Ao percorrer repetidamente as páginas das Escrituras, o estudioso atento se dá conta do hábito de seus autores de só inserirem no texto bíblico citações deles próprios, nunca de tradições paralelas. Esse é um dado importante ao qual, por falta de nome mais apropriado, chamarei autorreferência. Poucas vezes, o hábito é excetuado por menções a dados externos às Escrituras, como os nomes dos opositores egípcios de Moisés, na corte de Faraó, Janes e Jambres (2 Tm 3:8).
No entanto, o hábito de citar apenas os seus próprios textos não exclui a possibilidade de utilização de outras fontes pelos autores bíblicos. Estudos especializados indicam que as histórias da Bíblia nasceram de uma abundância de fontes orais e escritas. Por isso, não faz sentido entender a autorreferência como um critério de exclusão de outras fontes, mas de atribuição de pesos distintos a fontes também distintas, que foram utilizadas para compor o texto. Em outros termos, a autorreferência significa que o peso das fontes bíblicas é superior ao das fontes externas à Bíblia. Essa é uma consequência direta da autorreferência.
Outra consequência é a ampliação da diversidade no interior das Escrituras e da revelação. Sem a autorreferência, o intérprete seria obrigado a adotar a contradição como único critério de limitação da diversidade encontrada nos textos. Só assim ele seria capaz de eliminar oráculos conflitantes. Graças à autorreferência, torna-se possível estabelecer um limite distinto para a diversidade no interior da revelação. Como o texto bíblico reveste-se de autoridade superior à das fontes externas, duas tradições que se contradizem, mas não contradizem a Bíblia podem ser consideradas parte da palavra de Deus. Assim, elas podem ser utilizadas tanto como fontes secundárias da própria Bíblia quanto como oráculos suplementares às Escrituras. De sorte que uma diversidade maior de textos e tradições pode ser acumulada no âmago do que se costuma aceitar como revelação.
A autorreferência amplia o número de proposições extrabíblicas passíveis de serem aceitas como palavras de Deus. O que não contradiz a Bíblia pode ser uma palavra divina, ainda que entre em conflito com outro oráculo dado por Deus ao seu povo em outro contexto. O fato de a revelação, como conjunto de todas as palavras divinas, possuir um núcleo vital (as Escrituras) é tão significativo que faz com que toda a comunicação divina com o homem refira-se a ele, tenha o objetivo contínuo de reafirmá-lo e, por isso, não o contradiga jamais. O mesmo não acontece com as tradições situadas fora daquele núcleo, que se podem contradizer sem perder o caráter de palavras de Deus. Por terem sido compostas por métodos os mais distintos e em contextos históricos diversificados, esses oráculos adicionais não precisam manter uma organicidade, a não ser a que decorre de não negarem as Escrituras.
Até aqui, mencionei duas consequências da autorreferência. Uma terceira poderia ser acrescentada, a saber: o caráter flexível das informações contidas nas Escrituras. Se a Bíblia foi composta a partir de fontes que se contradizem, o sentido das informações que contém não se define só pela intenção do autor final do texto, mas também dos autores das fontes. As intenções desses autores podem coincidir em alguns casos, mas não sempre, nem invariavelmente. Quanto mais recuada no tempo se encontra uma fonte, maior pode ser a divergência entre o sentido dela e o emprego que o autor bíblico lhe deu.
Essa divergência não precisa ser negada, sob a justificativa de que a Bíblia é a palavra de Deus, e Deus não se contradiz. A autorreferência nos ajuda a entender que há espaço para informações conflitantes, no interior das Escrituras, desde que o conflito não atinja o objetivo da comunicação de Deus com o homem, que é estabelecido pelo texto bíblico e não pelas fontes externas. Respeitado esse objetivo, a Bíblia usa outras fontes com toda a pluralidade de significados que implicam.
Essa última consequência da autorreferência é fundamental para entendermos quem foram as personagens do passado remoto a que as Escrituras fazem referência, assim como Abraão. Poucos especialistas em ciências bíblicas reconhecem que Abraão existiu. Parte deles o considera uma figura lendária; outra parte pensa que resultou da fusão de vários ancestrais dos judeus, cujas histórias foram transmitidas de geração em geração.
A redução da narrativa bíblica a lenda é problemática, pois supõe que ela foi inventada. É difícil que histórias tão detalhadas e internamente concatenadas, como a maioria das que compõem o texto bíblico, tenham sido simplesmente imaginadas. Por isso, a teoria da lenda deve ser afastada.
