sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Livre Exame de Romanos (capítulos 7 e 8)

DE ESCRAVOS A SERVOS

A palavra grega doulos (escravo) abunda na Epístola aos Romanos. Porém, nunca é empregada no sentido comum, para indicar o escravo literal, o homem desprovido de liberdade. Pelo contrário, nas passagens em que aparece, doulos é o escravo ou o servo espiritual. Esse é o caso dos versículos 6:6,16-20,22.
Em 6:6, o lado negativo da escravidão espiritual é mencionado: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos”. Servir como escravo é uma tradução bem apropriada do pensamento do apóstolo. Paulo se refere à mais dura relação dentre todas as que o homem pode manter, sobre a Terra: a escravidão. Para entendermos o que ele pensa, porém, precisamos retornar aos Salmos e ao Livro de Gênesis.
A Teologia e a Antropologia formulam uma mesma questão. Na Bíblia, vemos a questão expressa no oitavo salmo: "Que é o homem para que dele te lembres?" (Sl 8:4). A pergunta é formulada em tom solene, por não ter resposta fácil. O homem é um mistério. Olhemos para a natureza: por que a espécie humana e só ela elevou-se ao fastígio, em toda a criação? Por que o homem e ele somente foi coroado de honra e de glória, quando Deus lhe submeteu “ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo” (Sl 8:7)?
Gênesis parece indicar que o homem é vocacionado para o poder, não para um poder que se exerce sobre o semelhante, sobre o outro homem, pois não vemos essa lição expressa no primeiro livro da Bíblia. Tampouco lhe é dado poder sobre os fenômenos naturais, mas sobre as criaturas vivas que Deus criou. Não apenas sobre as criaturas que se chamam amigos do homem, como o boi e a ovelha, mas também sobre as selvagens.
Sabemos, porém, que o homem decaiu desse estado e, ao fazê-lo, perdeu as condições objetivas que antes possuía para exercer ascendência sobre as criaturas vivas. Assim como foi criado para lavrar a terra, que veio a lhe produzir cardos e espinhos, do mesmo modo, o homem foi criado para dominar os seres cuja natureza os dispõe abaixo dele, mas esse domínio se fez sobremaneira difícil depois da queda.
Por que se tornou difícil? A razão não parece estar na indocilidade dos seres vivos, mas na corrupção da faculdade humana da dominação, isto é, no poder do homem. Antes da queda, o homem devia alimentar-se somente de vegetais: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento" (Gn 1:29). O homem não agredia, portanto, os animais, nem derramava o seu sangue.
Da mesma forma, no Éden, ele podia comer livremente de toda árvore, exceto uma (Gn 2:16-17; 3:2-4). Não se diz que comesse animais. Mas, quando comeu da árvore proibida, está implícito que o homem perdeu o poder que possuía de dominar sem derramamento de sangue. Seu poder passou, então, a exercer-se pela força. Paulo nos informa, por isso, que a natureza geme e suporta angústias até agora, vale dizer, desde a queda (8:22). Ele não se refere às árvores, mas aos animais, pois sobre eles é que Deus mandou o homem exercer o seu soft power.
A perda do poder de dominar sem oprimir está, porém, retratada em Gênesis como exemplo de outros acontecimentos semelhantes, não como caso isolado. Quando olhamos para as palavras de Deus à serpente, à mulher e ao homem, após a queda (Gn 3:15-24), descobrimos quantas outras coisas a estirpe de Adão perdeu com a queda. Perdeu a relação que tinha com a serpente, o bom parto, que foi substituído pelo mais penoso, a liberdade da mulher, a fertilidade da terra, o acesso à árvore da vida.
Devemos entender, porém, que esses são apenas outros tantos exemplos das perdas que o homem sofreu com a queda. Assim como não se esgota na corrupção da harmonia com os animais, a extensão das perdas humanas tampouco se abrange nesses outros exemplos examinados. A lição de Gênesis parece ser de que o homem perdeu ainda muitas outras coisas além das que já mencionamos com a queda.
A grande questão antropológica que Gênesis 3 coloca, portanto, é: que se torna aquele ser que perde tantas coisas? Na concepção do homem antigo, a resposta à pergunta é clara: ele se torna um escravo. Só o escravo é alguém destituído de tudo, como Adão após pecar. Gênesis mostra, portanto, que Adão entrou no paraíso como rei e saiu como escravo. Lembra também que, de todas as perdas que um escravo suporta, as maiores são a da liberdade e a da personalidade.
No Direito Romano, o escravo era res (coisa), não persona (pessoa). Não tinha liberdade, nem personalidade. Por isso, seu dono podia surrá-lo, vendê-lo e até matá-lo, o que não ocorria com pouca frequência, nem com muito escândalo. A antropologia bíblica, se existe mesmo uma, como acredito, ensina-nos que essa é a condição do homem, depois da queda. Adão tornou-se um ser depauperado até mesmo dos atributos da sua personalidade. Um verdadeiro nada.
Sabemos, porém, que, ao lado da escravidão, os antigos conheciam outra relação que envolvia desproporção de poder entre duas partes: a servidão. Em grego, tanto a escravidão como a servidão se exprimiam pela mesma palavra, mas eram muito distintas.
O fato de a relação servil não ser designada por um termo específico deve inspirar-nos a devida reflexão, pois indica a ausência da necessidade de diferenciar criteriosamente as relações mencionadas. Se necessidade houvesse de discriminação, uma palavra específica para a servidão teria sido criada, mas não o foi. Por quê? Penso que a resposta que a História fornece é de que, embora a servidão existisse, não era tão comum quanto a escravidão. Sabemos que o modo de produção predominante no Império Romano era o escravagista. Nesse contexto, o avassalamento do servo a um senhor ainda esperava para se tornar predominante, o que só viria a ocorrer na Idade Média.
Porém, ainda assim, a servidão não estava ausente. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels mostrou que ela já havia fincado raízes, no mundo romano, havia algum tempo, quando Paulo escreveu Romanos. Só não era a relação mais importante, pois não dava suporte à técnica produtiva. Essa função cabia à escravidão.
Porém, como já vimos, a servidão era distinta da escravidão. Diferentemente do escravo, o servo era considerado pessoa e usufruía de certa liberdade. Não podia ser preso, surrado, vendido ou morto, a não ser em casos especiais. Por meio dessas diferenças, percebemos que o pecador descrito por Paulo, em Romanos, corresponde ao escravo, e o homem liberto do pecado, ao servo.
Por isso, quando se declara servo de Jesus Cristo (1:1), devemos compreender que Paulo passa do caso comum de doulos (do escravo) ao caso menos comum (do servo). Isso está claro no décimo-sexto versículo: “Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos?” Paulo não diz que somos subjugados por aquele de quem nos tornamos servos. Isso seria próprio da escravidão. Afirma, ao contrário, que nos oferecemos livremente para sermos servos.
Infelizmente, alguns mestres, na ânsia ou premência de ensinar novidades, insistem em se referir a esse segundo sentido de doulos como uma escravidão (a Deus ou a Cristo). Esse é um desvio do ensinamento de Paulo, pois, como vimos, o escravo era destituído não só de liberdade, mas até de personalidade, o que não é próprio do cristão. O fato de se submeter a Deus não despoja o homem seja da sua liberdade, seja da sua personalidade. Não o torna res, coisa. Por isso, o cristão deve ser considerado o que de fato é: servo, não escravo, de Deus.
Em Filipenses 2:6-7, vemos que a condição de servo que Paulo se atribuiu em Romanos 1:1 foi assumida pelo Filho de Deus, Jesus Cristo ao encarnar-se: “pois ele, subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens”. Jesus foi o primeiro servo de Deus. Antes dele, só existiam escravos do pecado e (por que não dizer?) de Deus. O homem que se sobrecarregava de obrigações legais para servir a Deus tornava-se escravo de Deus. E, por não as cumprir, fazia-se escravo também do pecado (Jo 8:34).
Na passagem citada de Filipenses, porém, a palavra servo é empregada de um modo tão essencial à pessoa encarnada de Cristo que parece indicar a condição essencial do homem. Não sua antiga condição, que Gênesis descreve como uma escravidão, mas uma condição inteiramente nova. O fato de Cristo ter-se esvaziado da igualdade com Deus e se ter feito servo não ficou sem consequências. Pelo contrário, Cristo Jesus se tornou o primeiro de muitos servos de Deus. Criou, em si, uma nova condição humana, que é indicada pelo segundo significado da palavra doulos.
Em 1ª aos Coríntios 15:45, Cristo é denominado o último Adão. E de fato o foi, já que pôs fim à estirpe adâmica. Porém, raras vezes é lembrado que, em 1ª aos Coríntios 15:47, ele é também chamado o segundo homem. Recebe esse título, não apenas porque, em toda a saga da humanidade, houve dois e somente dois homens (Adão e Cristo), mas também porque houve duas e somente duas condições humanas: a de Adão e a de Cristo. A primeira foi a escravidão ao pecado, a outra é a servidão a Deus.
