A palavra grega doulos (escravo) abunda na Epístola aos
Romanos. Porém, nunca é empregada no sentido comum, para indicar o escravo
literal, o homem desprovido de liberdade. Pelo contrário, nas passagens em que
aparece, doulos é o escravo ou o servo espiritual.
Esse é o caso dos versículos 6:6,16-20,22.
Em 6:6, o lado negativo da escravidão espiritual é mencionado:
“Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o
corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos”. Servir
como escravo é uma tradução bem apropriada do pensamento do apóstolo. Paulo se
refere à mais dura relação dentre todas as que o homem pode manter, sobre a
Terra: a escravidão. Para entendermos o que ele pensa, porém, precisamos
retornar aos Salmos e ao Livro de Gênesis.
A Teologia e a Antropologia formulam uma mesma questão. Na Bíblia,
vemos a questão expressa no oitavo salmo: "Que é o homem para que dele te
lembres?" (Sl 8:4). A pergunta é formulada em tom solene, por não ter
resposta fácil. O homem é um mistério. Olhemos para a natureza: por que a
espécie humana e só ela elevou-se ao fastígio, em toda a criação? Por que o
homem e ele somente foi coroado de honra e de glória, quando Deus lhe submeteu
“ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo” (Sl 8:7)?
Gênesis parece indicar que o homem é vocacionado para o poder, não
para um poder que se exerce sobre o semelhante, sobre o outro homem, pois não
vemos essa lição expressa no primeiro livro da Bíblia. Tampouco lhe é dado
poder sobre os fenômenos naturais, mas sobre as criaturas vivas que Deus criou.
Não apenas sobre as criaturas que se chamam amigos do homem, como o boi e a
ovelha, mas também sobre as selvagens.
Sabemos, porém, que o homem decaiu desse estado e, ao fazê-lo,
perdeu as condições objetivas que antes possuía para exercer ascendência sobre
as criaturas vivas. Assim como foi criado para lavrar a terra, que veio a lhe
produzir cardos e espinhos, do mesmo modo, o homem foi criado para dominar os
seres cuja natureza os dispõe abaixo dele, mas esse domínio se fez sobremaneira
difícil depois da queda.
Por que se tornou difícil? A razão não parece estar na
indocilidade dos seres vivos, mas na corrupção da faculdade humana da
dominação, isto é, no poder do homem. Antes da queda, o homem devia
alimentar-se somente de vegetais: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que
dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que
há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento" (Gn 1:29). O homem
não agredia, portanto, os animais, nem derramava o seu sangue.
Da mesma forma, no Éden, ele podia comer livremente de toda
árvore, exceto uma (Gn 2:16-17; 3:2-4). Não se diz que comesse animais. Mas,
quando comeu da árvore proibida, está implícito que o homem perdeu o poder que
possuía de dominar sem derramamento de sangue. Seu poder passou, então, a
exercer-se pela força. Paulo nos informa, por isso, que a natureza geme e
suporta angústias até agora, vale dizer, desde a queda (8:22). Ele não se refere
às árvores, mas aos animais, pois sobre eles é que Deus mandou o homem exercer
o seu soft power.
A perda do poder de dominar sem oprimir está, porém, retratada em
Gênesis como exemplo de outros acontecimentos semelhantes, não como caso
isolado. Quando olhamos para as palavras de Deus à serpente, à mulher e ao
homem, após a queda (Gn 3:15-24), descobrimos quantas outras coisas a estirpe
de Adão perdeu com a queda. Perdeu a relação que tinha com a serpente, o bom
parto, que foi substituído pelo mais penoso, a liberdade da mulher, a
fertilidade da terra, o acesso à árvore da vida.
Devemos entender, porém, que esses são apenas outros tantos
exemplos das perdas que o homem sofreu com a queda. Assim como não se esgota na
corrupção da harmonia com os animais, a extensão das perdas humanas tampouco se
abrange nesses outros exemplos examinados. A lição de Gênesis parece ser de que
o homem perdeu ainda muitas outras coisas além das que já mencionamos com a
queda.
A grande questão antropológica que Gênesis 3 coloca, portanto, é:
que se torna aquele ser que perde tantas coisas? Na concepção do homem antigo,
a resposta à pergunta é clara: ele se torna um escravo. Só o escravo é alguém
destituído de tudo, como Adão após pecar. Gênesis mostra, portanto, que
Adão entrou no paraíso como rei e saiu como escravo. Lembra também que, de
todas as perdas que um escravo suporta, as maiores são a da liberdade e a da
personalidade.
No Direito Romano, o escravo era res (coisa), não persona (pessoa).
Não tinha liberdade, nem personalidade. Por isso, seu dono podia surrá-lo,
vendê-lo e até matá-lo, o que não ocorria com pouca frequência, nem com muito
escândalo. A antropologia bíblica, se existe mesmo uma, como acredito,
ensina-nos que essa é a condição do homem, depois da queda. Adão tornou-se um
ser depauperado até mesmo dos atributos da sua personalidade. Um verdadeiro
nada.
Sabemos, porém, que, ao lado da escravidão, os antigos conheciam
outra relação que envolvia desproporção de poder entre duas partes: a servidão.
Em grego, tanto a escravidão como a servidão se exprimiam pela mesma palavra,
mas eram muito distintas.
O fato de a relação servil não ser designada por um termo
específico deve inspirar-nos a devida reflexão, pois indica a ausência da
necessidade de diferenciar criteriosamente as relações mencionadas. Se
necessidade houvesse de discriminação, uma palavra específica para a servidão
teria sido criada, mas não o foi. Por quê? Penso que a resposta que a História
fornece é de que, embora a servidão existisse, não era tão comum quanto a
escravidão. Sabemos que o modo de produção predominante no Império Romano era o
escravagista. Nesse contexto, o avassalamento do servo a um senhor ainda
esperava para se tornar predominante, o que só viria a ocorrer na Idade Média.
Porém, ainda assim, a servidão não estava ausente. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado,
Engels mostrou que ela já havia fincado raízes, no mundo romano, havia algum
tempo, quando Paulo escreveu Romanos. Só não era a relação mais importante,
pois não dava suporte à técnica produtiva. Essa função cabia à escravidão.
Porém, como já vimos, a servidão era distinta da escravidão.
Diferentemente do escravo, o servo era considerado pessoa e usufruía de certa
liberdade. Não podia ser preso, surrado, vendido ou morto, a não ser em casos
especiais. Por meio dessas diferenças, percebemos que o pecador descrito por
Paulo, em Romanos, corresponde ao escravo, e o homem liberto do pecado, ao
servo.
Por isso, quando se declara servo de Jesus Cristo (1:1), devemos
compreender que Paulo passa do caso comum de doulos (do escravo) ao caso menos comum (do
servo). Isso está claro no décimo-sexto versículo: “Não sabeis que daquele a
quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis
sois servos?” Paulo não diz que somos subjugados por aquele de quem nos
tornamos servos. Isso seria próprio da escravidão. Afirma, ao
contrário, que nos oferecemos livremente para sermos servos.
Infelizmente, alguns mestres, na ânsia ou premência de ensinar
novidades, insistem em se referir a esse segundo sentido de doulos como
uma escravidão (a Deus ou a Cristo). Esse é um desvio do ensinamento de Paulo,
pois, como vimos, o escravo era destituído não só de liberdade, mas até de
personalidade, o que não é próprio do cristão. O fato de se submeter a Deus não
despoja o homem seja da sua liberdade, seja da sua personalidade. Não o torna res, coisa. Por isso, o cristão deve ser considerado o
que de fato é: servo, não escravo, de Deus.
Em Filipenses 2:6-7, vemos que a condição de servo que Paulo se
atribuiu em Romanos 1:1 foi assumida pelo Filho de Deus, Jesus Cristo ao
encarnar-se: “pois ele, subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação
o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo,
tornando-se em semelhança de homens”. Jesus foi o primeiro servo de Deus. Antes
dele, só existiam escravos do pecado e (por que não dizer?) de Deus. O homem
que se sobrecarregava de obrigações legais para servir a Deus tornava-se
escravo de Deus. E, por não as cumprir, fazia-se escravo também do pecado (Jo
8:34).
Na passagem citada de Filipenses, porém, a palavra servo é
empregada de um modo tão essencial à pessoa encarnada de Cristo que parece
indicar a condição essencial do homem. Não sua antiga condição, que Gênesis
descreve como uma escravidão, mas uma condição inteiramente nova. O fato de
Cristo ter-se esvaziado da igualdade com Deus e se ter feito servo não ficou
sem consequências. Pelo contrário, Cristo Jesus se tornou o primeiro de muitos
servos de Deus. Criou, em si, uma nova condição humana, que é indicada pelo
segundo significado da palavra doulos.
Em 1ª aos Coríntios 15:45, Cristo é denominado o último Adão. E de
fato o foi, já que pôs fim à estirpe adâmica. Porém, raras vezes é lembrado
que, em 1ª aos Coríntios 15:47, ele é também chamado o segundo homem. Recebe
esse título, não apenas porque, em toda a saga da humanidade, houve dois e
somente dois homens (Adão e Cristo), mas também porque houve duas e somente
duas condições humanas: a de Adão e a de Cristo. A primeira foi a escravidão ao
pecado, a outra é a servidão a Deus.
