QUE É FILOSOFIA?
A Filosofia existe há dezenas de séculos, mas, até hoje, os filósofos se perguntam a que ela se presta. É um fato chocante, pois não se reproduz com qualquer outro saber humano. E, talvez por vislumbrarem isso, quando as belas-letras voltaram à cena, durante o Renascimento, espíritos jocosos afirmaram que a “Filosofia é uma ciência tal que o mundo, com ou sem a qual, continua tal e qual”. Nenhuma definição (de um estado de espírito, é claro) poderia ser mais lapidar.
Mas, longe de desmoralizar a Filosofia, a repetição da pergunta sobre a sua finalidade realça a inusitada importância dessa disciplina. Comparemos um instante nossa disciplina com a dos biólogos. Estes perguntam, frequentemente, o que é a vida e, com idêntica frequência, confessam não o saber. A verdade nua é que a ciência da Biologia gira em torno dessa pergunta sem resposta. Nem por isso a consideramos uma ciência vã. Pelo contrário, a repetição da pergunta sobre o seu objeto realça que a vida é algo tão profundo que uma ciência inteira se faz necessária para formular a pergunta a respeito dela e respondê-la só de modo parcial.
A situação da Filosofia é, porém, ainda mais dramática, já que os filósofos não se perguntam só sobre o objeto da sua ciência, mas sobre a própria ciência. Assemelham-se, assim, ao aluno que estuda a lição e não só não a aprende como sequer desconfia o que seja estudar. Convenhamos que esse tipo corre mais risco de vir a ser considerado um asno que aquele que não aprende a lição, mas compreende, ao menos, o que é estudá-la.
Precisamos lembrar, porém, que a Filosofia não deve ser tão antiga, nem possuir uma História de mais de 25 séculos à toa. Algo estudado, por grandes mentes, durante 25 séculos, não há de ser considerado mero perfume acadêmico. De sorte que a perplexidade que a Filosofia nos causa pode ser mais devida ao mistério que a envolve do que à sua inutilidade.
Entre outras coisas, a Filosofia é misteriosa por ser um saber negativo. É comum esperarmos que um conhecimento sirva para alguma coisa ou, como se usa dizer, para “fazer alguma coisa”. Não há outro remédio que reconhecer que os que criticam a Filosofia por não nos ajudar a fazer coisa alguma estão certos, pois ela nos ensina não a fazer, mas a desfazer coisas. Ao menos, é a desempenhar essa função que a observamos no corpo da História.
A Filosofia é um saber bastante determinado, com objeto e partes bem estabelecidos e uma História luminosa. Mas, ainda assim, é um saber que serve para desfazer coisas, ou melhor, ideias. Especialmente para desfazer ideias que se impuseram ao longo de tanto tempo que se fizeram convencionais. Em outras palavras, a Filosofia serve para criticar o senso comum.
Ao menos desde Dionísio, o Areopagita, falamos e ouvimos falar de teologia negativa. A expressão só se justifica se tomarmos a teologia no sentido estrito de um conhecimento da essência de Deus. Estamos em amplo acordo sobre a incompreensibilidade de Deus. Nunca encontrei meio teólogo que discordasse dessa assertiva. Sabemos também que, se a essência de Deus é incompreensível, só podemos conhecer o que ela não é, jamais o que é. Essa é a afirmativa básica da teologia negativa.
No entanto, se não tem o que dizer sobre Deus, é absurdo a teologia aventurar-se a estabelecer o que ele não é, já que isso envolve uma contradição. Se pudermos entender o que Deus não é, não ficará implícito que ele é todo o resto ou parte do resto? Deus não resultará parcialmente determinado por essa via? E a teologia negativa não desaguará na negativa de si mesma? Essas dúvidas enfraquecem as propostas, de outro modo atraentes, da teologia negativa.
Chegamos, assim, a um paradoxo e dos mais profundos: a teologia é um conhecimento que divisa, de um lado, com a incompreensibilidade de Deus e, de outro, com a incompreensibilidade da teologia negativa. Só lhe resta, portanto, um caminho para existir: espremer-se o melhor que puder entre esses limites e reconhecer que, se não nos fala da essência divina, ela nos diz, necessariamente, das obras de Deus. Retornamos, assim, ao que Deus é ou aos reflexos do seu ser sobre o ser do mundo. Retornamos à teologia positiva e penso que nela devemos permanecer.
Porém, algo muito distinto se passa com a Filosofia. Ela é um saber negativo, por nos mostrar muito mais o que não sabemos do que o que o efetivamente conhecemos. Filosofia é o perguntar que serve para erodir e rebaixar as montanhas do saber humano. Na medida em que o faz, ela prepara o caminho para as ciências assertivas, assim naturais como sociais.
Pode ser útil dar exemplos históricos do uso negativo da Filosofia. A Lógica e a Metafísica, como da Filosofia, trabalham intensamente com categorias, isto é, com conceitos que fundam todos os outros conceitos. Exemplos de categoria são a substância, a quantidade, a qualidade, o tempo, o espaço, entre outras. Se olharmos para a História da Filosofia como um contínuo, perceberemos que o que umas escolas sustentam anula o que as outras afirmam sobre as categorias. Ficamos, assim, sem a certeza mínima sobre o que tais conceitos realmente podem significar.
Não há nisso qualquer autoaniquilação da Filosofia. O saber filosófico não é autofágico, pois não foram os filósofos que inventaram as categorias. Mas eles demonstraram tão bem as impropriedades no uso desses conceitos que terminamos sem eles. Não sem os filósofos, por sorte, mas sem as categorias.
É absolutamente normal e benéfico a Filosofia ser assim usada para desconstruir o saber humano. Ao fazê-lo, ela mostra, mais do que todas as outras disciplinas, que o saber tem limites essenciais e não apenas acidentais. Essa é a função primordial da Filosofia, até porque é difícil achar outra na massa de reflexões que a História nos apresente sob o nome de filosofia.
Quero dizer que, ao contrário de outras ciências, como a Física e a Biologia, que tantas contribuições ofereceram para o conhecimento humano, a Filosofia só faz o conhecimento avançar, positivamente, ao expor, de uma nova maneira, o que antes já se conhecia. No Organon, por exemplo, Aristóteles mostra como o conhecimento comum se processa. Alguém duvida de que os que o liam e o leem com avidez já o sabiam?
A oposição das escolas é apontada como o movimento geral mais nítido da História da Filosofia. E é bom que se lembre que as escolas se oporem nem sempre significa anularem-se, mas quase sempre se traduz em uma enfraquecer a outra. Em uma escola mostrar mil dúvidas que a posição da outra envolve. Maimônides é fundamental por ter aquilatado isso com tanta acuidade que nos legou o Guia dos perplexos (Maimonides, Moses. The guide for the perplexed. 2nd. edition, New York: Dover, 1956) como roteiro para todos os que reconhecem as dúvidas insolúveis a que essa disciplina conduz.
Mas a oposição das escolas não é o único motivo para negarmos que a Filosofia contribua, positivamente, para o conhecimento humano. O motivo maior é o fato de nossa disciplina ser muito mais destrutiva do que assertiva, muito mais crítica do que demonstrativa. É, enfim, o fato de ela servir tão bem para desfazer as ideias mais arraigadas que se albergam no interior das culturas e as regem, a saber: as que constituem o senso comum de cada época.
A crítica do senso comum é, portanto, o escopo da Filosofia. Ela se dá, primordialmente, pela revisão e superação das categorias que fundamentam esse acervo básico de pontos de vista e concepções. Por isso, a Filosofia não sintetiza categorias: critica-as. Não as sintetiza, primeiramente, porque sua finalidade não é positiva, mas negativa. É claro que não vou ao ponto de propor que os filósofos, enquanto tais, nunca descobrem algo ou mostram algo novo. Eles até o fazem, mas não o demonstram. Demonstram, somente, e bem, aquilo que criticam.
Essa vocação, a meu ver tão nítida, ilumina com matiz tão especial o tempo presente, no qual se percebe não só a ausência de uma escola triunfante no campo da Filosofia, mas também nos territórios da Teologia, da Psicologia, da Antropologia, da Política e da Economia. Por que não há vencedores claros, no embate das doutrinas? Uma das razões talvez seja a existência da Filosofia, que realizou e continua a realizar seu trabalho com proficiência suficiente para não o permitir. Ela se hipertrofiou a tal ponto e gerou um arsenal tão imenso, ao longo dos séculos, que ele é comumente usado para destruir o que se apresenta como triunfante na História das Ideias.
Porém, esse trabalho de limpeza do terreno, que caracteriza a Filosofia, não é um fim em si mesmo. O terreno não é limpo por ela e por outros saberes para permanecer vazio. E utilizá-lo é, no caso, erguer novas doutrinas, após a remoção do entulho. Portanto, o trabalho filosófico pede o complemento de um saber positivo que erga, no terreno descontaminado, o templo de um novo conhecimento.
Que saber é esse e que templo há de construir? Não há perguntas mais cruciais do que essas a que a razão humana possa elevar-se. Se o trabalho crítico (que não cabe apenas à Filosofia, mas lhe cabe principalmente) tem sido bem-sucedido, o feliz resultado deve encorajar-nos a buscar o saber que sobreviveu a ele.
Não é esse um saber simplesmente técnico, embora a técnica e sua cria moderna, a tecnologia, sejam uma consequência normal dele. O saber sobrevivente à tarefa negativa da Filosofia, em todas as suas etapas, é antes de tudo uma visão de mundo. A visão que o homem sempre buscou, que ele construiu e viu desabar não uma ou duas vezes, mas vezes mil. Porém, ainda assim, uma visão de mundo, pois o espírito humano tem vocação, e vocação verdadeira não se perde para o fracasso.
Não restam muitos bons candidatos a constituir a visão de mundo remanescente à crítica das disciplinas negativas. As ciências naturais têm sido bem-sucedidas. As sociais também, ainda que apenas para quem tem olhos para ver. Claro que há mil correções a serem feitas numas e noutras, mas o que justifica o crédito concedido às ciências é exatamente essa corrigibilidade.
Num dos lados do terreno que a crítica limpou, estão, pois, as ciências. Do outro lado (entrego-me ao apedrejamento), temos a Teologia. Não qualquer teologia, pois a maior parte dos sistemas propostos sob esse nome foi refutada. Temos, porém, o que, na História da Teologia, se denomina compreensão pela fé.
Com essa expressão, não me refiro tanto à fé que segue a compreensão (Intelligo ut credam), mas à compreensão que se segue à fé (Credo ut intelligam). A diferença entre as duas não é desprezível. A primeira faz parte da fé cristã, mas a grandeza do cristianismo, no campo do conhecimento, deve-se à outra. Quando nos limitamos ao Intelligo ut credam, terminamos com Deus, sim, mas com um Deus pequeno, com um Deus do tamanho do nosso intelecto. Só pelo Credo ut intelligam, chegamos a um Deus grande, ao Deus que se revelou e revela na fé, ao Deus que se deu a conhecer e não foi jamais descoberto.
Concordo com os que, ao longo da História, viram na Filosofia não um caminho em si mesma, mas um método de preparação do caminho em si mesmo, isto é, do caminho que existe independentemente dela. A Filosofia é uma preparação do caminho por Deus, pois, exercida negativamente com a persistência devida, coloca-nos na encruzilhada de dois ou três caminhos, um dos quais leva a Deus. Esse é o caminho da fé.
Reafirmo, portanto, que a Filosofia prepara para a fé. Isso é consabido. O que nem sempre se disse, de maneira clara, é que ela só exerce esse magistério enquanto saber negativo, enquanto crítica ou, como prefiro dizê-lo, enquanto disciplina da dúvida.
O erro dos erros filosóficos não consiste em afirmar esta ou aquela doutrina sobre o real. Consiste antes em afirmar, terminantemente, seja o que for. Não é tarefa da Filosofia afirmar dessa maneira. Quando o faz, ela não leva à fé genuína, à fé que é livre, que cativou e cativa o espírito em todas as épocas. Leva tão simplesmente ao dogma.
Fui e sou criticado, às vezes, por “discordar de tudo”. Não é bem isso que faço. Mas estou pronto a admitir o quanto discordo daquilo de que discordo. E, para ajudar no trabalho de delimitação desse quantum (pois nada melhor do que delimitá-lo para entender que não é infinito, nem sequer sistemático), dou à luz o presente percurso entre os pontos fundamentais das escolas filosóficas. Nele passo de ponto em ponto, de doutrina central a doutrina central, não com o escopo de expô-las ou afirmá-las, mas de as criticar. Ou, se quiserem que se trate de expor, de expor livremente as minhas dúvidas a respeito delas.
A dúvida é, pois, a justa medida da Filosofia Cristã. Ir além dela, a fim de afirmar certezas, é errar grosseiramente na medida. É supor que o convencimento se constroi pela demonstração, quando ele só começa, de fato, por meio do abalo. E é claro que, sem o primeiro passo na senda do conhecimento, todos os outros se tornam impossíveis. De forma que ir além da dúvida é, propriamente, o pecado original da Filosofia Cristã, do qual só é possível a alguém libertar-se por meio da fé que supõe a dúvida.
Claro que há mil coisas subentendidas na confissão do meu Credo ut intelligam. Uma delas é que, se a dúvida prepara para a fé, esta não é jamais fé em Deus em si mesmo, mas nas maravilhas da sua criação, isto é, nas suas obras. Em si mesmo, Deus permanece incompreensível, mas apenas relativamente, já que a incompreensibilidade absoluta de um ser individual é o mesmo que a compreensibilidade por exclusão. Por isso, a incompreensibilidade relativa de Deus implica a compreensibilidade das suas obras. Esse é, portanto, o único conhecimento possível de Deus, a saber: o que se sujeita aos limites do que somos e do que o mundo é.
Isso pode soar louco, mas me compadeço dos que o pensam, já que a loucura se evola, perde-se para as nuvens, quando bebemos do cálice em que se leem as palavras que os séculos sussurram como uma prece: Credo ut intelligam
CRÍTICA DO SENSO COMUM
Uma característica persistente da Filosofia, em todas as épocas, é o esforço de superação do senso comum e das escolas de pensamento consagradas com o selo da autoridade. Desde o seu aparecimento, em forma definida e autônoma, nas colônias gregas da Ásia Menor, no século VI a. C., o labor filosófico, quase sempre, exerceu-se nessa direção.
Mas como a revolta contra realidades estabelecidas não costuma ocorrer sem que elas antes tenham alcançado suficiente desenvolvimento, a da Filosofia contra o conhecimento convencional e o senso comum pressupôs o prolongado insucesso dos últimos. Como Aristóteles lembra, entre os gregos, a Filosofia só surgiu, quando as classes abastadas obtiveram liberação de tempo suficiente para desenvolverem discussões públicas a respeito do mundo, o que veio a ser fundamental para erodir as concepções tradicionais mencionadas. Nesse duplo debate de mitos e opiniões, é que a Filosofia plasmou-se e definiu a sua identidade.
A História mostra, contudo, que a propensão à crítica do pensamento não se manifestou apenas na origem da Filosofia, mas também nas suas demais etapas de desenvolvimento. Sempre mais acentuadamente em relação ao senso comum do que às visões de mundo tradicionais. Sem esquecer que a expressão senso comum é, ela própria, aqui empregada no sentido de uma particular visão de mundo compartilhada pela maioria das pessoas de uma cultura. Admito, aliás, tantos sensos comuns quantas foram ou são as culturas e, nesse sentido, emprego a expressão.
Portanto, a Filosofia sempre foi utilizada para refutar, confrontar e desconstruir as visões de mundo fundamentais, compartilhadas pelas pessoas de cada época e de cada cultura, e, ao mesmo tempo, para afirmar, confirmar, promover, comprovar e desenvolver outras visões de mundo. Talvez isso em menor escala do que aquilo. Veremos aos poucos como esse duplo mister foi exercido pelo saber filosófico.
Sabemos que, nos cinco primeiros séculos da era cristã, numerosos indivíduos transitaram de uma escola filosófica a outra, um número ainda maior passou de uma a outra escola teológica, como do gnosticismo ao cristianismo, do arianismo à ortodoxia ou do sabelianismo, do nestorianismo e do donatismo à fé católica (claro que também vice-versa), e um contingente maior que todos os anteriores se converteu da mitologia pagã ao cristianismo. No entanto, essas mudanças não bastaram para garantir que a maior parte das pessoas que trocaram de doutrina filosófica ou teológica abandonasse o emprego do senso comum nas grandes questões do conhecimento. O que desde logo permite suspeitar de que é mais fácil as pessoas mudarem de filiação doutrinária do que abandonarem o senso comum.
Essa dificuldade particular contribuiu para que a Filosofia se firmasse como o mais excelente método de questionamento e refutação das concepções do senso comum, até o surgimento da ciência moderna. Desde as suas origens pré-socráticas, o saber filosófico arrebatou essa primazia à teologia inspirada nos poemas de Hesíodo e Homero. E não a perdeu, sequer no período em que foi visto como ancilla theologiae. É verdade que, nesse período, a Filosofia foi subjugada pela Teologia, porém se manteve rebelde para com o senso comum.
Mesmo quando a ciência lhe tomou a primazia no tocante à síntese de teorias explicativas do mundo, a Filosofia conservou a dianteira na capacidade de questionar, desconstruir e desafiar conhecimentos. Por menos que se use admiti-lo, a ciência natural é um saber muito mais dogmático que o filosófico. Como os pensadores convocados a se debruçar sobre elas mostraram, as ciências da natureza partem de princípios e regras relativamente indesafiáveis, portanto dogmáticos. Esses princípios são, comumente, identificados com os paradigmas científicos descritos por Thomas Kuhn. Verdade é que eles podem perder vigência e ser substituídos. Porém, enquanto a mantêm, devem ser obedecidos e em regra o são. Pouca dúvida subsiste de que tal obediência é da essência do saber natural.
À Filosofia sempre competiu questionar de maneira muito mais livre e aberta. Sempre lhe coube perguntar, muito mais que propor respostas normativas. De sorte que, se as mais relevantes espécies de saber científico desenvolvidas na História puderem encontrar-se num ponto, e esse ponto puder ser identificado com a corrigibilidade, maior ou menor, dos respectivos saberes, a Filosofia merecerá ser considerada mais científica que a ciência natural, já que, à exceção de algumas partes da Metafísica, o grau em que pode ser corrigida é quase sempre maior que o daquele saber. Por isso, para quem de fato os compreende, os magistérios das duas formas de conhecimento não são antagônicos, mas complementares.
No entanto, a vocação da Filosofia para o questionamento nunca bastou como aval de seu sucesso. A verdade parece estar na conclusão de que a Filosofia perdeu e ganhou batalhas, no conflito milenar que sustentou contra as intrusões do saber ordinário. Um dos maiores de seus reveses foi o estímulo que ofereceu ao hábito de substantificar ideias. Explicarei em detalhes esse hábito, nos artigos seguintes, porém, desde já, é possível adiantar a noção nuclear de que o vício da substantificação consiste em transformar ideias em coisas e de projetá-las no mundo exterior, como se possuíssem existência própria e fossem independentes do sujeito que as pensa. Encontro esse vício enraizado no senso comum, mas reconheço, por outro lado, que, raramente o esforço filosófico foi suficiente para eliminá-lo.
Raramente não é o mesmo que nunca. Nessa constatação estão depositadas as mais fundamentadas esperanças do espírito humano de superar os vícios inveterados do senso comum. Pois se a Filosofia, apesar de suas precariedades e falhas, não nos auxiliar a fazê-lo, dificilmente a ciência o fará sozinha.
O que indica, preliminarmente, que a Filosofia não é destituída de certa unidade, que se manifesta não apenas na organização da sua doutrina pelos pensadores, mas também no entrechoque deles. Certas linhas de pensamento percorrem de alto a baixo as reflexões filosóficas, inclusive contenciosas, em todos os tempos. Uma delas é a crítica do senso comum. Outra é a reflexão sobre os vícios desse conhecimento, entre os quais se destaca a substantificação das ideias.
Consideradas as características distintivas dos três grandes saberes que a humanidade forjou – a Teologia, a Filosofia e a ciência – parece inevitável que, se for realmente um bem, a libertação do senso comum (nas questões profundas do conhecimento) deva ocorrer mediante o concurso da Filosofia. Isso porque a Teologia e a ciência procedem por meio de dogmas, que reduzem o seu potencial de questionamento. Se temos uma chance de escapar dos condicionamentos viciosos do saber ordinário, portanto, ela está consideravelmente nas mãos de uma cognição com potencial elevado de questionamento, como a Filosofia, do que de saberes dogmáticos, como a ciência e a Teologia.
Formulemos, então, a pergunta crucial sobre o modo como a superação do senso comum é possível: em que ponto da Filosofia, o questionamento dos vícios remanescentes das visões mais vulgarizadas do mundo deve principiar? Para abordar tal pergunta, é útil retornar aos brilhantes alvores da nossa disciplina: a Platão e Aristóteles, que, com maior precisão que os seus predecessores, demonstraram a existência de um modo intuitivo e outro científico de conectar ideias. O primeiro desses métodos funda-se nos hábitos de pensamento pelos quais o homem, que não despende esforço para se apropriar do conhecimento acumulado pelas gerações, pensa e resolve problemas da vida. Não raro, essa espécie de intuição é penetrada pelo imperativo do menor esforço. O outro método baseia-se em princípios e regras longamente filtrados por filósofos que realizaram tal esforço, os quais permitem não apenas pensar, mas também questionar e empregar o senso crítico. O ponto de partida de toda superação do senso comum haverá de ser, portanto, essa distinção e a adesão persistente ao segundo procedimento.
Alguém perguntará se é possível desenvolver o saber filosófico sem princípios e regras e, se a formulação destes não dará origem a novos dogmas? De certo modo, sim. Porém, os princípios e regras do saber filosófico são, em geral, mais simples e fundamentais que os da Teologia e os da ciência. Por isso, seu potencial de erro é, de algum modo, mais reduzido.
Refiro-me às leis da Lógica e da Metafísica. Exemplo da primeira são as regras do raciocínio dedutivo enunciadas por Aristóteles. Um pensador tão recente e especializado no tema quanto Kant afirmou dessas leis que, apesar de sua antiguidade, pouco podem ser melhoradas, o que se deve, precisamente, à sua simplicidade e caráter fundamental. As leis metafísicas, por sua vez, foram descritas e exemplificadas pelo próprio Kant, que as enunciou em obras como Prolegômenos à Metafísica do futuro, Princípios metafísicos das ciências da natureza, Metafísica dos costumes e na Crítica da razão pura.