Não por outro motivo, fomos batizados na morte de Cristo (6:3-4). Cristo morreu como o último Adão, ressuscitou como o segundo homem. Por isso, o batismo é a sepultura de Adão, de todos os Adões; e a ressurreição é uma maternidade de novas criaturas forjadas à imagem do segundo homem.
Paulo escreve: “como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). A que novidade ele se refere? À que, no verso seguinte,  chama “semelhança da ressurreição de Cristo” (6:5). A declaração solene que Paulo faz sobre essa semelhança deveria bastar contra as alegações dos que afirmam que experimentamos a realidade da ressurreição de Jesus. Paulo não o afirma. A novidade de vida a que ele alude é a semelhança, o esboço simbólico, da ressurreição do Filho de Deus. O que passa disso é mística alucinada. É pajelança hermenêutica.
O mesmo se aplica ao batismo: Paulo não afirma que morremos, literalmente, com Cristo, pelo batismo ou por qualquer outra experiência cristã, sacramental ou espiritual. Declara que fomos unidos a ele na semelhança da sua morte. São suas palavras: “Se fomos unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5). Não experimentamos, portanto, a realidade, mas a semelhança da morte de Cristo.
A semelhança seja da morte, seja da ressurreição é um estado em que ingressamos pela eficácia da declaração divina. Unimo-nos a Cristo na semelhança da sua morte, porque Deus nos declara mortos com ele, não literalmente, mas no que diz respeito à possibilidade de retornarmos ao pecado. E unimo-nos a ele na semelhança da sua ressurreição, pois Deus declara o nosso direito a uma vida que não transcorre à revelia de Deus, mas em união com ele.
Que união é essa? Não é a que se convencionou denominar união orgânica. É antes um nunca-ser-abandonado-por-Deus. É a realização plena do vigésimo-terceiro salmo: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23:4). Esse salmo é, sabidamente, o Monte Everest do Antigo Testamento. E  o seu quarto versículo é como o cimo do monte. Eles o são, aliás, não doutrinariamente, mas por indicarem uma experiência que não é própria do Antigo Testamento e sim do Novo. Salmo 23 é o Novo Testamento no Antigo; e o versículo 4 dele é Romanos 6 no Saltério!
A Teologia da Libertação, cuja influência foi determinante na transformação cultural da América Latina, defende não só uma opção pelo pobre, mas que a condição essencial do cristão é de pobreza material e espiritual. Embora haja um mal-entendido nessa afirmação, posso aceitar a pobreza (talvez seja melhor dizer carência) a que ela se refere como elemento intrínseco da servidão em que Cristo nos introduziu.
A carência não está menos implícita em 6:16 do que em Filipenses 2:6-7: “Não sabeis que aquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” (6:16). A servidão aí aludida pressupõe um despojamento tanto espiritual como material. Despojamento espiritual porque Cristo esvaziou-se da igualdade com Deus, e devemos esvaziar-nos das coisas da nossa velha condição. Despojamento material porque toda servidão envolve carência de recursos indispensáveis para viver em condição de abundância.
Mais uma vez, vemos isso expresso no Antigo Testamento, cujos profetas foram íntimos do despojamento material. Alguns tiveram abundância de bens por certo tempo, porém, quando isso ocorreu, faltaram-lhes as condições necessárias para usufruir perenemente daqueles bens. De modo que, quando os bens abundavam, o uso que o homem de Deus fazia deles estava sujeito a sobressaltos. E quando não estava sujeito a sobressaltos, os bens não eram abundantes.
Essa carência não era exatamente pobreza, pois nem todos os servos de Deus, no Antigo Testamento, foram pobres. Porém, todos foram carentes, já que ninguém teve a posse das condições necessárias para usufruir de modo tranquilo e constante do que possuía, fosse pouco, fosse muito. Pelo contrário, nas circunstâncias de vida deles, sempre reinaram a instabilidade e a insegurança.
Não creio que o apóstolo, que exortou os romanos a apresentarem não a sua alma, mas o seu corpo a Deus como instrumento de justiça (6:13,19), pretendesse excluir da servidão a Deus o elemento material da carência, que lhe era intrínseco no Antigo Testamento. Podemos ter ou não ter, ter pouco ou ter muito: em todos os casos, é nosso dever tomar o pouco ou o muito como condição precária, isto é, transitória de vida. É nosso dever ter consciência de que a precariedade não é uma tendência ao muito, mas ao pouco. Não é tendência a ganhar, mas a perder.
Carência e precariedade, porém, foram somente o princípio da experiência que Cristo teve da servidão. Filipenses prossegue: “e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fp 2:7-8). O que principiou como carência e precariedade consumou-se como morte e morte de cruz.
Por isso, na epístola tão frequentemente esquecida que é 2ª aos Coríntios, lemos que “Cristo foi crucificado em fraqueza”. E que “nós também somos fracos nele” (2 Co 13:4). Pode-se pensar que, na cruz, só os fracos são levantados. Mas quem poderia esperar que Paulo descrevesse a condição apostólica como uma fraqueza? Não são os apóstolos gloriosos, sábios, santos e impolutos? Não são eles poderosos em Deus? Sim, mas, apesar disso tudo e mais intensamente do que tudo isso, Paulo afirma que eles são fracos em Cristo. Poderia uma afirmação mais insólita ser formulada no Novo Testamento?
A servidão se consuma, portanto, em quatro passos: carência, precariedade, cruz e morte. Não nos é dado retirar qualquer deles, para aliviar a condição cristã do seu peso inerente. Nela, ganhar é realmente perder. É sofrer a carência, a precariedade, a cruz e a morte em alto grau, como Cristo as sofreu em primeiro lugar, e em grau altíssimo.

A MULHER-ESCRAVA E SEUS DOIS MARIDOS

Após ter apresentado as condições opostas do homem escravizado ao pecado e sujeito a Cristo, Paulo passa a ilustrar o seu pensamento com o caso da mulher ligada ao marido pela lei matrimonial. O caso é apresentado em forma de parábola, que o apóstolo conta e interpreta em apenas três versículos: “Ignorais, irmãos [...] que a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei, e não será adúltera se contrair novas núpcias. Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou dentre os mortos” (Rm 7:1-4).
Desde a publicação da obra de Joachin Jeremias sobre as parábolas bíblicas, sabemos que essa figura de linguagem incluía desde simples exemplos citados para ilustrar um ensino até narrativas elaboradas como a do filho pródigo. Sob esse ponto de vista, os versículos 2 a 4 do capítulo 7 devem ser considerados uma parábola contada por Paulo para ilustrar o que havia afirmado no capítulo anterior, a saber: a passagem do homem da escravidão ao pecado à servidão a Deus.
Porém, ao explicar sua parábola, Paulo revela-se um mestre diferente de Jesus. Quando se dirigia aos discípulos, Jesus interpretava as parábolas que lhes contava em poucos versículos ou, às vezes, num só. Paulo se estende muito mais na interpretação da parábola de Romanos 7. Embora o verso 4 nos dê um resumo do significado da mulher e seus maridos, os versículos 5 a 25 continuam longamente a interpretar a parábola e a aplicá-la aos romanos.
Os leitores judeus e gregos da epístola sabiam que tanto a lei de Moisés como o Direito Romano previam que, quando o marido morresse, a mulher estaria liberta de suas obrigações para com ele e poderia casar-se com outro homem. Porém, Paulo aplicou esse exemplo não ao ser humano inteiro, mas à mente considerada de modo específico. A mulher ligada ao primeiro marido representa a mente no estado de escravidão ao pecado. E a mulher unida ao segundo marido é a mente sujeita a Cristo, por meio do Espírito que habita nos que creem nele.
Isso se torna evidente no versículo 5, em que Paulo afirma: “Porque, quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas postas em realce pela lei operavam em nossos membros a fim de frutificarem para a morte”. A palavra porque conecta, manifestamente, o versículo 5 ao 4. Ela mostra que o verso consecutivo explica o que o antecede, isto é, que a mulher que morreu para a lei do primeiro marido é o ser humano sob as “paixões do pecado”.
Não há como duvidar disso. E, se continuarmos a ler o capítulo, com a devida atenção, notaremos que os versículos 6 a 14 não mudam de tema. De modo que a única peculiaridade dos versículos de 7:5 a 7:14 consiste em mostrar-nos como a sujeição ao pecado se dá. Romanos 1 a 6 afirmam a escravidão do homem ao pecado, porém não explicam o “como” dessa escravidão, vale dizer, o modo como acontece. Precisamos percorrer, com atenção, os versículos 5 a 14 do capítulo 7 para entendermos esse ponto crucial.