Não por outro motivo, fomos batizados na morte de Cristo (6:3-4).
Cristo morreu como o último Adão, ressuscitou como o segundo homem. Por isso, o
batismo é a sepultura de Adão, de todos os Adões; e a ressurreição é uma
maternidade de novas criaturas forjadas à imagem do segundo homem.
Paulo escreve: “como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela
glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). A que
novidade ele se refere? À que, no verso seguinte, chama “semelhança
da ressurreição de Cristo” (6:5). A declaração solene que Paulo faz sobre essa
semelhança deveria bastar contra as alegações dos que afirmam que
experimentamos a realidade da ressurreição de Jesus. Paulo não o afirma. A
novidade de vida a que ele alude é a semelhança, o esboço simbólico, da
ressurreição do Filho de Deus. O que passa disso é mística alucinada. É
pajelança hermenêutica.
O mesmo se aplica ao batismo: Paulo não afirma que morremos,
literalmente, com Cristo, pelo batismo ou por qualquer outra experiência
cristã, sacramental ou espiritual. Declara que fomos unidos a ele na semelhança
da sua morte. São suas palavras: “Se fomos unidos a ele na semelhança da sua
morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5).
Não experimentamos, portanto, a realidade, mas a semelhança da morte de
Cristo.
A semelhança seja da morte, seja da ressurreição é um estado em
que ingressamos pela eficácia da declaração divina. Unimo-nos a Cristo na
semelhança da sua morte, porque Deus nos declara mortos com ele, não
literalmente, mas no que diz respeito à possibilidade de retornarmos ao pecado.
E unimo-nos a ele na semelhança da sua ressurreição, pois Deus declara o nosso
direito a uma vida que não transcorre à revelia de Deus, mas em união com ele.
Que união é essa? Não é a que se convencionou denominar união orgânica.
É antes um nunca-ser-abandonado-por-Deus. É a realização plena do
vigésimo-terceiro salmo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não
temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23:4). Esse salmo é,
sabidamente, o Monte Everest do Antigo Testamento. E o seu quarto
versículo é como o cimo do monte. Eles o são, aliás, não doutrinariamente, mas
por indicarem uma experiência que não é própria do Antigo Testamento e sim do
Novo. Salmo 23 é o Novo Testamento no Antigo; e o versículo 4 dele é Romanos 6
no Saltério!
A Teologia da Libertação, cuja influência foi determinante na
transformação cultural da América Latina, defende não só uma opção pelo pobre,
mas que a condição essencial do cristão é de pobreza material e espiritual.
Embora haja um mal-entendido nessa afirmação, posso aceitar a pobreza (talvez
seja melhor dizer carência) a que ela se refere como elemento intrínseco da
servidão em que Cristo nos introduziu.
A carência não está menos implícita em 6:16 do que em
Filipenses 2:6-7: “Não sabeis que aquele a quem vos ofereceis como servos para
obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a
morte, ou da obediência para a justiça?” (6:16). A servidão aí aludida
pressupõe um despojamento tanto espiritual como material. Despojamento
espiritual porque Cristo esvaziou-se da igualdade com Deus, e devemos
esvaziar-nos das coisas da nossa velha condição. Despojamento material porque
toda servidão envolve carência de recursos indispensáveis para viver em
condição de abundância.
Mais uma vez, vemos isso expresso no Antigo Testamento, cujos
profetas foram íntimos do despojamento material. Alguns tiveram abundância de
bens por certo tempo, porém, quando isso ocorreu, faltaram-lhes as condições
necessárias para usufruir perenemente daqueles bens. De modo que, quando os
bens abundavam, o uso que o homem de Deus fazia deles estava sujeito a
sobressaltos. E quando não estava sujeito a sobressaltos, os bens não eram
abundantes.
Essa carência não era exatamente pobreza, pois nem todos os servos
de Deus, no Antigo Testamento, foram pobres. Porém, todos foram carentes, já
que ninguém teve a posse das condições necessárias para usufruir de modo
tranquilo e constante do que possuía, fosse pouco, fosse muito. Pelo contrário,
nas circunstâncias de vida deles, sempre reinaram a instabilidade e a
insegurança.
Não creio que o apóstolo, que exortou os romanos a apresentarem
não a sua alma, mas o seu corpo a Deus como instrumento de justiça (6:13,19),
pretendesse excluir da servidão a Deus o elemento material da carência, que lhe
era intrínseco no Antigo Testamento. Podemos ter ou não ter, ter pouco ou ter
muito: em todos os casos, é nosso dever tomar o pouco ou o muito como condição
precária, isto é, transitória de vida. É nosso dever ter consciência de que a
precariedade não é uma tendência ao muito, mas ao pouco. Não é tendência a
ganhar, mas a perder.
Carência e precariedade, porém, foram somente o princípio da
experiência que Cristo teve da servidão. Filipenses prossegue: “e, reconhecido
em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e
morte de cruz” (Fp 2:7-8). O que principiou como carência e precariedade
consumou-se como morte e morte de cruz.
Por isso, na epístola tão frequentemente esquecida que é 2ª aos
Coríntios, lemos que “Cristo foi crucificado em fraqueza”. E que “nós também
somos fracos nele” (2 Co 13:4). Pode-se pensar que, na cruz, só os fracos são
levantados. Mas quem poderia esperar que Paulo descrevesse a condição
apostólica como uma fraqueza? Não são os apóstolos gloriosos, sábios, santos e
impolutos? Não são eles poderosos em Deus? Sim, mas, apesar disso tudo e mais
intensamente do que tudo isso, Paulo afirma que eles são fracos em Cristo.
Poderia uma afirmação mais insólita ser formulada no Novo Testamento?
A servidão se consuma, portanto, em quatro passos: carência,
precariedade, cruz e morte. Não nos é dado retirar qualquer deles, para aliviar
a condição cristã do seu peso inerente. Nela, ganhar é realmente perder. É
sofrer a carência, a precariedade, a cruz e a morte em alto grau, como Cristo
as sofreu em primeiro lugar, e em grau altíssimo.
A
MULHER-ESCRAVA E SEUS DOIS MARIDOS
Após ter apresentado as condições opostas do homem escravizado ao
pecado e sujeito a Cristo, Paulo passa a ilustrar o seu pensamento com o caso
da mulher ligada ao marido pela lei matrimonial. O caso é apresentado em forma
de parábola, que o apóstolo conta e interpreta em apenas três versículos:
“Ignorais, irmãos [...] que a mulher casada está ligada pela lei ao marido,
enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal.
De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com
outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei, e não será
adúltera se contrair novas núpcias. Assim, meus irmãos, também vós morrestes
relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a
saber, aquele que ressuscitou dentre os mortos” (Rm 7:1-4).
Desde a publicação da obra de Joachin Jeremias sobre as parábolas
bíblicas, sabemos que essa figura de linguagem incluía desde simples exemplos
citados para ilustrar um ensino até narrativas elaboradas como a do filho
pródigo. Sob esse ponto de vista, os versículos 2 a 4 do capítulo 7 devem ser
considerados uma parábola contada por Paulo para ilustrar o que havia afirmado
no capítulo anterior, a saber: a passagem do homem da escravidão ao pecado à
servidão a Deus.
Porém, ao explicar sua parábola, Paulo revela-se um mestre
diferente de Jesus. Quando se dirigia aos discípulos, Jesus interpretava as
parábolas que lhes contava em poucos versículos ou, às vezes, num só. Paulo se
estende muito mais na interpretação da parábola de Romanos 7. Embora o verso 4
nos dê um resumo do significado da mulher e seus maridos, os versículos 5 a 25
continuam longamente a interpretar a parábola e a aplicá-la aos romanos.
Os leitores judeus e gregos da epístola sabiam que tanto a lei de
Moisés como o Direito Romano previam que, quando o marido morresse, a mulher
estaria liberta de suas obrigações para com ele e poderia casar-se com outro
homem. Porém, Paulo aplicou esse exemplo não ao ser humano inteiro, mas à mente
considerada de modo específico. A mulher ligada ao primeiro marido representa a
mente no estado de escravidão ao pecado. E a mulher unida ao segundo marido é a
mente sujeita a Cristo, por meio do Espírito que habita nos que creem nele.
Isso se torna evidente no versículo 5, em que Paulo afirma:
“Porque, quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas postas em
realce pela lei operavam em nossos membros a fim de frutificarem para a morte”.
A palavra porque conecta, manifestamente, o versículo 5 ao 4. Ela mostra que o
verso consecutivo explica o que o antecede, isto é, que a mulher que morreu
para a lei do primeiro marido é o ser humano sob as “paixões do pecado”.
Não há como duvidar disso. E, se continuarmos a ler o capítulo,
com a devida atenção, notaremos que os versículos 6 a 14 não mudam de tema. De
modo que a única peculiaridade dos versículos de 7:5 a 7:14 consiste em mostrar-nos
como a sujeição ao pecado se dá. Romanos 1 a 6 afirmam a escravidão do homem ao
pecado, porém não explicam o “como” dessa escravidão, vale dizer, o modo como
acontece. Precisamos percorrer, com atenção, os versículos 5 a 14 do capítulo 7
para entendermos esse ponto crucial.
No entanto, nos versículos 15 a 25, outro ponto é desenvolvido.
