Incontáveis narrativas de dilúvios foram descobertas, em diferentes povos. Já se sugeriu que esses textos são ecos de acontecimentos globais, como os degelos que se seguiram às glaciações e que produziram inundações simultâneas em vários lugares do mundo. No meio fundamentalista cristão, chega-se a sugerir, até mesmo, que são evidências do Dilúvio universal narrado em Gênesis.
Porém, essas interpretações têm forte teor imaginativo. A menos que alguém demonstre que a memória de inundações se depositou no inconsciente coletivo de múltiplos povos e inspirou pessoas a comporem narrativas assemelhadas, o que é pouco verossímil, não se pode identificar nelas um eco de qualquer evento universal. Se fossem lembranças dos grandes degelos, por que as centenas de relatos diluvianos não recordam os gelos que os precederam? Por que falam de inundações, mas não de geleiras? Ou, se são testemunhos de uma inundação de âmbito universal, como se explicam as diferenças profusas entre as histórias? O fato parece ser que nem a teoria que liga os textos diluvianos às glaciações, nem a que os associa à inundação narrada na Bíblia tem bom fundamento.No entanto, se tomarmos os achados arqueológicos de Leonard Woolley, Max Mallowan e outros como evidências de dilúvios regionais ocorridos por volta da época de Noé, será possível relacioná-los senão com todas, ao menos com algumas histórias diluvianas provindas dos mesmos lugares. Três dessas histórias destacam-se como mais provavelmente relacionadas a inundações do Antigo Oriente: o relato sumeriano do Dilúvio, a Epopeia de Gilgamesh e o Dilúvio do poema indiano Mahabharata. Vale a pena examiná-los para verificar se guardam ou não relação com os achados de Woolley.
Comecemos pelo texto sumeriano. Escrito por volta de 1.600 a. C., ele se inicia com a menção de oito reis, que governaram cidades mesopotâmicas antes da inundação (BRIEND, Jacques. “Relato sumério do dilúvio”. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 77). Após indicar os nomes desses soberanos, o prisma em que o relato se encontra completa: “Então o dilúvio ocorreu” (idem. “Os reis antediluvianos”. pp. 55-56). A inundação narrada pelos sumérios atingiu toda a humanidade. Só o heroi Ziusudra e outros sábios sobreviveram numa grande embarcação.
A mais célebre versão extrabíblica de um dilúvio não é, porém, a sumeriana, mas a babilônica contida no décimo-primeiro livro da Epopeia de Gilgamesh, datada de 1.750 a. C. Esse épico narra as aventuras de Utnapshitim, que sobreviveu num navio a um Dilúvio que sepultou todos os homens da sua época. Assim como o relato sumério, a Epopeia atribui alcance geral à enchente: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62).
Mas as semelhanças entre a epopeia babilônica e Gênesis vão muito além desse ponto. As dimensões do navio de Utnapshitim, o Noé babilônico, são comparáveis às da arca bíblica: “Eu tracei os contornos/ sua superfície [área] era de um campo [3.600 m2]/ suas paredes de 10 perchas [60 metros] de altura cada uma” (idem, 55). O uso do betume na construção do navio recorda igualmente Gênesis: “Derramei 3 vezes 3.600 medidas de betume refinado no forno/ 3 vezes 3.600 medidas de betume cru dentro” (idem, 65). O atraque numa montanha, ao final do Dilúvio é outro ponto de semelhança: “O mar se acalmou/ calou-se o vento mau/ o Dilúvio cessou / [...] A embarcação acostou no monte Nicir” (idem, 140). Utnapshitim enviou uma pomba e um corvo para verificar se as águas tinham baixado, antes de sair do navio: “Fiz sair uma pomba e soltei-a/ a pomba se foi e voltou/ não encontrando onde pousar, voltou/ Fiz sair um corvo e soltei-o/ o corvo se foi e/ vendo o refluxo das águas/ comeu, patinhou, crocitou, e não voltou” (idem. 150). O herói babilônico ofereceu sacrifícios aos deuses, por haver sido salvo: “Ofereci um sacrifício/ fiz uma oferta/ expandida sobre o piso da montanha/ ergui sete e sete vasos de libação/ a seus pés coloquei cana, cedro e mirta” (idem, 155). Os deuses agradaram-se do sacrifício: “Os deuses sentiram o odor/ os deuses sentiram o bom odor/ os deuses, à semelhança de moscas, reuniram-se em torno do sacrificador” (idem. 155, 160).
