sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (12): Aquiles e a Tartaruga

Temos visto que o conhecimento pode ser construído de modos muito distintos, com base na certeza e na dúvida, o que sugere que a dúvida é tão decisiva para ele quanto as informações sobre o objeto acumuladas pelos sentidos. Se colocarmos essas informações num prato da balança do conhecimento e a dúvida no outro, será difícil evitar que um estado de equilíbrio se instale entre elas.
Sabemos que pensamos e que os objetos de nossos pensamentos, enquanto existem em nós, não possuem materialidade. São essências e não coisas reais. Uma essência é uma ideia geral. É semelhante ao mapa de uma cidade, que é em tudo distinto dela, contudo a representa. Sabemos que o mapa não é a cidade e que as essências das coisas não são as próprias coisas. Mas sabemos, também, que usamos as essências para classificá-las. Por exemplo, agrupamos todos os seres humanos que conhecemos sob a essência do homem.
O processo de formação de essências, na alma, obedece a vários critérios, mas o de maior importância é a disjunção. O ato de conceber é disjuntivo, pois se dá por separação. Pensar é separar mentalmente um objeto de outros. Assim, ao concebermos a essência de ser humano, procedemos à separação ou distinção dela em relação a todas as outras essências.
Se queremos, pois, entender minimamente o nosso pensar, não temos como deixar de perscrutar o processo pelo qual a disjunção ou separação das essências se dá. Podemos representar esse processo como uma ruptura em cadeia, pois cada disjunção é causa de outras, que por sua vez são causas de ainda outras, ad infinitum. De sorte que o encadeamento total das disjunções nos remete à pergunta sobre a existência ou não de disjunções fundamentais, ou seja, de separações nas quais a cadeia de rupturas cessa.
Pode parecer que o eu resulta de uma disjunção desse tipo. Vimos, no texto sobre a visão, que tanto Agostinho como Descartes afirmaram a certeza que o eu tem de existir. Essa sensação é tão forte que, mesmo quando a questiona, o eu tende a imaginar, no máximo, que ela pode ser parte da sensação que outro ser tem de si. Portanto, até a ideia do eu pode ser usada para criar outra diferente dela. Somente a ideia do ser é tal que não pode gerar outras. Só ela parece ser uma ideia ou essência totalmente irredutível.
O ser é, pois, o ponto de partida de todas as disjunções que a mente realiza. É o ponto inicial do processo de ruptura que gera as ideias e a imagem que possuímos do mundo. De disjunção em disjunção, a mente afasta a tentação de igualar tudo a tudo, de fazer qualquer coisa equivaler a qualquer outra e assim forma uma imagem organizada do mundo.
Porém, conforme a série de disjunções se aprofunda (e é bom lembrar que ela o faz ao infinito), nota-se uma diferença lógica entre duas espécies de separações de ideias. De um lado, há as ideias que supõem objetos fora do eu; de outro, há as que não o supõem. Exemplos das últimas são as disjunções que originam a Geometria, assim como as que distinguem o ponto da linha, bem como as figuras (círculos, quadrados, triângulos etc.) que podem ser formadas com linhas.
Chamamos conceitual o plano no qual os conceitos de ponto, de linha e de outros entes matemáticos se situam e empírico, o plano no qual objetos como cidades existem. As disjunções conceituais não precisam de algo além delas próprias para serem verdadeiras. Um ponto não é uma reta, independentemente de qualquer outro fato ou ideia. Mas a verdade empírica não é assim. Para uma cidade existir, é preciso supor um planeta que sirva de base ou suporte para ela e toda uma série de condições de espaço, de tempo, de ordem física, química e biológica, sem as quais não podem existir cidades.
As disjunções conceituais são mais consistentes do que as empíricas, pois se fundam umas nas outras, ao passo que as ideias empíricas derivam das puras ou abstratas. A ideia de uma cidade A e a de outra cidade B derivam do conceito geral de cidade, que é puro. Esse conceito puro, por sua vez, deriva de outros igualmente abstratos.