Nesse trecho final do capítulo, Paulo já não trata, simplesmente, do império do
pecado sobre o ser humano. Trata antes de um conflito, de uma oposição
dilacerante, que se desenvolve entre a inclinação da mente e a da carne do ser
humano. O primeiro versículo dessa subseção estabelece: “Porque nem mesmo
compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim, o
que detesto.”
Esse versículo não está desligado da parábola mencionada em 7:2-4.
Pelo contrário, ele é uma explicação da parábola, tanto quanto os versos 7:5-14
o são. A única diferença é que 7:5-14 nos falam da submissão da mulher ao
primeiro marido, ao passo que 7:15-25 discorrem sobre a sua insubmissão.
Nenhum ser humano é apenas submisso. Nem mesmo o escravo. Embora
seja usualmente dócil e sujeito ao jugo que lhe fustiga a cerviz, no recôndito
de sua alma, o escravo cultiva a insubmissão. Deseja que o vínculo que o
sujeita ao senhor se desfaça. Na Antiguidade, a mulher era uma espécie de
escrava doméstica. Por isso, Paulo a compara ao homem sujeito ao pecado.
Mostra, também, que a mulher era uma escrava que podia libertar-se do marido
quando este morresse.
O auge do tratamento que Paulo dispensa ao conflito da
mulher-escrava encontra-se no versículo 15. Nesse trecho, o apóstolo
afirma que, ao pecar, o homem não realiza o que quer, mas o que não deseja.
Essa dissociação do querer e do agir abre uma fissura no eu, uma espécie de
ruptura entre a vontade e o comportamento do homem. Sabemos que, no século I,
várias correntes de pensamento platônicas dividiam a alma numa parte racional
(mente), outra volitiva (vontade) e uma terceira parte apetitiva (paixões). É
provável que Paulo tenha entrado em contato com essas correntes e, até certo
ponto, se inspirado nelas ao afirmar a ruptura já mencionada.
Porém, percebemos que ele não adota o pensamento de qualquer
daquelas correntes. Pelo contrário, Paulo reconduz a inspiração platônica ao
ensinamento bíblico. Sinal claro disso está no fato de ele não se referir às
paixões carnais e à mente como partes da alma, como os platônicos geralmente
faziam. Afastando-se deles, Paulo considera as paixões e a razão diferentes
experiências da mulher sujeita ao primeiro marido. Como todo escravo, a mulher
obedece ao seu dono sem reservas. Mas, também como era comum ocorrer com os
escravos, sua obediência é considerada apenas exterior. Por dentro, a mulher
cultiva conflitos e uma funda insubordinação ao marido cruel, do qual deseja
libertar-se, ainda que seja por meio da morte.
Esse conflito, Paulo nos diz, representa o do homem com o pecado
que atua por meio das paixões carnais. No versículo 9, ele já firmara:
“Outrora, sem lei, eu vivia, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu
morri”. É provável que a palavra outrora , nesse versículo, signifique a
meninice do apóstolo, a idade que antecede o uso da razão. Numa epístola como
Romanos, em que o império do pecado sobre todo homem é claramente afirmado, a
cláusula “outrora eu vivia” aconselha-nos certa cautela. Mostra-nos que o
império do pecado não é totalmente universal. Claro: não se pode negar a
universalidade do pecado e da morte expressa em Romanos 1 a 3. Porém, não se
trata de uma universalidade ilimitada ou absoluta, pois de algum modo ainda
pode haver vida, onde Paulo afirma que o pecado abunda. É o que está indicado
na frase "Outrora, sem lei, eu vivia".
Porém, o apóstolo continua e o faz com toda ousadia. Ele afirma
que a paz que teve com Deus terminou, quando conheceu o mandamento da lei. Não
que a lei se tenha transformado em pecado. Pelo contrário, ela é santa, e o
mandamento, santo, justo e bom (7:12). Mas, embora santo, o mandamento que deu
vida a Paulo na meninice deixou de o fazer, quando ele se colocou na
perspectiva da idade adulta. Quando isso ocorreu, Paulo morreu. É o que ele nos
diz em Romanos. De onde proveio essa morte? Não veio do mandamento,
que é santo e não pode matar. E, se não proveio daí, só pode ter
vindo do elemento pecaminoso desenvolvido a partir de Adão.
Esse elemento pecaminoso está na carne do homem, que de modo
nenhum é uma parte do seu ser. A carne não é uma parte, um trecho, uma seção do
homem, porque não pode ser apartada dele, enquanto o homem vive. Somente o que
pode ser apartado deve ser considerado parte. Enquanto estamos neste
tabernáculo, para usarmos a palavra empregada por Paulo em 2ª aos Coríntios 5,
nem a mente, nem a vontade, nem os apetites carnais podem ser apartados do
homem. Todos funcionam de maneira integrada. Portanto, nenhum deve ser
considerado parte.
É verdade que Hebreus 4:12 afirma que a palavra de Deus é capaz de
separar corpo e alma. Porém, isso significa que, se a palavra de Deus tem tal
capacidade, nós não a temos. Ou não é isso que as Escrituras ministram? A
palavra de Deus foi capaz de criar o Universo: somos nós capazes de o fazer
também? Se não o somos, devemos concluir que tampouco podemos separar corpo e
alma.
A inseparabilidade radical do corpo e da alma, com tudo o que
neles há, enquanto a palavra de Deus não os cindir, é a causa do conflito atroz
que Paulo descreve em 7:15-25. A mente guerreia com a carne, porque estão
juntas no mesmo homem. O núcleo do conflito entre as duas está
expresso nos versículos 21 e 22: “Acho então esta lei em mim, que, quando
quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho
prazer na lei de Deus”.
Como fariseu (At 23:6) educado aos pés de Gamaliel (At 22:3), o
que ele nunca negou, Paulo centrava sua vida espiritual na lei de Deus.
Por isso também, ele reduzia o conflito entre o querer e o fazer do homem a uma
lei que denominou “lei da mente”: “Vejo nos meus membros outra lei que,
guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que
está nos meus membros [...] De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou
escravo [servo] da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”
(7:23,25).
Romanos 6 a 8 referem-se à lei dada por meio de Moisés como
lei de Deus. Porém, esses capítulos também tratam de outra lei divina, que
precisa ser descoberta. Só algo sutil e oculto pode ser descoberto. Portanto,
essa outra lei recôndita é a Torá enquanto conhecida pela mente humana. Quando
o homem chega à idade da razão, o conhecimento que adquire da lei de Deus
torna-se para ele a própria lei de Deus subjetivamente considerada. Essa é a
lei da mente a que Paulo se refere.
O problema enfocado em Romanos 7 é que a contradição entre a lei
da mente e a lei do pecado nos membros produz um conflito terrível, que não
raro descamba para uma experiência traumática. Lutero sucumbiu a essa
experiência, ao descobrir as exigências dos Dez Mandamentos e se entender
incapaz de cumpri-los. John Wesley também sucumbiu a ela ao pregar o evangelho
aos selvagens da América do Norte sem compreender a sua própria impotência para
praticar o que pregava. E somos levados a crer que Paulo teve a mesma
experiência ao perseguir os cristãos, a fim de forçá-los à obediência a Moisés.
Não haveria problema no conflito entre esses dois modos de ver a
lei, se a carne do homem não estivesse enferma, no tocante a cumprir a
exigência da lei de Deus. De onde provém a sua enfermidade? De Adão, porém não
como herança genética ou espiritual. Ela provém do princípio de Adão, que é o
pleno conhecimento da exigência de Deus para o homem. Adão conheceu a exigência
de Deus. Não teve, porém, o poder de satisfazê-la. Do mesmo modo, os seguidores
judeus ou gentios do Antigo Testamento conhecem os mandamentos de Deus, mas não
têm o poder de cumpri-los.
Quando afirma que a lei se tornou “enferma pela carne” (8:3),
Paulo não está a sugerir que algo negativo infiltrou-se na lei pela carne, mas
que algo negativo entrou no homem pelo pecado, a saber: a fraqueza ou enfermidade
para cumprir o preceito de Deus. O corpo é naturalmente propenso às paixões, o
que não significa que é mau ou pecaminoso. É apenas mais inclinado que a mente
a pecar. Assim é na criança e no adulto. Porém, não é isso que Paulo chama
pecado em Romanos. Nessa epístola, pecado é a ressurreição, o avivamento da
fraqueza da carne, por meio da lei.
Esse avivamento é o que gera o grave conflito descrito no capítulo
7, que começa no instante em que o homem percebe que a lei da sua mente
guerreia contra uma segunda lei subjetiva: a lei do pecado na carne. Assim como
a mente compreende e consente com a lei de Deus, a carne também o faz. Mas, ao
mesmo tempo em que compreende o mandamento de Deus, ela se inclina a
descumpri-lo, pois a natureza física do homem o impele a pecar, quanto mais ele
se afasta de Deus. Por isso, quando conhece a lei, a carne produz outra
lei que guerreia contra a lei da mente.