Devemos, porém, traçar um limite para a atuação crítica da Filosofia. A
História nos mostra que essa disciplina não nos legou muitas descobertas
sobre a realidade. Nesse ponto específico, a vocação filosófica é muito
mais negativa do que positiva. A Filosofia serve a destruição mais do
que a construção de pontos de vista sobre o real. E tanto uma como a
outra vocação, ela as exerce mais como linguagem do que como ciência.Na
verdade, a Filosofia pode ser vista como uma linguagem geral, uma
metalinguagem a que as linguagens especiais se referem ou, ao menos,
podem referir-se.
A Filosofia já foi, justa e injustamente, vilipendiada (não mais do que a Teologia, é verdade). O difícil é os seus detratores exclusivistas brindarem-nos com um método mais adequado à crítica do senso comum. O difícil é encontrarem um lugar que, embora chamado inferno por alguns, seja mais céu do que ela, no tocante à execução dessa tarefa. De modo que, se temos dificuldades para evitar as armadilhas do senso comum, no precário céu da nossa Filosofia, é-nos ao menos possível caminhar nessa direção.Não são poucos os detratores da Filosofia que dizem correr ou voar, mas vivem nos subterrâneos do exclusivismo, que insistem em nos apresentar como augustos paraísos.
A Filosofia já foi, justa e injustamente, vilipendiada (não mais do que a Teologia, é verdade). O difícil é os seus detratores exclusivistas brindarem-nos com um método mais adequado à crítica do senso comum. O difícil é encontrarem um lugar que, embora chamado inferno por alguns, seja mais céu do que ela, no tocante à execução dessa tarefa. De modo que, se temos dificuldades para evitar as armadilhas do senso comum, no precário céu da nossa Filosofia, é-nos ao menos possível caminhar nessa direção.Não são poucos os detratores da Filosofia que dizem correr ou voar, mas vivem nos subterrâneos do exclusivismo, que insistem em nos apresentar como augustos paraísos.
QUE É FILOSOFIA CRISTÃ?
A Filosofia Cristã é uma seção do discurso filosófico multimilenar. Podemos considerá-la o tratamento específico que pensadores com formação filosófica e teológica desenvolveram sobre o sentido do Universo e da existência humana.
Porém, embora tenha temas diversos, a Filosofia Cristã concentra-se num objeto principal, que sobressai aos demais. Refiro-me ao ser enquanto ser, como ele foi denominado na tradição peripatética e aristotélica. No século XVIII, Emmanuel Kant propôs a realização de um giro copernicano, na Filosofia, consistente em não mais a centrar na questão do ser e em fazê-la gravitar ao redor do conhecer. Essa revolução filosófica só pôde ser propugnada tão tarde, na História, porque, de fato, a Filosofia tinha-se debruçado, até então, de modo preponderante, no ser. Porém, ao propor-se, ela colocou em xeque a Filosofia Cristã, com sua histórica inclinação ao ser.
Na Encíclica Fides et ratio, João Paulo II anali-sou o papel da Filosofia no conhecimento e as suas relações com a fé. Nesse histórico documento, que filtra e apresenta o sentir e o pensar dos católicos ao longo de séculos, percebemos o enorme relevo atribuído pelo Pa-pa o problema do ser. Para João Paulo e a Igreja Católica, “o contributo específico [da Filosofia] é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta” (JOÃO PAULO II. Fides et ratio – sobre as relações entre fé e razão. 7ª ed., São Paulo: Loyola, 1999. p. 6). Porém, na medida em que ela o faz, “é possível reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem” (idem. p. 7).
João Paulo não hesita em afirmar que “esses e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos nos quais é possível ver uma espécie de patrimônio espiritual da humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita” (idem. p. 7). E identifica, a seguir, essa “filosofia implícita” como “os princípios primeiros e universais do ser”, dos quais é possível “deduzir correta e coerentemente conclusões de ordem lógica” (idem). Em outras palavras, para a Igreja, a Filosofia Cristã é uma reflexão sobre o ser e, só secundariamente, sobre outros problemas filosóficos. O ser comanda e deve comandar todo o questionamento filosófico.
Assim concebida, porém, a Filosofia Cristã torna-se incompatível com o giro de Kant, pois não admite o que ele propõe com maior urgência: o deslocamento das reflexões sobre o ser do centro para a periferia do pensamento filosófico. E o que espanta é que essa posição da Igreja não assenta em qualquer espécie de equívoco filosófico demonstrável, nem constitui resistência infundada ao moderno. É, antes e tanto quanto se perceba, uma maneira válida de ver e interpretar toda a Filosofia já dada.
A Filosofia Cristã resiste ao giro copernicano, pois essa reviravolta da reflexão está à raiz do enfraquecimento do saber sobre Deus construído, ao longo de séculos, na tradição filosófica do ser. Ouçamos em que termos João Paulo II o expressa: “A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral” (idem. p. 8).
Essa posição filosófica tem o mérito de uma coragem extrema, pois desafia o núcleo do que se convencionou considerar o corte filosófico entre o pré-moderno e o moderno: precisamente o giro copernicano. Mostra-nos, ademais, que a Filosofia Cristã pode ser interpretada como resistência àquele giro e, enquanto tal, a toda a Filosofia Moderna e Contemporânea.
Mas é preciso ressaltar: nem por ser entendida assim, a Filosofia inspirada na fé deve ser considerada reacionária, pois não resiste a todos os aspectos do moderno e do contemporâneo. Pelo contrário, a Filosofia Cristã critica o giro copernicano por não o reconhecer como o ponto decisivo da Modernidade na Filosofia, muito menos da Modernidade em geral. Trata-o mais como equívoco do que como legítima revolução.
A posição de Heidegger, no panorama da Filosofia Contemporânea, é semelhante à católica, pois também ele afirma a preponderância do ser e, por aí, se alia à resistência ao giro copernicano. Claro que, em muitos outros aspectos, Heidegger e a Filosofia Católica divergem. Porém, no tocante à centralidade do ser, eles se dão as mãos. Pergunto: seria Heidegger reacionário ou antimoderno? Bem, não é essa a avaliação que a maior parte dos filósofos, que o considera integrante legítimo da vanguarda filosófica, no século XX.
Poderíamos afirmar o mesmo de outros filósofos proeminentes, inclusive de céticos como Nietzsche. Mas basta o exemplo de Heidegger para assentar que a rejeição do giro copernicano não torna uma reflexão ultrapassada, nem a relega à condição de relíquia ou antiguidade.
Mas é preciso admitir que, em algum ponto, a Filosofia Católica se complica, no combate à modernidade filosófica. Penso identificar esse ponto não com a crítica à supervalorização da filosofia do conhecimento, mas com a variedade específica de filosofia do ser que a Igreja professa. Essa filosofia ainda é a de São Tomás que, inexcedível na sua época, apresenta limitações que a mantêm em descompasso com o conhecimento atual.
Em que pesem os méritos substanciais de Tomás como filósofo, ele não representa a maturidade da reflexão sobre o ser. O século em que viveu, o décimo-terceiro, foi um dos mais convulsionados da História da Filosofia. Foi o século em que as águas do pensamento se bifurcaram numa corrente ligada à Metafísica clássica e outra a ciência emergente.
Um dos maiores estudiosos desse período da Filosofia, Étienne Gilson, cita Duhem, que datou “de 1277 o início da ciência moderna (Études sur Léonard de Vinci, t. II, pp. 411-412)”. E acrescenta que, “em outro texto, o mesmo historiador propõe outra data mais tardia: ‘Se se quiser separar, com uma linha precisa, o reinado da Ciência antiga do reinado da Ciência moderna,seria preciso traçá-la, acreditamos, no instante em que João Buridano concebeu essa teoria [do impetus], no instante em que cessou-se de ver os astros como movidos por seres divinos, em que se admitiu que os movimentos celestes e os movimentos sublunares dependiam de uma mesma mecânica’ (Op. cit., t. III, p. XI)” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.p. 604).
No ano 1277, citado por Duhem e Gilson, passou-se, de fato, a condenação de uma longa série de proposições filosóficas e teológicas, por Étienne Tempier, com o objetivo de conter o movimento averroísta e o avanço de teologias (como a de São Tomás) calcadas em Aristóteles.
Os principais adversários de tomistas e aristotélicos, naquela época (os franciscanos), seguiam as pisadas de Boaventura, que ensinou que não precisamos de conceitos muito abstratos para chegar a Deus, já que a compreensão do mundo, como ele é, nos leva a ele. Os franciscanos inclinavam-se à doutrina agostiniana do conhecimento como iluminação de Deus e, com base nela, eles resistiam ao averroísmo e ao tomismo. Tornaram-se, assim, o grande celeiro medieval de pensadores empiristas aos quais Duhem se refere como fundadores da ciência moderna e que, desde cedo, ofereceram uma alternativa viável ao tomismo.
Pode ser, pois, demonstrado que a filosofia tomista, adotada entusiasticamente pela Igreja Católica, surgiu na bifurcação entre o pensamento metafísico e o científico. E a verdade é que, desde o início, ela não se situou muito bem, no tocante à bifurcação, pois forjou sua identidade em oposição ao empirismo. Assim, mesmo após a correção dos excessos metafísicos, a filosofia do ser restante, na tradição católica, nas palavras de João Paulo II, “assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência”, mas “move-se apenas com a luz do intelecto” (JOÃO PAULO II. Ob. cit. p. 11).
Assentar na percepção, no sistema tomista, é se conformar à máxima aristotélica segundo a qual nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Não é muito mais do que isso e é muito menos do que se exige para colocar o pensamento em razoável conformidade com o empirismo radical que a ciência moderna introduz. Nesse sentido, como João Paulo bem o expressa, é que a Filosofia Católica não se move pelos sentidos, mas pelo intelecto e somente por ele. Ela é, de fato, em larga medida, independente dos sentidos.
Na independência dos sentidos, reside a fragilidade da filosofia do ser da Igreja Católica. Os próprios exemplos de “filosofia implícita” citados pelo Papa (a não contradição, a finalidade, a causalidade e a pessoa humana) são, para ele, universais, naturais, portanto imutáveis. Essa a posição católica. Podemos questionar, seriamente, se existem, de fato, conceitos imutáveis ou revestidos de validade universal.
A História, tanto da Filosofia como das Ideias, é pródiga em invalidações de conceitos que um dia foram considerados independentes da experiência. Não é diferente com a não contradição e os outros princípios mencionados por João Paulo. Se a Filosofia deve ser considerada uma disciplina crítica, como penso ser o cso, cabe-lhe mais criticar aqueles conceitos e contribuir para a sua invalidação do que para criar a ilusão de que permanecem válidos independentemente da experiência que ocorre no tempo e no espaço.
Em outras palavras, o problema da Filosofia Católica e das correntes filosóficas cristãs influenciadas por ela não é assumir posição metafísica, mas não desenvolver a crítica metafísica. Após o surgimento da ciência moderna, é impossível à Filosofia proceder à revelia dela. Claro que o método da Filosofia não é o daquela ciência, mas, para exercerem o papel que lhes é reservado, as proposições filosóficas hão de ser desafiáveis por dados científicos e não independentes deles.
Em suma, a Filosofia Cristã continua a ser relevante, hoje como no passado, mas penso que deve evitar o pressuposto de que “a história do pensamento mostra que certos conceitos básicos mantêm, por meio da evolução e da variedade das culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposições que os exprimem” (idem. p. 72). Chego a pensar que a missão da Filosofia Cristã consiste, ao contrário, em dirigir sua crítica aos conceitos básicos mencionados por João Paulo e demonstrar que eles podem ser invalidados, em certas condições.
Assim, a Filosofia Cristã continua a ser uma preparação para a fé. Continua a ser, igualmente, uma filosofia do ser. Conquanto a abertura ao empírico abra-a a tantos desenvolvimentos possíveis que o caminho adiante da Filosofia Cristã chega a ser imprevisível, por outro lado, não pode esse ramo do pensar filosófico deixar de ser o que a História o tornou, entenda-se uma filosofia do ser.
De todo modo, a preparação de tal filosofia realiza-se fora da fé. Ela não consiste em criar certezas, mas em dissolvê-las por meio da razão. Com efeito, se a fé é certeza, a preparação para ela deve estar fora dessa certeza. Deve, pois, consistir na num tratamento da dúvida. Há dúvidas que são vizinhas da certeza: identificá-las é a missão da Filosofia Cristã ou perene.
Claro que, como o homem não é capaz de conduzir suas obras à perfeição, a Filosofia tampouco tem o objetivo de dissolver todas as certezas. Como já sinalizei, seu escopo é muito mais seletivo. Consiste em identificar as exatas certezas que convém dissolver para em seu lugar implantar a dúvida e, pela dúvida, propor a fé.
Há talvez, aqui, uma inversão do papel histórico da Filosofia Cristã, mas uma inversão relativa. Embora cristalizada em certezas, pela atuação das igrejas, a reflexão dos filósofos cristãos nunca deixou de introduzir abundantes dúvidas. Esse foi sempre o seu papel principal. Procurarei separá-lo do trabalho de cristalização da reflexão em dogmas, realizado pelas igrejas, com a Católica à frente, e continuá-lo pela explicitação de minhas próprias dúvidas, para que se exerça com força máxima.
Porém assim esclarecida, a missão da Filosofia só se cumpre, passando em revista a História do Pensamento sob uma nova perspectiva, a saber: a da dúvida. Essa é a perspectiva que mais faz jus ao trabalho filosófico como a História o apresenta. Registre-se que ele é perfeitamente apto a preparar os espíritos para a fé, se esta nasce e se alimenta da dúvida, como penso que o faz.
Não é, pois, de estranhar que a apresentação da Filosofia Cristã neste texto percorra, de início, as escolas filosóficas, não com o objetivo de apresentá-las inteiramente, mas de apresentar as dúvidas que podem ser formuladas sobre as doutrinas centrais delas. Só a esse preço, a philosophia perennis se torna capaz de exercer o seu magistério.
Claro que, para exercer tal tarefa, a Filosofia deve dialogar com as ciências positivas e utilizar os dados delas. Do contrário, sua validade permanecerá confinada no território metafísico. Porém, ao fazê-lo, ela deve saber incorporar aqueles dados à sua reflexão específica a respeito do ser.
Esse parece ser o melhor caminho de desenvolvimento para a Filosofia Cristã, no tempo atual. E o é por não ser um caminho necessário. Para abrir caminho à fé, pela razão, não é preciso recorrer à certeza. Basta estabelecer bem a dúvida. Basta revisitar, revisar e, se possível, desintegrar conceitos. Principalmente os que fundamentam os quadros amplos do real que pintamos ao andar pelo mundo.
Principalmente os que fundamentam os quadros mais amplos que pintamos ao andar pelo mundo, quase sem perceber que os pintamos para desintegrá-los, como seres formados na contradição e não apenas na lógica.Vinícius e seu parceiro Toquinho escreveram sobre o Dilúvio, logo após terem dito “Herodes natural”: “Escute, amigo/ Se foi pra desfazer/ Por que é que fez?” A pergunta ressoa em todos os corações. E o faz tanto mais quanto vamos pela vida a pintar e a destruir, a destruir e a pintar nossos mundos filosóficos.
COMPREENSÃO PELA FÉ
Temos acompanhado o percurso do erro
consistente em atribuir substancialidade às ideias, ao longo da História da
Filosofia Cristã. Deste ponto da nossa dissertação em diante, procuraremos entender
como essa Filosofia pode-se desenvolver sem incidir naquele equívoco histórico.
Para isso, lançaremos mão dos sentidos,
mas também, e de modo primordial, do conhecimento que adquirimos pela observação
de nós mesmos, isto é, da alma. Não pretendemos, com isso, sugerir que o desenvolvimento
da Filosofia deva ocorrer sem o concurso dos sentidos, mas que a contribuição por
excelência que a fé pode ofertar a essa disciplina deve ocorrer na via interior,
na via da auto-observação e da introspecção, se é que o pensamento cristão se destaca,
precisamente, pela interiorização.
Comecemos por explicar que essa espécie de compreensão do real a fé tende
a promover. Adiantemos que essa compreensão não é, em si mesma, filosófica, teológica
ou teórica. É, antes, uma postura perante o mundo, um modo de viver e uma
proposta de vida válida para o século XXI. Como o nome já diz, a proposta
envolve a compreensão e a fé: compreensão, pois não é possível ao homem ter os
pés plantados no século XXI e desprezar o conhecimento que acumulou até este
momento; fé para os que pensam que o olhar para o alto não há de ser abandonado
exatamente agora. É alentador considerar que ainda existe, na Terra, uma maioria
que deseja evitar esse abandono, essa inversão da docta ignorantia ou
essa nova sabedoria de néscios.
Tanto em termos práticos quanto de conhecimento, não há muitas maneiras de viver possíveis na conjuntura atual do mundo. Podemos abraçar uma fé religiosa e fechar os olhos ao cabedal de conhecimentos que a humanidade alcançou. Por estranha que pareça ao cidadão de uma sociedade adiantada, essa ainda é uma opção razoável e funcional, como os Estados Unidos mais que a Europa parecem mostrar-nos. Se não nos agradarmos dela, porém, podemos abraçar a ciência, o progresso tecnológico e o conforto material a que dão acesso e cerrar os olhos para a religião. Claro que a adesão a uma filosofia ou ideologia mais radical, ainda que não científica, está sempre e também à mão. É outra possibilidade. Ou podemos ignorar todas essas alternativas e responder somente aos desafios práticos da existência, sem pensar nos intelectuais. Contudo (e aqui está o ponto fundamental), se alguém não se contentar com qualquer dessas quatro atitudes, só lhe restará abraçar simultaneamente o conhecimento e a fé e viver de acordo com eles. A compreensão pela fé é um modo de adotar essa última posição. Penso em justificá-la, a seguir, a partir da natureza do conhecimento humano.
Devemos a Leibniz a expressão philosophia perennis, que empregou para se referir a uma filosofia que não abre mão da fé, da transcendência e da eternidade. Concebo a compreensão pela fé como o método mais eficaz desenvolvido e testado, na História, de alcançar tal filosofia e viver por meio dela. Tenho procurado explicá-la em diversos textos, o que me dispensa de expô-la de novo aqui. Só lembrarei que a compreensão pela fé pressupõe a experiência de crer, em toda a sua profundidade e riqueza, mas não está subordinada a qualquer doutrina ou dogma religioso.
Em tempos como os de hoje, em que a supremacia da razão como diretriz de vida para o homem encontra-se em crise, o recurso à fé parece mais justificado que nunca. Mas que razão está em crise nos nossos dias? A que corresponde ao sentido mais amplo do termo, o que inclui tanto a razão comum quanto a científica. Para sermos bem claros: a razão que se encontra em crise é o pensamento baseado em regras objetivas, por meio das quais todas as pessoas são capazes de conceber o mundo a partir do mesmo conjunto de ideias básicas.
Pode parecer que nenhuma razão possui tal caráter universal. Tenho de concordar. Mas essa é uma convicção mais ou menos recente e é exatamente por causa dela que pensamos nos encontrar numa crise da razão. Por muitos séculos, o homem considerou existir uma razão universalmente válida. Sua convicção estava relacionada à impressão de ordem que os gregos, mas não somente eles, sempre tiveram ao olhar para o Universo. Razão era o modo pelo qual o intelecto compreende essa ordem. Não foi em outro sentido que, por tanto tempo, os gregos e os povos que receberam o legado deles conceberam o ser humano como animal racional. Porém, o progresso do conhecimento foi capaz de pôr em xeque essas convicções arraigadas.
O motivo da desconfiança que se criou foram dúvidas sobre as ideias que constituem o fundamento da razão. Aristóteles chamou essas ideias categorias e fez assentar sobre elas a ordem que os gregos reconheciam no cosmos. O mundo encontra-se em ordem, pois está disposto em conformidade com as 10 categorias do ser, o que significa que pode ser pensado em termos de substância, relação, quantidade, qualidade, tempo, lugar, ação, paixão, posição e hábito.
Aristóteles considerava que as categorias estão objetivadas no mundo, pois é por meio delas que percebemos a ordem existente nele. Pode-se, pois, afirmar que as categorias são características objetivas do mundo, o qual é composto de substâncias localizadas no tempo e no espaço, que se apresentam em certas quantidades, possuem qualidades, relacionam-se, agem, sofrem ações, assumem posições e podem contrair hábitos. O problema é que, por volta do século XIV, um número crescente de filósofos começou a pensar que a objetividade das categorias resulta da projeção de ideias humanas no mundo.
Guilherme de Ockham, por exemplo, recorreu a Boécio ao pensar as categorias de uma nova maneira: "Boécio pretende, em diversas passagens de seu Comentário às categorias, que o Filósofo [Aristóteles] trata naquele livro de palavras faladas e, assim, consequentemente, chama substâncias primeiras e segundas as próprias palavras" (OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: PUC-RS/USF, 1999. Vol. III, item 42, p. 235). Se são palavras, as categorias estão na mente do homem, não no mundo fora dele. E se Aristóteles as entendeu como categorias “do ser”, somos forçados a concluir que se equivocou.
Como tudo o que sabemos do mundo foi construído com base nas categorias, a crítica de Ockham nos leva a desconfiar se realmente conhecemos o mundo como ele é. Não podemos ter certeza, por exemplo, de que aquilo que entendemos por qualidade existe realmente, ou seja, se os entes possuem qualidades. O mesmo pode ser dito de todas as outras categorias.
Assim, a imagem humana do mundo se apaga, embaça-se e descolore-se, perde enfim os contornos. Kant percebeu-o com nitidez. Por isso, deslocou as categorias do mundo, onde Aristóteles as havia situado, para o entendimento. E, além de o ter feito, ainda modificou o rol das categorias, que passou a constar de unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade. Na filosofia kantiana, o espaço e o tempo também assumiram sentido subjetivo como condições da sensibilidade.
A passagem da Filosofia Clássica à Moderna depende, em grande medida, do juízo que se fizer sobre a crítica das categorias aristotélicas e a concepção posta em lugar dela. De Ockham a Kant, foi esse o trabalho mais relevante de corrosão da visão de mundo que vi-gorara na Antiguidade.