No entanto, nos versículos 15 a 25, outro ponto é desenvolvido. Nesse trecho final do capítulo, Paulo já não trata, simplesmente, do império do pecado sobre o ser humano. Trata antes de um conflito, de uma oposição dilacerante, que se desenvolve entre a inclinação da mente e a da carne do ser humano. O primeiro versículo dessa subseção estabelece: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim, o que detesto.”
Esse versículo não está desligado da parábola mencionada em 7:2-4. Pelo contrário, ele é uma explicação da parábola, tanto quanto os versos 7:5-14 o são. A única diferença é que 7:5-14 nos falam da submissão da mulher ao primeiro marido, ao passo que 7:15-25 discorrem sobre a sua insubmissão.
Nenhum ser humano é apenas submisso. Nem mesmo o escravo. Embora seja usualmente dócil e sujeito ao jugo que lhe fustiga a cerviz, no recôndito de sua alma, o escravo cultiva a insubmissão. Deseja que o vínculo que o sujeita ao senhor se desfaça. Na Antiguidade, a mulher era uma espécie de escrava doméstica. Por isso, Paulo a compara ao homem sujeito ao pecado. Mostra, também, que a mulher era uma escrava que podia libertar-se do marido quando este morresse.
O auge do tratamento que Paulo dispensa ao conflito da mulher-escrava encontra-se no versículo 15. Nesse trecho, o apóstolo afirma que, ao pecar, o homem não realiza o que quer, mas o que não deseja. Essa dissociação do querer e do agir abre uma fissura no eu, uma espécie de ruptura entre a vontade e o comportamento do homem. Sabemos que, no século I, várias correntes de pensamento platônicas dividiam a alma numa parte racional (mente), outra volitiva (vontade) e uma terceira parte apetitiva (paixões). É provável que Paulo tenha entrado em contato com essas correntes e, até certo ponto, se inspirado nelas ao afirmar a ruptura já mencionada.
Porém, percebemos que ele não adota o pensamento de qualquer daquelas correntes. Pelo contrário, Paulo reconduz a inspiração platônica ao ensinamento bíblico. Sinal claro disso está no fato de ele não se referir às paixões carnais e à mente como partes da alma, como os platônicos geralmente faziam. Afastando-se deles, Paulo considera as paixões e a razão diferentes experiências da mulher sujeita ao primeiro marido. Como todo escravo, a mulher obedece ao seu dono sem reservas. Mas, também como era comum ocorrer com os escravos, sua obediência é considerada apenas exterior. Por dentro, a mulher cultiva conflitos e uma funda insubordinação ao marido cruel, do qual deseja libertar-se, ainda que seja por meio da morte.
Esse conflito, Paulo nos diz, representa o do homem com o pecado que atua por meio das paixões carnais. No versículo 9, ele já firmara: “Outrora, sem lei, eu vivia, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri”. É provável que a palavra outrora , nesse versículo, signifique a meninice do apóstolo, a idade que antecede o uso da razão. Numa epístola como Romanos, em que o império do pecado sobre todo homem é claramente afirmado, a cláusula “outrora eu vivia” aconselha-nos certa cautela. Mostra-nos que o império do pecado não é totalmente universal. Claro: não se pode negar a universalidade do pecado e da morte expressa em Romanos 1 a 3. Porém, não se trata de uma universalidade ilimitada ou absoluta, pois de algum modo ainda pode haver vida, onde Paulo afirma que o pecado abunda. É o que está indicado na frase "Outrora, sem lei, eu vivia".
Porém, o apóstolo continua e o faz com toda ousadia. Ele afirma que a paz que teve com Deus terminou, quando conheceu o mandamento da lei. Não que a lei se tenha transformado em pecado. Pelo contrário, ela é santa, e o mandamento, santo, justo e bom (7:12). Mas, embora santo, o mandamento que deu vida a Paulo na meninice deixou de o fazer, quando ele se colocou na perspectiva da idade adulta. Quando isso ocorreu, Paulo morreu. É o que ele nos diz em Romanos. De onde proveio essa morte? Não veio do mandamento, que é santo e não pode matar. E, se não proveio daí, só pode ter vindo do elemento pecaminoso desenvolvido a partir de Adão.
Esse elemento pecaminoso está na carne do homem, que de modo nenhum é uma parte do seu ser. A carne não é uma parte, um trecho, uma seção do homem, porque não pode ser apartada dele, enquanto o homem vive. Somente o que pode ser apartado deve ser considerado parte. Enquanto estamos neste tabernáculo, para usarmos a palavra empregada por Paulo em 2ª aos Coríntios 5, nem a mente, nem a vontade, nem os apetites carnais podem ser apartados do homem. Todos funcionam de maneira integrada. Portanto, nenhum deve ser considerado parte.
É verdade que Hebreus 4:12 afirma que a palavra de Deus é capaz de separar corpo e alma. Porém, isso significa que, se a palavra de Deus tem tal capacidade, nós não a temos. Ou não é isso que as Escrituras ministram? A palavra de Deus foi capaz de criar o Universo: somos nós capazes de o fazer também? Se não o somos, devemos concluir que tampouco podemos separar corpo e alma.
A inseparabilidade radical do corpo e da alma, com tudo o que neles há, enquanto a palavra de Deus não os cindir, é a causa do conflito atroz que Paulo descreve em 7:15-25. A mente guerreia com a carne, porque estão juntas no mesmo homem. O núcleo do conflito entre as duas está expresso nos versículos 21 e 22: “Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”.
Como fariseu (At 23:6) educado aos pés de Gamaliel (At 22:3), o que ele nunca negou, Paulo centrava sua vida espiritual na lei de Deus. Por isso também, ele reduzia o conflito entre o querer e o fazer do homem a uma lei que denominou “lei da mente”: “Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros [...] De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo [servo] da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado” (7:23,25).
Romanos 6 a 8 referem-se à lei dada por meio de Moisés como lei de Deus. Porém, esses capítulos também tratam de outra lei divina, que precisa ser descoberta. Só algo sutil e oculto pode ser descoberto. Portanto, essa outra lei recôndita é a Torá enquanto conhecida pela mente humana. Quando o homem chega à idade da razão, o conhecimento que adquire da lei de Deus torna-se para ele a própria lei de Deus subjetivamente considerada. Essa é a lei da mente a que Paulo se refere.
O problema enfocado em Romanos 7 é que a contradição entre a lei da mente e a lei do pecado nos membros produz um conflito terrível, que não raro descamba para uma experiência traumática. Lutero sucumbiu a essa experiência, ao descobrir as exigências dos Dez Mandamentos e se entender incapaz de cumpri-los. John Wesley também sucumbiu a ela ao pregar o evangelho aos selvagens da América do Norte sem compreender a sua própria impotência para praticar o que pregava. E somos levados a crer que Paulo teve a mesma experiência ao perseguir os cristãos, a fim de forçá-los à obediência a Moisés.
Não haveria problema no conflito entre esses dois modos de ver a lei, se a carne do homem não estivesse enferma, no tocante a cumprir a exigência da lei de Deus. De onde provém a sua enfermidade? De Adão, porém não como herança genética ou espiritual. Ela provém do princípio de Adão, que é o pleno conhecimento da exigência de Deus para o homem. Adão conheceu a exigência de Deus. Não teve, porém, o poder de satisfazê-la. Do mesmo modo, os seguidores judeus ou gentios do Antigo Testamento conhecem os mandamentos de Deus, mas não têm o poder de cumpri-los.
Quando afirma que a lei se tornou “enferma pela carne” (8:3), Paulo não está a sugerir que algo negativo infiltrou-se na lei pela carne, mas que algo negativo entrou no homem pelo pecado, a saber: a fraqueza ou enfermidade para cumprir o preceito de Deus. O corpo é naturalmente propenso às paixões, o que não significa que é mau ou pecaminoso. É apenas mais inclinado que a mente a pecar. Assim é na criança e no adulto. Porém, não é isso que Paulo chama pecado em Romanos. Nessa epístola, pecado é a ressurreição, o avivamento da fraqueza da carne, por meio da lei.
Esse avivamento é o que gera o grave conflito descrito no capítulo 7, que começa no instante em que o homem percebe que a lei da sua mente guerreia contra uma segunda lei subjetiva: a lei do pecado na carne. Assim como a mente compreende e consente com a lei de Deus, a carne também o faz. Mas, ao mesmo tempo em que compreende o mandamento de Deus, ela se inclina a descumpri-lo, pois a natureza física do homem o impele a pecar, quanto mais ele se afasta de Deus. Por isso, quando conhece a lei, a carne produz outra lei que guerreia contra a lei da mente.
Essa é a lei que liga a mulher ao primeiro marido. É a única fonte de escravidão existente na Terra. O homem só pode tornar-se escravo do pecado de uma maneira: se ele próprio tomar a lei de Deus, de acordo com as inclinações da sua carne: então, em primeiro lugar, ele matará Deus, a fim de trocá-lo por um ídolo. Em segundo lugar, matará o seu próximo, o seu irmão, como Caim matou Abel. Ou não foi essa a consequência imediata ao pecado de Adão? Por fim, se nada for feito para conter a decadência, o pecado infestará cada parte da humanidade, de modo a introduzir a guerra de todos contra todos ou, simplesmente, a lei do mais forte. Não é o que vemos no mundo?