Essa é a lei que liga a mulher ao primeiro marido. É a única fonte
de escravidão existente na Terra. O homem só pode tornar-se escravo do pecado
de uma maneira: se ele próprio tomar a lei de Deus, de acordo com as
inclinações da sua carne: então, em primeiro lugar, ele matará Deus, a fim de
trocá-lo por um ídolo. Em segundo lugar, matará o seu próximo, o seu irmão,
como Caim matou Abel. Ou não foi essa a consequência imediata ao pecado de
Adão? Por fim, se nada for feito para conter a decadência, o pecado infestará
cada parte da humanidade, de modo a introduzir a guerra de todos contra todos
ou, simplesmente, a lei do mais forte. Não é o que vemos no mundo?
O
ESPÍRITO HUMANO
A parábola dos dois casamentos é a chave para a compreensão dos
capítulos 7 e 8. Ela mostra, alegoricamente, que o ser humano é semelhante à
mulher e que a experiência de crer em Cristo é comparável a uma união
matrimonial. Paulo já havia afirmado isso, em 1ª aos Coríntios 6:16-17: “Não
sabeis que o que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se
diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito
com ele”. Embora apareça em Coríntios e outras passagens, a união assim
enunciada só é totalmente explicada em Romanos.
A parábola de 7:2-4 mostra-nos que a união do crente com Cristo
não é um casamento comum, mas um segundo casamento. Em tese, por se tratar de
um segundo matrimônio, Paulo poderia colocar um divórcio antes dele, mas opta
por colocar a experiência da morte. Afirma que o segundo casamento da mulher é
precedido da morte do primeiro marido, o que faz com que a união com Cristo
seja impossível sem uma experiência de morte e ressurreição.
Isso não é novidade absoluta, pois, no capítulo 6, o apóstolo já
havia afirmado que “os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na
sua morte [...] sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo
foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós
em novidade de vida” (6:3-4). Resta, porém, estabelecer com clareza o que deve
morrer para que o homem se una a Cristo. Essa não é uma questão simples, à luz
da História da Igreja, uma vez que diferentes pregadores e mestres sugeriram
coisas bem diversas sobre o tema.
Vários desses mestres notaram que a Bíblia está repleta de imagens
e símbolos. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, é um livro inteiramente
constituído por esses elementos. Não é diferente em Romanos 7. Nesse capítulo,
o primeiro marido é um símbolo de algo negativo para o qual temos de morrer, a
fim de nos unirmos a Cristo, o segundo marido.
Vimos, na postagem anterior, que a mulher da parábola é a mente
humana, pois, assim como a mulher é dominada pelo primeiro marido, enquanto ele
vive, o apóstolo afirma que a mente é subjugada pelo pecado na carne: “Vejo nos
meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz
prisioneiro da lei do pecado” (7:23). De maneira que eu, de mim mesmo, com a
mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado”
(7:25).
Isso nos mostra que o que deve morrer (o primeiro marido) não é o
corpo, nem as suas sensações, nem a mente ou os pensamentos dela, mas as
paixões carnais do ser humano. Esse é um primeiro ponto fundamental, que
Romanos, mais que qualquer outro livro bíblico, nos ensina.
Há, porém, outro ponto, que também é esclarecido de modo
incomparável em Romanos. Refiro-me ao modo como a morte das paixões se dá. Já
se observou, com razão, que, em Romanos, o espírito humano tem lugar bastante
proeminente. No capítulo 1, Paulo afirma servir a Deus no seu espírito (1:9).
No capítulo 7, esse serviço a Deus “em novidade de espírito e não na caducidade
da letra” (7:6) é reafirmado. E, no capítulo 8, versículo 10, o apóstolo
completa: “Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto, por causa do
pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça”.
A esses versículos poderíamos acrescentar ainda o que afirma que
“o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16).
Esses quatro versos dão-nos uma revelação, pois esclarecem, um tanto
completamente, a função do espírito humano. Nenhum outro livro bíblico fornece esclarecimento
maior ou mesmo comparável ao desses quatro versos, no tocante à função do
espírito.
Não que os quatro versículos valham mais do que outros da Bíblia.
Mas devemos lembrar que Romanos é o único tratado bíblico escrito com o
objetivo de interpretar exaustivamente o evangelho de Cristo. Portanto, o que
ele afirma, afirma com intenção de definir. Isso se aplica, de modo especial,
ao ensino a respeito do espírito humano, que em Romanos 7 e 8 assume coloração
particularmente nítida.
Em O homem espiritual,
Watchman Nee explicou, detidamente, o que, em Teologia, se costuma denominar
tricotomia, isto é, a existência do espírito, da alma e do corpo no homem. Ao
fazê-lo, Nee desenvolveu uma doutrina das partes do homem. De fato, para ele, o
espírito, a alma e o corpo são partes do ser humano, como se depreende das
seguintes passagens da sua obra:
“O resultado de nossos achados, tanto no estudo da Palavra como na
experiência, diz-nos que, com cada experiência espiritual (por exemplo, o novo
nascimento), realiza-se uma mudança especial em nosso homem interior. Chegamos
à conclusão de que a Bíblia divide o homem em três partes: o espírito, a alma e
o corpo” (NEE, Watchman. O
homem espiritual. São Paulo: Betânia. Primeiro Prólogo. p. 6).
“É por meio do corpo que o homem entra em contato com o mundo
material. Daí podemos qualificar o corpo como a parte que nos faz conscientes
do mundo. A alma é formada pelo intelecto, que nos ajuda no presente estado de
existência, e as emoções, que procedem dos sentidos. Posto que a alma pertence
ao próprio eu do homem e revela sua personalidade, é chamada a parte que tem
autoconsciência de si mesma. O espírito é a parte mediante a qual nos
comunicamos com Deus, e só por ela podemos perceber e adorar a Deus” (idem. p.
20).
Ao chamar o espírito, a alma e o corpo partes do homem, Nee apenas
reflete o que estava posto no embate das correntes que defendem que o homem é
composto de corpo e alma (dicotomia) e de corpo, alma e espírito (tricotomia).
Os próprios termos dicotomia e tricotomia contêm o radical tomo, que significa
parte. Portanto, a discussão que se propôs, há muito tempo, por meio deles,
nunca foi se o homem tem partes, mas se tem duas ou três.
Infelizmente, quando posto dessa maneira, o problema da dicotomia
e da tricotomia se torna não só insolúvel como induz a outros equívocos. Por
exemplo, o de que a alma e o espírito também têm partes, o que Nee ensinou ao
escrever:
“Segundo os ensinamentos da Bíblia e a experiência dos crentes,
pode-se dizer que o espírito humano compreende três partes. Ou, expresso de
outro modo, se pode dizer que tem três funções principais. Estas são a
consciência, a intuição e a comunhão” (idem. p. 25).
“Neste breve estudo bíblico se torna evidente que a alma do homem
possui a parte conhecida como vontade, a parte conhecida como mente ou
intelecto e a parte conhecida como emoção” (idem. p. 35).
“As partes proeminentes da alma são a mente, a vontade e a emoção
do homem. A vontade é o órgão da decisão e em consequência o dono do homem. A
mente é o órgão do pensamento, enquanto que a emoção é o do afeto” (idem. p.
44).
Essas divisões do ser humano em partes tendem a inculcar a ideia
de que cada parte exclui a outra. Como a mente, por exemplo, se localiza na
alma, não pode estar no espírito. Disso se conclui que, se o espírito tem a
importância que Paulo lhe atribui, em Romanos, o mesmo não se pode dizer da
mente.
Mas não é isso que Paulo ensina. Para ele, o espírito é, sim, o
ponto de partida da salvação de Deus, mas de modo nenhum exclui a mente. O espírito
não é uma não-mente. Se a mulher da parábola de 7:2-4 representa a mente e
serve a Deus “em novidade de espírito” (6:7), o espírito não pode excluir a
mente.
Só aparentemente, o espírito tem natureza não mental. Em 1ª aos
Coríntios 14:14-15, Paulo afirmou: “Se eu orar em outra língua, o meu espírito
ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o
espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também
cantarei com a mente” (1 Co 14:14-15).
Aparentemente, nesses versículos, a mente não é o espírito, e o
espírito não é a mente. Mas, se olharmos com atenção, perceberemos que os dois
não são tão estanques. A mente que fica infrutífera é a do homem que ora sem
compreender o que diz, por falta de quem o interprete. Paulo atribui a oração
assim realizada ao espírito e não à mente. Porém, o não envolvimento da mente
não implica que, se a oração for feita na língua comum, o espírito não orará. A
oração numa língua estranha não ser compreendida pela mente não implica que a
oração na língua comum não será compreendida pelo espírito. Romanos sugere, ao
contrário, que o espírito e a mente oram, quando o homem se dirige a Deus com
palavras inteligíveis. Por isso diz: "Orarei com o espírito, mas também
orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a
mente" (1 Co 14:15).
O espírito não é feito de não-pensamento, pois nada há, no homem
interior, que não seja algum tipo de pensamento. Por isso Paulo nos diz que o
espírito do homem “conhece as coisas do homem” assim como o Espírito de Deus
conhece as de Deus (1 Co 2:11). Não há conhecer sem pensar. Portanto, o saber
do espírito humano é um pensar.
Só não é um pensar consciente, um pensar comandado pela faculdade
da atenção. Assim como o coração bate, independentemente da nossa atenção, o
espírito pensa e conhece, independentemente de nos darmos conta. Não é preciso
mais para indicar que o que, nas epístolas paulinas, se denomina “espírito da
mente” (Ef 4:23), em Psicanálise, é o inconsciente individual.
