Duas perguntas emergem da discussão das postagens anteriores: se as categorias não foram canceladas como absurdas, que se deve entender por elas? Que categorias permanecem em vigor? Não posso oferecer respostas categóricas a essas perguntas, mas posso refletir sobre as que parecem mais adequadas ao conhecimento atual.
Vimos que Aristóteles arrolou as categorias do ser, e Kant, as do conhecimento. As primeiras eram verdadeiras divisões do ser ou, pelo menos, modos pelos quais ele se revela. As categorias de Kant, por sua vez, nada tinham de objetivo. Não descreviam o real, nem os seus modos de ser. O problema é que a crítica das categorias aristotélicas e kantianas não nos permite mais adotar aqueles conceitos sem grave contradição com o conhecimento presente. Por isso, o sentido no qual ainda é possível falar de categorias não é mais o objetivo, de Aristóteles, nem o subjetivo, de Kant. É um sentido, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo.
Isso significa que toda categoria, como ainda é possível conceber essa ideia, tem um conteúdo objetivo e outro criado pelo intelecto. Exprime características do real e modulações introduzidas pela mente humana. As modulações, em geral, são mais relevantes do que a correspondência de qualquer categoria ao real. Mas isso não significa que o intelecto não trabalhe com categorias e que elas não guardem relação com o mundo.
A objetividade das categorias é menos uma relação com o ser do que com os sentidos. Ser é um conceito abstrato; os dados sensoriais são concretos. A esses dados é que as categorias correspondem, de modo variável, conforme se trate de uma ou de outra delas. Quero dizer que o grau de correspondência de uma sensação a certa categoria não precisa coincidir com o grau de correspondência a outra. Porém, deve sempre existir uma correspondência, uma relação objetiva entre as categorias e o real.
Em suma, se as categorias não podem ser mais concebidas como dados do ser ou do entendimento, temos de ancorá-las em outra parte. O melhor é as relacionarmos à experiência, já que, por essa palavra, entendemos algo condicionado, ao mesmo tempo, pelos sentidos e pelo intelecto. Essa vinculação permite entender as categorias como conceitos produzidos pelo real e pelo intelecto.
A experiência se desenvolve em momentos que se sucedem, de modo variável, na vida dos indivíduos. Num primeiro momento, o material das sensações acumula-se desordenadamente no intelecto, pois o sujeito ainda não é capaz de conceber as categorias. O segundo momento é o da gênese das categorias. Por fim, o terceiro é aquele no qual se dá o reforço e a reforma delas.
A gênese depende da formação do conceito de ser, a partir das sensações. Porém, enquanto o intelecto permanece capaz de formar esse conceito, sem extrair dele outros, não é possível ao sujeito conceber as categorias. Estas se formam a partir de quando o intelecto passa a converter o ser em dever. Não em dever moral, mas na mais suave e primígena noção de dever, a saber: a que conduz o intelecto a processar de modo regular sensações também regulares.
A regularização do processamento das sensações supõe a conversão das regularidades sensíveis em regras a serem observadas pelo intelecto. A partir desse momento, sempre que adquire consciência de sensações regulares, o intelecto processa-as também regularmente. Desse modo, um traço do ser (a regularidade das sensações) se transforma em dever.
As categorias são as normas primeiras em que o intelecto converte as regularidades que encontra nas sensações. Exemplos de categorias são a substância e o movimento. Delas decorrem outras, como a subjetividade (alma), a finalidade, a regularidade, o estado, a atração, a repulsão, a quantidade e a qualidade. Todas essas categorias são, ao mesmo tempo, objetivas e subjetivas. Não é possível dar a lista completa das categorias, pois a partir das que mencionei criamos outras e destas, ainda outras. Porém, é possível relacionar as categorias mais fundamentais do conhecimento de cada época.
A concepção das categorias a partir da regularidade empírica indica que esta constitui a base de toda a organização do intelecto. O princípio da concepção é o que chamamos verdade. Por mais que modifique as categorias, na terceira fase de desenvolvimento delas, o intelecto não abandona a noção de verdade consistente na transformação de sensações regulares em dever regular.
Por isso, a verdade, para o homem, não é tanto a objetividade (adequação ou correspondência) de um conhecimento ao real quanto é a regularidade dele: o fato de se manter constante e de repetir-se. O que se conhece sempre regularmente, eis a verdade para o homem. Claro que, entre as noções regulares que o intelecto forma, estão as de essência e existência, com base nas quais diferenciamos o que é objetivamente do que só existe de modo subjetivo. O que existe não é necessariamente o que se concebe ou se pode conceber. No entanto, nenhuma noção tem valor absoluto para o intelecto. Nem mesmo as de essência e existência. Só a regularidade enquanto princípio vale absolutamente. Só ela é igual à própria verdade.
A verdade não deve ser considerada uma categoria da experiência, mas do dever moral. Ela só surge quando a regularidade é valorada e recebe uma carga moral. Quando isso ocorre, certas ideias são assinaladas com o timbre da verdade e outras não. Porém, enquanto não ocorre, a regularidade permanece somente uma norma da atividade individual.