Esse é um ponto fundamental da série de disjunções do pensamento, pois introduz uma contradição. A disjunção entre o plano conceitual e o empírico supõe a distinção radical deles. Como pode, então, o empírico ser retratado por meio do conceitual? Como a cidade A e a cidade B podem ser representadas por meio do conceito de cidade? Isso é contraditório com a premissa de que o plano conceitual é distinto do empírico.
Mas não parece que tenhamos outro modo de pensar o empírico, a não ser a partir de ideias abstratas. Esse é o procedimento básico do pensamento do empírico. É o princípio no qual Aristóteles fez repousar todo o conhecimento humano, ao declarar que nada pode estar no intelecto sem ter antes estado nos sentidos. No entanto, é um princípio contraditório. E não podemos escapar à conclusão de que, se o é, o conhecimento do real se funda não só em disjunções, mas também na contradição. Conhecer algo real é contradizer a totalidade do pensamento que antecede e prepara esse conhecimento.
O paradoxo de Aquiles e a tartaruga, proposto por Zenão de Eleia, ilustra o que acabo de mencionar. Nele, o heroi da Guerra de Troia disputa uma famosa corrida com uma tartaruga. Dada a diferença de dotes físicos que os distingue, Aquiles concede à tartaruga uma vantagem inicial: permite-lhe começar a corrida muito à frente dele. Para ganhar a disputa com a tartaruga, portanto, Aquiles terá de fazer uma corrida de recuperação. Em linguagem matemática, isso significa que, a cada intervalo de tempo t, Aquiles terá de reduzir à metade a distância que o separa da tartaruga. A questão que Zenão coloca com o paradoxo é se, em tais condições, Aquiles poderá efetivamente ultrapassar a tartaruga.
A experiência dos sentidos mostra que a ultrapassagem ocorrerá, infalivelmente, se concedermos tempo suficiente a Aquiles. Se a cada intervalo t, ele reduz a distância à metade, haverá um tempo t’ em que o heroi ultrapassará a tartaruga. Porém, a Matemática contradiz esse testemunho. Ela prova que uma ultrapassagem não pode ocorrer por sucessivas reduções da distância à metade. Matematicamente (e do ponto de vista lógico), tal ultrapassagem é impossível.
Zenão perguntou-se qual dos dois testemunhos estava correto: o da Lógica ou o dos sentidos? Optou pela Lógica e concluiu que os sentidos nos enganam o tempo todo. Mas podemos entender o paradoxo de outra maneira. Podemos pensar que se limita a confirmar a contradição consistente em diferenciar o conceitual do empírico e, em seguida, utilizar o conceitual para descrever o empírico. Não há surpresa alguma no fato de obtermos resultados contraditórios por esse processo, se ele todo é essencialmente contraditório. O que o paradoxo faz, pois, é ilustrar a contradição por um exemplo claro e particular. É colocar um holofote sobre ela e torná-la translúcida.
Bertrand Russell propôs que a descrição da disputa de Aquiles com a tartaruga, por meio da Matemática, não está errada. Não quis com isso negar o resultado paradoxal dela. Quis apenas propor que a Matemática trabalha com o conceito de infinito de um modo que ultrapassa os sentidos, sem conflitar com eles. Os números não são só infinitos como entre dois números há infinitos outros (infinitas frações). Não é muito diferente o raciocínio que encontra infinitas retas entre duas linhas quaisquer situadas no mesmo plano. Portanto, seja no campo da Aritmética, seja no da Geometria, a Matemática é uma catedral de infinitos.
Não é diferente no paradoxo, explica Russell. A corrida de Aquiles com o animal é corretamente descrita como infinitas reduções da distância entre eles à metade ou a qualquer outra fração. O que se dá é que a descrição é válida, mas não é perfeita, do ponto de vista dos sentidos. Em algum momento ela falha, o que não invalida tudo o que realizou até então.
A opinião de Russell merece ser apoiada. Na versão acima, o paradoxo propõe sucessivas reduções da distância à metade, mas poderíamos apresentá-lo igualmente bem, afirmando que a distância é reduzida a 1/3, 1/4, 1/5, 1/1.000 ou qualquer outra fração. O essencial, para que o paradoxo se torne aparente, é que a distância é reduzida a frações, não necessariamente à metade. Dessa representação, penso, ninguém pode duvidar, porquanto é claríssima.