Kant seguiu a tendência de Ockham, porém outros filósofos e escolas resolveram o problema das categorias de forma bastante diversa. É o caso dos filósofos da linguagem que rejeitaram a solução kantiana em prol da conclusão de que o discurso sobre as categorias e a Metafísica como um todo são irrelevantes. Porém, a solução mais atraente da questão, ao menos para mim, é a que foi sugerida por David Hume, à qual retornarei em outro texto.
A posição de Kant, porém, foi a que mais logrou reconhecimento geral como contraponto à Metafísica Clássica. Nunca é demais repetir que as categorias, para Kant, são modos pelos quais o entendimento constroi o real. Não sabemos como a realidade é em si. Só sabe-mos o que construímos a respeito dela. Assim, o conhecimento continua subordinado a regras e a ter validade, na medida em que se mantém em conformidade com elas. Verdade e erro também continuam a existir, assim como as regras de acordo com as quais os identificamos. No entanto, eles deixam de se referir ao real para se referirem ao próprio pensamento.
O problema é que, assim como as categorias de Aristóteles foram abaladas pela crítica filosófica, as de Kant também se envolveram em dificuldades. Na sua célebre História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell pronunciou o seguinte juízo sobre as categorias do espaço e do tempo kantianas: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os compri-mentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve ha-ver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingre-diente do sistema das causas não percebidas dos per-ceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XX, p. 267).
Aristóteles tinha incluído o espaço e o tempo entre as categorias do ser. Kant negou a existência deles. Para ele, o espaço e o tempo são formas ou condições da sensibilidade: exigências, portanto, da mente para organizar os dados sensoriais. Assim, o espaço e o tempo perderam toda objetividade. Porém, por meio da Física e da Matemática Moderna, sem negar a existência de representações espaciais com atributos próprios, Russell reafirmou a existência do espaço objetivo.
A “semelhança estrutural” entre o espaço e a sua representação mental, a que Russell alude, nada mais é que um retorno do espaço como entidade real e independente de nós. É uma refutação do espaço subjetivo de Kant. E, se quisermos extrair todas as consequências dela, é também uma ferida aberta no giro copernicano daquele filósofo.
Russell tece afirmação semelhante a respeito do tempo kantiano: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268). Portanto, de novo, encontramos a correlação. Daí Russell afirmar que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268).
Assim como há um espaço objetivo relacionado, regularmente, ao espaço mental, há uma sucessão objetiva relacionada à nossa percepção. Russell não se sente obrigado a negar o caráter subjetivo das representações do espaço e do tempo para afirmar a existência de algo semelhante a eles no mundo ao nosso redor. Ele não pensa que a representação do espaço ou do tempo tem de ser reprodução daquele algo. Mesmo assim, estabelece a “correlação”, a “semelhança estrutural” entre eles.
Russell refuta a concepção kantiana de espaço e de tempo com maior brevidade, mas maior precisão em outra obra: "Muitas vezes se diz que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal" (RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83).
A equivalência entre as estruturas do mundo objetivo e os fenômenos impede a subjetividade que Kant atribui ao conhecimento. A correspondência entre o conhecimento e o real não se dá em razão de acessórios, mas da estrutura, que é a mesma nos dois. Russell explica em que consiste essa equivalência estrutural: "Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisas que é obscuramente significada pela palavra estrutura" (idem).
Russell pretende que a equivalência estrutural entre o real e o conhecimento tem sentido matemático e assim deve ser compreendida. Assim ele refuta o subjetivismo de Kant por meio da Matemática. Sabemos que Russell e Whitehead mostraram que a Matemática é parte da Lógica, o que alargou o alcance dessa disciplina. Desse modo, quando ele próprio alude ao funda-mento matemático da correspondência entre o conhecimento e o real, ao objetivo é minar o fundamento lógico da filosofia de Kant.
Mas a que parte do espectro das ideias metafísicas somos conduzidos por essas considerações? Tentarei fornecer uma resposta a essa indagação adiante. Mas cumpre esclarecer, desde logo, que as ponderações de Russell nos aproximam do lugar filosófico ocupado por Hume, cuja crítica das categorias nos afasta da posição clássica e dogmática que vê nesses conceitos verdadeiros dados da realidade.
Antes de tratarmos da posição de Hume, consideremos mais detidamente o que Russell afirma sobre o tempo e o espaço. Pode parecer que a crítica dele não atinge todas as categorias aristotélicas e kantianas. Porém, Kant mostrou, com bons argumentos, que as suas categorias se deduzem do espaço e do tempo, o que nos faz entender que a crítica do tempo e do espaço repercute, necessariamente, nas categorias.
Mas, se assim é, a que conclusão havemos de chegar sobre o tema? As categorias são dados objetivos, conceitos da mente ou objetos que se referem a algo objetivo, sem deixar de constituir conceitos subjetivos? É muito difícil estabelecer uma conclusão. A maior parte dos filósofos contemporâneos se inclina a adotar a teoria de Kant; a maioria dos cientistas e mate-máticos prefere a posição de Russell, que podemos identificar com o realismo básico.
Tudo isso mostra que a dúvida sobre as categorias é a dúvida filosófica mais básica, na medida em que tem como consequência a incerteza não sobre uma ou outra concepção do real, mas sobre todas elas. Da questão das categorias dependem outras tão relevantes quanto ela: se o que sabemos do mundo depende de categorias, sobre as quais pendem dúvidas sérias, a imagem que temos do mundo é válida ou vivemos imersos na ilusão? O giro copernicano de Kant, seguido maciçamente nos últimos séculos, é um eco de tal pergunta.
Assim como há um espaço objetivo relacionado, regularmente, ao espaço mental, há uma sucessão objetiva relacionada à nossa percepção. Russell não se sente obrigado a negar o caráter subjetivo das representações do espaço e do tempo para afirmar a existência de algo semelhante a eles no mundo ao nosso redor. Ele não pensa que a representação do espaço ou do tempo tem de ser reprodução daquele algo. Mesmo assim, estabelece a “correlação”, a “semelhança estrutural” entre eles.
Russell refuta a concepção kantiana de espaço e de tempo com maior brevidade, mas maior precisão em outra obra: "Muitas vezes se diz que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal" (RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83).
A equivalência entre as estruturas do mundo objetivo e os fenômenos impede a subjetividade que Kant atribui ao conhecimento. A correspondência entre o conhecimento e o real não se dá em razão de acessórios, mas da estrutura, que é a mesma nos dois. Russell explica em que consiste essa equivalência estrutural: "Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisas que é obscuramente significada pela palavra estrutura" (idem).
Russell pretende que a equivalência estrutural entre o real e o conhecimento tem sentido matemático e assim deve ser compreendida. Assim ele refuta o subjetivismo de Kant por meio da Matemática. Sabemos que Russell e Whitehead mostraram que a Matemática é parte da Lógica, o que alargou o alcance dessa disciplina. Desse modo, quando ele próprio alude ao funda-mento matemático da correspondência entre o conhecimento e o real, ao objetivo é minar o fundamento lógico da filosofia de Kant.
Mas a que parte do espectro das ideias metafísicas somos conduzidos por essas considerações? Tentarei fornecer uma resposta a essa indagação adiante. Mas cumpre esclarecer, desde logo, que as ponderações de Russell nos aproximam do lugar filosófico ocupado por Hume, cuja crítica das categorias nos afasta da posição clássica e dogmática que vê nesses conceitos verdadeiros dados da realidade.
Antes de tratarmos da posição de Hume, consideremos mais detidamente o que Russell afirma sobre o tempo e o espaço. Pode parecer que a crítica dele não atinge todas as categorias aristotélicas e kantianas. Porém, Kant mostrou, com bons argumentos, que as suas categorias se deduzem do espaço e do tempo, o que nos faz entender que a crítica do tempo e do espaço repercute, necessariamente, nas categorias.
Mas, se assim é, a que conclusão havemos de chegar sobre o tema? As categorias são dados objetivos, conceitos da mente ou objetos que se referem a algo objetivo, sem deixar de constituir conceitos subjetivos? É muito difícil estabelecer uma conclusão. A maior parte dos filósofos contemporâneos se inclina a adotar a teoria de Kant; a maioria dos cientistas e mate-máticos prefere a posição de Russell, que podemos identificar com o realismo básico.
Tudo isso mostra que a dúvida sobre as categorias é a dúvida filosófica mais básica, na medida em que tem como consequência a incerteza não sobre uma ou outra concepção do real, mas sobre todas elas. Da questão das categorias dependem outras tão relevantes quanto ela: se o que sabemos do mundo depende de categorias, sobre as quais pendem dúvidas sérias, a imagem que temos do mundo é válida ou vivemos imersos na ilusão? O giro copernicano de Kant, seguido maciçamente nos últimos séculos, é um eco de tal pergunta.
A dúvida paira como uma sombra: a sombra do conhecimento. Que fizeram Aristóteles, Kant, Russell, ao pensar as categorias, a não ser deslocar a dúvida daqui para ali e de lá para cá? Que fizeram a não ser retirá-la da relação das categorias com o real e depositá-la nos conteúdos subjetivos do conhecimento, como Aristóteles? Ou sacá-la dali e a colocar na relação com o real, de acordo com Kant? Ou ainda distribuí-la entre esses dois lugares, em conformidade com Russell? Nesses casos e em todas as outras discussões acaloradas sobre todos os outros objetos, o conhecimento não se revela, afinal, um regime de dúvida? E, na medida em que fazemos a dúvida bailar daqui para lá e de lá para cá, não fazemos a fé transitar sempre em sentido contrário? Os lugares que esvaziamos de dúvida não enchemos de fé? E os que esvaziamos de fé não enchemos de dúvida? E a fé, assim como a dúvida, não tem uma função primordial no conhecimento? Enfim, não é justo perguntar se o conhecimento é ele próprio, dúvida ou fé? Ou se não é os três ao mesmo tempo?
Mas, se o conhecimento é também dúvida e fé, e o é de um modo tão essencial, por que não podemos compreender pela fé? Por que não nos é autorizado construir o conhecimento a partir da maior de todas as experiências de fé, pela qual nos relacionamos com o Deus que é amor? Podem-nos indagar o que nos autoriza a pensar o conhecimento em relação tão estreita com a fé. Respondo que a dúvida. E espero mostrar por que nos artigos seguintes.
A CONEXÃO OCULTA
É universalmente aceito que a Filosofia surgiu entre os gregos, no século VI a. C. Porém, ao longo do tempo, muitos pensadores a relançaram, ao proporem mudanças significativas no rumo das suas reflexões. Platão foi o mais bem-sucedido deles, do ponto de vista do tempo durante o qual a sua revolução filosófica exerceu influência.
Todavia, se considerarmos o número de séculos transcorridos de Platão até hoje, não será difícil concluir que o seu modo de ver o mundo esgotou-se, encontrou os próprios limites e foi superado por concepções concorrentes. Foi o que procurei demonstrar em O romance da Filosofia. O problema é que um filósofo tão influente quanto Platão, cujas ideias serviram de inspiração à maioria dos grandes pensadores durante 15 séculos, não pode ser destronado sem que a sua superação signifique outro modo de exercer influência.
Ralph Waldo Emerson declarou, certa vez, que “Platão é a Filosofia”. É possível concordar com ele, tanto do ponto de vista da aceitação das concepções de Platão como da superação delas. A aceitação produziu os 15 séculos, durante os quais o maior discípulo de Sócrates exerceu influência sobre o pensamento ocidental. A superação fez com que as concepções que se seguiram fossem, de certo modo, as de Platão invertidas. Assim, se insistirmos em olhar para a História sob o prisma da última palavra, a Filosofia terá de ser vista, indefectivelmente, como uma inversão de Platão.
Nesta série de artigos, tentarei mostrar que a inversão é difícil demais para que uma lista de dúvidas capitais não resulte de sua conturbada consecução. Dúvidas sobre a natureza do conhecimento, a estrutura do mundo físico, o nível divino da realidade, entre tantas outras. No entanto, pelo modo como a Filosofia foi historicamente construída, a dúvida que a crítica de Platão introduz em primeiro lugar é a que incide sobre as categorias.
Vimos que Aristóteles propôs a existência de 10 categorias do ser e Kant, de 12 do entendimento. Foram essas as mais importantes contribuições já ofertadas, sobre os conceitos fundamentais em que as visões de mundo das várias épocas se basearam. É preciso acrescentar, porém, que tanto as categorias aristotélicas quanto as kantianas foram seriamente contestadas. O enfraquecimento das posições realistas sobre os universais, cujo auge coincide com a obra de Ockham, infirmou a interpretação tradicional das categorias aristotélicas, que podem ser vistas como espécies de universais. Por outro lado, a crítica de David Hume à causalidade e a de Bertrand Russell ao espaço e ao tempo colocaram as categorias kantianas em sérias dificuldades.
Esse duplo desafio à doutrina das categorias não representa uma construção particular ou especializada. Tampouco é um gueto da Filosofia. Corresponde, ao contrário, ao próprio núcleo do pensar filosófico dos séculos. Se esse núcleo pode ser mesmo concebido como uma desconstrução de Platão, o problema das categorias deve constituir o território mais importante em que a obra em questão é levada a efeito.
Platão é a Filosofia, inclusive ao ser desconstruído. A desconstrução, porém, não é qualquer.Tem como núcleo a desintegração das categorias. Os universais não constituíram o problema maior da Filosofia Medieval pela multiplicidade dos ângulos em que foram discutidos, mas por um único aspecto deles: a existência no mundo real. Quando essa existência ameaçou ruir, o colapso das correntes platônicas que a tinham sustentado durante séculos tornou-se inevitável. Todo o leque de posições derivadas de Platão ruiu, mais depressa ou devagar.
A principal característica de um universal é ser utilizável como critério de agrupamento de indivíduos e coisas (GILSON, Éttiene. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 823). Já que as categorias cumprem essa função, não há como negar que elas constituam verdadeiros universais. Tomemos a quantidade e a qualidade como exemplos. Não é possível negar que dois, três e um milhão sejam expressões de quantidade e que duro, macio, áspero e liso constituam qualidades. Portanto, a quantidade e a qualidade são gêneros sob os quais reunimos diferentes elementos. Como tais, elas são autênticos universais.
O problema é que, se as categorias são universais, e estes não têm existência real, temos de concluir que nem o tempo, nem o espaço, nem a quantidade, a qualidade ou qualquer outra categoria é real. As categorias não existem, e isso tem graves implicações, pois, sem elas, não somos capazes de constituir um conhecimento minimamente ordenado do real ou sequer de nos comunicar.
O envolvimento das categorias na derrocada dos universais liga-se à própria gênese delas. Na obra que escreveu sobre o tema, Aristóteles explicou as categorias a partir dos conceitos fundantes da sua metafísica, a saber: a matéria e a forma. De fato, para ele, tudo o que existe é uma combinação de matéria e forma, como Étienne Gilson recordou, em feliz síntese: “O universo é composto de naturezas, isto é, de corpos materiais, cada um dos quais possui sua forma. O elemento que particulariza e individualiza essas naturezas é a matéria de cada uma delas; o elemento universal que elas contêm é, ao contrário, sua forma” (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 667).
Se a matéria é o que individualiza, e a forma é o universal, temos de concluir que, na filosofia aristotélica, o conceito com características universais resulta da assimilação da forma pelo intelecto. Em São Tomás, essa assimilação é complexa; em Ockham, muito mais simples. Porém, as diferenças entre esses filósofos e suas escolas não são decisivas para os propósitos deste curto texto, já que, para ambos, o universal é a forma interiorizada, a forma enquanto objeto de pensamento.
O problema do universal é, de fato, genético. Está presente na geração do conceito, em Aristóteles, que o concebeu como forma interiorizada. Se, em Aristóteles, a forma é constitutiva das coisas, segue-se que o universal, como forma transposta ao intelecto, é por definição uma ideia substantificada.
Esse defeito genético do universal não escapou ao olhar percuciente de Russell, que lembrou que Aristóteles criticara Platão por atribuir realidade às ideias, mas incidiu no mesmo erro dele: “A ideia de que as formas são substâncias que existem independentemente da matéria em que são exemplificadas parece expor Aristóteles aos seus próprios argumentos contra as ideias platônicas [...] ‘As formas tinham para ele [Aristóteles], como as ideias tinham para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais’” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 192-193).
A “existência metafísica própria" da forma é, em Aristóteles, o correspondente à existência metafísica da ideia, em Platão. Por isso, a negação da existência dos universais há de ser entendida tanto como negação da objetividade das ideias platônicas como das formas aristotélicas, o que confirma que os universais não equivalem a coisa alguma no mundo. Simplesmente, não são. É demasiado afirmar que eles são cópias, fieis ou modificadas, de partes do real. Por outro lado, como Russell também apontou na sua crítica do tempo e do espaço kantianos, afirmar que eles não têm relação alguma com o real é permanecer aquém da evidência. O universal está em alguma relação com o real, embora essa relação não seja de identidade ou reprodução.
Devo admitir que a conclusão a que chego por essa via conflita com o princípio da filosofia de Kant, para quem o conhecimento não tem qualquer relação definida com o real. Como esse princípio foi amplamente assimilado pelos filósofos contemporâneos, precisamos procurar fora da tradição kantiana e também da filosofia contaminada pelo seu subjetivismo o caminho para uma correta compreensão dos universais e das categorias em particular.
Hume é uma das alternativas mais sedutoras a Kant, pelo seu ceticismo geral e por ter desenvolvido uma crítica da causalidade que se tornou altamente reconhecida. Por muito tempo se pensou ter Hume negado a objetividade da relação causal. Porém, Galen Strawson e outros mostraram que essa jamais foi sua real posição. Hume nunca afirmou a inexistência da relação causal. O que ele negou foi a capacidade humana de conhecer a natureza íntima dessa relação. Se o efeito é determinado pela causa é-nos de fato desconhecido, embora o intelecto tenda a conceber as coisas dessa maneira. Sabemos, porém, que a causalidade é uma conjunção de duas coisas. Nisso consiste o nosso conhecimento dela.
Entre muitos outros textos, Strawson fundamenta o seu ponto de vista numa curta, mas clara declaração de Hume sobre a conjunção causal: “Não podemos penetrar a razão da conexão”. E a comenta em seguida: “Há certamente uma razão para a conexão regular, mas nós nada sabemos sobre a sua natureza intrínseca” (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012. p. 138). Cita ainda outra declaração, que dispensa comentários: “Em nenhum caso particular, a conexão [causal] subjacente aos objetos pode ser descoberta, seja pelos sentidos, seja pela razão. Não podemos penetrar na essência e na construção dos corpos, de modo a perceber o princípio de que depende a influência recíproca que se estabelece entre eles. Podemos familiarizar-nos apenas com a sua constante união” (idem. p. 146).
É possível clareza maior? “Hume acredita na causalidade (nunca lhe ocorre realmente duvidar dela), por adotar um realismo básico sobre os objetos, vale dizer, qualquer interpretação dos objetos segundo a qual a sua existência envolva algo mais que a nossa percepção” (idem. p. 137). “Algo mais que a nossa percepção” significa algo real. Hume é um realista básico, como Strawson o denomina, na medida em que admite a existência de algo situado além das nossas percepções, portanto de algo objetivo.
O que Hume acredita existir fora e além das percepções, sem dúvida, inclui a causa e o efeito. A conexão entre estes é algo real, embora não estejamos em condições de provar a precedência da causa ao efeito ou a determinação do último pela primeira. Essa é uma conclusão relevante, pois nos permite evitar o subjetivismo de Ockham e Kant e, ainda assim, permanecer numa sólida posição crítica, até mesmo cética, quanto à estrutura do real e suas relações com o intelecto.
Claro que o que concluímos sobre a causalidade (sua existência e regularidade) pode ser estendido, de maneira aproximada, às outras categorias, que também correspondem a algo existente e regular. Não conhecemos a natureza intrínseca de qualquer das categorias. Menos ainda podemos estabelecer a lista completa delas. Após a devastadora crítica das categorias de Aristóteles e Kant, seria pedante criar um rol determinado de conceitos para as substituir. Porém, se as categorias existem, deve ser possível, ao menos, citar exemplos e demonstrar em que sentido elas podem ser pensadas hoje.
Toda relação real é oculta. Por isso, a dúvida é a base de todo saber. O conhecimento é como um corpo, que parece cheio, mas está realmente cheio de vazio. O conhecimento está cheio de dúvida. Não é de espantar que chegue a se orientar e a se estruturar por ela. Só não admito que a dúvida exclua a fé. Como o vazio absoluto não existe, tampouco existe o não conhecimento. A dúvida é um conhecimento mais fraco que, como tal, encaminha a outro mais forte: a fé.
CATEGORIAS EFÊMERAS
Duas perguntas emergem da discussão das artigos anteriores: se as categorias não foram canceladas como absurdas, que se deve entender por elas? Que categorias permanecem em vigor? Não posso oferecer respostas categóricas a essas perguntas, mas posso refletir sobre as que parecem mais adequadas ao conhecimento atual.
Vimos que Aristóteles arrolou as categorias do ser, e Kant, as do conhecimento. As primeiras eram verdadeiras divisões do ser ou, pelo menos, modos pelos quais ele se revela. As categorias de Kant, por sua vez, nada tinham de objetivo. Não descreviam o real, nem os seus modos de ser. O problema é que a crítica das categorias aristotélicas e kantianas não nos permite mais adotar aqueles conceitos sem grave contradição com o conhecimento presente. Por isso, o sentido no qual ainda é possível falar de categorias não é mais o objetivo, de Aristóteles, nem o subjetivo, de Kant. É um sentido, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo.
Isso significa que toda categoria, como ainda é possível conceber essa ideia, tem um conteúdo objetivo e outro criado pelo intelecto. Exprime características do real e modulações introduzidas pela mente humana. As modulações, em geral, são mais relevantes do que a correspondência de qualquer categoria ao real. Mas isso não significa que o intelecto não trabalhe com categorias e que elas não guardem relação com o mundo.
A objetividade das categorias é menos uma relação com o ser do que com os sentidos. Ser é um conceito abstrato; os dados sensoriais são concretos. A esses dados é que as categorias correspondem, de modo variável, conforme se trate de uma ou de outra delas. Quero dizer que o grau de correspondência de uma sensação a certa categoria não precisa coincidir com o grau de correspondência a outra. Porém, deve sempre existir uma correspondência, uma relação objetiva entre as categorias e o real.