O surgimento da verdade implica o da dúvida. Aquela corresponde ao que é regular; a outra ao que o intelecto julga irregular. As flutuações do inconstante inspiram, antes de tudo, incerteza. Constituem por isso uma reserva de dúvida oposta à verdade, cuja regularidade envolve, ao contrário, a certeza. É provável que, dessas duas, a dúvida seja a mais fundamental, pois é mais conforme as variações do intelecto ainda involuído.
A terceira fase de desenvolvimento, caracterizada pelo reforço e reforma das categorias, é fortemente influenciada pelo conhecimento de cada época e, ainda mais, pela capacidade das pessoas de o absorverem. Por isso, em diferentes períodos históricos, listas diversas de categorias foram construídas. Pessoas diferentes também formularam concepções diversas das mesmas categorias.
Ao contrário do que ocorre na gênese, o reforço das categorias não se dá pela observância de regularidades, mas pela reciprocidade que se estabelece entre as considerações sobre o ser e o dever. Durante essa etapa, as categorias permanecem regulares, mas se tornam cada vez mais flexíveis, já que o seu reforço se dá numa nova direção: a da reciprocidade.
Por reciprocidade, devemos entender os vários modos pelos quais o intelecto passa de considerações sobre o ser a considerações de dever e vice-versa. A máxima aristotélica “nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” assinala um desses modos. O que está nos sentidos representa o ser, não o dever. O intelecto, por sua vez, está matizado de dever, de regras de intelecção, mais que do ser. Assim, a passagem dos conteúdos dos sentidos ao intelecto é um dos modos pelos quais o ser se converte em dever.
Por outro lado, o intelecto permanece caótico, enquanto regras de intelecção não passam a ordenar o material que advém dos sentidos. Portanto, há também uma moldagem do ser pelo dever. Quanto mais o intelecto se desenvolve, mais se intensifica a passagem de considerações de dever a considerações sobre o ser e vice-versa. Esse trânsito de sentido duplo (a reciprocidade) flexibiliza a utilização da regularidade como categoria da experiência. Como já afirmei, o hábito de desenvolver conteúdos de pensamento regulares a partir de sensações regulares nunca é abolido, pelo contrário se reforça, mas numa direção alterada pelo balé que o intelecto passa a realizar entre o ser e o dever.
Vemos por que o reforço das categorias, no terceiro período de desenvolvimento, ocorre simultaneamente à reforma delas. Enquanto se sedimentam e enraízam, as categorias mudam. A transformação é proporcional ao nível do conhecimento de cada época e, principalmente, à capacidade das pessoas de o absorverem. Claro que, por isso, o que um indivíduo entende por certa categoria, em determinado momento histórico, não equivale ao que outro entende por ela em outro momento.
Essa mutabilidade torna recomendável que a reflexão sobre as categorias leve sempre em conta o contexto de quem as utiliza. Um era o significado do tempo para Aristóteles; outro era o seu sentido para Einstein. Uma coisa era a cor para Tomás de Aquino; outro é o significado desse termo para um físico contemporâneo.
Porém, nada disso cancela o uso das categorias. Apesar de tudo o que lhes sucedeu, durante a História da Filosofia, esses conceitos básicos não foram abolidos. Como as visões de mundo do passado foram construídas com base neles, as de hoje ainda o são. No entanto, tornou-se claro que as visões de mundo são proporcionais não apenas ao conhecimento, mas também às categorias de cada época. Necessário é considerar, portanto, que a construção das visões de mundo depende do modo como cada época formula as suas categorias.
Essa construção não se dá só com as categorias da experiência, mas também com as do dever. Não me aprofundarei neste tema, mas deixarei assentado que, assim como as categorias da experiência dimanam da regularidade, as do dever assentam-se na verdade. Aristóteles já dividia as virtudes em intelectuais e morais em sentido estrito. A verdade é uma virtude intelectual. É até mesmo o modelo de todas as outras virtudes intelectuais e morais.
Tanto o dever moral como o individual são concebidos a partir do ser. Vimos que a verdade surge e se funda na regularidade, que depende de sensações regulares. Assim, o dever emana do ser. As outras virtudes, por sua vez, surgem por transformações sucessivas da verdade.
Por que a liberdade é uma categoria moral? Por que a igualdade o é? Basicamente porque o homem anseia por ser livre e por ser tratado como igual aos seus semelhantes. Do ser do homem, ou seja, da sua natureza, provém o seu dever-ser. Ou, se quisermos afirmar o mesmo em outras palavras, da verdade do ser do homem, da verdade da sua natureza, emana o seu dever-ser. Assim, a verdade permanece a primeira de todas as categorias morais.
Desde Hume se afirma que a derivação do dever a partir do ser envolve um vício lógico. Muitos chegaram a negar a possibilidade de toda e qualquer espécie de lei natural, a partir dessa verificação. Contudo, a derivação é um dado da realidade. Por outro lado, a Lógica é um feixe de regras, um dever-ser. Pode o feixe, o dever, cancelar um dado do ser?
Regras não podem ser invocadas contra fatos. A derivação do dever a partir do ser está situada no plano dos fatos. Cancelá-la com base em regras lógicas é uma demonstração do mais vão intelectualismo. Assemelha-se a revogar a gravidade por decreto presidencial.