A tolerância que Paulo recomenda, em Romanos 14, não é a que aparece nas cartas de direitos humanos e nas Constituições dos países democráticos. Esta é de cunho político e caracteriza-se pela aceitação da diversidade. A virtude que Paulo recomenda é uma espécie distinta de tolerância, qualificada pela não discussão: “Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões” (14:1).
A tolerância política faz-se acompanhar pela discussão e até pelo dissenso, que são fundamentais para a construção de uma sociedade livre. A que Paulo recomenda volta-se à criação de uma comunidade de amor. Embora esses dois projetos, o da sociedade livre e o da comunidade de amor, sejam harmonizáveis, eles não se confundem. Tolerar e discutir é homenagear a diferença, não o amor. Este só desenvolve todas as suas virtualidades e só atinge intensidade máxima, quando nos tornamos capazes de conversar sobre as nossas diferenças, sem as discutir. Conversar é trocar sentimentos e informações. Discutir é promover um concurso de ideias. A recomendação de Paulo é para que conversemos sobre as nossas opiniões, sem as colocarmos em choque.
Isso não significa que todas as opiniões devam ser consideradas de igual valor. Paulo supõe o contrário, ao afirmar que o débil só come legumes (14:2). A pessoa que só come legumes é débil, porque a restrição da liberdade por meio de dietas constitui uma opinião inferior. Pelo mesmo motivo, ou seja, por restringir a liberdade, a obrigação de não fazer certas coisas em determinados dias (14:5) também deve ser considerada inferior à que envolve uma afirmação maior da liberdade.
As opiniões não têm todas o mesmo valor. Por isso, é útil discuti-las. Mas, numa esfera de amor, como a igreja, o choque de opiniões deve ser evitado, pois as pessoas se sentem atingidas, quando as suas opiniões são atacadas. Como a relação afetiva das pessoas cujas opiniões se chocam costuma ser afetada, Paulo não recomenda aos romanos a prática de uma tolerância meramente política, mas a da tolerância que se faz acompanhar pela abstinência de atos que possam magoar quem tem opinião diversa.
Numa tábua democrática de valores, essa abstinência não é muito valorizada, pois o objetivo maior da democracia é produzir liberdade ou, quando muito, também igualdade, não afeto. Por isso, a democracia é politicamente nobre, mas não coincide com a comunidade de amor pregada por Paulo.
A tolerância é ao mesmo tempo, uma virtude política e religiosa. Enquanto virtude política, ela maximiza a liberdade, não o afeto. Já a tolerância piedosa que Paulo prega promove o afeto e é promovida pela abstinência, pelo não discutir diferenças e pelo hábito de as suportar em silêncio. Por isso, Paulo nos diz que devemos renunciar a expor nossas opiniões, sempre que levem o outro a tropeçar.
A renúncia à discussão pode envolver uma perda de liberdade, mas gera um ganho de amor. Quem tolera, no sentido político, mantém a sua prática e admite a do outro. Porém, conforme a discussão se exacerba, a pessoa acaba por irar-se com a posição divergente. Ao contrário, quem se abstém de discutir e de praticar certas coisas renuncia à sua maneira de viver para que o próximo mantenha a sua sem perturbações. Isso só é possível no contexto superior em que o amor governa a conduta humana mais que qualquer outro valor.
Vejamos como isso funciona na prática. “Tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão” (14:13). Este é o princípio da abstinência. A prática concreta dele é: “Se por causa de comida o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal”. Isso significa que o padrão derradeiro de conduta, para o cristão, não é a liberdade, mas o afeto. Não é “Todas as coisas são puras”, então comerei de tudo, mas “é mau para o homem comer com escândalo” (14:20).
Mais que de comida ou bebida, a abstinência que Paulo recomenda é do escândalo. O reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo (14:17). Devemos abster-nos do que retira às pessoas a justiça, a paz e a alegria. Estes são os maiores valores da vida cristã. Como tais, estão muito acima da observância de dias ou de certa dieta. Afirmar que é preciso guardar tal dia, comer ou deixar de comer tal alimento não é só tornar o mandamento mosaico indispensável para a salvação, como faziam os judaizantes. É também substituir a ética do coração pela da conduta. Esse é um erro fatal.