Tanta semelhança com o texto bíblico não pode ser devida ao acaso. Tampouco há razões de ordem sobrenatural que a justifique. Para explicá-la é preciso supor a dependência de um dos textos em relação ao outro, ou seja, que um dos autores baseou-se na obra do outro para redigir a sua. Ou Gênesis 6 a 9 dependem da epopeia babilônica, ou há dependência no sentido contrário. Como a autoria mosaica de Gênesis não pode ser exagerada e há fortes indícios de composição desse livro bíblico no século VI a. C., é mais provável que o autor da narrativa bíblica tenha utilizado a epopeia.
No século VI a. C., os judeus estavam cativos em Babilônia. Portanto, é possível que tenham encontrado a famosa epopeia, num arquivo real de Babilônia, e tido a mais funda impressão da história de Utnapshitim.
Ao entrar em contato com a epopeia, na Mesopotâmia, portanto, o editor do Livro de Gênesis deve tê-la reinterpretado em termos monoteístas, não só por influência da história indiana do Dilúvio, mas dos próprios hebreus que tinham levado tradições judaicas à Índia. Se isso tiver ocorrido, a reinterpretação monoteísta da Epopeia de Gilgamesh não terá sido inventada a partir do nada ou da imaginação de alguém, mas de uma versão monoteísta preexistente sobre o Dilúvio.Por que o autor bíblico não contou, simplesmente, essa versão? Por que preferiu mesclá-la com dados do texto babilônico? Provavelmente porque considerou que os fatos da Epopeia de Gilgamesh eram históricos. Nessa condição, eles não conflitavam com os que os antigos judeus tinham preservado sobre a grande inundação. De modo que não havia por que excluir os fatos da epopeia do texto bíblico, mas apenas eliminar seu sentido politeísta.
Após as escavações realizadas na década de 1920, de que falamos no texto anterior, “Sir Max Mallowan, cavando em Nimrud (Calah), propôs uma revisão da teoria de Woolley. Ele queria atribuir o dilúvio bíblico a um nível diferente de depósito aluvial em outros lugares da Mesopotâmia. Ao passo que o dilúvio de Woolley [fora] fixado por volta de 3500 a. C., na maneira convencional de datação arqueológica, o professor Mallowan propôs a data de 2900 a. C. à camada que deu origem às histórias na Mesopotâmia, e depois na Bíblia” (www.dialogue.adventist.org/articles/09. Acesso em 27/12/2008).
Um dado a ser destacado é que o nível de inundações mais antigo descoberto por Mallowan está em Shuruppak, epicentro da Epopeia de Gilgamesh e última cidade antediluviana, no relato sumério da inundação, após a menção da qual aparece a assertiva: “Então o dilúvio ocorreu”. O ano 2.900 a. C., que assinala a época em que Shuruppak foi inundada, está situado no meio da vida de Noé. Portanto, se não foi exatamente o Dilúvio bíblico, a destruição de Shuruppak pertenceu ao contexto daquele patriarca.
Em suma, não me parece que tenhamos de explicar o Dilúvio bíblico pela teoria das glaciações, como fazem diversos biblistas contemporâneos. As descobertas de Woolley e Mallowan, associadas aos relatos sumério e babilônico do Dilúvio, formam um quadro mais aceitável da catástrofe bíblica que o que emerge daquela teoria. Não precisamos considerar que os textos mesopotâmicos e Gênesis narrem, necessariamente, uma só inundação ou que Noé e Utnapishtim tenham sido uma só pessoa. Porém, a influência dos primeiros sobre o último é inegável. A conclusão mais fundamental a que se pode chegar, a partir dessas análises, é a de que, sejam as inundações dos diversos textos uma só ou várias, elas provavelmente ocorreram.