Em suma, se as categorias não podem ser mais concebidas como dados do ser ou do entendimento, temos de ancorá-las em outra parte. O melhor é as relacionarmos à experiência, já que, por essa palavra, entendemos algo condicionado, ao mesmo tempo, pelos sentidos e pelo intelecto. Essa vinculação permite entender as categorias como conceitos produzidos pelo real e pelo intelecto.
A experiência se desenvolve em momentos que se sucedem, de modo variável, na vida dos indivíduos. Num primeiro momento, o material das sensações acumula-se desordenadamente no intelecto, pois o sujeito ainda não é capaz de conceber as categorias. O segundo momento é o da gênese das categorias. Por fim, o terceiro é aquele no qual se dá o reforço e a reforma delas.
A gênese depende da formação do conceito de ser, a partir das sensações. Porém, enquanto o intelecto permanece capaz de formar esse conceito, sem extrair dele outros, não é possível ao sujeito conceber as categorias. Estas se formam a partir de quando o intelecto passa a converter o ser em dever. Não em dever moral, mas na mais suave e primígena noção de dever, a saber: a que conduz o intelecto a processar de modo regular sensações também regulares.
A regularização do processamento das sensações supõe a conversão das regularidades sensíveis em regras a serem observadas pelo intelecto. A partir desse momento, sempre que adquire consciência de sensações regulares, o intelecto processa-as também regularmente. Desse modo, um traço do ser (a regularidade das sensações) se transforma em dever.
As categorias são as normas primeiras em que o intelecto converte as regularidades que encontra nas sensações. Exemplos de categorias são a substância e o movimento. Delas decorrem outras, como a subjetividade (alma), a finalidade, a regularidade, o estado, a atração, a repulsão, a quantidade e a qualidade. Todas essas categorias são, ao mesmo tempo, objetivas e subjetivas. Não é possível dar a lista completa das categorias, pois a partir das que mencionei criamos outras e destas, ainda outras. Porém, é possível relacionar as categorias mais fundamentais do conhecimento de cada época.
A concepção das categorias a partir da regularidade empírica indica que esta constitui a base de toda a organização do intelecto. O princípio da concepção é o que chamamos verdade. Por mais que modifique as categorias, na terceira fase de desenvolvimento delas, o intelecto não abandona a noção de verdade consistente na transformação de sensações regulares em dever regular.
Por isso, a verdade, para o homem, não é tanto a objetividade (adequação ou correspondência) de um conhecimento ao real quanto é a regularidade dele: o fato de se manter constante e de repetir-se. O que se conhece sempre regularmente, eis a verdade para o homem. Claro que, entre as noções regulares que o intelecto forma, estão as de essência e existência, com base nas quais diferenciamos o que é objetivamente do que só existe de modo subjetivo. O que existe não é necessariamente o que se concebe ou se pode conceber. No entanto, nenhuma noção tem valor absoluto para o intelecto. Nem mesmo as de essência e existência. Só a regularidade enquanto princípio vale absolutamente. Só ela é igual à própria verdade.
A verdade não deve ser considerada uma categoria da experiência, mas do dever moral. Ela só surge quando a regularidade é valorada e recebe uma carga moral. Quando isso ocorre, certas ideias são assinaladas com o timbre da verdade e outras não. Porém, enquanto não ocorre, a regularidade permanece somente uma norma da atividade individual.
O surgimento da verdade implica o da dúvida. Aquela corresponde ao que é regular; a outra ao que o intelecto julga irregular. As flutuações do inconstante inspiram, antes de tudo, incerteza. Constituem por isso uma reserva de dúvida oposta à verdade, cuja regularidade envolve, ao contrário, a certeza. É provável que, dessas duas, a dúvida seja a mais fundamental, pois é mais conforme as variações do intelecto ainda involuído.
A terceira fase de desenvolvimento, caracterizada pelo reforço e reforma das categorias, é fortemente influenciada pelo conhecimento de cada época e, ainda mais, pela capacidade das pessoas de o absorverem. Por isso, em diferentes períodos históricos, listas diversas de categorias foram construídas. Pessoas diferentes também formularam concepções diversas das mesmas categorias.
Ao contrário do que ocorre na gênese, o reforço das categorias não se dá pela observância de regularidades, mas pela reciprocidade que se estabelece entre as considerações sobre o ser e o dever. Durante essa etapa, as categorias permanecem regulares, mas se tornam cada vez mais flexíveis, já que o seu reforço se dá numa nova direção: a da reciprocidade.
Por reciprocidade, devemos entender os vários modos pelos quais o intelecto passa de considerações sobre o ser a considerações de dever e vice-versa. A máxima aristotélica “nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” assinala um desses modos. O que está nos sentidos representa o ser, não o dever. O intelecto, por sua vez, está matizado de dever, de regras de intelecção, mais que do ser. Assim, a passagem dos conteúdos dos sentidos ao intelecto é um dos modos pelos quais o ser se converte em dever.
Por outro lado, o intelecto permanece caótico, enquanto regras de intelecção não passam a ordenar o material que advém dos sentidos. Portanto, há também uma moldagem do ser pelo dever. Quanto mais o intelecto se desenvolve, mais se intensifica a passagem de considerações de dever a considerações sobre o ser e vice-versa. Esse trânsito de sentido duplo (a reciprocidade) flexibiliza a utilização da regularidade como categoria da experiência. Como já afirmei, o hábito de desenvolver conteúdos de pensamento regulares a partir de sensações regulares nunca é abolido, pelo contrário se reforça, mas numa direção alterada pelo balé que o intelecto passa a realizar entre o ser e o dever.
Vemos por que o reforço das categorias, no terceiro período de desenvolvimento, ocorre simultaneamente à reforma delas. Enquanto se sedimentam e enraízam, as categorias mudam. A transformação é proporcional ao nível do conhecimento de cada época e, principalmente, à capacidade das pessoas de o absorverem. Claro que, por isso, o que um indivíduo entende por certa categoria, em determinado momento histórico, não equivale ao que outro entende por ela em outro momento.
Essa mutabilidade torna recomendável que a reflexão sobre as categorias leve sempre em conta o contexto de quem as utiliza. Um era o significado do tempo para Aristóteles; outro era o seu sentido para Einstein. Uma coisa era a cor para Tomás de Aquino; outro é o significado desse termo para um físico contemporâneo.
Porém, nada disso cancela o uso das categorias. Apesar de tudo o que lhes sucedeu, durante a História da Filosofia, esses conceitos básicos não foram abolidos. Como as visões de mundo do passado foram construídas com base neles, as de hoje ainda o são. No entanto, tornou-se claro que as visões de mundo são proporcionais não apenas ao conhecimento, mas também às categorias de cada época. Necessário é considerar, portanto, que a construção das visões de mundo depende do modo como cada época formula as suas categorias.
Contudo, o pensar humano não envolve só as categorias da experiência, mas também as do dever moral. Não me aprofundarei neste tema, mas deixarei assentado que, assim como as categorias da experiência dimanam da regularidade, as do dever assentam-se na verdade. Aristóteles já dividia as virtudes em intelectuais e morais em sentido estrito. A verdade é uma virtude intelectual. É até mesmo o modelo de todas as outras virtudes intelectuais e morais.
Tanto o dever moral como o individual são concebidos a partir do ser. Vimos que a verdade surge e se funda na regularidade, que depende de sensações regulares. Assim, o dever emana do ser. As outras virtudes, por sua vez, surgem por transformações sucessivas da verdade.
Por que a liberdade é uma categoria moral? Por que a igualdade o é? Basicamente porque o homem anseia por ser livre e por ser tratado como igual aos seus semelhantes. Do ser do homem, ou seja, da sua natureza, provém o seu dever-ser. Ou, se quisermos afirmar o mesmo em outras palavras, da verdade do ser do homem, da verdade da sua natureza, emana o seu dever-ser. Assim, a verdade permanece a primeira de todas as categorias morais.
Desde Hume se afirma que a derivação do dever a partir do ser envolve um vício lógico. Muitos chegaram a negar a possibilidade de toda e qualquer espécie de lei natural, a partir dessa verificação. Contudo, a derivação é um dado da realidade. Por outro lado, a Lógica é um feixe de regras, um dever-ser. Pode o feixe, o dever, cancelar um dado do ser?
Regras não podem ser invocadas contra fatos. A derivação do dever a partir do ser está situada no plano dos fatos. Cancelá-la com base em regras lógicas é uma demonstração do mais vão intelectualismo. Assemelha-se a revogar a gravidade por decreto presidencial.
A FÉ, A DÚVIDA E O CONHECIMENTO
Se por audácia entendermos o abandono de modos tradicionais de pensamento e de vida, teremos de concluir que, em nenhuma outra época, o ser humano foi mais audacioso do que hoje, pois nunca ousou enterrar, como nos nossos dias, o que as gerações anteriores consideraram mais venerável. E, entre os objetos que têm sido assim enterrados, o que mais se destaca, pela transcendental importância que teve para as gerações passadas, é a fé religiosa.
Trata-se, pois, de entender se os motivos do estranho descarte da fé são justificados. Para isso, é útil questionar o papel das fés no pensamento humano. Sabemos que até os conhecimentos dos quais estamos mais assegurados são, de algum modo, duvidosos. No diálogo Contra os acadêmicos, Santo Agostinho procura provar que há conhecimentos certos. Diz-nos, por exemplo, que as folhas do oleastro são amargas, ao que um de seus interlocutores objeta que elas apetecem às cabras. Agostinho responde não saber o que as folhas são para as cabras, mas ter certeza de que, para ele, são amargas. O amigo insiste: “Talvez haja algum homem para quem não são amargas”. E o santo responde: “Queres cansar-me? Por acaso eu disse que são amargas para todos? Disse que são amargas para mim, e não afirmo que isso é sempre assim. Não acontece que, por uma causa ou outra, a mesma coisa uma vez tem gosto doce, outra vez amargo?” (HIPONA, Agostinho de. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. p. 127).
Esse breve diálogo mostra como as certezas mais firmes, quando questionadas, adelgam-se até desaparecerem. O oleastro é amargo, isso é tido como coisa certa. Mas o é para os homens, não para as cabras, o que estreita um pouquinho o alcance da proposição. E é possível que não o seja para todos os homens. Não estamos certos de não existir alguém com parecer diferente sobre o gosto daquela planta. Assim, a afirmação se encolhe ainda mais. E, até para os que o consideram realmente amargo, o oleastro pode não parecer sempre assim, o que impõe ainda outra redução ao alcance inicial da proposição.
Notem que as dúvidas sobre a proposição aparentemente indesafiável “O oleastro é amargo” surgem, conforme a deslocamos para o plano perceptual de diferentes seres. Experiências de degustação variáveis levam ou podem levar a conclusões também variáveis sobre o sabor do oleastro. Poderíamos aprofundar o questionamento indagando o que é o paladar, como se forma, se nos revela realmente algo sobre o que entra em contato com a nossa boca ou se é enganoso. E, em caso de ser enganoso, qual é a extensão dos enganos a que nos pode levar. Poderíamos até questionar se os outros quatro sentidos também são enganosos e em que casos o são. Claro que essas questões mais amplas podem enfraquecer a conclusão de que o oleastro é amargo ainda mais do que experiências individuais de degustação. De modo que o ato de duvidar tem princípio, mas não parece ter fim.
Sobre praticamente todas as proposições podem ser suscitadas dúvidas. Não há certeza estabelecida que não possa ser enfraquecida por meio de dúvidas razoáveis, desde que haja alguém para procurá-las. Duvidar ou não duvidar é, pois, questão de decisão e de ocasião. Dúvidas sempre as há disponíveis. Podemos procurá-las ou não e cultivá-las ou não ao encontrá-las, conforme deliberarmos ou formos levados a fazer.
Por muito tempo, os filósofos consideraram a verdade uma relação entre o pensamento e o real. Quando as dúvidas sobre essa relação aumentaram, porém, a verdade passou a ser concebida como relação entre duas representações do real pelo pensamento. Esses são, até hoje, os modos comuns de conceber a verdade. Ambos a relacionam ao real. Seja ao real em si, seja ao real enquanto pensado por um sujeito. Mas, se o problema do conhecimento pode ser colocado do modo que venho de apresentar, a verdade deve ser concebida como uma tensão entre fé e dúvida ou entre fé e conhecimento duvidoso. Mais do que isso, se o real é essencialmente duvidoso, parece que o que chamamos verdade não surge sem a suspensão de certas dúvidas para diminuir a incompreensibilidade do que conhecemos.
Não estou a negar que o conhecimento seja sempre relativo a um objeto. Só acho que esse objeto é essencialmente duvidoso e que, para sermos capazes de moldar um conhecimento sobre ele, temos de suspender algumas dúvidas por meio da fé. É o que fazemos ao criar o nosso conhecimento. Por isso, além de ser relativo ao objeto, pode-se afirmar que o conhecimento também é relativo a um regime de fé e dúvida.
Nenhum desses regimes é absoluto, pois sempre é possível crer e duvidar de modos distintos do mesmo objeto. Ou, dito de outra maneira, sempre é possível suspender dúvidas diferentes das que nós ou alguém suspendemos ao definir um conhecimento. A única coisa não relativa, no conhecimento, é a coexistência da fé e da dúvida no seu ventre. É a infalível suspensão de certas dúvidas por meio de certas fés.
A só exceção a essa regra é o conhecimento do ser. Só ele é absoluto e não o é por ser absolutamente claro, mas, ao contrário, por ser obscuro. Concordo com Heidegger a esse respeito: “O conceito de ser é o mais obscuro [...] O conceito de ser é indefinível. Essa é a conclusão tirada de sua máxima universalidade” (Heiddegger, Martin. Ser e tempo. 15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. p. 29). Na verdade, o ser é tão obscuro que, ao contrário de todo outro objeto, não conhecemos sequer as dúvidas que são possíveis a respeito dele. Não vemos que dúvidas é cabível levantar sobre o ser. Sabemos que ele é real e que a tudo subjaz todo o tempo. Nada mais.
Assim concebido, o ser é intocável pela dúvida. É o único conceito que não se molda à noção de verdade que apresentei, o único que não resulta de uma tensão entre fé e dúvida. Por isso, temos de diferenciar a verdade relativa (a tensão entre fé e dúvida) da absoluta, que é unicamente a verdade a respeito do ser.
Não me parece absurdo assimilar o conceito de ser a Deus. Deus é, Deus é eterno, Deus é a verdade e Deus é obscuro. Por um lado, ele é a verdade absoluta, tão forte e patente que não a podemos negar. Por outro lado, é o Deus absconditus, o Deus que se esconde. Isaías não exclamou com razão “Em verdade, tu és um Deus que se esconde!” (Is 45:15)? E o ser, não é também tudo isso?
Claro que a Bíblia e a experiência nos apresentam Deus como uma pessoa. Mas isso não é inteiramente compatível com a identificação entre Deus e o ser? O Deus pessoal não é proclamado, de modo misterioso mas efetivo, por cada ente no espetáculo da natureza? Se alguma evolução há, no Universo, não consiste em passar de formas impessoais a formas pessoais? E de formas menos pessoais às mais pessoais? Os seres vivos não se aproximam progressivamente da personalidade, conforme se tornam mais complexos? Se não têm personalidade individual, os animais são dotados, ao menos, de personalidade genérica. Todos pensam e sentem do modo característico da raça ou da espécie a que pertencem. Esse pensar e esse sentir constituem uma aproximação da personalidade ligada ao gênero. Daí a designação personalidade genérica. Será o caso de só o ser supremo, vértice do Universo, não ser pessoal?
Não quero, porém, me ocupar tanto, aqui, da verdade absoluta, da verdade do ser, embora me pareça que existe. Quero deter-me, antes, na relativa, que é a que mais nos diz respeito, pois vivemos imersos nela. Ao pensar a verdade relativa como uma tensão entre fé e dúvida, não estou a sugerir que ela seja extremamente variável. A verdade é, sim, variável, por estar sempre sujeita a dúvidas. Mas não é demasiado variável. Pelo contrário, é próprio da verdade ter certa estabilidade e se sujeitar a um número de regras.
Esses lineamentos sobre o papel da fé e da dúvida no conhecimento não reproduzem, nem se confundem com o que Descartes escreveu sobre o tema. Primeiramente, porque a dúvida cartesiana constitui um momento do conhecimento, ao qual se segue o momento mais importante da certeza. A dúvida momentânea serve para eliminar "os juízos afoitos que obstam que alcancemos agora o conhecimento da verdade, e, de tal modo nos fazem confiantes, que não existe sinal aparente de não podermos nos livrar deles se não tomarmos a iniciativa de duvidar, uma vez durante a existência, de tudo aquilo em que notarmos a menor suspeita de incerteza" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 69). Pela dúvida cartesiana, eliminam-se falsos conhecimentos, preconceitos e inverdades, não para que a própria dúvida permaneça no lugar deles, mas para que possamos alcançar o conhecimento do que Descartes chama verdades claras e distintas. O fim do conhecimento são essas verdades, das quais o filósofo acusa os "espíritos apressados" de se afastarem não por eliminarem a dúvida, mas por "introduzirem a dúvida e a incerteza em meu modo de filosofar" (idem. p. 67). Essas declarações bastam para demonstram que a dúvida de Descartes é transitória e distinta da que se mantém em permanente oposição à fé.
Corretamente compreendida, portanto, a verdade é uma tensão entre a fé e a dúvida persistente e não cartesiana. É preciso acrescentar, entretanto, que a tensão a que me refiro é regular. Se não o for, ela não será capaz de constituir o que costumamos chamar verdade. Será antes um devaneio, fruto da imaginação, ideia arbitrária, nunca verdade.
A regularidade da verdade decorre das regras a que se sujeita. Pensamento não é anomia. Pensamos de acordo com regras. Nem mesmo nos sonhos, nas alucinações e em outros estados semelhantes, as regras do pensamento são abolidas. Elas podem ser relaxadas e flexibilizadas, não suprimidas.
Corretamente compreendida, portanto, a verdade é uma tensão entre a fé e a dúvida persistente e não cartesiana. É preciso acrescentar, entretanto, que a tensão a que me refiro é regular. Se não o for, ela não será capaz de constituir o que costumamos chamar verdade. Será antes um devaneio, fruto da imaginação, ideia arbitrária, nunca verdade.
A regularidade da verdade decorre das regras a que se sujeita. Pensamento não é anomia. Pensamos de acordo com regras. Nem mesmo nos sonhos, nas alucinações e em outros estados semelhantes, as regras do pensamento são abolidas. Elas podem ser relaxadas e flexibilizadas, não suprimidas.
Por que pensamos que o sol está no céu? Não é absolutamente porque dúvidas razoáveis não possam ser formuladas a esse respeito. Consideramos que o sol está no céu, porque o vemos regularmente lá. A verdade do sol deve tanto a essa regularidade! E por que sabemos que, entre dois pontos situados no mesmo plano, pode ser traçada uma e somente uma reta? Porque isso já nos pareceu óbvio uma centena de vezes. É claro que um matemático habilidoso pode desafiar não só essa afirmativa como várias outras da Geometria euclidiana, mas não a pode desarraigar ou eliminar a sua constância.
Não consideramos que proposições como a da reta situada entre dois pontos são verdadeiras por não serem duvidosas, mas por se porem de modo regular no intelecto. Claro que não me refiro a qualquer regularidade. Não me refiro, por exemplo, à regularidade por simples repetição. Uma ideia falsa, repetida mil vezes, não se torna verdade, a não ser para os incautos. Refiro-me à regularidade que decorre da subordinação às regras ou leis do conhecimento. Sabemos que o sol está no céu, porque o vemos de maneira consistente com as leis da observação. Sabemos que entre dois pontos há uma reta, porque distinguimos a ideia de ponto da de reta e o primeiro do segundo ponto, de acordo com as regras do pensamento lógico.
A regularidade do conhecimento está mais associada à fé do que a dúvida. O pensamento percorre, com maior frequência, os caminhos que a dúvida não obstrui. E por que ela não os obstrui? Porque é impedida pela fé. A dúvida é tão persistente, na mente humana, que, se não a suspendêssemos aqui e ali, por meio da fé, não seríamos capazes de construir conhecimento algum. Teríamos apenas dúvidas. Portanto, ao suspender certas dúvidas, a fé cria a possibilidade de o pensamento se desenvolver sem impedimentos, em obediência às regras que o presidem.
Esse hábito de suspender certas dúvidas e de manter outras foi extensamente adotado, ao longo da História. Por causa dele, a dúvida foi deslocada infinitas vezes de um lugar para outro, por diferentes escolas de pensamento. Em grande medida, foi isso o que definiu a arquitetura espiritual das próprias escolas. Observamos o pungente realismo (gnoseológico) dos antigos e os consideramos ingênuos. Porém, o realismo antigo era muito mais resultado da suspensão de certas dúvidas sobre a relação entre o conhecimento e o real do que sinal de ingenuidade. Em todas as épocas, representantes de diferentes escolas suspenderam certas dúvidas e mantiveram outras. Os antigos não foram exceção.
E que fez Kant ao propor tão grande giro da Filosofia quanto o que a pôs a gravitar ao redor do conhecimento e não mais do ser? Não deslocou ele as dúvidas dos filósofos para o ser? Não negou conhecermos o que o ser é em si e não fortaleceu, ao contrário, o conhecimento, ao enunciar as formas da sensibilidade, as categorias do entendimento e as espécies de juízos? Pelo exemplo dos antigos e dos modernos, vemos que conhecer é administrar dúvidas e que é possível administrá-las de modos muito diferentes. Claro que um modo de administração não vale mais do que outro, embora o conhecimento realize progressos.
Por isso, na dança da dúvida, a verdade não vale porque a fé está depositada aqui e não ali ou por certas dúvidas terem sido suspensas em lugar de outras. Ela vale pela regularidade que o pensamento é capaz de adquirir em obediência a suas regras. Nossa imagem do mundo decorre dessa regularidade.
Nos artigos seguintes, tentarei mostrar como funcionam as regras que garantem regularidade ao conhecimento. Apesar da força dos erros, o funcionamento dessas regras beira o prodigioso. Não o podemos admirar suficientemente. Enquanto os astros giram no céu sobre nós, de acordo com a lei fixa da gravidade, para usar a expressão de Darwin, formas de encanto e beleza insuperáveis brotam em nós, conforme o pensamento, em obediência a regimes diversos de fé e dúvida, abre seus sulcos e neles arroja suas mais escolhidas sementes.
