segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O Romance da Filosofia (14): O Materialismo Revolucionado

Este é um tempo estranho, em que se requer do homem que viva no mundo sem uma visão de mundo. Continuamos a ter um mundo para viver e decifrar, e olhem que ele nunca foi tão complexo. Porém, ao contrário de todas as outras épocas, hoje não possuímos visões de mundo que nos ajudem a entender e a viver neste complexo orbe. Visões de conjunto diversas das que integram o senso comum tornaram-se tão raras que parecem um luxo, um capricho, quando não são tratadas como coisas inalcançáveis.
Mas, se a impossibilidade de visões de mundo fosse verdadeira, tanto a Filosofia como a Teologia estariam, de chofre, inviabilizadas. Não seriam possíveis, pois nada mais são que instrumentos de construção de visões de conjunto das coisas. Dediquei minha vida a essas duas disciplinas. E dos grandes teólogos e filósofos que pude estudar, dois me atraíram mais a atenção: Santo Agostinho e Karl Marx.
Curioso é que são pensadores em tudo opostos. Agostinho teve uma formação romana clássica. Estudou letras e retórica. Na tenra idade, assimilou o modo grego de pensar mais do que o cristianismo de sua mãe, Mônica, em relação ao qual cultivou admiração e ressalvas. E não o fez sem motivos. As doutrinas de que Agostinho se enamorou, nesse tempo, mostram que ele se inclinou com ímpeto para as visões de mundo materialistas (no caso, o maniqueísmo) e céticas (academicismo) que circulavam no Império. Só a partir de sua conversão, aos 33 anos, Santo Agostinho trocou o materialismo típico da cultura grega pela fé cristã, da qual se tornou o pensador exemplar e o maior referencial doutrinário, durante quase toda a Idade Média.
Marx realizou o percurso contrário. Nasceu numa família de rabinos e se criou numa sociedade (a da Prússia) em que a filosofia reinante, promovida pelo próprio Estado, era o idealismo teológico de Hegel. Durante sua vida, Marx transitou dessas influências para o materialismo histórico que ele próprio criou, com ajuda de Friedrich Engels. Apesar de todas as dificuldades de interpretação do mundo social em que se envolveu, o materialismo de Marx pode ser considerado o mais bem-sucedido exemplar dessa orientação filosófica em toda a História.
O motivo primeiro de meu igual interesse por pensadores tão opostos quanto Agostinho e Marx foi o propósito de empreender o exame mais honesto possível das filosofias que pudesse percorrer. Nada faculta análise mais proveitosa de uma doutrina do que o exame igualmente acurado da doutrina oposta. Como, desde o início de minha trajetória filosófica, eu me inclinara para o pensamento cristão, o aprofundamento na obra de Marx permitiu-me o contato com um modo diverso e inverso de ver o mundo. Permitiu-me estudá-lo também ao avesso e indagar seriamente se a visão de mundo materialista, porventura, não seria mais fecunda que o cristã.
Porém, há outro motivo tão fundamental quanto esse para o meu interesse por Agostinho e Marx. É que, embora as teologias e as filosofias facultem construir distintas visões de mundo, a História parece apontar a existência de duas e somente duas metavisões. Refiro-me ao materialismo, que Marx tão bem representa, e à metafísica, à qual a Teologia foi quase sempre anexada. Agostinho está entre os mais destacados cultores da metavisão teológico-metafísica.
Se a visão de mundo é uma interpretação global da realidade ou de parte significativa dela, a metavisão é mais do que isso. É um agregado de visões distintas, mas convergentes. Pode-se propor que uma metavisão é uma visão de visões do mundo. Talvez, na História do Pensamento, não haja mais do que duas metavisões capazes de agregar todas as concepções filosóficas propostas. São elas o materialismo e a metafísica.
Isso se torna claro, quando lançamos à História do Pensamento um olhar a partir do alto. Ao fazê-lo, divisamos um período inicial de formação em que a Filosofia grega foi, antes de tudo, materialista. Logo em seguida, as obras de Platão e Aristóteles desafiaram e chegaram a abalar os pressupostos dos materialismos pré-socráticos e da cultura grega como um todo. Isso ocorreu desde que Platão ousou propor a existência de um nível da realidade subsistente à parte da matéria: aquele que hoje denominamos espírito e que ele chamou mundo inteligível ou das ideias. Discorri mais amplamente sobre os motivos profundos dessa revolução filosófica, no artigo sobre o Logos divino.