A ética do Novo Testamento não difere da dos escribas e fariseus no tocante ao conteúdo, mas ao peso atribuído aos diferentes mandamentos. Jesus pôs a justiça, a paz e a alegria à frente dos regulamentos miúdos da lei mosaica, sem os desprestigiar. Além disso, atribuiu aos maiores preceitos um caráter interior e não exterior. Para guardar tais preceitos, é preciso que o homem se volte para dentro de si. É preciso, por assim dizer, que ele se dobre sobre si mesmo. Paulo denomina essa prática servir a Deus no espírito (1:9) e andar em novidade de espírito (7:6). Esse é o mandamento básico da nova aliança. Como todo mandamento, ele se baseia num fato, a saber o de que o nosso “corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10). E ainda o de que “o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16).
Guardar a justiça, a paz e a alegria (14:17) é o preceito que o Espírito ensina. A abstinência está diretamente conectada a esse estreito rol de virtudes. Porém, todo mandamento, como a justiça, a paz, a alegria ou a abstinência, tem o seu fundamento no ser, no real, naquilo que é. Os mandamentos ensinados pelo Espírito se fundamentam em certos fatos espirituais. O primeiro desses fatos é: “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). Romanos nos introduz na esfera de união com Deus mencionada nesse versículo. Não se trata de uma união orgânica, pois Paulo a compara com a união do homem com a mulher: "Não sabeis que o homem que se une à prostituta, forma um só corpo com ela? porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele" (1 Co 6:16-17). A união do homem com a mulher não é orgânica, mas relacional. O mesmo acontece com a nossa união com Deus. Também ela é relacional.
Concordo com os que afirmam que o significado de Romanos 1:9, 7:6 e 8:16 e de 1ª aos Coríntios 6:17 é a união relacional do homem com Deus. Admito também que essa união tenha natureza mística. Só não creio que a mística deva ser cultivada com extravagância, verborragia, loquacidade ou qualquer excesso de palavras. Ela é muito mais uma mística do silêncio que das palavras, do quarto interior no qual devemos ingressar para orar do que de demonstrações de espiritualidade.
A espiritualidade cristã sempre foi mais do silêncio que da excitação exterior. Só recentemente, em termos históricos, tornou-se comum os grupos cristãos enfatizarem demonstrações espetaculares de fé e de comunhão com Deus. Isso difere muito da espiritualidade que atravessou os séculos, dos padres do deserto aos místicos medievais, como Eckhart e Tauler, que sempre foi a do silêncio.
Olhemos para os versos citados. Eles não promovem exibição alguma da mística que afirmam. Pelo contrário, são tão breves que quase chegam a omiti-la. Paulo diz que serve a Deus em seu espírito. Sabemos o que isso significa, por causa dos outros versos em que ele se refere ao espírito humano. Porém, não acrescenta uma só palavra. Declara servir a Deus no seu espírito e é tudo. Não faz propaganda, estardalhaço, não se contorce, nem se exalta. Pelo contrário, cala-se e nesse calar consiste a sua mística.
O fundamento da mística de Romanos é peculiar. É o fato de o nosso espírito conhecer as coisas do homem do modo como o Espírito de Deus conhece as de Deus (1 Co 2:11), ou seja, em profundidade, mas também em profundo silêncio: o mesmo que havia no Santo dos Santos, inclusive quando o Sumo-Sacerdote lá ingressava uma vez por ano. Tanto o conhecimento que o espírito humano tem das coisas do homem como o que o Espírito de Deus possui das de Deus são implícitos e silenciosos. Se não o fossem, encontraríamos nos versos de Paulo as demonstrações de euforia e excitação que abundam nas místicas exibicionistas dos últimos séculos.
Há uma mística em Romanos, que é o fundamento da ética, da conduta ou do andar do homem, como Paulo gosta de denominá-la. Cumprir os mandamentos de Deus, principalmente os maiores deles, como a justiça, a paz e a alegria, requer que o homem se volte para dentro de si, onde Deus se encontra de maneira especial, da maneira do Santo dos Santos, ou seja, em silêncio. Essa é a mística a que Paulo nos introduz.
Para os descrentes, o silêncio divino, no interior do homem, prova a inexistência de Deus e a falsidade da mística. Visto por outro ângulo, esse silêncio é a própria presença de Deus e a verdadeira mística. Deus ser no homem significa ser em silêncio. Por isso, a sua verdade no interior do ser humano revela-se na quietude que não se confunde com o nada, na quietude que é presença, até mesmo a maior de todas as presenças, sem deixar de ser profundo silêncio.