VERDADE ABSOLUTA, VERDADE RELATIVA
Ao ouvir Jesus declarar que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, Pôncio Pilatos imediatamente lhe perguntou o que é a verdade. Sua questão assinala o encontro histórico da cultura romana com a fé judaico-cristã, após o primeiro olhar frontal trocado pelos seus líderes. Encontro tão predestinado que haveria de mudar a História. E o mais curioso a respeito dele é que foi, ao mesmo tempo e em toda sua densidade, um encontro de duas verdades: a verdade absoluta, da qual Jesus veio dar testemunho, e a relativa, a que Pilatos se referiu por só a conhecer.
“Jesus respondeu [a Pilatos]: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” [...] Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?” (Jo 18:37-38). O representante da verdade relativa referiu-se à absoluta como se fora um poder mundano. É o que está implícito na declaração: "Tu dizes que eu sou rei". Mas a testemunha da outra verdade deslocou a questão do poder para a realidade suprema e sem limitação: a verdade absoluta. Por isso, afirmou: “Eu vim ao mundo a fim de dar testemunho da verdade”.
Como Pilatos, somos condicionados a acreditar que só a verdade relativa existe e tem no poder o seu clímax. Por isso, o testemunho da verdade absoluta se faz necessário. Essa verdade, como Jesus a apresenta, é antes de tudo ele mesmo, pois disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14:6). Mas a chocante declaração não impede que a verdade seja, ao mesmo tempo, algo mais abstrato do que uma pessoa. Não impede que seja aquilo que chamamos ser.
O ser é real e eterno. Por isso é absolutamente verdadeiro. Quem o negará? Mas, ao mesmo tempo (e nisso consiste um grande mistério), ele permeia tudo o que existe, inclusive o fugaz e o relativo. Tudo o que é participa do ser. Existe de algum modo nele. Nesse sentido, o ser é a verdade absoluta.
Mas a que, mais precisamente, nos referimos quando dizemos ser? É possível apresentar esse conceito melhor do que quando, simplesmente, nos referimos a ele? Penso que sim, porém não muito, já que o ser é essencialmente misterioso. Pode-se, por exemplo, representá-lo como a essência de alguma coisa. De quê? Não de algo muito particular, pois o ser encontra-se em tudo. Talvez o possamos representar como a essência do Todo.
A união do ser com a matéria dá origem ao que chamamos ente. Quando isso acontece, o ser passa a incluir ao menos duas variedades: o ser originário e o derivado (os entes). Só o ser originário é eterno. O derivado é temporal. Na linguagem judaico-cristã, afirmamos que ele foi criado. Dessa maneira, o real é composto do ser e dos seres ou entes.
A efemeridade dos entes, sua existência limitada no tempo, exige a admissão de um elemento diferente do ser, com o qual ele se combina para formar o real. Por diferenciar-se do ser, somos tentados a chamar esse elemento não-ser, mas essa designação pode induzir confusão com o nada. O que se liga ao ser para formar os entes não pode ser um nada. Tem de ser alguma coisa. Não poucos filósofos cristãos o associaram à matéria, que é uma espécie de ser derivado. Essa matéria derivada do ser originário une-se a ele para formar os entes também derivados. Assim, o ser derivado se forma ao longo de várias gerações, vale dizer, do tempo.
A união do ser com a matéria para formar os entes é metafísica. Não foi e provavelmente nunca será comprovada por meios empíricos. Mesmo assim, é filosoficamente útil, fecunda e, talvez, necessária. Não temos como pensar a mudança, o devir, sem admitirmos algo que permanece e não temos como pensar o que permanece sem admitirmos a eternidade, portanto o ser.
Na filosofia de Aristóteles, o ser é considerado análogo, ou seja, dotado de variações. No platonismo, suas variações se reduzem à unidade. Mas, apesar dessas distinções, durante séculos, o platonismo e o aristotelismo reconheceram um só ser. Se a Filosofia fosse religião, seria heresia pensar de modo distinto dessas escolas, já que elas inspiraram boa parte do pensamento filosófico. Mas me pergunto hereticamente se, em vez de um só ser, não devemos admitir um originário e outro derivado, já que chamamos ser tanto o efêmero quanto o eterno. Vemos o efêmero, não vemos o eterno, mas somos forçados a admiti-lo para justificar a permanência no interior do devir universal. E, se isso for mesmo possível, deveremos doravante nos referir a dois seres, a duas realidades dotadas do mais alto grau de universalidade.
Mas, da admissão de um ser eterno ao lado do temporal, decorre a afirmação da verdade absoluta. O ser eterno é absolutamente verdadeiro, pois não somos capazes de duvidar dele. A imunidade à dúvida decorre da obscuridade do ser eterno, mas é uma verdade mais forte que a do nosso próprio eu. Penso, logo existo é uma máxima evidente, mas que se situa no plano da verdade relativa. O eu não é o mesmo que o ser. Podemos imaginá-lo falso e inexistente, sem arranhar a sensação, forte e evidente, que temos da sua existência. Portanto, o eu é uma verdade relativa. Mas diferente é a verdade absoluta do ser, que não pode ser negada sequer pela imaginação.
Os filósofos modernos tendem a colocar a verdade do eu acima de todas as outras, pois conhecemos as outras verdades, ao passo que o eu não só conhecemos como o experimentamos. Somos o nosso próprio eu. Daí a evidência dele ser considerada superior. Mas me pergunto se o é realmente. Se a dúvida persegue o pensamento, o pensamento de si é também duvidoso. No Cogito cartesiano, a palavra logo indica uma consequência: penso, logo (consequentemente) existo. Porém, o caráter consequente do pensamento não é algo demonstrado. Penso, sim, existo, sim, mas não tenho certeza de que existo porque penso.
O Cogito é modernamente interpretado como “Penso, logo tenho certeza de que existo”. No entanto, seria melhor entendê-lo como uma afirmação de fé: “Penso, logo creio que existo”. Isso porque não temos certeza de que o pensamento seja consequente. Temos certeza de que pensamos, não de que pensamos consequentemente. Acreditamos que pensamos consequentemente, o que é diferente. Na verdade, suspendemos as dúvidas sobre o caráter consequente do pensamento por meio da fé.
Nos Solilóquios, Agostinho dialoga com a sua Razão. Esta lhe pergunta: “Sabes que existes?” Ele responde: “Sei.” Até aqui, tudo caminha como no Cogito de Descartes. Mas a Razão continua o seu interrogatório: “De onde o sabes?” E ele: “Não sei” (HIPONA, Agostinho de. Solilóquios. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2010. p. 55). A pergunta “De onde o sabes?” quer dizer “Como o provas?”. E é importante notar que o Santo não responde “Porque penso consequentemente”. Diz simplesmente “Não sei.”
De novo, a Razão indaga a Agostinho: “Sabes que te pensas?” Ele responde: “Sei.” “Portanto, é verdade que pensas?” E ele: “É” (Op. cit. loc. cit.). Vemos que o antecedente e o consequente de Descartes (o pensar e o existir) foram admitidos também por Agostinho, porém não o “logo”, não o liame entre os dois. Agostinho não pensava nos termos do Cogito, pois não reconhecia liame algum entre o pensar e o existir. Admitiu pensar, admitiu existir, mas não admitiu existir por pensar ou pensar por existir. Isso porque o liame entre ambos não lhe pareceu evidente como para os filósofos modernos.
A dúvida pode roer o Cogito cartesiano tão perfeitamente quanto outras assertivas filosóficas. A tomada de posição do Cogito só se tornou tão aceite, porque o deslocamento da dúvida que lhe subjaz, da subjetividade para o mundo exterior, em determinado momento histórico, tornou-se um verdadeiro hábito filosófico. Descartes escreve: “Duvidamos, primeiramente, se, de tudo aquilo que veio ter à alçada de nossos sentidos, ou que em algum tempo nós imaginamos, pode existir alguma coisa, realmente, no mundo. Duvidamos delas, por termos conhecido, pela experiência, que os sentidos muitas vezes nos iludiram” (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/ Levoir, 2010. p. 70).
Mas o próprio Descartes continua” “Duvidamos, igualmente, de todas as demais coisas que antes nos tinham parecido muito exatas, mesmo as demonstrações de Matemática e seus princípios, ainda que estes sejam muito evidentes, pois existem homens que se enganaram meditando a respeito dessas matérias” (idem). Está bem: o que conhecemos pelos sentidos sujeita-se à dúvida, pois os sentidos podem iludir-nos. Conhecemo-nos de maneira direta, sem mediação dos sentidos. Por isso, Descartes conclui que a nossa existência não se sujeita à dúvida. Mas, se os princípios da Matemática são duvidosos, embora a sua verdade não dependa dos sentidos, por que a verdade do eu não o é da mesma forma?
Agostinho foi mais consistente do que Descartes ao estender a dúvida ao Cogito. Penso que sou, mas não sei de onde penso que sou. Portanto, meu pensar é duvidoso. O Cogito cartesiano só pareceu tão certo, durante tempo tão longo, porque a Filosofia e o conhecimento como um todo adotaram um regime de fé e dúvida que justificaram amplamente essas convicções. Mas todo regime de fé e dúvida é relativo e pode ser questionado.
Mas o próprio Descartes continua” “Duvidamos, igualmente, de todas as demais coisas que antes nos tinham parecido muito exatas, mesmo as demonstrações de Matemática e seus princípios, ainda que estes sejam muito evidentes, pois existem homens que se enganaram meditando a respeito dessas matérias” (idem). Está bem: o que conhecemos pelos sentidos sujeita-se à dúvida, pois os sentidos podem iludir-nos. Conhecemo-nos de maneira direta, sem mediação dos sentidos. Por isso, Descartes conclui que a nossa existência não se sujeita à dúvida. Mas, se os princípios da Matemática são duvidosos, embora a sua verdade não dependa dos sentidos, por que a verdade do eu não o é da mesma forma?
Agostinho foi mais consistente do que Descartes ao estender a dúvida ao Cogito. Penso que sou, mas não sei de onde penso que sou. Portanto, meu pensar é duvidoso. O Cogito cartesiano só pareceu tão certo, durante tempo tão longo, porque a Filosofia e o conhecimento como um todo adotaram um regime de fé e dúvida que justificaram amplamente essas convicções. Mas todo regime de fé e dúvida é relativo e pode ser questionado.
A verdade a respeito do eu é fortíssima, mas relativa. Somente a verdade do ser é absoluta. Por isso, o ser é a base fundamental do conhecimento, a despeito da sua obscuridade. Infelizmente, essa base tem sido desprezada. Se a admitirmos, teremos um sólido ponto de partida para pensarmos não só o efêmero e temporal, mas também o divino. Poderemos considerar Deus não só uma pessoa, mas também o próprio ser. Poderemos reconhecer-lhe essas duas dimensões, esse duplo aspecto. Enquanto pessoa, ele se revelou, encarnou-se e viveu na Terra, como a fé cristã ensina. Como o ser, ele sustenta todas as coisas. Tanto o ser como a pessoa de Deus são invisíveis e intangíveis. Em uma palavra, eles são espirituais.
Coisas há, entre o céu e a Terra, que não podem ser explicadas pelo caráter pessoal de Deus, mas o podem pelos atributos do ser. Talvez seja esse o caso da evolução das espécies. Deus (como pessoa) criou todas as coisas, porém elas evoluem pelo impulso comunicado por Deus como o ser.
Digo-o como quem meramente especula? Não exatamente. O ser é uma exigência do pensamento. E, se o é, ele deve ter um papel fundamental. O ser não deve permanecer inerme ou indiferente ao curso dos acontecimentos. Deve ter um papel na evolução e na História. Um papel que ajuda a explicar a providência divina.
A História que Pilatos pensava fazer em parte e, em parte, ser feita pelos deuses Jesus colocava nas mãos daquele que faz nascer o seu sol sobre bons e maus e virem as chuvas sobre justos e injustos (Mt 5:45). Se entendermos a providência divina exemplificada pelo nascer do sol e o cair da chuva, de maneira metafórica, concluiremos que não decorre dos homens ou dos deuses, como Pilatos pensava, nem precisa ser sempre o ato de uma pessoa. Pode, mais simplesmente, constituir o governo silencioso do mundo por Deus. O silêncio pode ser, em suma, algo tão fundamental quanto a palavra, quanto a revelação de Deus. Só o amor com que Deus beneficia a todos desce tão certamente quanto os raios do sol e a água da chuva. Só ele é tão infalível quanto essas manifestações naturais. Tudo o mais e o método pelo qual a providência se exerce permanecem encerrados no denso mistério da alegoria.
CONHECIMENTO DIALÉTICO
A philosophia perennis relaciona-se intimamente com a mística, portanto também com a fé. Ao mesmo tempo, não é uma religião, mas um saber, o que a põe em coordenação com a razão. E essa dupla relação da filosofia faz ver que ela pressupõe não só a compatibilidade da razão com a fé, mas a aliança entre elas. Encontro o ponto de partida de tal aliança na concepção de que o conhecimento está associado à fé e à dúvida.
Essa concepção é dialética, pois se baseia na tensão, mais do que na ausência de contradição, entre os três elementos fundamentais. O conhecimento nutre-se o tempo todo da dúvida, que se mantém em tensão e equilíbrio com a fé. No entanto, a História da Filosofia mostra, paradoxalmente, que o conhecimento desenvolveu-se com parca consciência da dialética à base dele. As ciências antigas e contemporâneas sempre buscaram obsessivamente a exatidão e a certeza. Por isso, sempre se construíram sobre o que, em cada época, pareceu realizar o ideal de um conhecimento certo.
A Filosofia, por sua vez, desenvolveu-se como reflexão paralela às ciências. Na Antiguidade e na Idade Média, o Trivium e o Quadrivium desempenharam o papel de ciências oficiais. A Filosofia não estava incluída neles. Não era uma arte ou ciência particular, como a Gramática, a Lógica, a Retórica, a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia. Como ciência de todas as ciências, a Filosofia se dedicava a refletir sobre os fundamentos dos outros saberes.
Não foi diferente, a partir de quando o rol de ciências do Trivium e do Quadrivium começou a ser desafiado e modificado. O coroamento desse processo se deu com o aparecimento da Física e dos outros saberes modernos sobre a natureza. Mesmo então, a Filosofia continuou a exercer seu papel de reflexão sobre os fundamentos das ciências, com a única diferença de que por ciências já não se entendia mais o Trivium e o Quadrivium, mas as modernas ciências naturais e, mais tarde, também as sociais.
Assim, as etapas de desenvolvimento da Filosofia coincidem, aproximadamente, com as das antigas e modernas ciências. Como a História das Ciências divide-se no longo período do Trivium e do Quadrivium e no reinado das ciências naturais e sociais, a Filosofia se desenvolveu numa etapa centrada na descrição do ser e numa outra voltada à descrição do saber. Entre as épocas da História das Ciências, situa-se a revolução que conduziu ao aparecimento das ciências naturais. Entre as da História da Filosofia, encontra-se o giro copernicano de Kant.
As categorias do ser de Aristóteles constituíram o aparato conceitual da Filosofia e das outras ciências, durante a primeira etapa. As categorias kantianas desempenharam o mesmo papel, no segundo período. Contudo, uma diferença distingue os dois períodos, no tocante às categorias. Na Antiguidade e na Idade Média, reinou substancial concordância entre a Filosofia e as ciências a respeito delas. Tanto a primeira como as últimas aceitavam o mesmo rol de categorias e as entendiam aproximadamente da mesma maneira. Hoje, as categorias de Kant são adotadas apenas nominalmente, nas ciências da natureza, pois os cientistas referem-se a elas, mas não lhes atribuem o sentido subjetivo que Kant lhes emprestou.
Esse dissenso entre a Filosofia e a ciência, no tocante às categorias, tem passado despercebido, mas pode ser interpretado como uma falha geológica, no território do conhecimento moderno, pois decorre de uma crise do conhecimento baseado na certeza das categorias. A crise representa uma rara oportunidade para o conhecimento não categorial e mais consciente do papel da dúvida. Não uma oportunidade para a introdução do ceticismo, já que a dúvida a que me refiro tem por função estimular a investigação, reduzir o espaço do desconhecido e colocar-se em equilíbrio com a fé, não generalizar a incerteza. Nesse sentido, a dúvida é a porta de entrada da fé no conhecimento.
Lição crucial do conhecimento dialético é, pois, a admissão da fé não apenas no campo da religião, mas também no do conhecimento. Isso se aplica com especial propriedade à fé considerada mais nobre: a que se dirige a Deus e ao divino. Se a questão sobre a sua origem e destino é a mais difícil para o homem, as dúvidas que ela suscita apresentam-se como as mais indissolúveis. E, se a fé é uma resposta à incerteza, não é de estranhar que às dúvidas mais persistentes correspondam respostas de fé mais elevadas. Não é de estranhar que, ao caminhar na senda das dúvidas, o espírito erga-se ao cume da cordilheira da fé, ou seja, à fé em Deus.
Procuramos, porém, a base mais sólida dentre todas as que o conhecimento pode propiciar, para verificarmos se a fé, porventura, pode assentar-se nela. Encontramos tal base no ser, cujos atributos coincidem com os de Deus. O ser é real, eterno, obscuro e absolutamente verdadeiro. Além disso, ele tem dois aspectos, pois a existência do efêmero exige a de um ser quase tão universal quanto aquele, porém não eterno. Esse outro ser, que chamei derivado, procede do primeiro. Foi posto, criado, por ele. Portanto, o ser originário é, também, Criador.
A ideia de criação é, assim, consequência do ser. Se o mundo e suas mudanças existem, temos de admitir um ser derivado ao lado do eterno, de tal modo que a derivação de um a partir do outro seja entendida como criação. Assim, a criação surge como consequência de duas premissas: a verdade absoluta do ser e a verdade relativa do mundo.
Essa verdade mista decorrente, ao mesmo tempo, do ser e do mundo não é dotada de pouca força, já que a união de uma verdade infinitamente forte com outra também fortíssima, mas não absoluta, produz uma verdade infinitamente forte. Poderíamos compará-la a uma área infinita numa das suas dimensões e extremamente longa na outra. Tal área não é só imensa, mas verdadeiramente infinita, pois a multiplicação de um infinito por um finito resulta num número infinito. Por isso, afirmamos que a força da verdade da criação é infinita.
Como a verdade do ser, a da criação é mais robusta que a do eu de Descartes. No artigo anterior, mostrei que o eu pensa e existe, embora nenhuma dessas ideias decorra da outra. Com a mesma prontidão, admito que o mundo fora do eu é real, não porque não possamos duvidar dele, mas porque a dúvida a respeito do mundo é quimérica. No entanto, a verdade da criação é superior à do eu e à do mundo, pois estes resultam apenas da experiência (interior e exterior) do sujeito, ao passo que a criação decorre também de uma ideia absolutamente certa: a ideia do ser.
A verdade da criação do ser derivado é absoluta, porque decorrente do próprio ser. Sua força excede a das verdades do eu e do mundo. Quando falamos da criação do Universo por Deus, tratamos de algo absolutamente certo. Os detalhes da criação (o modo como ocorreu, sua duração, os efeitos que produziu etc.) estão sujeitos a dúvida, pois constituem verdades relativas. Porém, a ideia de criação, como a do ser, é uma verdade absoluta e absolutamente certa.
Claro que essa conclusão pode estar errada, não porque algum erro transpareça nela, mas porque seu autor é humano. Mas, até o equívoco ser demonstrado, precisamos considerá-la firme, pois a força infinita dela combinada com a pequena força do elemento humano resulta, igualmente,infinita. Considerarei, pois, a criação a melhor de todas as bases sobre as quais é possível desenvolver o conhecimento do transcendente e a tomarei como ponto de partida da filosofia perene, na presente série de artigos. Filosofia essa que é sempre mais busca do que ensino, pergunta do que afirmação, começo do que conclusão.
O conhecimento da criação é diferente de outros, pois está ligado de modo direto ao ser. Por isso, quando o saber categorial revela-se duvidoso, como ocorreu após o descompasso entre as ciências e a doutrina kantiana das categorias, torna-se necessário buscar não outro rol de categorias, como fez o próprio Kant ao reconhecer a insuficiência das aristotélicas, mas um conhecimento não categorial, um conhecimento baseado na dúvida e que tenha dela uma consciência muito maior. Esse conhecimento pode ser denominado dialético e implica forte afirmação da fé.
De fato, ao reconhecer o papel da dúvida, o conhecimento dialético não conduz, nem convida ao ceticismo e sim à fé. Na instância da dúvida fundamental, ele conduz até mesmo a Deus. E se o ser é a única verdade absoluta, a fé produzida dialeticamente enraíza-se antes de tudo nele e no seu corolário que é a criação.
O conhecimento dialético é um conhecimento do ser e da criação. Nessas duas noções se fundam suas verdades e suas fés. E, como o ser é uma ideia obscura, enquanto a criação não o é, o conhecimento dialético tende a fundar-se ainda mais na criação que no próprio ser. Ele é um inquérito sobre a criação, não uma construção de dogmas, posto que o dogma não é dialético.
Vejo o conhecimento dessa maneira. Talvez por isso, tenha dedicado parte tão fundamental de meus esforços para interpretar a criação. Meu livro A hipótese de Darwin trata desse tema. Gênesis também. O inquérito dos macacos e Evidências da criação igualmente. Em todos esses textos, desenvolvo o meu longo perguntar a respeito da criação. E o mais importante é que, ao fazê-lo, sinto trabalhar o tempo todo não num conhecimento antigo e tradicional, mas na consolidação do alicerce de um novo conhecimento.
O fato de se tratar do alicerce justifica a atenção que dispenso à criação. Ela é tão longamente investigada por ser o alicerce do conhecimento humano. O intelecto tende a recorrer a um ser todo-poderoso para responder suas dúvidas mais portentosas. E, se o faz, ele tende a reconhecer, ao mesmo tempo, a sua incapacidade de conhecer o que esse ser é em si. Tende, portanto, a se concentrar não no conhecimento direto de Deus, mas das suas obras.
No início da década de 1990, a importância da criação para o conhecimento estava consolidada para mim. Ao publicar Filosofia do direito positivo, adotei a atitude defendida por Teilhard de Chardin em O fenômeno humano, segundo a qual "a ciência deve, sim, restringir-se a estudar o que Kant chama fenômenos, mas ela deve estudar integralmente esses fenômenos" (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 20). O fenômeno, sim, mas todo o fenômeno: com esse lema, resumi a perspectiva do livro então publicado, que se baseava "no Dentro e no Fora das coisas", como Chardin os denominava (CHARDIN, Teilhard. O fenômeno humano. 9ª ed., São Paulo: Cultrix, 2009. p. 20). Todo fenômeno tem um lado de Dentro e um lado de Fora. Descrevê-lo é descrever suas duas faces. Por isso enfatizei tanto a Metafísica dos Fenômenos, naquela obra. Queria com ela me referir ao lado de Dentro das coisas, isto é, ao ser.