O espírito humano é o homem dobrado sobre si mesmo, voltado para
dentro de si, para as suas profundezas. É o homem enquanto não tem e não usa
qualquer conhecimento advindo do mundo externo, o homem mergulhado no universo
da sua memória e que só se relaciona com o que encontra ali.
Paulo diz que esse espírito é o próprio homem, não parte dele.
Pergunta: “Qual dos homens sabe as coisas do homem?” E responde: “senão o seu
próprio espírito que nele está?” (1 Co 2:11). Portanto, o espírito não é parte
do homem, mas o homem todo, pois a sua memória é tudo o que ele jamais viveu.
Paulo acrescenta: “Assim também as coisas de Deus ninguém as
conhece, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2:11). Nesse versículo, as palavras
“assim também” estabelecem claro paralelo entre o espírito do homem e o de
Deus. Do modo como o espírito humano conhece as coisas do homem, o Espírito de
Deus conhece as de Deus. Como as conhece? Se estabelecemos que o espírito do
homem conhece pela lembrança, devemos concluir que o Espírito de Deus conhece
da mesma maneira.
Deus é infinitamente sábio. Essa sabedoria, enquanto relacionada à
criação e ao mundo material, é o Logos (Cristo); enquanto relacionada à mente
de Deus ou de Cristo (1 Co 2:16), é o Espírito. Tudo isso é conhecimento. Nada
é isento de conhecimento.
Nada há de errado com o ensinamento de que o espírito humano é a
cabeça de ponte da salvação de Deus. Ele o é, pois a salvação começa nele. Por
isso, quando declara que “os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da
carne, e os que se inclinam para o espírito, das coisas do espírito” (8:6),
Paulo toca o grande mistério. Dá-nos, ao mesmo tempo, a aplicação prática de
tudo o que ministrou antes.
A aplicação da salvação de Deus envolve o espírito humano, porque
Deus ali habita. Quem se une a uma prostituta se torna uma só carne com ela,
mas “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). “O
Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses
versos confirmam que o espírito é o posto avançado, a cabeça de ponte da
salvação, porque algo diferenciado acontece nele. Não algo diferenciado por não
envolver a mente ou a razão, mas ao contrário por envolver um novo tipo de
pensar, que Paulo denomina cogitar das coisas do Espírito: “Porque os que se inclinam
para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o
Espírito, das coisas do Espírito” (8:6).
O segredo do espírito não é o não pensar, o pensar menos ou o
pouco pensar. É, antes, o novo pensar e o pensar o radicalmente novo.
A
LEI DO ESPÍRITO DA VIDA
Na literatura e no culto cristão, o Espírito Santo é mencionado em
fórmulas às vezes tão repetitivas que corremos o risco de o tomar como um tema
trivial. Porém, quando prestamos atenção no modo como Cristo e os apóstolos se
referiram ao Espírito de Deus, verificamos que ele nada tem de comum. Romanos
8:1-16 é exemplo claro disso. Nesses versículos, a palavra Espírito é usada 17
vezes, quase sempre para se referir à pessoa do Espírito Santo, em termos
inusitados e surpreendentes.
A primeira menção do Espírito aparece no versículo 2: “Porque a
lei do Espírito da vida em Cristo Jesus me livrou da lei do pecado e da morte”!
Paulo não diz, aí, simplesmente, que o Espírito o livrou do pecado e da morte.
Diz que a lei do Espírito o fez. Portanto, associa o trabalho do Espírito a uma
lei.
Isso é próprio da mentalidade judaica, para a qual toda revelação
de Deus tem relação com a lei. Trata-se, porém, de estabelecer exatamente a que
lei Paulo se refere: se à lei a do Antigo Testamento ou a alguma outra.
Ao longo da História, muitos estudiosos das Escrituras tentaram
responder essa pergunta. Não faltou, inclusive, quem oferecesse resposta
exótica a ela. No entanto, as melhores respostas sempre foram as mais simples.
E a mais simples resposta à pergunta é a que reconhece que a lei do Espírito é
a que Paulo chama também “lei de Cristo”.
Vemos essa lei mencionada em Gálatas 6:2: “Levai as cargas uns dos
outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”. E, de novo, em 1ª aos Coríntios
9:21: “Para com os sem lei [procedi] como se eu mesmo o fosse, não estando sem
lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo”.
Em hebraico, torá (lei) significa ensino ou instrução.
Lei de Cristo é, portanto, o ensino de Cristo a respeito do Antigo Testamento.
Durante o seu ministério, na Terra, Jesus ensinou muitas vezes como a palavra
de Moisés e dos profetas deve ser interpretada e aplicada. Ele disse, por
exemplo, que não veio revogar a lei, mas cumpri-la (Mt 5:17). E que, até que o
céu e a terra passem, nem um til ou iota da lei passará, sem que tudo se cumpra
(Mt 5:18).
Essas declarações centrais permitem-nos estabelecer que a lei de
Cristo não é outra coisa que a lei do Antigo Testamento como Cristo a ensinou e
aplicou. E, como o Espírito foi enviado para nos levar a “toda a verdade” (Jo
16:13), lei de Cristo é também a que ele confirma e explica. É a que “o
Consolador, o Espírito Santo”, que o Pai envia em nome do Filho, “vos
ensinará”, pois ele “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26).
A única diferença é que Cristo ensinou essa lei, visivelmente, aos seus
discípulos, na Terra, ao passo que o Espírito a ministra, de modo invisível, ao
coração dos que creem.
Se as palavras que Jesus disse, na Terra, não foram ditas por ele
mesmo, mas pelo Pai (Jo 14:10), e se o Espírito não fala por si mesmo, mas diz
o que ouve do Filho, enfim se ele “há de receber do que é [do Filho], e vo-lo
há de anunciar” (Jo 16:13-14), não podemos senão considerar que a lei do
Espírito da vida é o mesmo que a lei de Cristo.
No século II, o gnóstico Marcião difundiu o ensinamento de que o
Deus do Antigo Testamento é distinto do Pai de Jesus. Chegou até mesmo a
afirmar que o primeiro é mau e cruel, ao passo que o Deus de Jesus é bom. Esse
ensinamento trazia a implicação de que o Antigo Testamento é a palavra do Deus
de natureza má. Porém, isso é gnosticismo, não fé cristã. João diz-nos que o
Pai e o Filho são um (Jo 10:30). Isso implica que o Filho diz o que Pai diz. E
é claro que o Espírito diz o que Pai e o Filho dizem.
Assim como a lei do Antigo Testamento foi dada por intermédio de
Moisés e, por esse motivo, foi denominada “lei de Moisés”, a do Novo Testamento
é revelada pelo Espírito Santo e, por isso, se chama lei do Espírito. Acaso não
é assim? João não nos diz que “a lei foi dada por intermédio de Moisés” (Jo
1:17)? E Hebreus não se refere a essa lei como a de Moisés, ao dizer que, “sem
misericórdia, morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver
rejeitado a lei de Moisés” (Hb 10:28)?
Porém, o versículo de João que afirma que a lei foi dada por
Moisés acrescenta que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Para
uma mentalidade judaica, essa graça e essa verdade, permitam-me propô-lo à
consideração de todos, incluem uma lei e até mesmo são a lei de Moisés
considerada do ponto de vista da graça e da verdade.
O sentido dessa lei é exposto, com particular clareza, na passagem
em que os escribas e os fariseus levaram a Jesus uma mulher flagrada em
adultério e lhe indagaram o que devia ser feito a ela: “Na lei nos mandou
Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que nos dizes?” (Jo 8:5).
Sabemos que a resposta de Jesus àqueles líderes limitou-se à frase, a um tempo,
iluminadora, cortante e áspera: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja
o primeiro que lhe atire pedra”. Outra versão afirma: “Quem nunca pecou atire a
primeira pedra” (Jo 8:7).
No tempo de Jesus, uma pessoa ser arrastada à presença de um juiz
equivalia a ser processada. A condução do acusado pelo acusador era o que hoje
denominamos citação ou ato pelo qual se inicia um processo. João 8:3-11 indica,
portanto, que Jesus foi considerado uma autoridade por aqueles que levaram a
mulher à sua presença. E as palavras que ele disse à mulher, no fim da passagem
(“eu tão pouco te condeno”), sugerem que os próprios acusadores não a
condenaram, antes aceitaram o veredito de absolvição de Jesus.
João 8:3-11 é, talvez, a única passagem em que Jesus interpreta a
lei de Moisés na condição de juiz. A única em que ele fala, a partir da cátedra
judicial. Nessa especial ocasião, vemos Jesus proferir uma palavra aos
acusadores da pecadora (“Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o
primeiro que lhe atire pedra”) e outra à mulher (“Eu tão pouco te condeno. Vai
e não peques mais”).
A primeira declaração é crucial. Algumas traduções expressam-na
como “quem estiver sem pecado”; outras, como “quem nunca pecou”. Trata-se de
coisas bastante distintas, já que “estar sem pecado” refere-se a uma pureza
momentânea, ao passo que “nunca pecou” implica um tipo de pureza permanente, ou
seja, por toda a vida.