  
O ESPÍRITO HUMANO

A parábola dos dois casamentos é a chave para a compreensão dos capítulos 7 e 8. Ela mostra, alegoricamente, que o ser humano é semelhante à mulher e que a experiência de crer em Cristo é comparável a uma união matrimonial. Paulo já havia afirmado isso, em 1ª aos Coríntios 6:16-17: “Não sabeis que o que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele”. Embora apareça em Coríntios e outras passagens, a união assim enunciada só é totalmente explicada em Romanos.
A parábola de 7:2-4 mostra-nos que a união do crente com Cristo não é um casamento comum, mas um segundo casamento. Em tese, por se tratar de um segundo matrimônio, Paulo poderia colocar um divórcio antes dele, mas opta por colocar a experiência da morte. Afirma que o segundo casamento da mulher é precedido da morte do primeiro marido, o que faz com que a união com Cristo seja impossível sem uma experiência de morte e ressurreição.
Isso não é novidade absoluta, pois, no capítulo 6, o apóstolo já havia afirmado que “os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte [...] sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:3-4). Resta, porém, estabelecer com clareza o que deve morrer para que o homem se una a Cristo. Essa não é uma questão simples, à luz da História da Igreja, uma vez que diferentes pregadores e mestres sugeriram coisas bem diversas sobre o tema.
Vários desses mestres notaram que a Bíblia está repleta de imagens e símbolos. O Cântico dos Cânticos, por exemplo, é um livro inteiramente constituído por esses elementos. Não é diferente em Romanos 7. Nesse capítulo, o primeiro marido é um símbolo de algo negativo para o qual temos de morrer, a fim de nos unirmos a Cristo, o segundo marido.
Vimos, na postagem anterior, que a mulher da parábola é a mente humana, pois, assim como a mulher é dominada pelo primeiro marido, enquanto ele vive, o apóstolo afirma que a mente é subjugada pelo pecado na carne: “Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado” (7:23). De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado” (7:25).
Isso nos mostra que o que deve morrer (o primeiro marido) não é o corpo, nem as suas sensações, nem a mente ou os pensamentos dela, mas as paixões carnais do ser humano. Esse é um primeiro ponto fundamental, que Romanos, mais que qualquer outro livro bíblico, nos ensina.
Há, porém, outro ponto, que também é esclarecido de modo incomparável em Romanos. Refiro-me ao modo como a morte das paixões se dá. Já se observou, com razão, que, em Romanos, o espírito humano tem lugar bastante proeminente. No capítulo 1, Paulo afirma servir a Deus no seu espírito (1:9). No capítulo 7, esse serviço a Deus “em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (7:6) é reafirmado. E, no capítulo 8, versículo 10, o apóstolo completa: “Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça”.
A esses versículos poderíamos acrescentar ainda o que afirma que “o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses quatro versos dão-nos uma revelação, pois esclarecem, um tanto completamente, a função do espírito humano. Nenhum outro livro bíblico fornece esclarecimento maior ou mesmo comparável ao desses quatro versos, no tocante à função do espírito.
Não que os quatro versículos valham mais do que outros da Bíblia. Mas devemos lembrar que Romanos é o único tratado bíblico escrito com o objetivo de interpretar exaustivamente o evangelho de Cristo. Portanto, o que ele afirma, afirma com intenção de definir. Isso se aplica, de modo especial, ao ensino a respeito do espírito humano, que em Romanos 7 e 8 assume coloração particularmente nítida.
Em O homem espiritual, Watchman Nee explicou, detidamente, o que, em Teologia, se costuma denominar tricotomia, isto é, a existência do espírito, da alma e do corpo no homem. Ao fazê-lo, Nee desenvolveu uma doutrina das partes do homem. De fato, para ele, o espírito, a alma e o corpo são partes do ser humano, como se depreende das seguintes passagens da sua obra:
“O resultado de nossos achados, tanto no estudo da Palavra como na experiência, diz-nos que, com cada experiência espiritual (por exemplo, o novo nascimento), realiza-se uma mudança especial em nosso homem interior. Chegamos à conclusão de que a Bíblia divide o homem em três partes: o espírito, a alma e o corpo” (NEE, Watchman. O homem espiritual. São Paulo: Betânia. Primeiro Prólogo. p. 6).
“É por meio do corpo que o homem entra em contato com o mundo material. Daí podemos qualificar o corpo como a parte que nos faz conscientes do mundo. A alma é formada pelo intelecto, que nos ajuda no presente estado de existência, e as emoções, que procedem dos sentidos. Posto que a alma pertence ao próprio eu do homem e revela sua personalidade, é chamada a parte que tem autoconsciência de si mesma. O espírito é a parte mediante a qual nos comunicamos com Deus, e só por ela podemos perceber e adorar a Deus” (idem. p. 20).
Ao chamar o espírito, a alma e o corpo partes do homem, Nee apenas reflete o que estava posto no embate das correntes que defendem que o homem é composto de corpo e alma (dicotomia) e de corpo, alma e espírito (tricotomia). Os próprios termos dicotomia e tricotomia contêm o radical tomo, que significa parte. Portanto, a discussão que se propôs, há muito tempo, por meio deles, nunca foi se o homem tem partes, mas se tem duas ou três.
Infelizmente, quando posto dessa maneira, o problema da dicotomia e da tricotomia se torna não só insolúvel como induz a outros equívocos. Por exemplo, o de que a alma e o espírito também têm partes, o que Nee ensinou ao escrever:
“Segundo os ensinamentos da Bíblia e a experiência dos crentes, pode-se dizer que o espírito humano compreende três partes. Ou, expresso de outro modo, se pode dizer que tem três funções principais. Estas são a consciência, a intuição e a comunhão” (idem. p. 25).
“Neste breve estudo bíblico se torna evidente que a alma do homem possui a parte conhecida como vontade, a parte conhecida como mente ou intelecto e a parte conhecida como emoção” (idem. p. 35).
“As partes proeminentes da alma são a mente, a vontade e a emoção do homem. A vontade é o órgão da decisão e em consequência o dono do homem. A mente é o órgão do pensamento, enquanto que a emoção é o do afeto” (idem. p. 44).
Essas divisões do ser humano em partes tendem a inculcar a ideia de que cada parte exclui a outra. Como a mente, por exemplo, se localiza na alma, não pode estar no espírito. Disso se conclui que, se o espírito tem a importância que Paulo lhe atribui, em Romanos, o mesmo não se pode dizer da mente.
Mas não é isso que Paulo ensina. Para ele, o espírito é, sim, o ponto de partida da salvação de Deus, mas de modo nenhum exclui a mente. O espírito não é uma não-mente. Se a mulher da parábola de 7:2-4 representa a mente e serve a Deus “em novidade de espírito” (6:7), o espírito não pode excluir a mente.
Só aparentemente, o espírito tem natureza não mental. Em 1ª aos Coríntios 14:14-15, Paulo afirmou: “Se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente” (1 Co 14:14-15).
Aparentemente, nesses versículos, a mente não é o espírito, e o espírito não é a mente. Mas, se olharmos com atenção, perceberemos que os dois não são tão estanques. A mente que fica infrutífera é a do homem que ora sem compreender o que diz, por falta de quem o interprete. Paulo atribui a oração assim realizada ao espírito e não à mente. Porém, o não envolvimento da mente não implica que, se a oração for feita na língua comum, o espírito não orará. A oração numa língua estranha não ser compreendida pela mente não implica que a oração na língua comum não será compreendida pelo espírito. Romanos sugere, ao contrário, que o espírito e a mente oram, quando o homem se dirige a Deus com palavras inteligíveis. Por isso diz: "Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente" (1 Co 14:15).
O espírito não é feito de não-pensamento, pois nada há, no homem interior, que não seja algum tipo de pensamento. Por isso Paulo nos diz que o espírito do homem “conhece as coisas do homem” assim como o Espírito de Deus conhece as de Deus (1 Co 2:11). Não há conhecer sem pensar. Portanto, o saber do espírito humano é um pensar.
Só não é um pensar consciente, um pensar comandado pela faculdade da atenção. Assim como o coração bate, independentemente da nossa atenção, o espírito pensa e conhece, independentemente de nos darmos conta. Não é preciso mais para indicar que o que, nas epístolas paulinas, se denomina “espírito da mente” (Ef 4:23), em Psicanálise, é o inconsciente individual.
O espírito humano é o homem dobrado sobre si mesmo, voltado para dentro de si, para as suas profundezas. É o homem enquanto não tem e não usa qualquer conhecimento advindo do mundo externo, o homem mergulhado no universo da sua memória e que só se relaciona com o que encontra ali.