Com essa perspectiva, no mesmo livro, passei a investigar a criação do Universo por Deus e a mostrar como ela podia perfeitamente constituir o núcleo de uma visão religiosa, mas não alienada da realidade. Tateava, na época, em busca de uma philosophia universalis, de uma visão aplicável, ao mesmo tempo, ao cosmos e à sociedade. Por isso, após definir o que considerei as melhores bases para tal visão, chamei juscriacionismo a aplicação dela ao Direito, por nenhuma outra razão a não ser o fato de me basear na criação de Deus.
Dirão que delirava e deliro. Responderei que duvidava e ainda duvido. Mais do que isso: direi que o que tenho afirmado até aqui não decorre do meu duvidar, mas do duvidar considerado em si mesmo, do duvidar comum a todos os homens. Esse duvidar fundamental ensina-nos a fé, ensina-nos Deus e ensina-nos que Deus criou. Volto-me a ele, nestes artigos, como o aluno se volta ao mestre. Pergunto-lhe sobre Deus, como Jacó perguntou ao Anjo após ter lutado com ele a noite toda: “Como te chamas?” E, como ouviu por resposta a questão “Por que perguntas pelo meu nome?”, ouço a Dúvida sussurrar-me: “Por que não perguntas ao negro dos céus e ao verde dos campos? Por que não te diriges à criação?”
A APOSTA DE PASCAL
Pascal entendeu como poucos que a condição do homem define-se pelo conhecimento: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante” (PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Edipro, 1996. p. 154). Por isso, a sua função é pensar. Mas, feliz ou infelizmente para ele, o conhecimento que alcança quase sempre é tão rico em pequenas coisas quanto nulo em maiores, a exemplo da ordem que rege o Universo. O homem sabe tão mal o que mais lhe importa: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar” (idem. p. 12).
A ignorância a que Pascal se refere não é total, pois o homem tem certo conhecimento das coisas. É, porém, o produto das dúvidas sobre o que ele conhece. Se essas dúvidas não forem suspensas por meio da fé, o resultado será a ignorância profunda agravada pela expectativa da morte, a que Pascal se refere. E se contorce de espanto ante a frivolidade com que o homem reage ao seu imenso desconhecimento: “O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova” (idem. p. 13).
Pascal desenvolve esse arrazoado, a partir da dúvida sobre a mortalidade da alma. Em momento nenhum, ele a dá como certa, mas acrescenta que não é preciso ter certeza da imortalidade para temer as consequências dela. Se admitir a sobrevivência da alma à morte e o encontro futuro com Deus como meras possibilidades, o homem terá motivos de sobra para considerar insensata a busca desenfreada de bens temporais, pois não lhe garante a felicidade futura e pode roubá-la dele.
A dúvida é o que basta para o homem levar a sério Deus e a fé cristã. Não é preciso alcançar, desde logo, a fé para que esse resultado se produza. Pascal continua: “Deus é ou não é. Mas, para que lado pendereis? A razão nada pode determinar aí [...] Mas é preciso apostar: isso não é voluntário; sois obrigados a isso” (idem. pp. 18-19). Por que somos obrigados a apostar se Deus existe? Porque, ao menos de um ponto de vista racional, a questão é importante demais para ser evitada para sempre ou abandonada na cova do esquecimento.
Essas lições de Pascal tornaram-se clássicas. Considero oportuno recordá-las não só a propósito da existência de Deus, mas de toda dúvida remexida constantemente na História e jamais resolvida. Chamo esse tipo de dúvida axial. Axis em latim significa eixo. Dúvida axial é, pois, a que não incide em qualquer tema, mas sobre o próprio eixo dos questionamentos humanos.
Houve um tempo em que o ser humano resolvia todas as suas dúvidas axiais, por meio da fé. Mas esse tempo parece ter definitivamente passado. Em lugar da resolução da dúvida pela fé, surgiram duas novas atitudes: a descrença e a dúvida permanente. A primeira cumpre função semelhante à da fé, qual seja a de resolver a indefinição introduzida pela dúvida. Enquanto a fé dissolve a incerteza numa afirmação, a descrença o faz numa negação. Assim, tanto a fé como a descrença servem para eliminar ou enfraquecer estados de indefinição cognitiva.
A dúvida permanente, por sua vez, é distinta tanto da fé como da descrença. Sua principal característica é não resolver de maneira alguma a indefinição introduzida pela dúvida. É não a afastar seja por afirmações, seja por negações, mas simplesmente a arrastar no tempo.
Porém, os modos alternativos de tratamento da dúvida apresentam problemas lógicos. O da descrença consiste em tanto ela como a fé terem o objetivo de substituir a prova de um fato. Quando não temos prova de algo, cremos que é real ou que não o é. O problema é que a prova de que algo é real é muito mais fácil de produzir do que a prova de que é irreal. Por exemplo: é mais fácil provar que há cisnes negros do que demonstrar que não há. Basta achar um cisne negro para mostrar que existem, mas é preciso vasculhar o Universo todo para afirmar com razão que não existem.
Essa diferença estrutural entre a prova de que algo é real e a de que não o é reflete-se nas atitudes de fé e de descrença. Como é mais fácil provar a existência de algo, a fé é geralmente mais justificada do que a descrença. Ou, para dizer o mesmo de outra maneira, é mais provável que a fé esteja certa e a descrença errada, já que a fé importa a existência, e a descrença, a inexistência de algo. Claro que esse princípio não se aplica quando a existência do objeto é por alguma razão impossível. Mas as dúvidas fundamentais têm por característica não permitirem ao sujeito decidir se a existência ou a inexistência entre as quais ele vacila podem ser descartadas como impossíveis. Sei que a esse tipo de dúvida a fé oferece resposta mais coerente do que a descrença.
Voltemo-nos, pois, para a dúvida permanente. Se a descrença tem o problema inerente da improbabilidade maior, a dúvida que não se resolve jamais é distinta. Seu mal é outro. É destruir o caráter dialético do conhecimento, ao manter a dúvida e eliminar a fé. Essa destruição desfigura o próprio conhecimento, que é por natureza dialético. O princípio da aposta de Pascal supõe exatamente isso. Ele considera que é preciso apostar, pois a mente humana funciona dessa maneira. Ela resolve dúvidas por meio de fés, e questiona fés por meio de dúvidas. Difícil é romper essa dialética.
A dúvida perpétua é contrária à natureza do conhecimento. Todo conhecimento é prático. Existe em razão de um fim. O engenheiro usa o cálculo para construir, o advogado cita a lei para requerer, e o filósofo usa o questionamento para entender como o real é ou deixa de ser. Todo conhecimento tem alguma utilidade. Consideramos o nada absurdo, antes de tudo, por servir para nada.
A dúvida tem também suas funções, como visto. Serve para enfraquecer os erros, confirmar e aprimorar as verdades. Porém, esses ganhos que a dúvida proporciona só se verificam até certo ponto. Tudo o que é humano requer medida. Torna-se mau quando se faz extremo, absurdo, quando se absolutiza. A dúvida não é exceção. Ao se perpetuar, ela perde todo sentido. Deixa de ser útil seja para enfraquecer erros, seja para confirmar ou aprimorar verdades. Isso é o que em Lógica se chama reductio ad absurdum: algo que começa como verdade e se torna absurdo pelo exagero. A dúvida é lógica enquanto comedida; torna-se absurda quando exagerada. E o faz por perder toda utilidade.
Por isso, o velho critério da aposta de Pascal oferece melhor solução para as aporias do pensamento do que a descrença ou a dúvida permanente são capazes de fazer. E o princípio da aposta ainda pode ser ampliado. Podemos aplicá-lo não só à existência de Deus, como fez Pascal, mas a todas as dúvidas permanentes, já que para nada serve duvidar para sempre. Se o conhecimento é dialético, se envolve dúvida e fé, mais cedo ou mais tarde, é preciso resolver as dúvidas por algum tipo de fé.
Mesmo assim, o marasmo em que a vida humana transcorre leva as pessoas a deixarem intocadas suas dúvidas axiais. Tornemos a Pascal: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”. Nossas dúvidas fundamentais são insolúveis e, porque o são, tendemos a adiar, indefinidamente, a assunção de posição a respeito delas. Mergulhamos em tal estado de torpor a respeito de nossas dúvidas que nos acomodamos a elas e assim as perpetuamos.
O princípio da aposta combate exatamente isso. Reconhece que é lícito ao homem ter dúvidas, até mesmo dúvidas axiais. Porém, não lhe é conveniente duvidar para sempre. Todo homem precisa apostar, assumir atitude de fé quanto às dúvidas axiais. É em última análise o que significa ser uma alma. Se alma é o princípio da atividade e não da passividade, ser uma alma é produzir aquela parte da existência que cabe unicamente ao ser vivo. É não se arrastar na sombra da passividade.
Uma das dúvidas axiais da Filosofia é a que se estabelece a respeito da imagem que temos do mundo. Vemos o céu sobre nós, os astros que nele brilham, o ar que nos envolve por todos os lados, a terra e a água intercaladas nos espaços inferiores. E vemos cada qual dessas estruturas enxameada por um número incalculável de seres pequenos em comparação com elas, com os quais interagimos e dos quais falamos uns aos outros o tempo todo.
O giro de Kant foi chamado copernicano, porque negou que essa imagem seja determinada pelos objetos. Para Kant, o sujeito e não o objeto é quem determina o conteúdo da sua imagem do mundo. Daí a imagem ser incerta ou, para usar a palavra fundamental deste texto, duvidosa. Se o mundo, com as estruturas e os seres que mencionamos, realmente existem, é algo que não podemos comprovar. Por isso, Pascal afirmou desolado: “Não sei o que é o mundo”...
Kant chamou copernicana a revolução consistente em instalar o conhecimento no centro da Filosofia, por meio da dúvida sobre o real. Mas é o caso de perguntarmos quem foi o verdadeiro Copérnico. O próprio Kant ou algum outro? Vários séculos antes de Kant, os filósofos que se tornaram conhecidos como acadêmicos mostraram que as dúvidas básicas não podem ser resolvidas. E o mais impressionante é que eles o afirmaram pelos motivos mais fundamentais que poderiam ser invocados. Na sua obra sobre esses filósofos, Agostinho diferenciou duas Academias. Os integrantes da primeira já afirmavam a impossibilidade de se conhecer a verdade. Porém, foram os representantes da última que calcaram essa impossibilidade no princípio mais acertado:
“A dissidência que deu origem à nova Academia não se dirigia tanto contra a doutrina antiga [dos primeiros acadêmicos] como contra os estoicos. Nem se pode considerá-la como dissidência, porque se tratava apenas de refutar e discutir uma nova opinião introduzida por Zenão [de Cítio, fundador do estoicismo]. Pois não foi sem razão que se pensou que a doutrina do não conhecimento da verdade, ainda que não fosse objeto de controvérsias, não era estranha aos antigos Acadêmicos [...] Todavia eles não introduziram nas escolas a discussão dessa questão nem pesquisaram especificamente se era ou não possível conhecer a verdade. Este foi o novo problema bruscamente lançado por Zenão, afirmando que só se podia conhecer aquilo que de tal modo é verdadeiro que se distingue do falso por marcas de dessemelhança, e que o sábio não devia opinar. Tendo ouvido isso, Arcesilau [fundador da segunda Academia] negou que o homem pode encontrar algo do gênero” (HIPONA, Agostinho de. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. pp. 82-83).
As “marcas de dessemelhança” mencionadas por Agostinho eram impressões dos objetos na alma. No texto sobre a visão, vimos que os antigos atomistas consideravam que os objetos emitem eflúvios que se imprimem como marcas no sujeito do conhecimento. Os estoicos adotaram uma concepção semelhante a essa e denominaram apresentação a impressão do objeto no sujeito. Mais do que isso, Zenão fez da apresentação o critério da verdade. Verdadeiro é o que é conforme a apresentação. Porém, Arcesilau e sua escola negaram a possibilidade de o homem conhecer essa apresentação.
Isso mostra que os acadêmicos não só duvidaram da possibilidade de se conhecer a verdade em geral como duvidaram especificamente da possibilidade de se extrair qualquer conhecimento dos sentidos. Essa é a dúvida fundamental, que Kant afirmou impedir que o conhecimento revele o real ao sujeito. Por causa dela, ele propôs que o conhecimento deve girar em torno do sujeito e ser descrito em função dele, o que constituiu sem dúvida um giro, mas um giro tipicamente acadêmico. Ou será que Kant não pode de modo algum ser visto como um continuador do trabalho daqueles filósofos, como um restaurador da dúvida acadêmica?
Giro copernicano, giro acadêmico. Dúvida acadêmica: essa é a dúvida que, tenho afirmado, não deve ser perpetuada. O homem tende a perpetuá-la, é verdade. E o kantismo é a defesa filosófica dessa atitude, seu coroamento com o grau da ciência. Mas isso tudo se faz bagatela, quando assumimos um ponto de vista dialético. A dúvida permanente não favorece o homem. Quando não o entorpece, corroi-o infalivelmente. Corroi o seu coração como um ácido. E nada lhe acrescenta em compensação, pois a dúvida permanente não tem função.
Tomo a aposta de Pascal como metáfora. A fé é “como uma aposta”. Mas, por ser como, não é uma aposta. E não o é por não ser um jogo. Crer não é jogar: é viver, e é conhecer. Ou não nos devemos curvar à evidência de que o nosso conhecimento é, em tão grande medida, fé?
Nesse sentido, a exortação de Pascal ressoa: apostar é preciso! E, na aposta em Deus, as alternativas são peculiarmente relevantes: “Se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis”. Pode haver algo mais razoável a fazer que apostar desse modo? “Apostai, pois, que Deus é, sem hesitar” (PASCAL, Blaise. Ob. cit. p. 19).
“A vida é um lance de dados", afirmaram os romanos. Dizem os cristãos que é questão de fé. Lançando, pois, dados metafóricos ou crendo a fé real, tenhamos funda esperança, como o semeador. Lembremos que a terra em que ele arroja a semente é emblema do seu coração. E que a planta que cresce na terra é a esperança que aquece o coração. Agricultura é psicologia: não há lavoura, sem esperança.
A VISÃO
Há animais que se orientam mais pelo tato do que pela visão e outros para os quais a visão e o olfato têm importâncias semelhantes. No ser humano, a visão não só é o sentido principal como constitui a maior fonte de influência sobre o que conhecemos. Nossos olhos moldam as nossas necessidades, formam os nossos hábitos, dirigem o nosso pensar e condicionam as opiniões que formamos a respeito do mundo. Por isso, as dúvidas que podem ser formuladas sobre o ato de ver são também as mais decisivas para o conhecimento.
No período inicial da Filosofia, foram propostas duas teorias sobre a visão. Uma delas, a mais antiga, foi adotada pelos primeiros de todos os filósofos e é essencialmente física. A outra é de cunho metafísico, surgiu com Platão e foi aperfeiçoada por seu discípulo Aristóteles. A primeira teoria explica o ato de ver como resultado do encontro físico do objeto visto com aquele que vê. Um de seus defensores, Epicuro, escreveu:
“Há impressões semelhantes à figura dos corpos sólidos, que por sua sutileza superam consideravelmente as coisas que aparecem aos nossos sentidos” (EPICURO. Epístola a Heródotos. In LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2ª ed. Brasília: UnB, 2008. p. 293). As impressões a que Epicuro se refere são eflúvios que se desprendem das coisas. Ele assim as denomina, porque preservam a figura dos corpos de que emanam, portanto são semelhantes a eles:
“As emanações conservam a mesma disposição e a mesma sequência dos átomos dos corpos sólidos, dos quais provêm; damos a essas impressões o nome de imagens. E seu movimento no vazio, desde que nada impeça e nada oponha resistência, leva-as a percorrerem qualquer distância imaginável num lapso de tempo inconcebivelmente breve” (idem).
Para Epicuro, tudo o que existe é um corpo ou vazio. Os corpos são feitos de átomos dispostos em determinada ordem. As impressões ou imagens, que se desprendem deles, são feitas de átomos, que conservam a mesma sequência e a mesma ordem que tinham nos corpos. É por isso que elas se chamam imagens: porque reproduzem a organização exata dos corpos, como o reflexo de uma pessoa no espelho.
Porém, para entendermos essa teoria, precisamos não só ter ciência do seu conteúdo, mas também das dúvidas cuja operação ela suspende ou mantém. Ao desenvolver a sua física, Epicuro separou nitidamente o que se passa na terra do que transcorre nos céus. Desenvolveu, assim, uma doutrina dos céus e a ensinou à parte da física terrena.
O traço que mais distingue a doutrina dos céus da física terrena de Epicuro é o caráter incerto desta. Por isso, ao enfrentar problemas de movimento celeste, Epicuro formula várias explicações, às quais reconhece idêntica força elucidativa. Por exemplo, “o surgir e o pôr do sol, da lua e dos outros astros podem verificar-se por acendimento e apagamento [...] Tais fenômenos podem também ser produzidos por aparição sobre a terra e novamente por ocultação” (idem. p. 304). Do mesmo modo, “é possível que a lua tenha luz própria, mas também é possível que a receba do sol” e “os eclipses do sol e da lua podem dever-se à extinção de sua luz, como observamos que acontece também nos fenômenos terrestres, mas podem ainda dever-se à interposição de outros corpos” (idem. p. 305).
A física da terra, na qual se insere a teoria da visão de Epicuro, não se constroi por esse método da possibilidade. Pelo contrário, o filósofo a extrai por necessidade de um número de premissas. A primeira é a de que os sentidos constituem a fonte de toda verdade. Como os sentidos nos mostram que o real é feito de corpos e de vazio, devemos admitir esses dois elementos. E, como eles nos revelam que os corpos são compostos, ou admitimos a divisão infinita deles em partes cada vez menores, ou sustamos o pensamento em entidades que não podem ser divididas (os átomos).
Assim, movendo-se de premissas às suas consequências, Epicuro descreve o mundo sublunar por um método de certezas que se impõem sobre possibilidades concorrentes. Não que as certezas que ele encadeia em sistema estivessem a salvo de todo questionamento possível. Não estavam, mas Epicuro suspende as dúvidas que podem ser formuladas a propósito delas. A partir desse ponto, as verdades lógicas dos corpos, do vazio, dos átomos e dos outros elementos do seu sistema passam a valer como crenças.
Quando nos debruçamos sobre o livro de Aristóteles acerca da alma, verificamos que propõe uma explicação muito distinta do funcionamento dos sentidos. Se a teoria de Epicuro e as pré-socráticas eram essencialmente físicas, por se basearem no contato direto do conhecido com o conhecedor, a de Aristóteles deve ser chamada metafísica, pois abstrai em grande parte esse contato e se põe como passagem do conhecimento potencial ao conhecimento em ato. Diz esse filósofo:
“Tudo o que possui o poder de sensação é em potência o que o objeto percebido é em ato. Assim, no começo do processo de percepção, os dois fatores em interação [o sujeito e o objeto] são dessemelhantes, porém, ao final, o que recebe a ação do objeto é assimilado a ele e se torna idêntico em qualidade ao objeto” (ARISTÓTELES. On the soul. I, 5, 418a. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol 7. p. 648). Essa é a essência do ato de percepção para Aristóteles: uma assimilação, que só ocorre quando o órgão sensorial é em potência o que o objeto é em ato. Dada essa condição, quando o objeto age sobre o sujeito, a potência transforma-se em ato, isto é, não no ato do próprio objeto, mas em algo idêntico a ele.
Esse algo idêntico é a forma do objeto. “Na alma”, explica Aristóteles, “a faculdade [...] da sensação é potencialmente os objetos sensíveis. Portanto, ela deve ser ou as próprias coisas, ou as suas formas. A primeira alternativa é claramente impossível: não é a pedra que se faz presente na alma [quando o sujeito a vê], mas a sua forma” (idem. III, 8, 431b. p. 664). Por forma, não devemos entender a figura visível, mas a essência do objeto, aquilo que nele permanece estável, enquanto continua a existir.
Perguntemos, então, que dúvidas as teorias de Epicuro e Aristóteles suspendem. Epicuro afirma que o ser é constituído por átomos e por vazio. Mas isso introduz um problema considerável: se o ser é formado por átomos, ele também é explicado por esses átomos, suas formas e movimentos. E se é de algum modo explicado, o ser já não é obscuro, o que viola o que temos visto a respeito dele até aqui.
Mais do que isso, se é constituído por átomos que são ejetados dos objetos e vistos ao atingirem o sujeito, segue-se que o ser também pode ser visto. E, se o pode, concluímos de novo que não é obscuro. Mas isso é, no mínimo, duvidoso. O universal é visível? Sabemos que não. E o ser não constitui o conceito de maior universalidade? Como pode, pois, ser visto? Epicuro deixa de considerar esses problemas, após estabelecer que tudo que existe é formado de corpos e de vazio.
Aristóteles suspende dúvidas diferentes das de Epicuro, ao explicar a visão. Suspende, por exemplo, as que podem ser propostas sobre os conceitos de potência e ato. Afirma que o órgão sensorial é a visão em potência, e o ato é a forma do objeto visto, que nasce na alma durante a visão. Mas, se a forma é destituída de matéria, como pode surgir na matéria de que o aparato sensorial é feito? Aristóteles supera essa impossibilidade por um passe de mágica, que faz o ato (a forma) surgir de uma potência (a matéria sensível) que por definição o exclui.
Assim, nem o ser das coisas pode ser visto com elas, como sugeriu Epicuro, nem a visão é a percepção da forma, como declarou Aristóteles. Devemos avançar para outras teorias, se quisermos entender em que consiste o ato de ver. Mas, como a teoria de Aristóteles vigorou, com modificações, por tempo extremamente longo, só vemos um número significativo de pensadores adotarem outra teoria, a partir da revolução kantiana.
O problema é que a teoria da sensação de Kant não é bem aceita pelos cientistas dedicados ao estudo da luz e da visão. Filósofos e cientistas vivem um desacordo às vezes dissimulado, mas muito real sobre esse ponto. E, se nos satisfazemos com a refutação das teorias antigas, a indefinição do debate contemporâneo nos deixa sem uma opção claramente aceita sobre a visão.