O termo original traduzido dessas duas maneiras é anamártitos. Sabemos que, em
grego, hamartia significa pecado, e o prefixo a ou an tem o sentido de não. Portanto, anamártitos indica uma condição sem pecado. Como
os judeus não admitiam que alguém pudesse nascer e se conservar sem pecado, ao
longo de toda a vida, temos de entender que anamártitos sinaliza uma condição de pureza
temporária. “Quem estiver sem pecado” traduz melhor essa condição do que “quem
nunca pecou”.
O verso seguinte a essa declaração demonstra como os acusadores da
mulher entenderam as palavras de Jesus: “Acusados pela própria consciência,
foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos” (Jo
8:9). A parte decisiva do verso é a que diz “acusados pela própria
consciência”. Ela mostra que a não pecaminosidade a que Jesus se referiu não é
meramente ritual. Não pode ser alcançada pela observância de um rito, pois é
interior e está relacionada à consciência.
Jesus disse à mulher, após os acusadores dela se retirarem: “Eu
tão pouco te condeno; vai, e não peques mais” (Jo 8:11). Se não podemos
conceber uma “lei de Cristo” contrária ao que Cristo ensinou sobre a lei, temos
de concluir que o núcleo vital da lei de Cristo é a não condenação. Moisés
ordenou que os adúlteros fossem mortos, pelo mesmo motivo por que autorizou dar
carta de divórcio: “por causa da dureza do vosso coração” (Mt 19:8). Porém, ao
interpretar aquele mandamento, Jesus antepôs-lhe uma condição sem a qual ele não
pode ser aplicado pelos homens.
Claro que Jesus preenche a condição anteposta ao mandamento. Paulo
diz, claramente, que “ele não conheceu pecado” (2 Co 5:21). E o autor de
Hebreus acrescenta que Jesus foi tentado “em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:15). Porém, a pureza radical de Jesus, em vez
de identificá-lo com o homem, distingue-o. A pureza que a lei exige de um ser
humano para condenar o outro é aquela possível à criatura. Não é a pureza
divina.
Jesus não disse “Aquele que dentre nós estiver sem pecado”. Ele
disse “dentre vós”. Assim, a pureza exigida para aplicar a pena de morte deve
ser encontrada entre os homens. Não é a pureza do Filho de Deus, que não está
vinculado à condição prevista na lei. Por isso, as palavras de Jesus à mulher
não foram de condenação, mas de absolvição.
Ouso pensar que essa é a lei de Cristo. E que a lei de Cristo é a
lei do Espírito da vida, a que Paulo se refere em 8:2. O Espírito mencionado 17
vezes na primeira metade do capítulo 8 não tem, para Paulo, qualquer papel. Não
inspira qualquer sentimento, não fala quaisquer palavras. O Espírito revela a
lei de Cristo, que é tão diferente da lei que demanda e mata, demanda e mata,
demanda e mata infinitamente!
A lei de Cristo e do Espírito não mata: dá vida! Porém, por ser
tão elevada, ela não pode ser conhecida do modo como as coisas comuns o são.
Não é uma lição que se ensine ou se aprenda em escolas. Não se ouve aos pés de
Gamaliel, porque Deus reservou-a ao ensino direto e exclusivo do Espírito Santo.
O Espírito usa todas as circunstâncias para nos ensinar. Usa,
porém, o sofrimento de um modo todo particular. Por isso, o próprio Senhor
chamou-o Consolador. Ninguém pode consolar, se não há dor. Por isso, o Espírito
atua na dor, na miséria e no sofrimento. Paulo diz que o Espírito geme, e ele
não parece fazê-lo por outra razão a não ser porque nós gememos.
Não que Deus queira ou ame o sofrimento. O sofrimento está dado na
ordem das coisas. Não procede de Deus. Mas, por ser Deus, ele se apraz em
transformar a dor em alegria, a derrota em vitória. Como ele o faz? Paulo nos
diz que o Espírito faz essas coisas gemendo em nós, não para aumentar a
lamentação, mas para se unir entranhadamente a nós no pior de todos os abismos,
no mais escuro de todos os vales, a fim de ali fazer brilhar a luz do mundo.
O ESPÍRITO QUE DÁ VIDA
O Espírito de Deus e o espírito humano são mencionados amiúde, no
Antigo Testamento. Porém, quando olhamos para o tratamento que Paulo dispensa a
eles, encontramos diferença tão grande que chegamos a pensar que nem um, nem
outro foram propriamente “revelados”, nas páginas do Antigo Testamento.
Certifiquemo-nos dessa diferença, primeiramente, no caso do homem.
Paulo foi dos primeiros a afirmarem o que hoje se denomina tricotomia, no sempre
citado verso de 1ª aos Tessalonicenses (5:23): “E o vosso espírito, alma e
corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo”.
De certo modo, a doutrina desses três níveis do homem já estava
presente, no Antigo Testamento, embora com outro sentido. Em Jó 7:11,
encontramos: “Não reprimirei a minha boca, falarei na angústia do meu espírito,
queixar-me-ei na amargura da minha alma”. A boca é um órgão do corpo. Temos,
portanto, o corpo, o espírito e a alma mencionados nesse versículo. E
encontramos os últimos dois, novamente, em Jó 12:10.
Porém, em Jó como nos outros livros do Antigo Testamento, nada nos
autoriza a traçar diferença radical entre os órgãos incorpóreos do ser humano.
O fato de o espírito ser mencionado junto com a alma, em certas passagens, não
basta para os diferenciar. Em vez de sustentar que a aproximação implica
distinção, podemos pensar, ao contrário, que o espírito e a alma são
mencionados no mesmo verso por serem semelhantes. Sob essa interpretação, a
angústia do espírito, em Jó 7:11, é análoga ou comparável à amargura da alma.
E, se elevarmos um pouco mais a vista, veremos que tudo o que se
afirma do espírito em conexão com a alma é semelhantemente afirmado, sem
conexão com ela. Não precisamos sair do Livro de Jó para o comprovarmos, já que
o versículo 21:4 dele nos diz que o “espírito tem motivo de se impacientar”, o
que é substancialmente o mesmo que se angustiar em 7:11. A Versão Almeida RA
Fiel inclusive traduz impacientar-se como angustiar-se.
Mas isso não é tudo. O que se afirma do espírito, separadamente ou
em contraposição à alma, é dito também da alma. Em Gênesis 42:21, os irmãos de
José afirmam: “Somos culpados no tocante a nosso irmão, pois lhe vimos a
angústia da alma, quando nos rogava”. Nesse verso, é a alma que se angustia,
assim como o espírito em Jó. E, se quisermos generalizar, não fugiremos à
verdade se dissermos que o que o Antigo Testamento afirma do espírito tudo o
que afirma também da alma.
Nesse quadro geral do Antigo Testamento, versículos mais ou menos
isolados em que a alma e o espírito são justapostos não bastam para
diferenciá-los, antes se explicam de diversas maneiras. Os versos de Jó, por
exemplo, justificam-se pela característica típica da poesia hebraica de
trabalhar com repetições levemente modificadas. Nesse sentido, o salmista
declara: “Os céus proclamam a glória de Deus” e reafirma: “e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19:1). Essa característica do verso
hebraico permite-nos entender o espírito e a alma mencionados em Jó 7:11 ou
12:10 como variações de um mesmo tema, não como órgãos nitidamente
diferenciados.
Dezenas de versos nos mostram que a regra geral, no Antigo
Testamento, é o que se afirma do espírito ser afirmado também da alma e
vice-versa. Por amor à brevidade, mencionarei apenas alguns. Isaías 19:14
afirma: “O Senhor derramou no coração deles um espírito estonteante”. Na Versão
Almeida RA Fiel e na tradução de Darby, em lugar de estonteante, lemos
“espírito perverso”. Em Daniel 2, versos 1 e 3, vemos o espírito do rei
Nabucodonosor perturbar-se e, em 7:15 do mesmo livro, o espírito de Daniel
alarmar-se. Em 1º de Samuel 1:15, Ana confessa ter o espírito atribulado e, em
Ezequiel 21:7, Deus manda o profeta anunciar que todo espírito angustiar-se-á com
as notícias que chegarão a Judá.
Nesses textos e em muitos outros semelhantes, o espírito realiza o
que a alma é perfeitamente capaz de praticar e vice-versa. Nada, portanto, nos
autoriza a afirmar qualquer diferença fundamental entre eles. De sorte que o
espírito está presente no Antigo Testamento, mas a tricotomia não é ali
revelada de maneira clara.
A situação é diferente nos textos de Paulo. 1ª aos Tessalonicenses
5:23 não é parte de um poema, como Jó 7:11 e 12:10. Não se explica, portanto,
pelo costume poético de repetir afirmações. E, quando notamos as funções
geralmente inusitadas que Paulo atribui ao espírito, em Romanos, percebemos que
a sua intenção é afirmar uma diferença efetiva entre ele e a alma. Resta
estabelecer em que consiste essa diferença e qual é a sua importância para a
salvação de Deus.
Um bom ponto de partida para isso é reconhecermos o paralelo que
Paulo traça entre o espírito do homem e o de Deus. O paralelo está ressaltado
em 1ª aos Coríntios 2:10-11, que afirmam: “Deus nos revelou [a sua sabedoria]
pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as
profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o
seu próprio espírito que nele está? Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece,
senão o Espírito de Deus”.