Entre dois números, inclusive entre frações como as que o paradoxo supõe,  podem ser situados infinitos outros. É o que a Matemática Moderna provou da maneira mais lapidar. Porém, os antigos já conhecessem os números infinitos. Agostinho, por exemplo, escreveu que "a razão ensina a possibilidade da divisão infinitesimal dos mais minúsculos dos corpos, mas quando se chegar às coisas mais diminutas e sutis entre as de que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues e ínfimas, embora a razão não deixe de continuar a fazer sempre a divisão" (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro XI, Cap. 10, p. 362).
Digamos que o espaço que separa Aquiles da tartaruga, no início da sua corrida, seja um corpo agostiniano, que pode ser sujeito a divisão infinitesimal. Não é esse precisamente o problema colocado por Zenão? Há divergência entre essa descrição e a de Russell? Certamente, mas não uma diferença que impedisse Agostinho de captar a natureza do paradoxo. Mas, embora a compreendesse, Agostinho entrevê um desnível entre o tratamento que a razão  lhe dispensa e o que a imaginação desenvolve. Ao tratar das "coisas mais diminutas e sutis entre as que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues". Esse é o parecer da imaginação. O da razão é a divisão infinita do espaço. Nesse duplo movimento da inteligência consiste o paradoxo.
O que Agostinho denominou imaginação é o que nós costumamos chamar senso comum. Para o homem comum, Aquiles não percorre uma distância infinita para ultrapassar a tartaruga. Logo, o modelo descritivo da divisão infinita deixa de aplicar-se ao problema, a partir de certo limite, o que não significa que ele seja equivocado. Nenhum filósofo antigo ou medieval com boa formação tiraria essa conclusão. Contudo, o desnível entre o modelo da divisão infinita e a corrida real o intrigava.
Com os recursos de uma Matemática muito mais desenvolvida, Russell pôde explicar o problema de modo mais satisfatório. A principal diferença entre a explicação fornecida por ele e a concepção da divisão infinitesimal de Santo Agostinho é o fato de Russell não pressupor o desnível entre a divisão racional das distâncias e a corrida real. Isso porque o próprio Russell mostrou, nos Principia mathematica (escrito em parceria com Alfred North Whitehead) e em Introdução à Filosofia Matemática, que a Matemática se funda em definições, que consistem na atribuição de uma ideia abstrata a casos particulares. Concebida dessa maneira, portanto, uma divisão infinita só pode ser o gênero a que casos particulares, inclusive o de intermináveis divisões de uma distância real em frações, correspondem.
"Acontece frequentemente numa série que haja um número infinito de termos intermediários entre dois que podem ser selecionados, por mais próximos que estes estejam entre si", diz Russell e dá como exemplo exatamente frações, entre as quais há outras - por exemplo, a média aritmética das duas" (Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 57). Mas isso não pode contradizer o fracionamento sucessivo de uma distância real. Pelo contrário, continua o matemático e filósofo, "séries desse tipo são de importância vital para a compreensão da continuidade, do espaço, tempo e movimento" (idem. p. 58).
Descartes reconheceu não ser "possível a divisão de de um corpo em partes tão pequenas que cada parte dessas não possa tornar a se dividir em outras ainda menores" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 86). Concordou, portanto, com Russell ou Russell com ele em que a divisão dos corpos estende-se ao infinitesimal. Porém, acrescentou que a divisibilidade dos corpos é indefinida e não infinita (como Russell admite), a fim de sublinhar a incapacidade do intelecto de discernir seus limites (idem). Essa incapacidade, esse limite indefinido para uns, infinito para outros é o que o paradoxo de Zenão enfoca.
Miseráveis que somos: não é fácil encontrar representações, no conhecimento, de que não seja possível duvidar! A Matemática não é exceção alguma. Reduzir uma distância a qualquer fração é um procedimento conceitual. Não há nele equívoco algum, porém sabemos que, no fundo ignoto de nossas representações, o conceitual se separa do real e deixa de corresponder-lhe. E, por não lhe corresponder, o que desaba não é só a explicação comum da corrida, mas a Física inteira: a de Newton, a de Einstein e a Quântica. Que Física não se baseia na representação do movimento entre dois pontos como uma redução da distância a frações dela própria? Que Física não se estrutura a partir dessa premissa?