Paulo diz que esse espírito é o próprio homem, não parte dele. Pergunta: “Qual dos homens sabe as coisas do homem?” E responde: “senão o seu próprio espírito que nele está?” (1 Co 2:11). Portanto, o espírito não é parte do homem, mas o homem todo, pois a sua memória é tudo o que ele jamais viveu.
Paulo acrescenta: “Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2:11). Nesse versículo, as palavras “assim também” estabelecem claro paralelo entre o espírito do homem e o de Deus. Do modo como o espírito humano conhece as coisas do homem, o Espírito de Deus conhece as de Deus. Como as conhece? Se estabelecemos que o espírito do homem conhece pela lembrança, devemos concluir que o Espírito de Deus conhece da mesma maneira.
Deus é infinitamente sábio. Essa sabedoria, enquanto relacionada à criação e ao mundo material, é o Logos (Cristo); enquanto relacionada à mente de Deus ou de Cristo (1 Co 2:16), é o Espírito. Tudo isso é conhecimento. Nada é isento de conhecimento.
Nada há de errado com o ensinamento de que o espírito humano é a cabeça de ponte da salvação de Deus. Ele o é, pois a salvação começa nele. Por isso, quando declara que “os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne, e os que se inclinam para o espírito, das coisas do espírito” (8:6), Paulo toca o grande mistério. Dá-nos, ao mesmo tempo, a aplicação prática de tudo o que ministrou antes.
A aplicação da salvação de Deus envolve o espírito humano, porque Deus ali habita. Quem se une a uma prostituta se torna uma só carne com ela, mas “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). “O Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16). Esses versos confirmam que o espírito é o posto avançado, a cabeça de ponte da salvação, porque algo diferenciado acontece nele. Não algo diferenciado por não envolver a mente ou a razão, mas ao contrário por envolver um novo tipo de pensar, que Paulo denomina cogitar das coisas do Espírito: “Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito” (8:6).
O segredo do espírito não é o não pensar, o pensar menos ou o pouco pensar. É, antes, o novo pensar e o pensar o radicalmente novo.

A LEI DO ESPÍRITO DA VIDA

Na literatura e no culto cristão, o Espírito Santo é mencionado em fórmulas às vezes tão repetitivas que corremos o risco de o tomar como um tema trivial. Porém, quando prestamos atenção no modo como Cristo e os apóstolos se referiram ao Espírito de Deus, verificamos que ele nada tem de comum. Romanos 8:1-16 é exemplo claro disso. Nesses versículos, a palavra Espírito é usada 17 vezes, quase sempre para se referir à pessoa do Espírito Santo, em termos inusitados e surpreendentes.
A primeira menção do Espírito aparece no versículo 2: “Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus me livrou da lei do pecado e da morte”! Paulo não diz, aí, simplesmente, que o Espírito o livrou do pecado e da morte. Diz que a lei do Espírito o fez. Portanto, associa o trabalho do Espírito a uma lei.
Isso é próprio da mentalidade judaica, para a qual toda revelação de Deus tem relação com a lei. Trata-se, porém, de estabelecer exatamente a que lei Paulo se refere: se à lei a do Antigo Testamento ou a alguma outra.
Ao longo da História, muitos estudiosos das Escrituras tentaram responder essa pergunta. Não faltou, inclusive, quem oferecesse resposta exótica a ela. No entanto, as melhores respostas sempre foram as mais simples. E a mais simples resposta à pergunta é a que reconhece que a lei do Espírito é a que Paulo chama também “lei de Cristo”.
Vemos essa lei mencionada em Gálatas 6:2: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”. E, de novo, em 1ª aos Coríntios 9:21: “Para com os sem lei [procedi] como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo”.
Em hebraico, torá (lei) significa ensino ou instrução. Lei de Cristo é, portanto, o ensino de Cristo a respeito do Antigo Testamento. Durante o seu ministério, na Terra, Jesus ensinou muitas vezes como a palavra de Moisés e dos profetas deve ser interpretada e aplicada. Ele disse, por exemplo, que não veio revogar a lei, mas cumpri-la (Mt 5:17). E que, até que o céu e a terra passem, nem um til ou iota da lei passará, sem que tudo se cumpra (Mt 5:18).
Essas declarações centrais permitem-nos estabelecer que a lei de Cristo não é outra coisa que a lei do Antigo Testamento como Cristo a ensinou e aplicou. E, como o Espírito foi enviado para nos levar a “toda a verdade” (Jo 16:13), lei de Cristo é também a que ele confirma e explica. É a que “o Consolador, o Espírito Santo”, que o Pai envia em nome do Filho, “vos ensinará”, pois ele “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26). A única diferença é que Cristo ensinou essa lei, visivelmente, aos seus discípulos, na Terra, ao passo que o Espírito a ministra, de modo invisível, ao coração dos que creem.
Se as palavras que Jesus disse, na Terra, não foram ditas por ele mesmo, mas pelo Pai (Jo 14:10), e se o Espírito não fala por si mesmo, mas diz o que ouve do Filho, enfim se ele “há de receber do que é [do Filho], e vo-lo há de anunciar” (Jo 16:13-14), não podemos senão considerar que a lei do Espírito da vida é o mesmo que a lei de Cristo.
No século II, o gnóstico Marcião difundiu o ensinamento de que o Deus do Antigo Testamento é distinto do Pai de Jesus. Chegou até mesmo a afirmar que o primeiro é mau e cruel, ao passo que o Deus de Jesus é bom. Esse ensinamento trazia a implicação de que o Antigo Testamento é a palavra do Deus de natureza má. Porém, isso é gnosticismo, não fé cristã. João diz-nos que o Pai e o Filho são um (Jo 10:30). Isso implica que o Filho diz o que Pai diz. E é claro que o Espírito diz o que Pai e o Filho dizem.
Assim como a lei do Antigo Testamento foi dada por intermédio de Moisés e, por esse motivo, foi denominada “lei de Moisés”, a do Novo Testamento é revelada pelo Espírito Santo e, por isso, se chama lei do Espírito. Acaso não é assim? João não nos diz que “a lei foi dada por intermédio de Moisés” (Jo 1:17)? E Hebreus não se refere a essa lei como a de Moisés, ao dizer que, “sem misericórdia, morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés” (Hb 10:28)?
Porém, o versículo de João que afirma que a lei foi dada por Moisés acrescenta que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Para uma mentalidade judaica, essa graça e essa verdade, permitam-me propô-lo à consideração de todos, incluem uma lei e até mesmo são a lei de Moisés considerada do ponto de vista da graça e da verdade.
O sentido dessa lei é exposto, com particular clareza, na passagem em que os escribas e os fariseus levaram a Jesus uma mulher flagrada em adultério e lhe indagaram o que devia ser feito a ela: “Na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que nos dizes?” (Jo 8:5). Sabemos que a resposta de Jesus àqueles líderes limitou-se à frase, a um tempo, iluminadora, cortante e áspera: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. Outra versão afirma: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra” (Jo 8:7).
No tempo de Jesus, uma pessoa ser arrastada à presença de um juiz equivalia a ser processada. A condução do acusado pelo acusador era o que hoje denominamos citação ou ato pelo qual se inicia um processo. João 8:3-11 indica, portanto, que Jesus foi considerado uma autoridade por aqueles que levaram a mulher à sua presença. E as palavras que ele disse à mulher, no fim da passagem (“eu tão pouco te condeno”), sugerem que os próprios acusadores não a condenaram, antes aceitaram o veredito de absolvição de Jesus.
João 8:3-11 é, talvez, a única passagem em que Jesus interpreta a lei de Moisés na condição de juiz. A única em que ele fala, a partir da cátedra judicial. Nessa especial ocasião, vemos Jesus proferir uma palavra aos acusadores da pecadora (“Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”) e outra à mulher (“Eu tão pouco te condeno. Vai e não peques mais”).
A primeira declaração é crucial. Algumas traduções expressam-na como “quem estiver sem pecado”; outras, como “quem nunca pecou”. Trata-se de coisas bastante distintas, já que “estar sem pecado” refere-se a uma pureza momentânea, ao passo que “nunca pecou” implica um tipo de pureza permanente, ou seja, por toda a vida.
O termo original traduzido dessas duas maneiras é anamártitos. Sabemos que, em grego, hamartia significa pecado, e o prefixo a ou an tem o sentido de não. Portanto, anamártitos indica uma condição sem pecado. Como os judeus não admitiam que alguém pudesse nascer e se conservar sem pecado, ao longo de toda a vida, temos de entender que anamártitos sinaliza uma condição de pureza temporária. “Quem estiver sem pecado” traduz melhor essa condição do que “quem nunca pecou”.