O mesmo não ocorre com a teoria da fusão de várias pessoas sob o nome de uma personagem única. Se aceitarmos a flexibilidade das informações sobre o passado remoto, Abraão poderá ser entendido como uma fusão de vários ancestrais judeus. O historiador Georg Fohrer resume o processo de formação das histórias de Gênesis da seguinte maneira: “Quando a primeira narrativa básica [do Pentateuco] foi sendo formada, muitas outras tradições primitivas foram incorporadas: listas (Gn 22:20-24; 25:1-6; 36:31-39), narrativas concernentes à história das tribos e nações (Gn 16:4-14; 19:30-38; 21:8-21; 25:21-26a, 29-34; 29—30; 34; 38:27-30); sagas da natureza (Gn 19; Êx 16—17; Nm 11; 20); pequenas histórias (Gn 12:10ss; 20; 24; 26)” (FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 153). Por terem-se originado separadamente, essas múltiplas tradições podem fazer referência a mais de um Abraão.
Fohrer adere à teoria de que o Pentateuco é uma compilação de histórias transmitidas independentemente. Os versículos citados por ele são exemplos de narrativas reunidas, quando os judeus começaram a compor uma história coesa da sua nação, por volta de 1.200 a. C. A maior parte deles pertence ao Livro de Gênesis. Por isso, ajuda-nos a entender como as histórias sobre Abraão se formaram.
Se Abraão é um aglutinado de várias figuras antigas, umas bem conhecidas, outras não, a fusão das histórias a seu respeito pode ter ocorrido, quando a narrativa básica mencionada por Fohrer foi reduzida a escrito. Um autor bíblico desconhecido coseu as histórias umas nas outras, de modo a formar a biografia de um homem. Essa é, hoje, a visão mais provável do processo de formação do relato bíblico sobre Abraão.
Porém, a transformação do texto não estancou com a elaboração do primeiro Pentateuco. Na época de Jesus e de Paulo, muitas histórias sobre Abraão tinham sido acrescidas às que o Antigo Testamento transmite. Isso indica que a transformação dos relatos sobre aquele patriarca prosseguira. Uma parte dos acréscimos encontra-se na literatura apócrifa dos judeus. Outra parte foi incorporada, mais tarde, ao Talmude.
Os fariseus, partido mais numeroso e influente da época, criam tanto na inspiração divina das histórias bíblicas quanto nesses acréscimos. Aos seus ouvidos, os nomes de Adão, Abraão e Moisés evocavam mais do que as narrativas da Bíblia estabelecem a respeito deles. Por isso, é interessante recordar como Jesus e os primeiros cristãos trataram essas crenças.
Sabemos que Jesus combateu o costume fariseu de aceitar todo acréscimo à Lei e aos Profetas que circulava na sua época. Porém, as suas declarações sobre isso, em Mateus 15:1-6, são frequentemente distorcidas. Jesus apontou incoerências não percebidas entre algumas tradições orais dos judeus e as Escrituras. Disse, por exemplo, que a dispensa da obrigação de honrar pai e mãe, por meio de uma doação, violava o espírito dos Dez Mandamentos. Nas suas exatas palavras: "Por que transgredis vós o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe e Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe" (Mt 15:3-6).
Os fariseus eram os primeiros a reconhecerem que as Escrituras se situavam num plano superior ao das tradições orais que circulavam. Eles viam as tradições como comentários e adendos às Escrituras. Portanto, como acessórios do principal, que era a Bíblia. O historiador Flávio Josefo deixa isso claro na sua Resposta a Ápio. O problema é que os fariseus não reconheciam as incoerências entre as tradições e a Bíblia. Jesus apontou essas incoerências e acusou os escribas e fariseus de transgredirem o mandamento de Deus por apego a elas. De modo nenhum, porém, isso implica que Jesus tenha incidido no contrário do que os fariseus praticavam, isto é, que ele tenha declarado as tradições de nenhum valor.
As próprias Escrituras citam e aceitam partes da Tradição. Já disse que o autor de Timóteo adotou os nomes dos opositores egípcios de Moisés criados pela Tradição (2 Tm 3:8). E Jesus, ao condenar os escribas e fariseus por observarem as menores coisas da lei em prejuízo das maiores, não disse que os seus seguidores deviam desconsiderar as primeiras, mas que deviam “fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23:23).