Na época de Paulo, os judeus em geral concebiam o Espírito Santo
como uma hipóstase de Deus, isto é, como um poder ao qual se atribuem
determinados atos. A Sabedoria de Deus, por exemplo, era uma hipóstase, que os
cristãos cedo identificaram com o Filho de Deus, Jesus Cristo. O livro chamado
da Sabedoria, incluído no cânon helenista do Antigo Testamento, trata
extensamente da sabedoria dessa maneira hipostasiada. Porém, havia outras
hipóstases além dela, assim como o Espírito Santo. Nem sempre os judeus as
tratavam como pessoas, mas algumas vezes o faziam. Quando reconheceram que o
Filho de Deus e o Espírito Santo são pessoas divinas, os cristãos procederam em
conformidade com esse último modo de entender as hipóstases.
Às vezes, em vez de ser um poder ou atributo, a hipóstase era uma
relação existente em Deus. No seu livro A Trindade, Santo Agostinho apresentou
o Espírito Santo dessa maneira. Apresentou-o como a relação de amor entre o Pai
e o Filho. Não é preciso lembrar que, ao longo da História, essa doutrina foi
largamente acolhida.
Não é improvável que, séculos antes de Agostinho, Paulo tenha
concebido o Espírito Santo como uma relação existente em Deus ou, mais
exatamente, como a relação que o Pai tem com o Filho. Jesus não se referiu, em
termos enfáticos, a essa relação quando declarou: “Eu e o Pai somos um” (Jo
10:30)? E não dedicou o longo discurso de João 14 a 16 a detalhá-la em termos
arrebatadores e impressionantes? Isso mostra que Jesus considerava a sua
relação com o Pai o centro da sua existência e da sua missão no mundo.
À luz de João 14 a 16, é inteiramente apropriado pensar que o
Espírito de Deus nos revela a relação que o Pai tem com o Filho e até mesmo é
essa relação. A diferença é que, ao nos referirmos ao Espírito, tratamos a
relação como uma pessoa distinta do Pai e do Filho. Esse tratamento é a
hipostasiação, com a qual os judeus do primeiro século estavam acostumados.
Se, em 1ª aos Coríntios 2:11, portanto, o Espírito de Deus está em
claro paralelo com o espírito humano, não é impróprio pensar neste último como
o homem enquanto se relaciona consigo mesmo. E, se o Espírito perscruta todas
as coisas, mas, de modo particular, as profundezas de Deus, não é incorreto
supor também que o espírito humano conhece as coisas do homem, mas
especialmente as que formam o fundo do seu ser.
As palavras “assim também”, em 1ª aos Coríntios 2:11, chamam nossa
atenção. Elas indicam que o espírito humano é de algum modo semelhante ao de
Deus. A semelhança decorre de o homem ter sido criado à imagem de Deus. De modo
que, se o Espírito é uma relação de Deus consigo mesmo, nada há de espantoso em
considerarmos o espírito humano uma relação que o homem mantém consigo.
Dirão que essa relação não existe? Que só um louco se relaciona consigo
próprio? Se o disserem, faltarão com a verdade, pois é manifesto que todo homem
relaciona-se consigo mesmo, de dois modos principais. Primeiramente, ao
construir sua memória, ele se debruça sobre o que a experiência sensível
deposita no seu interior. E depois, ao lidar com essas memórias, por exemplo,
nos sonhos, o inconsciente as religa e recria, dos modos mais inusitados.
De sorte que, se o Espírito de Deus é uma hipóstase e o homem foi
criado à imagem de Deus, necessário é que o do homem seja a imagem daquela
hipóstase. Assim aproximados, o Espírito de Deus e o do homem passam a
constituir o centro da revelação divina, nos escritos de Paulo. Unidos, o
Espírito de Deus e o nosso testificam que somos filhos de Deus (8:16). De
acordo com o mesmo princípio, a consciência de Paulo “testemunha no Espírito
Santo” (9:1) e “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17).
Nada disso se encontra no Antigo Testamento. De Gênesis a
Malaquias, o Espírito de Deus é mencionado muitas vezes, mas não como a relação
do Pai com o Filho. Ele tampouco é ligado ao espírito humano, e este não nos é
apresentado como a relação do homem consigo mesmo.
Por esses motivos, é difícil receber a revelação do Espírito
Santo, no Novo Testamento, sem receber juntamente a do espírito humano. Os
temas estão relacionados e são inconcebíveis fora da relação que mantêm. Toda
tricotomia, toda diferenciação entre o espírito e a alma, que se esquece de tal
relação é inventiva e gratuita. Baseia-se na imaginação do intérprete e na sua
vontade de afirmar a distinção de sua preferência entre a alma e o espírito.
Não se baseia no modo como a diferença foi concebida por autores bíblicos como
Paulo.
Entendido, porém, da maneira apostólica, o trabalho do Espírito
Santo constitui o ápice da apresentação do evangelho. Nos capítulos 1 a 3 de
Romanos, a salvação é proposta como remédio para a perdição e a condenação de
gregos e judeus. Nos capítulos 4 a 6, a imputação da justiça é mostrada. Porém,
o ápice, a culminância, da salvação de Deus só aparece com a convergência dos
temas do Espírito de Deus e do espírito humano, no capítulo 8. Essa
convergência é o âmago do evangelho de Deus. Quando lemos que o Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus, não lemos sobre algo secundário,
mas sobre o mistério revelado por Deus.
O mesmo se dá quando ouvimos que “o corpo, na verdade, está morto
por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10). O
objetivo da salvação de Deus não é convencer do pecado ou justificar o pecador,
mas comunicar-lhe vida eterna. Paulo esclarece que essa vida é transmitida
primeiramente ao espírito (8:10). Isso está claro no emprego do tempo verbal
presente: o corpo está (já está) morto, mas o espírito é vida (já é vida) por
causa da justiça. Em seguida, ele diz que a mente deve renovar-se (12:1), o que
ainda não se consumou. Por fim, assevera que o dom da vida será comunicado
também ao nosso corpo, por meio do Espírito que em nós habita (8:11).
Paulo não diz apenas que o espírito tem vida, mas que ele é vida
por causa da justiça. Ser vida é muito mais do que possuí-la. Heidegger
descreveu a existência do homem como um ser-para-a-morte. O homem caminha para
a morte e a tem em vista, mesmo enquanto vive. Isso concorda apenas em parte
com o ensino de Paulo. Para ele, o corpo se orienta para a morte, mas a nova
criação consiste em Deus engendrar um reduto, no nosso interior, que não mais
se orienta para a morte e sim para a vida. “O corpo, na verdade, está morto,
mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10).
O espírito humano é um lugar único, onde a vida eterna se instala.
Não é, porém, o único lugar (abençoado), pois, do espírito, a vida tende a
tomar toda a mente humana. É o que significa o homem interior renovar-se,
enquanto o exterior se corrompe (2 Co 4:16). Paulo chega a dizer que esse homem
renova-se de dia em dia. Isso mostra que o recebimento da vida eterna pela
mente humana pode ser gradual, mas é também incessante.
A Bíblia não diz que a alma é imortal e ponto, como se fosse imortal
por natureza. Ainda que Jesus nos tenha exortado a não temer os que não podem
matar a alma (Mt 10:28) e tenha prometido ao ladrão: “Hoje estarás comigo no
paraíso” (Lc 23:43), devemos recordar a multidão de passagens do Antigo
Testamento que afirmam que os pensamentos do homem perecem no dia da sua morte.
O balanço dessas afirmações contrapostas pode bem significar que a imortalidade
não é algo líquido, certo e invariável, como se decorresse da natureza das
coisas. Por ser dom de Deus, ela pode ser-nos comunicada, mas prestemos
atenção, pois pode ser também retirada. Nada há de mais certo, contudo, que a
garantia que o Novo Testamento nos dá de que o dom da vida eterna não será
suspenso, nem nos será retirado, enquanto estivermos voltados para o sangue
vertido na cruz, para a redenção que Deus imputou por justiça.
Daí a canção de Paulo, que tudo desafia, com base na maior de
todas as obras: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou
angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” Até aqui,
só coisas presentes são mencionadas. Mas o apóstolo continua, para nossa
inteira felicidade: “Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem
anjos, nem principados, nem coisas do presente nem do porvir, nem poderes, nem
altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do
amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (8:35,38-39).
FILHOS E HERDEIROS DE
DEUS
Mateus, Marcos, Lucas e João transmitem-nos os fatos relevantes do
ministério de Cristo na Terra, mas não interpretam de modo especial esses
fatos. Para conhecermos a interpretação do evangelho de Deus, precisamos
recorrer às epístolas, entre as quais Romanos ocupa o lugar central, por conter
a única interpretação sistemática da salvação que nos foi dada por Deus em
Cristo.
Mas, assim como a interpretação do evangelho tem em Romanos seu
centro, podemos afirmar que essa epístola se centra no capítulo 8 dela, no qual
todas as suas afirmações convergem e alcançam aplicação máxima. E, embora
Romanos 8 nos fale de vários temas, o Espírito Santo predomina nos primeiros 16
versículos, assim como a condição de filhos de Deus, nos versos 14 a 23. Por
isso, podemos concluir que não há como entender o evangelho de Deus, sem
conhecer o trabalho do Espírito Santo no interior dos que creem e as
implicações decorrentes de Deus os fazer seus filhos.