O verso seguinte a essa declaração demonstra como os acusadores da mulher entenderam as palavras de Jesus: “Acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos” (Jo 8:9). A parte decisiva do verso é a que diz “acusados pela própria consciência”. Ela mostra que a não pecaminosidade a que Jesus se referiu não é meramente ritual. Não pode ser alcançada pela observância de um rito, pois é interior e está relacionada à consciência.
Jesus disse à mulher, após os acusadores dela se retirarem: “Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais” (Jo 8:11). Se não podemos conceber uma “lei de Cristo” contrária ao que Cristo ensinou sobre a lei, temos de concluir que o núcleo vital da lei de Cristo é a não condenação. Moisés ordenou que os adúlteros fossem mortos, pelo mesmo motivo por que autorizou dar carta de divórcio: “por causa da dureza do vosso coração” (Mt 19:8). Porém, ao interpretar aquele mandamento, Jesus antepôs-lhe uma condição sem a qual ele não pode ser aplicado pelos homens.
Claro que Jesus preenche a condição anteposta ao mandamento. Paulo diz, claramente, que “ele não conheceu pecado” (2 Co 5:21). E o autor de Hebreus acrescenta que Jesus foi tentado “em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:15). Porém, a pureza radical de Jesus, em vez de identificá-lo com o homem, distingue-o. A pureza que a lei exige de um ser humano para condenar o outro é aquela possível à criatura. Não é a pureza divina.
Jesus não disse “Aquele que dentre nós estiver sem pecado”. Ele disse “dentre vós”. Assim, a pureza exigida para aplicar a pena de morte deve ser encontrada entre os homens. Não é a pureza do Filho de Deus, que não está vinculado à condição prevista na lei. Por isso, as palavras de Jesus à mulher não foram de condenação, mas de absolvição.
Ouso pensar que essa é a lei de Cristo. E que a lei de Cristo é a lei do Espírito da vida, a que Paulo se refere em 8:2. O Espírito mencionado 17 vezes na primeira metade do capítulo 8 não tem, para Paulo, qualquer papel. Não inspira qualquer sentimento, não fala quaisquer palavras. O Espírito revela a lei de Cristo, que é tão diferente da lei que demanda e mata, demanda e mata, demanda e mata infinitamente!
A lei de Cristo e do Espírito não mata: dá vida! Porém, por ser tão elevada, ela não pode ser conhecida do modo como as coisas comuns o são. Não é uma lição que se ensine ou se aprenda em escolas. Não se ouve aos pés de Gamaliel, porque Deus reservou-a ao ensino direto e exclusivo do Espírito Santo.
O Espírito usa todas as circunstâncias para nos ensinar. Usa, porém, o sofrimento de um modo todo particular. Por isso, o próprio Senhor chamou-o Consolador. Ninguém pode consolar, se não há dor. Por isso, o Espírito atua na dor, na miséria e no sofrimento. Paulo diz que o Espírito geme, e ele não parece fazê-lo por outra razão a não ser porque nós gememos.
Não que Deus queira ou ame o sofrimento. O sofrimento está dado na ordem das coisas. Não procede de Deus. Mas, por ser Deus, ele se apraz em transformar a dor em alegria, a derrota em vitória. Como ele o faz? Paulo nos diz que o Espírito faz essas coisas gemendo em nós, não para aumentar a lamentação, mas para se unir entranhadamente a nós no pior de todos os abismos, no mais escuro de todos os vales, a fim de ali fazer brilhar a luz do mundo.


O ESPÍRITO QUE DÁ VIDA

O Espírito de Deus e o espírito humano são mencionados amiúde, no Antigo Testamento. Porém, quando olhamos para o tratamento que Paulo dispensa a eles, encontramos diferença tão grande que chegamos a pensar que nem um, nem outro foram propriamente “revelados”, nas páginas do Antigo Testamento.
Certifiquemo-nos dessa diferença, primeiramente, no caso do homem. Paulo foi dos primeiros a afirmarem o que hoje se denomina tricotomia, no sempre citado verso de 1ª aos Tessalonicenses (5:23): “E o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.
De certo modo, a doutrina desses três níveis do homem já estava presente, no Antigo Testamento, embora com outro sentido. Em Jó 7:11, encontramos: “Não reprimirei a minha boca, falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na amargura da minha alma”. A boca é um órgão do corpo. Temos, portanto, o corpo, o espírito e a alma mencionados nesse versículo. E encontramos os últimos dois, novamente, em Jó 12:10.
Porém, em Jó como nos outros livros do Antigo Testamento, nada nos autoriza a traçar diferença radical entre os órgãos incorpóreos do ser humano. O fato de o espírito ser mencionado junto com a alma, em certas passagens, não basta para os diferenciar. Em vez de sustentar que a aproximação implica distinção, podemos pensar, ao contrário, que o espírito e a alma são mencionados no mesmo verso por serem semelhantes. Sob essa interpretação, a angústia do espírito, em Jó 7:11, é análoga ou comparável à amargura da alma.
E, se elevarmos um pouco mais a vista, veremos que tudo o que se afirma do espírito em conexão com a alma é semelhantemente afirmado, sem conexão com ela. Não precisamos sair do Livro de Jó para o comprovarmos, já que o versículo 21:4 dele nos diz que o “espírito tem motivo de se impacientar”, o que é substancialmente o mesmo que se angustiar em 7:11. A Versão Almeida RA Fiel inclusive traduz impacientar-se como angustiar-se.
Mas isso não é tudo. O que se afirma do espírito, separadamente ou em contraposição à alma, é dito também da alma. Em Gênesis 42:21, os irmãos de José afirmam: “Somos culpados no tocante a nosso irmão, pois lhe vimos a angústia da alma, quando nos rogava”. Nesse verso, é a alma que se angustia, assim como o espírito em Jó. E, se quisermos generalizar, não fugiremos à verdade se dissermos que o que o Antigo Testamento afirma do espírito tudo o que afirma também da alma.
Nesse quadro geral do Antigo Testamento, versículos mais ou menos isolados em que a alma e o espírito são justapostos não bastam para diferenciá-los, antes se explicam de diversas maneiras. Os versos de Jó, por exemplo, justificam-se pela característica típica da poesia hebraica de trabalhar com repetições levemente modificadas. Nesse sentido, o salmista declara: “Os céus proclamam a glória de Deus” e reafirma: “e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19:1). Essa característica do verso hebraico permite-nos entender o espírito e a alma mencionados em Jó 7:11 ou 12:10 como variações de um mesmo tema, não como órgãos nitidamente diferenciados.
Dezenas de versos nos mostram que a regra geral, no Antigo Testamento, é o que se afirma do espírito ser afirmado também da alma e vice-versa. Por amor à brevidade, mencionarei apenas alguns. Isaías 19:14 afirma: “O Senhor derramou no coração deles um espírito estonteante”. Na Versão Almeida RA Fiel e na tradução de Darby, em lugar de estonteante, lemos “espírito perverso”. Em Daniel 2, versos 1 e 3, vemos o espírito do rei Nabucodonosor perturbar-se e, em 7:15 do mesmo livro, o espírito de Daniel alarmar-se. Em 1º de Samuel 1:15, Ana confessa ter o espírito atribulado e, em Ezequiel 21:7, Deus manda o profeta anunciar que todo espírito angustiar-se-á com as notícias que chegarão a Judá.
Nesses textos e em muitos outros semelhantes, o espírito realiza o que a alma é perfeitamente capaz de praticar e vice-versa. Nada, portanto, nos autoriza a afirmar qualquer diferença fundamental entre eles. De sorte que o espírito está presente no Antigo Testamento, mas a tricotomia não é ali revelada de maneira clara.
A situação é diferente nos textos de Paulo. 1ª aos Tessalonicenses 5:23 não é parte de um poema, como Jó 7:11 e 12:10. Não se explica, portanto, pelo costume poético de repetir afirmações. E, quando notamos as funções geralmente inusitadas que Paulo atribui ao espírito, em Romanos, percebemos que a sua intenção é afirmar uma diferença efetiva entre ele e a alma. Resta estabelecer em que consiste essa diferença e qual é a sua importância para a salvação de Deus.
Um bom ponto de partida para isso é reconhecermos o paralelo que Paulo traça entre o espírito do homem e o de Deus. O paralelo está ressaltado em 1ª aos Coríntios 2:10-11, que afirmam: “Deus nos revelou [a sua sabedoria] pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito que nele está? Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus”.
Na época de Paulo, os judeus em geral concebiam o Espírito Santo como uma hipóstase de Deus, isto é, como um poder ao qual se atribuem determinados atos. A Sabedoria de Deus, por exemplo, era uma hipóstase, que os cristãos cedo identificaram com o Filho de Deus, Jesus Cristo. O livro chamado da Sabedoria, incluído no cânon helenista do Antigo Testamento, trata extensamente da sabedoria dessa maneira hipostasiada. Porém, havia outras hipóstases além dela, assim como o Espírito Santo. Nem sempre os judeus as tratavam como pessoas, mas algumas vezes o faziam. Quando reconheceram que o Filho de Deus e o Espírito Santo são pessoas divinas, os cristãos procederam em conformidade com esse último modo de entender as hipóstases.