Será que, entre as menores coisas que os discípulos deviam praticar, não estavam incluídas as ordenanças da Tradição? Certamente estavam. Por isso também, Jesus ordenou a seus discípulos guardarem “tudo quanto” os escribas e os fariseus lhes ensinavam (Mt 23:3). Na palavra tudo, estão abrangidas as tradições.
Mas, se Jesus admitia as regras que não entravam em conflito com as Escrituras, não devemos concluir que aceitava também as histórias que a Tradição tinha acrescentado sobre Adão, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jonas e Daniel? E essa aceitação não implica que ele se referiu em termos bastante elásticos? O Abraão de Jesus, portanto, podia incluir nuanças como as histórias sobre esse patriarca transmitidas pela Tradição?
Sob essa perspectiva, não há razão para não admitirmos que o próprio Abraão bíblico resulta da fusão de vários patriarcas. Se as personagens do Antigo Testamento, em geral, eram mistos de dados da Bíblia e da Tradição, por que os relatos sobre a época patriarcal não podem ter-se fundido, de modo a formar a história de Abraão? Não há nessa fusão qualquer anormalidade. Pelo contrário, é a própria essência do processo de combinação das palavras da Bíblia com as da Tradição.
Estou a propor que Abraão não existiu? Que não fez o que a Bíblia afirma que fez? Ou que Deus não disse a ele o que Gênesis narra? De modo nenhum. Existiram adoradores de Deus que fizeram o que a Bíblia atribui a Abraão. Deus deu-lhes promessas e mandamentos. Porém, os nomes de alguns ou de todos eles e certos detalhes das suas histórias perderam-se. Só o que sobrou foi reunido, de modo a compor a vida de Abraão como a conhecemos.
O que firmei até este ponto não nos deixa com mais do que uma nuvem de personagens, histórias transmitidas oralmente e costumes de época. Abraão está nessa nuvem. No entanto, o Abraão bíblico, mesmo quando levamos em conta todas as lições aproveitáveis da Crítica Histórica e Literária, parece mais sólido do que tal nuvem. E, se for mesmo assim, crer na existência de um ou dois homens que viveram parte da saga atribuída a Abraão pode não ser necessariamente um erro. A multiplicidade de histórias sobre o patriarca e o grau de detalhamento do seu conteúdo parecem falar-nos de fatos reais, que se tornaram históricos. Por outro lado, está fora do campo do possível que um ou mais escribas tenham inventado relatos tão numerosos, detalhados e concatenados, poderíamos acrescentar: relatos tão significativos e belos quanto os de Gênesis sobre Abraão. Até porque, se tais escribas tiverem existido e criado o Abraão bíblico, estaremos diante de uma verdadeira teoria da conspiração e não me parece que textos se expliquem por teorias desse jaez.
Contudo, na era da ciência, precisamos explicar um pouco melhor o Abraão bíblico, se quisermos conferir-lhe solidez parecida com a que, por séculos, a letra da Bíblia lhe atribuiu. Precisamos, ao menos, mostrar como as histórias a respeito dele podem ter-se formado. Não tenho, a esse respeito, uma explicação pronta para fornecer. Mas, se pudermos reunir e compactar em Abraão não só a nuvem de personagens e as linhas gerais das histórias, mas também os detalhes a respeito delas, enfim se pudermos aceitar que esses detalhes não são sinais de invenção, mas de transmissão de fatos verdadeiros, estaremos em condições de concluir que, ao lado da tradição oral, relatos escritos podem ter sido compostos sobre uma ou duas personagens denominada(s) Abraão. E, se a veneração dos textos tiver sido levada tão longe quanto a das histórias orais, não será impossível que, num momento da História, relatos semelhantes aos que hoje lemos sobre Abraão tenham sido compostos.
Não desenvolvo essas conjecturas para enaltecer ou diminuir a figura de Abraão. Meu objetivo é somente entendê-lo melhor. Tudo considerado, o patriarca bíblico não é simplesmente o da letra: é o da verdade, seja qual for e esteja onde estiver. Interpretar a Bíblia é amar essa verdade, ainda que se apresente fluida, como no caso de Abraão. A figura arrancada à letra de Gênesis não é o pai de muitas nações. É a sua caricatura, uma estátua de letra, um ídolo. O Abraão verdadeiro é imaterial e volátil como as tradições que o originaram. Mesmo assim, é portador dos princípios da salvação pela fé que Paulo tanto encarece e dos quais vivemos, pois “o justo viverá pela fé”.