Que pensar sobre esse quadro indefinido? Um ponto de partida válido, na busca de uma solução, é considerar que as posições possíveis continuam as mesmas: ou a visão é um fenômeno físico, ou é algo metafísico. No texto anterior, vimos que qualquer fenômeno pode ser pensado, com Teilhard de Chardin, como dotado de um lado de Fora (seu aspecto físico) e outro de Dentro (o aspecto metafísico). Assim proposta, a interpretação metafísica continua a ser uma possibilidade.
Os primeiros filósofos cristãos estiveram na encruzilhada a que me refiro, pois as posições de Epicuro e Aristóteles já haviam sido defendidas antes deles. É útil, portanto, verificarmos que avaliação eles fizeram das alternativas em jogo. Ao fazermos isso, somos surpreendidos com a constatação de que duas das maiores autoridades patrísticas em Filosofia, Santo Agostinho e Boécio, adotaram o ponto de vista físico de preferência ao metafísico. Porém, adotaram-no na versão modificada que lhe deram os filósofos neoplatônicos.
A partir da sua conversão, pelo menos, Santo Agostinho passou a afirmar a teoria neoplatônica da visão. Em A grandeza da alma, lemos: “A visão se projeta para fora e por meio dos olhos se arremessa para longe, atingindo todos os lados para poder perscrutar o que vemos. O resultado é que enxergo melhor onde está o que enxergo do que de onde saí [unde erumpit]” (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. São Paulo: Paulus, 2008. p. 308). A projeção da visão para fora, a que a passagem se refere, é uma variação da teoria pré-socrática dos eflúvios criada na tradição platônica. Não nega que as coisas emitam partículas tênues e invisíveis, mas admite que os olhos também são coisas e, portanto, emitem seus próprios eflúvios. A visão resulta do encontro desses eflúvios, mas principalmente do modo como se processam os que emanam dos olhos.
Em outros lugares, Agostinho chama raios o eflúvio que emana dos olhos: “A vastidão do oceano se apresenta incomparável; mas, por maior que seja, é preciso que antes os raios de nossos olhos atravessem o ar que está sobre ele, e, depois, tudo o que está além e, então, finalmente, nossos olhos chegarão ao sol que vemos” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 164). E, para que não haja dúvida sobre a materialidade desse processo, nosso autor esclarece: “Este é certamente um raio de luz corpórea, que se projeta de nossos olhos e que atinge com tamanha rapidez o que está colocado tão distante a ponto de não se poder avaliar ou comparar [sua velocidade com outra]” (idem).
Boécio abraça a mesma teoria: “A circularidade de um corpo esférico não é encontrada do mesmo modo pela vista e pelo tato. O olho, estando distante, percebe-o de uma só vez, graças aos raios que emite” (BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). Vemos que, em vez de usarem a metafísica para explicar a visão, Agostinho e Boécio usaram a teoria física.
Curioso é que eles aliaram sua explicação física ao conhecimento da forma dos objetos. O primeiro escreveu: “A alma produz pelo espírito semelhanças das coisas corporais, ou contempla as apresentadas anteriormente [durante a sensação]. Se ela produz essas semelhanças, são somente imaginações; mas se ela contempla as apresentadas antes, são visões” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. p. 470). As “semelhanças das coisas corporais” a que Agostinho alude são formas.
Boécio tampouco se afasta da concepção platônica: “Os sentidos percebem [um objeto] do ponto de vista da matéria que lhe serve de suporte, enquanto a imaginação avalia apenas a forma, abstraindo a matéria” (BOÉCIO, Severino. Op. cit. loc. cit.). Nessa passagem como na anterior, imaginação é o conhecimento que se segue à percepção. Vimos que Aristóteles tinha localizado nesta a forma despojada de matéria. Agostinho e Boécio transferiram-na para um momento posterior à percepção. Não confundiram, portanto, a criação da forma abstrata com a visão, que explicaram pela teoria física.
É admirável que, apesar de terem sido platônicos, Agostinho e Boécio adotaram uma teoria física e não metafísica da visão. De algum modo, essa teoria pareceu-lhes mais próxima da visão de Universo cristã, já que a explicação alternativa estava associada ao materialismo que o cristianismo combatia.
O exemplo deles pode ser seguido de certa maneira ainda hoje, já que a teoria que descreve a visão como processo físico, embora antiquíssima, foi confirmada por descobertas científicas fundamentais. Examinemo-las sucintamente.
Por muito tempo, pensou-se no espaço como vácuo ou vazio absoluto. Essa ideia foi utilizada, inclusive, na própria Física newtoniana. Porém, Einstein mostrou que o espaço não é vazio:
“Einstein esforçou-se para explicar por que seu tipo de espaço é tão diferente do de Euclides e do de Newton [...] Espaço vazio não tem significado prático: espaço não pode existir separadamente daquilo que enche o espaço, e a geometria do espaço é determinada pela matéria que ele contém” (CALDER, Nigel. O universo de Einstein. 2ª ed., Brasília: UnB, 1994. p. 63).
Mas, se não é vazio, que é o espaço? A Física contemporânea ensina que ele é um campo, pois é formado de energia em maior ou menor concentração. Fritjof Capra esclarece: “Na teoria quântica dos campos, todas as interações são representadas com a troca de partículas virtuais. Quanto mais forte a interação, isto é, quanto mais forte a força resultante entre as partículas, mais frequentemente ocorrerá a troca de partículas virtuais [...] As partículas virtuais podem passar a existir espontaneamente e desaparecer novamente neste último, sem que esteja presente qualquer outra partícula que interaja fortemente” (CAPRA, Fritjof. O tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1983. pp. 166-168).
O espaço existe não só entre os corpos, mas também no interior destes. Todo corpo, por mais maciço que possa parecer, é quase inteiramente vazio, o que quer dizer ocupado por campos energéticos. A impressão de solidez que temos ao observá-lo decorre do movimento velocíssimo dos átomos que o compõem. E a energia dos campos, no interior dos objetos, também faz surgir partículas virtuais a todo instante. Essa é a primeira descoberta crucial para a compreensão do ato de ver.
Outra descoberta da ciência recente com potencial de afetar nossa compreensão da visão é a do poder que tem a luz de mover objetos. Embora os fótons, que compõem a energia luminosa, sejam desprovidos de massa, fenômenos como o efeito fotoelétrico demonstram que a luz é capaz de deslocar objetos. Nesse efeito, elétrons são liberados da superfície de um corpo pela incidência da luz (RYDER, J. D. “Photoelectric effect”. Grolier Multimedia Encyclopaedia. EUA: Grolier, 1996). Algumas modalidades do fenômeno fotoelétrico são produzidas, inclusive, por luz de baixa frequência (idem. “Photochemistry”).
O efeito fotoquímico, considerado uma variação do fotoelétrico, é responsável pela tendência dos objetos coloridos a desbotar, quando expostos à luz. Mário Schenberg explica que “esse desbotamento implica a destruição de moléculas de pigmento [do objeto] por parte da luz” (SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. 5ª ed., São Paulo: Landy, 2001. p. 105).
Porém, a movimentação de objetos pela luz não se manifesta só no efeito fotoelétrico e suas variações. O ozônio também “é produzido na atmosfera pela interação de luz ultravioleta do Sol e oxigênio normal. A luz decompõe o oxigênio em átomos individuais, e estes, por sua vez, reagem com o oxigênio para formar ozônio” (WARD, Peter D. e BROWNLEE, Donald. Sós no universo. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 275).
Quando combinadas, as descobertas acima permitem entender melhor o que ocorre durante a visão. A primeira confirma que os objetos materiais emitem energia o tempo todo. A segunda prova que a luz é capaz de extrair essa energia da esfera dos objetos e conduzi-la através do espaço. Não é preciso acrescentar que tudo isso é perfeitamente compatível com a teoria física da visão.
Que acontece quando a luz carregada com energia dos objetos chega ao olho de um observador? Hoje se sabe que o olho transforma a luz numa corrente elétrica que é conduzida pelo nervo ótico até o cérebro. Sabe-se também que, a despeito do comprimento de onda e da frequência sempre variável da luz que chega, a corrente transmitida pelo nervo é sempre igual. Domenico Ravalico o afirma: “O sinal transmitido ao longo do nervo ótico não varia em amplitude, mas permanece constante; é modulado na frequência com base em determinado código”. Só por isso, explica o autor, a intensidade da luz recebida não queima o nervo ótico, deixando-nos cegos (RAVALICO, Domenico. A criação não é um mito. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1977. pp. 194-195).
Mas, se os impulsos que percorrem o nervo ótico são todos iguais, por que a mensagem que conduzem é interpretada como objetos tão diferentes quanto os que compõem o mundo ao nosso redor? Por que não é interpretado sempre da mesma maneira? Os físicos, geralmente, afirmar que as variações devem-se ao fato de as ondas elétricas chegarem a diferentes regiões do cérebro, que as interpretam diferentemente. Mas essas leituras diversas distorcem a uniformidade dos impulsos elétricos. Deformam, portanto, o real, em vez de representá-lo.
A teoria física livra-nos dessa tremenda dificuldade, ao mostrar que os impulsos são interpretados como objetos, porque contêm energia extraída deles pela luz ambiente. O cérebro é como a tela de um aparelho ultracomplexo, aonde essa energia chega e pode finalmente ser vista. Somente nele, ocorre o ato psicológico de ver, a física se faz psicologia ou, como diziam os antigos, a alma vê, já que é ela que vê. É?
AQUILES E A TARTARUGA
Temos visto que o conhecimento pode ser construído de modos muito distintos, com base na certeza e na dúvida, o que sugere que a dúvida é tão decisiva para ele quanto as informações sobre o objeto acumuladas pelos sentidos. Se colocarmos essas informações num prato da balança do conhecimento e a dúvida no outro, será difícil evitar que um estado de equilíbrio se instale entre elas.
Sabemos que pensamos e que os objetos de nossos pensamentos, enquanto existem em nós, não possuem materialidade. São essências e não coisas reais. Uma essência é uma ideia geral. É semelhante ao mapa de uma cidade, que é em tudo distinto dela, contudo a representa. Sabemos que o mapa não é a cidade e que as essências das coisas não são as próprias coisas. Mas sabemos, também, que usamos as essências para classificá-las. Por exemplo, agrupamos todos os seres humanos que conhecemos sob a essência do homem.
O processo de formação de essências, na alma, obedece a vários critérios, mas o de maior importância é a disjunção. O ato de conceber é disjuntivo, pois se dá por separação. Pensar é separar mentalmente um objeto de outros. Assim, ao concebermos a essência de ser humano, procedemos à separação ou distinção dela em relação a todas as outras essências.
Se queremos, pois, entender minimamente o nosso pensar, não temos como deixar de perscrutar o processo pelo qual a disjunção ou separação das essências se dá. Podemos representar esse processo como uma ruptura em cadeia, pois cada disjunção é causa de outras, que por sua vez são causas de ainda outras, ad infinitum. De sorte que o encadeamento total das disjunções nos remete à pergunta sobre a existência ou não de disjunções fundamentais, ou seja, de separações nas quais a cadeia de rupturas cessa.
Pode parecer que o eu resulta de uma disjunção desse tipo. Vimos, no texto sobre a visão, que tanto Agostinho como Descartes afirmaram a certeza que o eu tem de existir. Essa sensação é tão forte que, mesmo quando a questiona, o eu tende a imaginar, no máximo, que ela pode ser parte da sensação que outro ser tem de si. Portanto, até a ideia do eu pode ser usada para criar outra diferente dela. Somente a ideia do ser é tal que não pode gerar outras. Só ela parece ser uma ideia ou essência totalmente irredutível.
O ser é, pois, o ponto de partida de todas as disjunções que a mente realiza. É o ponto inicial do processo de ruptura que gera as ideias e a imagem que possuímos do mundo. De disjunção em disjunção, a mente afasta a tentação de igualar tudo a tudo, de fazer qualquer coisa equivaler a qualquer outra e assim forma uma imagem organizada do mundo.
Porém, conforme a série de disjunções se aprofunda (e é bom lembrar que ela o faz ao infinito), nota-se uma diferença lógica entre duas espécies de separações de ideias. De um lado, há as ideias que supõem objetos fora do eu; de outro, há as que não o supõem. Exemplos das últimas são as disjunções que originam a Geometria, assim como as que distinguem o ponto da linha, bem como as figuras (círculos, quadrados, triângulos etc.) que podem ser formadas com linhas.
Chamamos conceitual o plano no qual os conceitos de ponto, de linha e de outros entes matemáticos se situam e empírico, o plano no qual objetos como cidades existem. As disjunções conceituais não precisam de algo além delas próprias para serem verdadeiras. Um ponto não é uma reta, independentemente de qualquer outro fato ou ideia. Mas a verdade empírica não é assim. Para uma cidade existir, é preciso supor um planeta que sirva de base ou suporte para ela e toda uma série de condições de espaço, de tempo, de ordem física, química e biológica, sem as quais não podem existir cidades.
As disjunções conceituais são mais consistentes do que as empíricas, pois se fundam umas nas outras, ao passo que as ideias empíricas derivam das puras ou abstratas. A ideia de uma cidade A e a de outra cidade B derivam do conceito geral de cidade, que é puro. Esse conceito puro, por sua vez, deriva de outros igualmente abstratos.
Esse é um ponto fundamental da série de disjunções do pensamento, pois introduz uma contradição. A disjunção entre o plano conceitual e o empírico supõe a distinção radical deles. Como pode, então, o empírico ser retratado por meio do conceitual? Como a cidade A e a cidade B podem ser representadas por meio do conceito de cidade? Isso é contraditório com a premissa de que o plano conceitual é distinto do empírico.
Mas não parece que tenhamos outro modo de pensar o empírico, a não ser a partir de ideias abstratas. Esse é o procedimento básico do pensamento do empírico. É o princípio no qual Aristóteles fez repousar todo o conhecimento humano, ao declarar que nada pode estar no intelecto sem ter antes estado nos sentidos. No entanto, é um princípio contraditório. E não podemos escapar à conclusão de que, se o é, o conhecimento do real se funda não só em disjunções, mas também na contradição. Conhecer algo real é contradizer a totalidade do pensamento que antecede e prepara esse conhecimento.
O paradoxo de Aquiles e a tartaruga, proposto por Zenão de Eleia, ilustra o que acabo de mencionar. Nele, o heroi da Guerra de Troia disputa uma famosa corrida com uma tartaruga. Dada a diferença de dotes físicos que os distingue, Aquiles concede à tartaruga uma vantagem inicial: permite-lhe começar a corrida muito à frente dele. Para ganhar a disputa com a tartaruga, portanto, Aquiles terá de fazer uma corrida de recuperação. Em linguagem matemática, isso significa que, a cada intervalo de tempo t, Aquiles terá de reduzir à metade a distância que o separa da tartaruga. A questão que Zenão coloca com o paradoxo é se, em tais condições, Aquiles poderá efetivamente ultrapassar a tartaruga.
A experiência dos sentidos mostra que a ultrapassagem ocorrerá, infalivelmente, se concedermos tempo suficiente a Aquiles. Se a cada intervalo t, ele reduz a distância à metade, haverá um tempo t’ em que o heroi ultrapassará a tartaruga. Porém, a Matemática contradiz esse testemunho. Ela prova que uma ultrapassagem não pode ocorrer por sucessivas reduções da distância à metade. Matematicamente (e do ponto de vista lógico), tal ultrapassagem é impossível.
Zenão perguntou-se qual dos dois testemunhos estava correto: o da Lógica ou o dos sentidos? Optou pela Lógica e concluiu que os sentidos nos enganam o tempo todo. Mas podemos entender o paradoxo de outra maneira. Podemos pensar que se limita a confirmar a contradição consistente em diferenciar o conceitual do empírico e, em seguida, utilizar o conceitual para descrever o empírico. Não há surpresa alguma no fato de obtermos resultados contraditórios por esse processo, se ele todo é essencialmente contraditório. O que o paradoxo faz, pois, é ilustrar a contradição por um exemplo claro e particular. É colocar um holofote sobre ela e torná-la translúcida.
Bertrand Russell propôs que a descrição da disputa de Aquiles com a tartaruga, por meio da Matemática, não está errada. Não quis com isso negar o resultado paradoxal dela. Quis apenas propor que a Matemática trabalha com o conceito de infinito de um modo que ultrapassa os sentidos, sem conflitar com eles. Os números não são só infinitos como entre dois números há infinitos outros (infinitas frações). Não é muito diferente o raciocínio que encontra infinitas retas entre duas linhas quaisquer situadas no mesmo plano. Portanto, seja no campo da Aritmética, seja no da Geometria, a Matemática é uma catedral de infinitos.
Não é diferente no paradoxo, explica Russell. A corrida de Aquiles com o animal é corretamente descrita como infinitas reduções da distância entre eles à metade ou a qualquer outra fração. O que se dá é que a descrição é válida, mas não é perfeita, do ponto de vista dos sentidos. Em algum momento ela falha, o que não invalida tudo o que realizou até então.
A opinião de Russell merece ser apoiada. Na versão acima, o paradoxo propõe sucessivas reduções da distância à metade, mas poderíamos apresentá-lo igualmente bem, afirmando que a distância é reduzida a 1/3, 1/4, 1/5, 1/1.000 ou qualquer outra fração. O essencial, para que o paradoxo se torne aparente, é que a distância é reduzida a frações, não necessariamente à metade. Dessa representação, penso, ninguém pode duvidar, porquanto é claríssima.
Entre dois números, inclusive entre frações como as que o paradoxo supõe, podem ser situados infinitos outros. É o que a Matemática Moderna provou da maneira mais lapidar. Porém, os antigos já conhecessem os números infinitos. Agostinho, por exemplo, escreveu que "a razão ensina a possibilidade da divisão infinitesimal dos mais minúsculos dos corpos, mas quando se chegar às coisas mais diminutas e sutis entre as de que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues e ínfimas, embora a razão não deixe de continuar a fazer sempre a divisão" (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro XI, Cap. 10, p. 362).
Digamos que o espaço que separa Aquiles da tartaruga, no início da sua corrida, seja um corpo agostiniano, que pode ser sujeito a divisão infinitesimal. Não é esse precisamente o problema colocado por Zenão? Há divergência entre essa descrição e a de Russell? Certamente, mas não uma diferença que impedisse Agostinho de captar a natureza do paradoxo. Mas, embora a compreendesse, Agostinho entrevê um desnível entre o tratamento que a razão lhe dispensa e o que a imaginação desenvolve. Ao tratar das "coisas mais diminutas e sutis entre as que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues". Esse é o parecer da imaginação. O da razão é a divisão infinita do espaço. Nesse duplo movimento da inteligência consiste o paradoxo.
O que Agostinho denominou imaginação é o que nós costumamos chamar senso comum. Para o homem comum, Aquiles não percorre uma distância infinita para ultrapassar a tartaruga. Logo, o modelo descritivo da divisão infinita deixa de aplicar-se ao problema, a partir de certo limite, o que não significa que ele seja equivocado. Nenhum filósofo antigo ou medieval com boa formação tiraria essa conclusão. Contudo, o desnível entre o modelo da divisão infinita e a corrida real o intrigava.
Com os recursos de uma Matemática muito mais desenvolvida, Russell pôde explicar o problema de modo mais satisfatório. A principal diferença entre a explicação fornecida por ele e a concepção da divisão infinitesimal de Santo Agostinho é o fato de Russell não pressupor o desnível entre a divisão racional das distâncias e a corrida real. Isso porque o próprio Russell mostrou, nos Principia mathematica (escrito em parceria com Alfred North Whitehead) e em Introdução à Filosofia Matemática, que a Matemática se funda em definições, que consistem na atribuição de uma ideia abstrata a casos particulares. Concebida dessa maneira, portanto, uma divisão infinita só pode ser o gênero a que casos particulares, inclusive o de intermináveis divisões de uma distância real em frações, correspondem.
"Acontece frequentemente numa série que haja um número infinito de termos intermediários entre dois que podem ser selecionados, por mais próximos que estes estejam entre si", diz Russell e dá como exemplo exatamente frações, entre as quais há outras - por exemplo, a média aritmética das duas" (Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 57). Mas isso não pode contradizer o fracionamento sucessivo de uma distância real. Pelo contrário, continua o matemático e filósofo, "séries desse tipo são de importância vital para a compreensão da continuidade, do espaço, tempo e movimento" (idem. p. 58).
Descartes reconheceu não ser "possível a divisão de de um corpo em partes tão pequenas que cada parte dessas não possa tornar a se dividir em outras ainda menores" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 86). Concordou, portanto, com Russell ou Russell com ele em que a divisão dos corpos estende-se ao infinitesimal. Porém, acrescentou que a divisibilidade dos corpos é indefinida e não infinita (como Russell admite), a fim de sublinhar a incapacidade do intelecto de discernir seus limites (idem). Essa incapacidade, esse limite indefinido para uns, infinito para outros é o que o paradoxo de Zenão enfoca.
Miseráveis que somos: não é fácil encontrar representações, no conhecimento, de que não seja possível duvidar! A Matemática não é exceção alguma. Reduzir uma distância a qualquer fração é um procedimento conceitual. Não há nele equívoco algum, porém sabemos que, no fundo ignoto de nossas representações, o conceitual se separa do real e deixa de corresponder-lhe. E, por não lhe corresponder, o que desaba não é só a explicação comum da corrida, mas a Física inteira: a de Newton, a de Einstein e a Quântica. Que Física não se baseia na representação do movimento entre dois pontos como uma redução da distância a frações dela própria? Que Física não se estrutura a partir dessa premissa?
Mas, se essa dúvida que ameaça a Física há de ser resolvida, pois nenhuma interrogação deve ser permanente, em que haveremos de dissolvê-la, senão na fé a que Russell aludiu? Na fé em que, embora a representação matemática (e com ela a Física) seja contraditória com o real, eles convergem num plano mais fundamental?
Cremos o tempo todo (e a ciência também o faz) que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último. O fato de a descrição matemática divergir, em algum ponto, do testemunho prestado pelos sentidos é um corolário da contradição entre eles. Mas a divergência não invalida o conhecimento humano do mundo. O que o pode invalidar é a detecção de uma grave irregularidade no interior do conhecimento. É perceber, por exemplo, que criamos contradições o tempo todo. Mas a contradição fundamental que apresentei não é dessa espécie. Ela não introduz outras. Além disso, é em si mesma estável. Não se altera. Concebemos todo objeto empírico, por meio da contradição fundamental mencionada e, sem ela, nada conheceríamos. De modo que ela gera conhecimento, não o impede.