Porém, o condicionamento exercido pelo modo grego de pensar, o peso total da cultura grega, fez com que, após o desaparecimento de Platão e Aristóteles, os filósofos tornassem progressivamente às visões de mundo materialistas. Os seguidores de Platão foram a exceção a esse movimento, pois continuaram a defender concepções metafísicas.
Por terem permanecido praticamente os únicos a defenderem a novidade metafísica é que os platônicos se tornaram tão importantes na Filosofia Antiga. Por isso também, foram tão associados ao cristianismo. Só ao nos darmos conta da oposição persistente entre materialismo e metafísica, compreendemos por que, desde o século II, o cristianismo juntou suas águas às do platonismo em escala tão ampla. Não é exagero afirmar que o elemento platônico e o cristão se fundiram quase totalmente, devido às afinidades que os associavam no plano da metavisão. No entanto, a fusão nunca resultou em confusão. Os grandes pensadores, ao menos, sempre discerniram perfeitamente o que, no pensamento cristão medieval, era platonismo, e o que era fruto do cristianismo primitivo.
Essa fusão de platonismo e cristianismo foi responsável pelo verdadeiro funeral dos materialismos, ocorrido entre os séculos IV e V. Não se tratou de um enterro individual, mas coletivo, do sepultamento de toda uma civilização, da cultura pagã inteira, que feneceu nesses séculos e arrastou para a cova os materialismos filosóficos penosamente construídos. Até os pressupostos vulgares, entranhados na maneira grecorromana de ver o real como matéria, foram então abandonados. O materialismo exauriu-se até a última gota e desapareceu do mundo cristão.
Os motivos desse espantoso acontecimento constituem um dos mais empolgantes capítulos da História, pois poucos movimentos nos levam mais diretamente ao significado da Idade Média e da Modernidade como antítese dela. A era medieval foi fruto do desmoronamento da cultura pagã, cujas sementes não se perderam, mas cuja forma foi varrida da face da Terra. E, se a Modernidade pode ser definida de várias maneiras, do ponto de vista das visões de mundo, o elemento central dela há de ser identificado como o reaparecimento do materialismo no mundo.
Continuemos, porém, a olhar os acontecimentos a partir do ponto elevado a que me referi. Ao fazê-lo, descobriremos que os materialismos ressurgidos na Idade Moderna destruíram os sistemas metafísicos apenas para serem, eles próprios, refutados em seguida. De fato, nenhum dos materialismos filosóficos propostos, na Modernidade, manteve-se íntegro. Todos foram reduzidos a pó. Arrastaram também consigo as metafísicas, mas por outro motivo, a saber: porque demonstraram que estas eram irrefutáveis, estavam fora do campo da ciência e, portanto, eram inúteis para fazer avançar o conhecimento.
Não descrevo esse traçado da Filosofia e mais amplamente das Ideias como resposta a questões formuladas na busca do conhecimento, mas como recolocação das próprias questões. O reconhecimento das metavisões materialista e metafísica é um modo de interrogar os fatos da História do Pensamento. É um modo de perguntar aonde esse incrível traçado de reflexões nos conduz.
Nesse ponto, precisamente, a consideração das obras de Santo Agostinho e de Marx se torna fundamental. Se a refutação do materialismo antigo, na época de Agostinho, teve bons fundamentos, e dificilmente se pode duvidar desse fato, a compreensão do estado atual das metavisões passa pela indagação do grau em que a metafísica agostiniana foi abalada pelos materialismos modernos e pelo de Marx, em particular. Verdade é que esses materialismos se preocuparam com as metafísicas clássicas, com Platão e Aristóteles, mais do que com Agostinho e com o próprio Tomás, mas o corpus agostiniano foi o que mais as revitalizou e proveu as condições indispensáveis para a metafísica continuar a existir no futuro incerto das reflexões filosóficas. Não foi sem motivos que a Alta Idade Média se fez agostiniana e que a Reforma afundou suas raízes no teólogo de Hipona.
Por outro lado, quando o materialismo voltou a florescer, no século XIX, a variedade que se impôs às demais, tanto no campo da práxis como no das ideias, foi o marxista. Chamemo-lo pelo nome mais adequado dentre os que foram usados para designá-lo, ora corretamente, ora de modo impreciso. Chamemo-lo materialismo histórico.