Vimos anteriormente que a obra do Espírito consiste em ensinar ao
nosso coração as palavras que Cristo falou pessoalmente ou por meio de seus
primeiros apóstolos. Assim, o ministério do Espírito Santo está ligado ao
ensino de Jesus Cristo e tem como resultados primordiais a vida e a paz que
Paulo menciona em 8:6: “Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do
Espírito, para a vida e paz”. Não há dúvida de que essa não é qualquer vida ou
uma vida indeterminada, cujo sentido ninguém conhece, inclusive o apóstolo.
Tampouco é a vida humana comum e tenho para mim que, nos termos do Novo
Testamento, ela tampouco é a vida divina.
Mas, se não é a vida humana comum ou a vida de Deus, que vem a ser
essa vida que o Espírito gera no interior dos que creem em Cristo? Ela é, antes
de tudo, a vida resultante do novo nascimento da água e do Espírito, ao qual
Jesus se referiu em João 3:5: “Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer
da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Para entendermos o
sentido desse novo nascimento, precisamos, em primeiro lugar, nos perguntar
quem passa por ele e recebe a nova vida.
É estreme de dúvida que os que recebem o dom de uma vida nova são
os que creem em Cristo. Esse é um ponto fundamental, pois Paulo se esforça para
nos mostrar, em Romanos, que a fé é o único meio pelo qual Deus realiza sua obra
de salvação. Porém, tão crucial quanto entender que os que recebem a nova vida
são crentes é reconhecer que eles são seres humanos e que, por isso, a vida que
recebem de Deus só pode ser uma vida humana. Até porque qualquer outra vida,
seja de Deus ou de um animal, transformaria quem a recebesse em outro tipo de
ser: em Deus ou num animal.
Essa é uma verdade tão clara e tão simples quanto afirmar que o
fogo queima. Ter a vida de Deus é o mesmo que ser Deus e ter a vida de um
animal irracional é ser um animal irracional. Como não somos Deus, nem animal
irracional, a vida que recebemos pelo novo nascimento não é a de Deus ou a de
um animal. É uma nova vida humana, diferente e superior à que Adão recebeu.
Claro que a nova vida humana não é recebida sem intensa atuação da
vida divina. Porque Deus age no homem para produzir o novo nascimento, podemos
afirmar que a vida divina está ali plenamente ativa. Nesse sentido, o Evangelho
afirma que aqueles que creem em Cristo nascem de Deus (Jo 1:12). O que não
acontece, nesse novo nascimento, é a vida divina misturar-se à humana, de modo
a formar uma nova vida. Essa é uma afirmação que falta no Novo Testamento. Não
a encontramos em Paulo ou em qualquer outro escritor bíblico.
Porém, a nova vida iniciada a partir do novo nascimento é o ponto
central de Romanos 8 tanto quanto o resultado máximo do evangelho de Deus. Quem
não a recebe não pode entrar no reino de Deus, nem o ver (Jo 3:3,5). E sem
entrar e sem ver o reino, não há evangelho algum, não há Novo Testamento, nem há
salvação.
Por isso, Paulo enfatiza tanto a filiação, em Romanos 8. Por isso
ele fala tantas vezes dos filhos de Deus: “Pois todos os que são guiados pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de
escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de
adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o
nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também
herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (8:14-17).
Esse é só um exemplo da importância que Paulo atribui à filiação.
Não há evangelho sem a experiência de se tornar filho de Deus. Porém,
exatamente por isso, devemos indagar e procurar responder com atenção redobrada
o que significa receber a adoção de filho. Se não significa receber a vida de
Deus ou misturar-se com ela, deve indicar uma nova relação com Deus. Nesse
sentido, é que Paulo opõe a filiação à escravidão. O escravo não tem a vida do
dono. Se a tivesse, ele seria o próprio dono. O que ele possui, o que o faz um
escravo, é a sua relação com o dono. Do mesmo modo, o que faz a pessoa ser
filho de Deus é a relação que adquire com Deus.
Isso era extremamente claro, no primeiro século, já que a
existência de pai, filhos e escravos, na mesma casa, era algo comum. No
entanto, a relação do escravo era muito diferente da do filho com o pai. A essa
diferença é que Paulo alude. Quem estivesse inserido numa das famílias daquela
época compreenderia esse fato imediatamente. Nenhuma dúvida permaneceria na sua
mente de que as diferenças entre o pai, o filho e o escravo eram relacionais,
deviam-se à relação entre eles e não à natureza ou à vida deles.
Do mesmo modo, a diferença entre a vida dos filhos de Deus e a dos
escravos do pecado decorre da relação que uns e outros mantêm com Deus. No
primeiro caso, a relação é de amor; no outro é de inimizade. O que o novo
nascimento confere, portanto, é a primeira relação, a relação especialíssima de
filho de Deus. É o privilégio de ser filho do Criador do Universo. É o poder
chamar Deus Pai, o viver com ele e o estar inseparavelmente ligado a ele. É ter
intrepidez para se aproximar do trono da graça (Hb 4:16). Enfim, é toda uma
nova relação, que não existia antes de Cristo realizar sua obra salvadora, mas
que não se confunde com a comunicação da vida de Deus ao homem.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo são todos Deus. Claro que todos,
por isso, possuem a natureza e a vida de Deus. Mas eles também mantêm relações
uns com os outros. A vida e a natureza de Deus são incomunicáveis, porém a
espécie de relação que o Pai tem com o Filho não o é. Deus nos concede algo
análogo a essa relação, por meio do novo nascimento. Assim como o Pai está no
Filho, e o Filho, no Pai, somos admitidos à presença do Pai e do Filho por meio
do novo nascimento. E assim como o Pai ama o Filho, e o Filho, o Pai, somos
amados por eles e começamos a amá-los, ao crermos na obra redentora de Cristo.
Tudo isso são relações. São até mesmo uma nova e única relação
global com Deus, que Paulo denomina filiação ou adoção. Sabemos que, em grego,
a palavra huiostesía,
empregada por Paulo, significava adoção. Essa é a modalidade de filiação que
recebemos de Deus. Porém, não se compreende o significado de huiostesía sem se entender a relação que o termo
implica. A palavra está sobrecarregada com o significado dessa relação. De modo
que todo outro significado é completamente secundário nela.
Que relação está implicada no termo huiostesía? A relação do Pai
com o Filho. E que relação é essa, a não ser um consórcio de amor? É uma
relação que, uma vez preservada, se torna inexpugnável. Nada a pode abalar. Uma
reação química pode ocorrer, mas também pode ser desfeita. A associação de
blocos de matéria como átomos e moléculas também pode ocorrer e ser desfeita por
forças externas. Porém, a relação entre Deus e seus filhos não pode ser
dissolvida. Só o livre arbítrio de Deus e dos próprios filhos a pode suspender,
não um fator externo, pois a relação não é como uma ligação química. É, antes,
de todo inquebrantável.
No texto hebraico do Salmo 23, as frases “O Senhor é o meu pastor,
nada me faltará” não são duas afirmações complementares, mas correlativas,
quase reiterativas. “Nada me faltará” é quase uma repetição de “O Senhor é o
meu pastor”. E, posto que o tempo verbal, em hebraico, não funciona como em
português, “nada me faltará” é também “nada me falta”, como a Bíblia de
Jerusalém o traduz. Portanto, o Senhor ser meu pastor implica nada me faltar no
dia de hoje e para todo o sempre. Implica que entramos numa espécie de relação
indissolúvel com o bom Pastor.
E Paulo, que nos diz? “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
(8:31). Entendamos: se Deus se ligou inseparavelmente a nós, quem quebrará essa
relação? “Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o
entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?”
(8:32-33). Entendamos: se Deus não poupou o seu próprio Filho, poupará simples
coisas? Se nos deu o seu Filho Unigênito, não nos dará com ele todas as coisas?
Ou em linguagem jurídica: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É
Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (8:33-34). E na frase talvez mais
culminante e definitiva de quantas podemos encontrar: “Quem nos separará do
amor de Cristo?” (8:35).
Poderíamos dizer até mesmo: Quem nos separará do amor que é o
próprio Espírito Santo? Pois, se Deus ama o Filho, se ele se alegra com o Filho
e se tem paz na companhia do Filho, podemos dizer que esse amor, essa alegria e
essa paz são o Espírito Santo. A relação de amor, de alegria e de paz é,
sempre, do Pai com seu Filho, mas ela é o Espírito Santo.
Santo Agostinho foi o maior mestre dessa interpretação. Ele
escreveu: “A razão pela qual o Apóstolo fala da graça e da paz de Deus Pai e de
nosso Senhor Jesus Cristo [no início das suas epístolas], sem acrescentar o
Espírito Santo, parece-me não ser outra senão porque compreendemos o Espírito
como o próprio dom de Deus. Com efeito, o que são a graça e a paz senão o dom
de Deus? Por isso, de forma alguma podem ser concedidas aos homens a graça, que
nos liberta dos pecados, e a paz, que nos reconcilia com Deus, senão pelo
Espírito Santo” (HIPONA, Agostinho de. Explicação
incoada da Carta aos Romanos. In Santo Agostinho. São Paulo:
Paulus, 2009. p. 167). Semelhantemente, o amor e a alegria de Deus só são
concedidos pelo Espírito Santo.