Às vezes, em vez de ser um poder ou atributo, a hipóstase era uma relação existente em Deus. No seu livro A Trindade, Santo Agostinho apresentou o Espírito Santo dessa maneira. Apresentou-o como a relação de amor entre o Pai e o Filho. Não é preciso lembrar que, ao longo da História, essa doutrina foi largamente acolhida.
Não é improvável que, séculos antes de Agostinho, Paulo tenha concebido o Espírito Santo como uma relação existente em Deus ou, mais exatamente, como a relação que o Pai tem com o Filho. Jesus não se referiu, em termos enfáticos, a essa relação quando declarou: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30)? E não dedicou o longo discurso de João 14 a 16 a detalhá-la em termos arrebatadores e impressionantes? Isso mostra que Jesus considerava a sua relação com o Pai o centro da sua existência e da sua missão no mundo.
À luz de João 14 a 16, é inteiramente apropriado pensar que o Espírito de Deus nos revela a relação que o Pai tem com o Filho e até mesmo é essa relação. A diferença é que, ao nos referirmos ao Espírito, tratamos a relação como uma pessoa distinta do Pai e do Filho. Esse tratamento é a hipostasiação, com a qual os judeus do primeiro século estavam acostumados.
Se, em 1ª aos Coríntios 2:11, portanto, o Espírito de Deus está em claro paralelo com o espírito humano, não é impróprio pensar neste último como o homem enquanto se relaciona consigo mesmo. E, se o Espírito perscruta todas as coisas, mas, de modo particular, as profundezas de Deus, não é incorreto supor também que o espírito humano conhece as coisas do homem, mas especialmente as que formam o fundo do seu ser.
As palavras “assim também”, em 1ª aos Coríntios 2:11, chamam nossa atenção. Elas indicam que o espírito humano é de algum modo semelhante ao de Deus. A semelhança decorre de o homem ter sido criado à imagem de Deus. De modo que, se o Espírito é uma relação de Deus consigo mesmo, nada há de espantoso em considerarmos o espírito humano uma relação que o homem mantém consigo.
Dirão que essa relação não existe? Que só um louco se relaciona consigo próprio? Se o disserem, faltarão com a verdade, pois é manifesto que todo homem relaciona-se consigo mesmo, de dois modos principais. Primeiramente, ao construir sua memória, ele se debruça sobre o que a experiência sensível deposita no seu interior. E depois, ao lidar com essas memórias, por exemplo, nos sonhos, o inconsciente as religa e recria, dos modos mais inusitados.
De sorte que, se o Espírito de Deus é uma hipóstase e o homem foi criado à imagem de Deus, necessário é que o do homem seja a imagem daquela hipóstase. Assim aproximados, o Espírito de Deus e o do homem passam a constituir o centro da revelação divina, nos escritos de Paulo. Unidos, o Espírito de Deus e o nosso testificam que somos filhos de Deus (8:16). De acordo com o mesmo princípio, a consciência de Paulo “testemunha no Espírito Santo” (9:1) e “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17).
Nada disso se encontra no Antigo Testamento. De Gênesis a Malaquias, o Espírito de Deus é mencionado muitas vezes, mas não como a relação do Pai com o Filho. Ele tampouco é ligado ao espírito humano, e este não nos é apresentado como a relação do homem consigo mesmo.
Por esses motivos, é difícil receber a revelação do Espírito Santo, no Novo Testamento, sem receber juntamente a do espírito humano. Os temas estão relacionados e são inconcebíveis fora da relação que mantêm. Toda tricotomia, toda diferenciação entre o espírito e a alma, que se esquece de tal relação é inventiva e gratuita. Baseia-se na imaginação do intérprete e na sua vontade de afirmar a distinção de sua preferência entre a alma e o espírito. Não se baseia no modo como a diferença foi concebida por autores bíblicos como Paulo.
Entendido, porém, da maneira apostólica, o trabalho do Espírito Santo constitui o ápice da apresentação do evangelho. Nos capítulos 1 a 3 de Romanos, a salvação é proposta como remédio para a perdição e a condenação de gregos e judeus. Nos capítulos 4 a 6, a imputação da justiça é mostrada. Porém, o ápice, a culminância, da salvação de Deus só aparece com a convergência dos temas do Espírito de Deus e do espírito humano, no capítulo 8. Essa convergência é o âmago do evangelho de Deus. Quando lemos que o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus, não lemos sobre algo secundário, mas sobre o mistério revelado por Deus.
O mesmo se dá quando ouvimos que “o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10). O objetivo da salvação de Deus não é convencer do pecado ou justificar o pecador, mas comunicar-lhe vida eterna. Paulo esclarece que essa vida é transmitida primeiramente ao espírito (8:10). Isso está claro no emprego do tempo verbal presente: o corpo está (já está) morto, mas o espírito é vida (já é vida) por causa da justiça. Em seguida, ele diz que a mente deve renovar-se (12:1), o que ainda não se consumou. Por fim, assevera que o dom da vida será comunicado também ao nosso corpo, por meio do Espírito que em nós habita (8:11).
Paulo não diz apenas que o espírito tem vida, mas que ele é vida por causa da justiça. Ser vida é muito mais do que possuí-la. Heidegger descreveu a existência do homem como um ser-para-a-morte. O homem caminha para a morte e a tem em vista, mesmo enquanto vive. Isso concorda apenas em parte com o ensino de Paulo. Para ele, o corpo se orienta para a morte, mas a nova criação consiste em Deus engendrar um reduto, no nosso interior, que não mais se orienta para a morte e sim para a vida. “O corpo, na verdade, está morto, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10).
O espírito humano é um lugar único, onde a vida eterna se instala. Não é, porém, o único lugar (abençoado), pois, do espírito, a vida tende a tomar toda a mente humana. É o que significa o homem interior renovar-se, enquanto o exterior se corrompe (2 Co 4:16). Paulo chega a dizer que esse homem renova-se de dia em dia. Isso mostra que o recebimento da vida eterna pela mente humana pode ser gradual, mas é também incessante.
A Bíblia não diz que a alma é imortal e ponto, como se fosse imortal por natureza. Ainda que Jesus nos tenha exortado a não temer os que não podem matar a alma (Mt 10:28) e tenha prometido ao ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43), devemos recordar a multidão de passagens do Antigo Testamento que afirmam que os pensamentos do homem perecem no dia da sua morte. O balanço dessas afirmações contrapostas pode bem significar que a imortalidade não é algo líquido, certo e invariável, como se decorresse da natureza das coisas. Por ser dom de Deus, ela pode ser-nos comunicada, mas prestemos atenção, pois pode ser também retirada. Nada há de mais certo, contudo, que a garantia que o Novo Testamento nos dá de que o dom da vida eterna não será suspenso, nem nos será retirado, enquanto estivermos voltados para o sangue vertido na cruz, para a redenção que Deus imputou por justiça.
Daí a canção de Paulo, que tudo desafia, com base na maior de todas as obras: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” Até aqui, só coisas presentes são mencionadas. Mas o apóstolo continua, para nossa inteira felicidade: “Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (8:35,38-39).

FILHOS E HERDEIROS DE DEUS

Mateus, Marcos, Lucas e João transmitem-nos os fatos relevantes do ministério de Cristo na Terra, mas não interpretam de modo especial esses fatos. Para conhecermos a interpretação do evangelho de Deus, precisamos recorrer às epístolas, entre as quais Romanos ocupa o lugar central, por conter a única interpretação sistemática da salvação que nos foi dada por Deus em Cristo.
Mas, assim como a interpretação do evangelho tem em Romanos seu centro, podemos afirmar que essa epístola se centra no capítulo 8 dela, no qual todas as suas afirmações convergem e alcançam aplicação máxima. E, embora Romanos 8 nos fale de vários temas, o Espírito Santo predomina nos primeiros 16 versículos, assim como a condição de filhos de Deus, nos versos 14 a 23. Por isso, podemos concluir que não há como entender o evangelho de Deus, sem conhecer o trabalho do Espírito Santo no interior dos que creem e as implicações decorrentes de Deus os fazer seus filhos.
Vimos anteriormente que a obra do Espírito consiste em ensinar ao nosso coração as palavras que Cristo falou pessoalmente ou por meio de seus primeiros apóstolos. Assim, o ministério do Espírito Santo está ligado ao ensino de Jesus Cristo e tem como resultados primordiais a vida e a paz que Paulo menciona em 8:6: “Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz”. Não há dúvida de que essa não é qualquer vida ou uma vida indeterminada, cujo sentido ninguém conhece, inclusive o apóstolo. Tampouco é a vida humana comum e tenho para mim que, nos termos do Novo Testamento, ela tampouco é a vida divina.