Mas, se essa dúvida que ameaça a Física há de ser resolvida, pois nenhuma interrogação deve ser permanente, em que haveremos de dissolvê-la, senão na fé a que Russell aludiu? Na fé em que, embora a representação matemática (e com ela a Física) seja contraditória com o real, eles convergem num plano mais fundamental?
Cremos o tempo todo (e a ciência também o faz) que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último. O fato de a descrição matemática divergir, em algum ponto, do testemunho prestado pelos sentidos é um corolário da contradição entre eles. Mas a divergência não invalida o conhecimento humano do mundo. O que o pode invalidar é a detecção de uma grave irregularidade no interior do conhecimento. É perceber, por exemplo, que criamos contradições o tempo todo. Mas a contradição fundamental que apresentei não é dessa espécie. Ela não introduz outras. Além disso, é em si mesma estável. Não se altera. Concebemos todo objeto empírico, por meio da contradição fundamental mencionada e, sem ela, nada conheceríamos. De modo que ela gera conhecimento, não o impede.
Qual é, pois, o significado lógico da contradição mencionada? Que consequência ela tem para o princípio geral que proíbe contradições no conhecimento? Sabemos que esse princípio proíbe afirmar A e não A ao mesmo tempo. E não é isso que a contradição detectada realiza? Ela não afirma a disjunção entre o conceitual (A) e o empírico (não A) e utiliza, em seguida, o conceitual (A) para pensar o empírico (não A)?
Sem dúvida, mas o princípio da não contradição só vale absolutamente para o ser. Aplicado a qualquer outro conceito, ele permanece sujeito a dúvidas e deve ser entendido dialeticamente. Isso significa que o princípio não deve ser considerado imune a flexibilizações, refutações e negações. Porém, como o conhecimento é uma atividade regular e não errática, é preciso que as flexibilizações, refutações e negações não sejam arbitrárias, mas se subordinem a regras lógicas.
Que regras são essas? Vimos que não podem ser regras de aplicação de categorias, pois tanto as categorias aristotélicas como as kantianas são diretrizes absolutas de pensamento. Onde a dúvida reina, não há lugar para regras absolutas. Portanto, o conhecimento empírico não é regido por regras categoriais e sim dialéticas, porque flexíveis e válidas apenas em condições preestabelecidas.
Não convém especificar um conjunto fechado dessas regras, como Aristóteles e Kant fizeram ao enumerar as categorias, pois essa é uma tarefa impossível. Não há um conjunto fechado de regras não categoriais do pensamento, pois elas podem dar lugar a outras regras, se as condições para a sua aplicação faltarem.
Podemos, porém, mencionar algumas regras dialéticas para fins meramente exemplificativos. É dialética a regra que manda o intelecto distinguir entre o eu e as essências que ele concebe. Também o é a diretriz que manda construir essências por separação (disjunção). E é dialética a norma que proíbe a contradição no processo de formação de uma disjunção, porém não entre as disjunções. O conhecimento humano, como de fato é e não como o dogmatizamos, parece desenvolver-se por regras tais como essas.
Percebemos que, em tudo, a dúvida pode ser reavivada, quando aparece morta. Não há conhecimento absoluto, exceto o do ser. E, das espécies fundamentais de conhecimentos, a mais incerta é a dos sentidos, pois é a única que não existe a não ser por meio da contradição. Conhecer empiricamente é, de fato, contradizer o conhecimento.
E é claro que essa contradição importa uma grave dúvida. O que não significa que não conhecemos, mas que só conhecemos por meio da suspensão de tal dúvida por meio da fé. Em matéria de testemunho dos sentidos, conhecer é crer. Materialismo é fé. Não estamos longe da conclusão de Platão de que o conhecimento dos sentidos é doxa (opinião), nunca epistème (ciência). Apenas chegamos a esse resultado por um caminho distinto do que Platão elegeu. Ele afirmou a realidade indesafiável das ideias; a nós coube o quinhão da dúvida.