fé.
De fato, ao reconhecer o papel da dúvida, o conhecimento dialético não conduz, nem convida ao ceticismo e sim à fé. Na instância da dúvida fundamental, ele conduz até mesmo a Deus. E se o ser é a única verdade absoluta, a fé produzida dialeticamente enraíza-se antes de tudo nele e no seu corolário que é a criação.
O conhecimento dialético é um conhecimento do ser e da criação. Nessas duas noções se fundam suas verdades e suas fés. E, como o ser é uma ideia obscura, enquanto a criação não o é, o conhecimento dialético tende a fundar-se ainda mais na criação que no próprio ser. Ele é um inquérito sobre a criação, não uma construção de dogmas, posto que o dogma não é dialético.
Vejo o conhecimento dessa maneira. Talvez por isso, tenha dedicado parte tão fundamental de meus esforços para interpretar a criação. Meu livro A hipótese de Darwin trata desse tema. Gênesis também. O inquérito dos macacos e Evidências da criação igualmente. Em todos esses textos, desenvolvo o meu longo perguntar a respeito da criação. E o mais importante é que, ao fazê-lo, sinto trabalhar o tempo todo não num conhecimento antigo e tradicional, mas na consolidação do alicerce de um novo conhecimento.
O fato de se tratar do alicerce justifica a atenção que dispenso à criação. Ela é tão longamente investigada por ser o alicerce do conhecimento humano. O intelecto tende a recorrer a um ser todo-poderoso para responder suas dúvidas mais portentosas. E, se o faz, ele tende a reconhecer, ao mesmo tempo, a sua incapacidade de conhecer o que esse ser é em si. Tende, portanto, a se concentrar não no conhecimento direto de Deus, mas das suas obras.
No início da década de 1990, a importância da criação para o conhecimento estava consolidada para mim. Ao publicar Filosofia do direito positivo, adotei a atitude defendida por Teilhard de Chardin em O fenômeno humano, segundo a qual "a ciência deve, sim, restringir-se a estudar o que Kant chama fenômenos, mas ela deve estudar integralmente esses fenômenos" (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 20). O fenômeno, sim, mas todo o fenômeno: com esse lema, resumi a perspectiva do livro então publicado, que se baseava "no Dentro e no Fora das coisas", como Chardin os denominava (CHARDIN, Teilhard. O fenômeno humano. 9ª ed., São Paulo: Cultrix, 2009. p. 20). Todo fenômeno tem um lado de Dentro e um lado de Fora. Descrevê-lo é descrever suas duas faces. Por isso enfatizei tanto a Metafísica dos Fenômenos, naquela obra. Queria com ela me referir ao lado de Dentro das coisas, isto é, ao ser.
Com essa perspectiva, no mesmo livro, passei a investigar a criação do Universo por Deus e a mostrar como ela podia perfeitamente constituir o núcleo de uma visão religiosa, mas não alienada da realidade. Tateava, na época, em busca de uma philosophia universalis, de uma visão aplicável, ao mesmo tempo, ao cosmos e à sociedade. Por isso, após definir o que considerei as melhores bases para tal visão, chamei juscriacionismo a aplicação dela ao Direito, por nenhuma outra razão a não ser o fato de me basear na criação de Deus.
Dirão que delirava e deliro. Responderei que duvidava e ainda duvido. Mais do que isso: direi que o que tenho afirmado até aqui não decorre do meu duvidar, mas do duvidar considerado em si mesmo, do duvidar comum a todos os homens. Esse duvidar fundamental ensina-nos a fé, ensina-nos Deus e ensina-nos que Deus criou. Volto-me a ele, nestes artigos, como o aluno se volta ao mestre. Pergunto-lhe sobre Deus, como Jacó perguntou ao Anjo após ter lutado com ele a noite toda: “Como te chamas?” E, como ouviu por resposta a questão “Por que perguntas pelo meu nome?”, ouço a Dúvida sussurrar-me: “Por que não perguntas ao negro dos céus e ao verde dos campos? Por que não te diriges à criação?”