Mas, se não é a vida humana comum ou a vida de Deus, que vem a ser essa vida que o Espírito gera no interior dos que creem em Cristo? Ela é, antes de tudo, a vida resultante do novo nascimento da água e do Espírito, ao qual Jesus se referiu em João 3:5: “Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Para entendermos o sentido desse novo nascimento, precisamos, em primeiro lugar, nos perguntar quem passa por ele e recebe a nova vida.
É estreme de dúvida que os que recebem o dom de uma vida nova são os que creem em Cristo. Esse é um ponto fundamental, pois Paulo se esforça para nos mostrar, em Romanos, que a fé é o único meio pelo qual Deus realiza sua obra de salvação. Porém, tão crucial quanto entender que os que recebem a nova vida são crentes é reconhecer que eles são seres humanos e que, por isso, a vida que recebem de Deus só pode ser uma vida humana. Até porque qualquer outra vida, seja de Deus ou de um animal, transformaria quem a recebesse em outro tipo de ser: em Deus ou num animal.
Essa é uma verdade tão clara e tão simples quanto afirmar que o fogo queima. Ter a vida de Deus é o mesmo que ser Deus e ter a vida de um animal irracional é ser um animal irracional. Como não somos Deus, nem animal irracional, a vida que recebemos pelo novo nascimento não é a de Deus ou a de um animal. É uma nova vida humana, diferente e superior à que Adão recebeu.
Claro que a nova vida humana não é recebida sem intensa atuação da vida divina. Porque Deus age no homem para produzir o novo nascimento, podemos afirmar que a vida divina está ali plenamente ativa. Nesse sentido, o Evangelho afirma que aqueles que creem em Cristo nascem de Deus (Jo 1:12). O que não acontece, nesse novo nascimento, é a vida divina misturar-se à humana, de modo a formar uma nova vida. Essa é uma afirmação que falta no Novo Testamento. Não a encontramos em Paulo ou em qualquer outro escritor bíblico.
Porém, a nova vida iniciada a partir do novo nascimento é o ponto central de Romanos 8 tanto quanto o resultado máximo do evangelho de Deus. Quem não a recebe não pode entrar no reino de Deus, nem o ver (Jo 3:3,5). E sem entrar e sem ver o reino, não há evangelho algum, não há Novo Testamento, nem há salvação.
Por isso, Paulo enfatiza tanto a filiação, em Romanos 8. Por isso ele fala tantas vezes dos filhos de Deus: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (8:14-17).
Esse é só um exemplo da importância que Paulo atribui à filiação. Não há evangelho sem a experiência de se tornar filho de Deus. Porém, exatamente por isso, devemos indagar e procurar responder com atenção redobrada o que significa receber a adoção de filho. Se não significa receber a vida de Deus ou misturar-se com ela, deve indicar uma nova relação com Deus. Nesse sentido, é que Paulo opõe a filiação à escravidão. O escravo não tem a vida do dono. Se a tivesse, ele seria o próprio dono. O que ele possui, o que o faz um escravo, é a sua relação com o dono. Do mesmo modo, o que faz a pessoa ser filho de Deus é a relação que adquire com Deus.
Isso era extremamente claro, no primeiro século, já que a existência de pai, filhos e escravos, na mesma casa, era algo comum. No entanto, a relação do escravo era muito diferente da do filho com o pai. A essa diferença é que Paulo alude. Quem estivesse inserido numa das famílias daquela época compreenderia esse fato imediatamente. Nenhuma dúvida permaneceria na sua mente de que as diferenças entre o pai, o filho e o escravo eram relacionais, deviam-se à relação entre eles e não à natureza ou à vida deles.
Do mesmo modo, a diferença entre a vida dos filhos de Deus e a dos escravos do pecado decorre da relação que uns e outros mantêm com Deus. No primeiro caso, a relação é de amor; no outro é de inimizade. O que o novo nascimento confere, portanto, é a primeira relação, a relação especialíssima de filho de Deus. É o privilégio de ser filho do Criador do Universo. É o poder chamar Deus Pai, o viver com ele e o estar inseparavelmente ligado a ele. É ter intrepidez para se aproximar do trono da graça (Hb 4:16). Enfim, é toda uma nova relação, que não existia antes de Cristo realizar sua obra salvadora, mas que não se confunde com a comunicação da vida de Deus ao homem.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo são todos Deus. Claro que todos, por isso, possuem a natureza e a vida de Deus. Mas eles também mantêm relações uns com os outros. A vida e a natureza de Deus são incomunicáveis, porém a espécie de relação que o Pai tem com o Filho não o é. Deus nos concede algo análogo a essa relação, por meio do novo nascimento. Assim como o Pai está no Filho, e o Filho, no Pai, somos admitidos à presença do Pai e do Filho por meio do novo nascimento. E assim como o Pai ama o Filho, e o Filho, o Pai, somos amados por eles e começamos a amá-los, ao crermos na obra redentora de Cristo.
Tudo isso são relações. São até mesmo uma nova e única relação global com Deus, que Paulo denomina filiação ou adoção. Sabemos que, em grego, a palavra huiostesía, empregada por Paulo, significava adoção. Essa é a modalidade de filiação que recebemos de Deus. Porém, não se compreende o significado de huiostesía sem se entender a relação que o termo implica. A palavra está sobrecarregada com o significado dessa relação. De modo que todo outro significado é completamente secundário nela.
Que relação está implicada no termo huiostesía? A relação do Pai com o Filho. E que relação é essa, a não ser um consórcio de amor? É uma relação que, uma vez preservada, se torna inexpugnável. Nada a pode abalar. Uma reação química pode ocorrer, mas também pode ser desfeita. A associação de blocos de matéria como átomos e moléculas também pode ocorrer e ser desfeita por forças externas. Porém, a relação entre Deus e seus filhos não pode ser dissolvida. Só o livre arbítrio de Deus e dos próprios filhos a pode suspender, não um fator externo, pois a relação não é como uma ligação química. É, antes, de todo inquebrantável.
No texto hebraico do Salmo 23, as frases “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará” não são duas afirmações complementares, mas correlativas, quase reiterativas. “Nada me faltará” é quase uma repetição de “O Senhor é o meu pastor”. E, posto que o tempo verbal, em hebraico, não funciona como em português, “nada me faltará” é também “nada me falta”, como a Bíblia de Jerusalém o traduz. Portanto, o Senhor ser meu pastor implica nada me faltar no dia de hoje e para todo o sempre. Implica que entramos numa espécie de relação indissolúvel com o bom Pastor.
E Paulo, que nos diz? “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (8:31). Entendamos: se Deus se ligou inseparavelmente a nós, quem quebrará essa relação? “Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (8:32-33). Entendamos: se Deus não poupou o seu próprio Filho, poupará simples coisas? Se nos deu o seu Filho Unigênito, não nos dará com ele todas as coisas? Ou em linguagem jurídica: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (8:33-34). E na frase talvez mais culminante e definitiva de quantas podemos encontrar: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (8:35).
Poderíamos dizer até mesmo: Quem nos separará do amor que é o próprio Espírito Santo? Pois, se Deus ama o Filho, se ele se alegra com o Filho e se tem paz na companhia do Filho, podemos dizer que esse amor, essa alegria e essa paz são o Espírito Santo. A relação de amor, de alegria e de paz é, sempre, do Pai com seu Filho, mas ela é o Espírito Santo.
Santo Agostinho foi o maior mestre dessa interpretação. Ele escreveu: “A razão pela qual o Apóstolo fala da graça e da paz de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo [no início das suas epístolas], sem acrescentar o Espírito Santo, parece-me não ser outra senão porque compreendemos o Espírito como o próprio dom de Deus. Com efeito, o que são a graça e a paz senão o dom de Deus? Por isso, de forma alguma podem ser concedidas aos homens a graça, que nos liberta dos pecados, e a paz, que nos reconcilia com Deus, senão pelo Espírito Santo” (HIPONA, Agostinho de. Explicação incoada da Carta aos Romanos. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2009. p. 167). Semelhantemente, o amor e a alegria de Deus só são concedidos pelo Espírito Santo.
Por esses motivos, o Espírito é tão importante, em Romanos 8 e no Novo Testamento como um todo. Sem ele, não há participação do homem em Deus e em Cristo. Só o Espírito coloca realmente o homem em relação com Deus, pois só ele é a relação do Pai com o Filho da qual importa que o homem participe. E ninguém participa de coisas tão elevadas sem nascer de novo, sem provar uma vida inteiramente nova, uma vida que não procede da carne ou do sangue, da vontade da carne ou da vontade do homem, mas de Deus e somente dele. Adão foi feito do pó da terra; Eva, da costela de Adão. Por isso, um é terreno e o outro, antrópico. O novo homem, somente ele, é criado no espírito humano por Deus Espírito e é, por isso, espiritual.