Qual é, pois, o significado lógico da contradição mencionada? Que consequência ela tem para o princípio geral que proíbe contradições no conhecimento? Sabemos que esse princípio proíbe afirmar A e não A ao mesmo tempo. E não é isso que a contradição detectada realiza? Ela não afirma a disjunção entre o conceitual (A) e o empírico (não A) e utiliza, em seguida, o conceitual (A) para pensar o empírico (não A)?
Sem dúvida, mas o princípio da não contradição só vale absolutamente para o ser. Aplicado a qualquer outro conceito, ele permanece sujeito a dúvidas e deve ser entendido dialeticamente. Isso significa que o princípio não deve ser considerado imune a flexibilizações, refutações e negações. Porém, como o conhecimento é uma atividade regular e não errática, é preciso que as flexibilizações, refutações e negações não sejam arbitrárias, mas se subordinem a regras lógicas.
Que regras são essas? Vimos que não podem ser regras de aplicação de categorias, pois tanto as categorias aristotélicas como as kantianas são diretrizes absolutas de pensamento. Onde a dúvida reina, não há lugar para regras absolutas. Portanto, o conhecimento empírico não é regido por regras categoriais e sim dialéticas, porque flexíveis e válidas apenas em condições preestabelecidas.
Não convém especificar um conjunto fechado dessas regras, como Aristóteles e Kant fizeram ao enumerar as categorias, pois essa é uma tarefa impossível. Não há um conjunto fechado de regras não categoriais do pensamento, pois elas podem dar lugar a outras regras, se as condições para a sua aplicação faltarem.
Podemos, porém, mencionar algumas regras dialéticas para fins meramente exemplificativos. É dialética a regra que manda o intelecto distinguir entre o eu e as essências que ele concebe. Também o é a diretriz que manda construir essências por separação (disjunção). E é dialética a norma que proíbe a contradição no processo de formação de uma disjunção, porém não entre as disjunções. O conhecimento humano, como de fato é e não como o dogmatizamos, parece desenvolver-se por regras tais como essas.
Percebemos que, em tudo, a dúvida pode ser reavivada, quando aparece morta. Não há conhecimento absoluto, exceto o do ser. E, das espécies fundamentais de conhecimentos, a mais incerta é a dos sentidos, pois é a única que não existe a não ser por meio da contradição. Conhecer empiricamente é, de fato, contradizer o conhecimento.
E é claro que essa contradição importa uma grave dúvida. O que não significa que não conhecemos, mas que só conhecemos por meio da suspensão de tal dúvida por meio da fé. Em matéria de testemunho dos sentidos, conhecer é crer. Materialismo é fé. Não estamos longe da conclusão de Platão de que o conhecimento dos sentidos é doxa (opinião), nunca epistème (ciência). Apenas chegamos a esse resultado por um caminho distinto do que Platão elegeu. Ele afirmou a realidade indesafiável das ideias; a nós coube o quinhão da dúvida.
Não é diferente no paradoxo, explica Russell. A corrida de Aquiles com o animal é corretamente descrita como infinitas reduções da distância entre eles à metade ou a qualquer outra fração. O que se dá é que a descrição é válida, mas não é perfeita, do ponto de vista dos sentidos. Em algum momento ela falha, o que não invalida tudo o que realizou até então.
A opinião de Russell merece ser apoiada. Na versão acima, o paradoxo propõe sucessivas reduções da distância à metade, mas poderíamos apresentá-lo igualmente bem, afirmando que a distância é reduzida a 1/3, 1/4, 1/5, 1/1.000 ou qualquer outra fração. O essencial, para que o paradoxo se torne aparente, é que a distância é reduzida a frações, não necessariamente à metade. Dessa representação, penso, ninguém pode duvidar, porquanto é claríssima.
Entre dois números, inclusive entre frações como as que o paradoxo supõe, podem ser situados infinitos outros. É o que a Matemática Moderna provou da maneira mais lapidar. Porém, os antigos já conhecessem os números infinitos. Agostinho, por exemplo, escreveu que "a razão ensina a possibilidade da divisão infinitesimal dos mais minúsculos dos corpos, mas quando se chegar às coisas mais diminutas e sutis entre as de que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues e ínfimas, embora a razão não deixe de continuar a fazer sempre a divisão" (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro XI, Cap. 10, p. 362).
Digamos que o espaço que separa Aquiles da tartaruga, no início da sua corrida, seja um corpo agostiniano, que pode ser sujeito a divisão infinitesimal. Não é esse precisamente o problema colocado por Zenão? Há divergência entre essa descrição e a de Russell? Certamente, mas não uma diferença que impedisse Agostinho de captar a natureza do paradoxo. Mas, embora a compreendesse, Agostinho entrevê um desnível entre o tratamento que a razão lhe dispensa e o que a imaginação desenvolve. Ao tratar das "coisas mais diminutas e sutis entre as que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues". Esse é o parecer da imaginação. O da razão é a divisão infinita do espaço. Nesse duplo movimento da inteligência consiste o paradoxo.
O que Agostinho denominou imaginação é o que nós costumamos chamar senso comum. Para o homem comum, Aquiles não percorre uma distância infinita para ultrapassar a tartaruga. Logo, o modelo descritivo da divisão infinita deixa de aplicar-se ao problema, a partir de certo limite, o que não significa que ele seja equivocado. Nenhum filósofo antigo ou medieval com boa formação tiraria essa conclusão. Contudo, o desnível entre o modelo da divisão infinita e a corrida real o intrigava.
Com os recursos de uma Matemática muito mais desenvolvida, Russell pôde explicar o problema de modo mais satisfatório. A principal diferença entre a explicação fornecida por ele e a concepção da divisão infinitesimal de Santo Agostinho é o fato de Russell não pressupor o desnível entre a divisão racional das distâncias e a corrida real. Isso porque o próprio Russell mostrou, nos Principia mathematica (escrito em parceria com Alfred North Whitehead) e em Introdução à Filosofia Matemática, que a Matemática se funda em definições, que consistem na atribuição de uma ideia abstrata a casos particulares. Concebida dessa maneira, portanto, uma divisão infinita só pode ser o gênero a que casos particulares, inclusive o de intermináveis divisões de uma distância real em frações, correspondem.
"Acontece frequentemente numa série que haja um número infinito de termos intermediários entre dois que podem ser selecionados, por mais próximos que estes estejam entre si", diz Russell e dá como exemplo exatamente frações, entre as quais há outras - por exemplo, a média aritmética das duas" (Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 57). Mas isso não pode contradizer o fracionamento sucessivo de uma distância real. Pelo contrário, continua o matemático e filósofo, "séries desse tipo são de importância vital para a compreensão da continuidade, do espaço, tempo e movimento" (idem. p. 58).
Descartes reconheceu não ser "possível a divisão de de um corpo em partes tão pequenas que cada parte dessas não possa tornar a se dividir em outras ainda menores" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 86). Concordou, portanto, com Russell ou Russell com ele em que a divisão dos corpos estende-se ao infinitesimal. Porém, acrescentou que a divisibilidade dos corpos é indefinida e não infinita (como Russell admite), a fim de sublinhar a incapacidade do intelecto de discernir seus limites (idem). Essa incapacidade, esse limite indefinido para uns, infinito para outros é o que o paradoxo de Zenão enfoca.
Miseráveis que somos: não é fácil encontrar representações, no conhecimento, de que não seja possível duvidar! A Matemática não é exceção alguma. Reduzir uma distância a qualquer fração é um procedimento conceitual. Não há nele equívoco algum, porém sabemos que, no fundo ignoto de nossas representações, o conceitual se separa do real e deixa de corresponder-lhe. E, por não lhe corresponder, o que desaba não é só a explicação comum da corrida, mas a Física inteira: a de Newton, a de Einstein e a Quântica. Que Física não se baseia na representação do movimento entre dois pontos como uma redução da distância a frações dela própria? Que Física não se estrutura a partir dessa premissa?
Mas, se essa dúvida que ameaça a Física há de ser resolvida, pois nenhuma interrogação deve ser permanente, em que haveremos de dissolvê-la, senão na fé a que Russell aludiu? Na fé em que, embora a representação matemática (e com ela a Física) seja contraditória com o real, eles convergem num plano mais fundamental?
Cremos o tempo todo (e a ciência também o faz) que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último. O fato de a descrição matemática divergir, em algum ponto, do testemunho prestado pelos sentidos é um corolário da contradição entre eles. Mas a divergência não invalida o conhecimento humano do mundo. O que o pode invalidar é a detecção de uma grave irregularidade no interior do conhecimento. É perceber, por exemplo, que criamos contradições o tempo todo. Mas a contradição fundamental que apresentei não é dessa espécie. Ela não introduz outras. Além disso, é em si mesma estável. Não se altera. Concebemos todo objeto empírico, por meio da contradição fundamental mencionada e, sem ela, nada conheceríamos. De modo que ela gera conhecimento, não o impede.
Qual é, pois, o significado lógico da contradição mencionada? Que consequência ela tem para o princípio geral que proíbe contradições no conhecimento? Sabemos que esse princípio proíbe afirmar A e não A ao mesmo tempo. E não é isso que a contradição detectada realiza? Ela não afirma a disjunção entre o conceitual (A) e o empírico (não A) e utiliza, em seguida, o conceitual (A) para pensar o empírico (não A)?
Sem dúvida, mas o princípio da não contradição só vale absolutamente para o ser. Aplicado a qualquer outro conceito, ele permanece sujeito a dúvidas e deve ser entendido dialeticamente. Isso significa que o princípio não deve ser considerado imune a flexibilizações, refutações e negações. Porém, como o conhecimento é uma atividade regular e não errática, é preciso que as flexibilizações, refutações e negações não sejam arbitrárias, mas se subordinem a regras lógicas.
Que regras são essas? Vimos que não podem ser regras de aplicação de categorias, pois tanto as categorias aristotélicas como as kantianas são diretrizes absolutas de pensamento. Onde a dúvida reina, não há lugar para regras absolutas. Portanto, o conhecimento empírico não é regido por regras categoriais e sim dialéticas, porque flexíveis e válidas apenas em condições preestabelecidas.
Não convém especificar um conjunto fechado dessas regras, como Aristóteles e Kant fizeram ao enumerar as categorias, pois essa é uma tarefa impossível. Não há um conjunto fechado de regras não categoriais do pensamento, pois elas podem dar lugar a outras regras, se as condições para a sua aplicação faltarem.
Podemos, porém, mencionar algumas regras dialéticas para fins meramente exemplificativos. É dialética a regra que manda o intelecto distinguir entre o eu e as essências que ele concebe. Também o é a diretriz que manda construir essências por separação (disjunção). E é dialética a norma que proíbe a contradição no processo de formação de uma disjunção, porém não entre as disjunções. O conhecimento humano, como de fato é e não como o dogmatizamos, parece desenvolver-se por regras tais como essas.
Percebemos que, em tudo, a dúvida pode ser reavivada, quando aparece morta. Não há conhecimento absoluto, exceto o do ser. E, das espécies fundamentais de conhecimentos, a mais incerta é a dos sentidos, pois é a única que não existe a não ser por meio da contradição. Conhecer empiricamente é, de fato, contradizer o conhecimento.
E é claro que essa contradição importa uma grave dúvida. O que não significa que não conhecemos, mas que só conhecemos por meio da suspensão de tal dúvida por meio da fé. Em matéria de testemunho dos sentidos, conhecer é crer. Materialismo é fé. Não estamos longe da conclusão de Platão de que o conhecimento dos sentidos é doxa (opinião), nunca epistème (ciência). Apenas chegamos a esse resultado por um caminho distinto do que Platão elegeu. Ele afirmou a realidade indesafiável das ideias; a nós coube o quinhão da dúvida.
A FÉ E A ANTROPOFAGIA
A importância da dúvida para o conhecimento humano é tão vasta que não estou certo de que a levamos suficientemente a sério. O proveito que podemos haurir da dúvida não decorre do simples fato de duvidar, assim como os benefícios de pensar não advêm de pensar de qualquer maneira, mas de pensar consistentemente. Pensar todos pensam. Nem por isso pensam bem. Também duvidar todos duvidam. Pouco ou muito, não é o que mais importa: só extraímos da dúvida o que ela tem de mais precioso quando duvidamos com consistência.
Mas que significa duvidar com consistência? Esclarecer este ponto foi o objetivo do presente texto Quis sugerir que a Lógica não pode ser entendida como uma disciplina só do saber e do concluir, mas também do duvidar. Como a conclusão, para ser consistente, deve sujeitar-se a regras lógicas, o duvidar também o deve. Procurei mostrar que a dúvida consistente é a que se sujeita a certos princípios, assim como o que estabelece a relação entre a própria dúvida, a fé e o conhecimento, a passagem da dúvida temporária à permanente e a de ambas à descrença.
Assim como pensar bem não é o mesmo que pensar muito, duvidar com consistência não é duvidar sempre ou muito. Não é morrer abraçado à dúvida como a uma bandeira. Tampouco é endurecê-la até a transformar em descrença. Pelo contrário, duvidar consistentemente é saber passar da dúvida à fé e da fé à dúvida, por um movimento dialético. Mas para isso é indispensável conhecer as regras do duvidar.
Consideremos a dúvida introduzida pelo paradoxo de Zenão. Quando descreve a corrida entre Aquiles e a tartaruga como uma série de reduções da distância à metade, o paradoxo distrai-nos do fato de que a corrida pode ser indiferentemente descrita como reduções da distância a qualquer fração: 1/3, 7/19, 22/100. Passada, porém, a distração, não vemos como admitir que a representação matemática do movimento seja equivocada. Que pode ser mais claro que ela? Se o movimento entre dois pontos não for uma redução da distância a frações, a Matemática não pode ser utilizada para descrever fatos físicos, pois toda Física supõe exatamente isso. Portanto, o problema do paradoxo não se estende só a Aquiles e sua rival, mas a toda a Física. Newton, Einstein, Bohr e Heisenberg não podem estar certos, se a Física não passa pela prova do paradoxo.
Mais do que isso: se a representação matemática padece de inconsistências, como o paradoxo sugere tão fortemente, nenhuma outra descrição lógica do movimento é possível, pois todas seguem o feitio matemático. Em outras palavras, o problema que o paradoxo coloca é muito mais profundo do que parece à primeira análise.
Dúvida tão fundada e com aplicação tão vasta quanto essa ameaça inviabilizar toda a Física e todo o conhecimento dos sentidos. Mas exatamente por isso, o intelecto não se conforma em perpetuá-la. Sente a necessidade de resolvê-la, pois interrogação assim tão básica não apenas faz rodar a cabeça como torna a vida impossível. E em que podemos dissolver a dúvida suscitada pelo paradoxo, a não ser na fé? Até o mais empedernido cético crê que a Matemática descreve consistentemente a Física. Crê que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último, como demonstrado pela nossa real necessidade de pensar o movimento em termos matemáticos.
Assim, na instância fundamental do pensar, quando se defronta com as dúvidas axiais, o intelecto percebe que a descrença e a perpetuação da dúvida deixam de ser opções. Só a fé mostra-se funcional, pois só ela é capaz de garantir a higidez mental e a sobrevivência do próprio indivíduo.
São Boaventura escreveu: “Se a verdade não existe, é verdade que não há verdade. Portanto, há verdade”. Já se disse tudo sobre esse arrazoado, mas o seu significado claro, salvo melhor juízo, é de que a verdade acompanha todo o pensamento. Não é possível pensar e se ausentar da verdade. Outra máxima célebre prova que até o falso é, de certo modo, verdadeiro. Ao dizermos “Este enunciado é falso”, não provamos que a falsidade só é falsa enquanto verdadeira? Portanto, a verdade é um dado fortíssimo do pensamento.
Mas enunciados abstratos como esses só têm validade no campo do pensamento formal. Nada provam fora dele. Não provam que a cadeira para que olho é preta. Ela é ou não é preta independentemente de ser verdade que há verdade, pois o plano empírico se diferencia de modo absoluto do conceitual. Consequência disso é que a onipresença da verdade que extraímos do dito de Boaventura aplica-se apenas ao plano conceitual, não ao dos sentidos. Por isso, ela não torna nem um grau mais verdadeiro o conhecimento dos sentidos.
De onde vem, pois, a verdade desse conhecimento? Em que bases é possível sustentar que a revelação dos sentidos é verdadeira? Se a verdade abstrata não se aplica absolutamente aos sentidos, estes só podem ser verdadeiros em si e por si. Aquiles não é capaz de ultrapassar a tartaruga, porque é possível reduzir a frações cada vez menores a distância que o separa dela. A verdade empírica não depende da matemática. Aquiles pode ultrapassar a tartaruga, porque, em muitos casos, um ser mais veloz ultrapassa efetivamente um mais lento. A observação de um fato é o único fundamento da possibilidade de ele se repetir.
No entanto, esse conhecimento não é absoluto. E por que não o é? Porque observamos que os sentidos podem falhar e frequentemente falham. Porque os dados que coletamos por meio deles têm tal irregularidade. Somente por isso podemos duvidar de um conhecimento empírico.
Toda confirmação e toda refutação de conhecimentos empíricos depende da falibilidade intrínseca dos sentidos. Como Bertrand Russell sugeriu, podemos usar a matemática tanto para confirmar como para infirmar enunciados empíricos. Mas só o podemos se, além da matemática, utilizarmos o próprio conhecimento dos sentidos.
A irregularidade interna dos sentidos é a base de toda a dúvida empírica. O conhecimento desse plano seria absoluto como o do ser, se apenas e tão-somente não fosse tão irregular. Mas ele o é. E são os próprios sentidos que o demonstram. Enquanto o conhecimento da razão é saturado de verdade, o dos sentidos é saturado de variações e de erros.
Claro que a refutação de um enunciado empírico pode ser realizada com base na observação do que acontece, ao passo que a confirmação de enunciados é sempre provisória, pois não é possível vasculhar o Universo inteiro em busca da sua refutação. Por isso, a verdade empírica é sempre e também provisória. Mas de modo nenhum essa provisoriedade nos autoriza a afirmar, com Kant, que o noumeno (o objeto empírico) é desconhecido.
Nossa imagem do mundo surge em etapas. A primeira é a da recepção da energia que os objetos desprendem, em conformidade com as leis naturais. A recepção se dá durante a percepção, que é a representação mais objetiva possível ou, se o preferirmos, a representação do primeiro grau.
Essa representação primeira é idêntica ao que o objeto é para nós, pois é a própria energia que se desprendeu dele e se transportou ao sistema nervoso. E, por ser objetiva, ela é, em grande parte, um produto das leis naturais e as reflete. Não é um produto das categorias ou de outras representações abstratas, nem as reflete.
O ato de ver, ouvir ou sentir não se sujeita a categoria alguma. Ele se estrutura e se forma, unicamente, com base nas leis naturais. Ver é ver o material que chega ao órgão da visão em conformidade com essas leis. A realidade é, portanto, regida por leis naturais, não por categorias. Por isso, mesmo quando os objetos parecem assumir formas outras, como as das próprias categorias, é preciso reduzi-los, de novo, àquelas leis.
Claro que esse processo de percepção está sujeito a falhas e erros. Mas as imperfeições são menos frequentes nele do que nas etapas seguintes da representação. Daí o peso da representação primeira, na formação e transformação da nossa imagem do mundo, ser maior que o das representações das outras etapas. Nosso conhecimento deve mais à percepção do que às representações que a sucedem, pois a adota como critério supremo.
Na literatura religiosa, o ato de ver é oposto à fé. Andar por fé é o contrário de andar pela vista. Porém, isso se deve à objetividade muito maior do conhecimento dos sentidos do que à ausência de qualquer medida de fé nele. Ao mesmo tempo em que se opõem, a fé e a visão se implicam. Crer é não ver o objeto crido, mas é ver alguma coisa. Antes de ter sido detectado, o bóson de Higgs (a partícula de Deus) era crido, porque muita coisa tinha sido vista que exigia a sua existência. A fé é, pois, um balanço entre o ver e o não ver. E o contrário também é verdade: o ver é um misto de fé e conhecimento. Não há no conhecimento o que não o seja.
Depois da percepção, têm lugar a preservação de informações abstratas dos objetos e o processamento delas, de modo a produzir nossa imagem do mundo. Enquanto a representação de primeiro grau é o objeto destacado do que o circunda, a de segundo grau consiste no que o sujeito destaca do objeto, como as ideias de árvore, de cão e de lâmpada. E a de terceiro grau é uma espécie de totalização das informações coletadas anteriormente, a exemplo das categorias.
As representações do segundo grau são muito mais distantes do objeto do que as do primeiro. E as do terceiro grau o são ainda mais, pois não apenas prescindem de uma enorme quantidade de dados individuais das coisas como procuram representar porções cada vez mais vastas da realidade.
Claro que a transformação do conhecimento, da objetividade da percepção à imprecisão das categorias e suas espécies, assim como as cores, não pode deixar de inspirar dúvidas e mais dúvidas. A imagem humana do mundo não é construída sem que uma profusão de dúvidas seja produzida. Mas tampouco o é sem que um bom número dessas dúvidas seja suspenso por meio da fé. A dúvida dá sempre lugar à fé, e esta, ao menos enquanto se mantém razoável, também dá lugar à dúvida.
As representações do segundo e do terceiro graus não são cópias ou reproduções do real. Mas tampouco são recriações arbitrárias dele. Parecem-se mais com representações imprecisas, porém significativas do conjunto da realidade.
Vimos que a dúvida incide, intensamente, em todas essas etapas do conhecimento. Podemos dizer que ela se manifesta, na medida em que a observação se faz insuficiente. O problema é que a insuficiência é ingênita à observação. É o seu pecado original. Observar é ver, ouvir ou sentir de modo insuficiente para ter certeza. Por isso, a dúvida é sempre simultânea ao conhecimento, e a fé, à dúvida.
A dúvida é o prelúdio que a orquestra da mente toca ao anunciar a fé. É a música que introduz e inspira a melodia celeste da crença. Vivemos num tempo que perdeu toda noção desse fato. Num tempo que deseja parar o prelúdio, sem saber que fazê-lo é, no fundo e ao cabo, parar a própria mente.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.