Essa variedade de materialismo não se tornou dominante por motivos casuais, mas por conter, desde o início, a mais consistente proposta de liquidação da metafísica dentre as que já haviam sido apresentadas. Melhor não apenas por ter sido a mais longamente gestada, por Marx e Engels, mas por ter sido a única que, ao mesmo tempo, inverteu o materialismo antigo e os seus equivalentes modernos que, na época de Marx, eram os da chamada esquerda hegeliana.
Os materialismos da Antiguidade, que Santo Agostinho enterrara, e os modernos, hegelianos, tinham como denominador comum o enviezamento abstrato. Marx alcançou tanto sucesso em colocar o seu próprio materialismo num patamar superior aos demais, por tê-lo tornado concreto. Por isso, a expressão materialismo histórico, mais que materialismo dialético ou socialismo científico, faz jus ao sentido básico do marxismo. Histórico invoca antes de tudo o concreto, o não abstrato. Não acontece o mesmo com as expressões materialismo dialético e socialismo científico.
O materialismo não fora tão amplamente abandonado, entre os séculos IV e XVII, sem bons motivos. Essa conclusão é confirmada, quando nos debruçamos sobre o problema maior que as concepções metafísicas do real serviram para propagar, a saber: o vício da substantificação. Como esse vício não pode ser corretamente atribuído a Platão, mas ao senso comum, é possível mostrar a sua presença inclusive nas correntes materialistas de pensamento. O monismo de Spinoza é um exemplo, mas podemos citar outros, como os materialismos da esquerda hegeliana.
Praticamente todos os materialismos antigos e diversos dentre os modernos estão gravemente maculados pelo vício de pensamento central da História da Filosofia. Não é diferente sequer com o de Marx, na medida em que adota a “crítica do céu” de Feuerbach. Porém, há um sentido em que o materialismo de Marx pode ser emancipado de Feuerbach. Há um sentido em que ele funciona independentemente das categorias daquele filósofo. Esse é exatamente o sentido concreto do materialismo histórico.
Marx não encanta tanto por ter invertido a metafísica, o que ele também realizou, mas por ter invertido o próprio materialismo antigo e moderno e, com eles, a substantificação de que estão impregnados. Essa, a meu ver, é a razão da superioridade do materialismo de Marx às outras variedades da mesma doutrina. O materialismo histórico é melhor que a ampla maioria dos outros por ter maior consciência desse problema central da História da Filosofia. Tão central, aliás, que, em certos momentos, chega a se confundir com ela.
Na perspectiva proporcionada pela História da Filosofia, portanto, o período em que a objetivação das ideias foi mais superada, na Antiguidade, foram os séculos III a V e, na Modernidade, os séculos XIX e XX. A inversão mais recente, porém, não se deu em todas as vertentes materialistas, nem por influência delas, mas sobretudo a partir da influência do materialismo histórico.
E, se esses dois períodos conheceram as mais significativas superações da substantificação, podemos perguntar qual foi o impacto do materialismo de Marx sobre a metafísica agostiniana. A que espécie de conclusão o cotejo dessas versões da metafísica e do materialismo conduz? Marx permite remover a metafísica do período dos pais da igreja?
Na verdade, como as metafísicas são irrefutáveis por definição, é claro que a agostiniana não foi destronada pelo materialismo histórico. Por outro lado, ela própria não fornece os instrumentos necessários para refutar o marxismo construído tantos séculos depois de Santo Agostinho, sobre evidências desconhecidas por ele. Tudo o que se pode fazer, digamos, é comparar as duas grandes doutrinas, é entender que Santo Agostinho construiu uma doutrina da liberdade de Deus e do homem. Para ele, Deus é a verdade, e a verdade é libérrima. Nesse sentido, Agostinho antecipa Escoto e Ockham: o Universo é como é, porque Deus o quis. Mais do que isso, quando se torna conhecida do homem, a verdade rompe todos os seus grilhões. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). A verdade libérrima promove a libertação do homem. Isso é Santo Agostinho. Marx, por sua vez, ancora sua obra no valor da igualdade e o promove muito mais do que a liberdade. Isso torna o materialismo histórico praticamente incomparável com a metafísica de Santo Agostinho Portanto, nenhum dos dois sistemas refuta o outro. 
Michel Foucault foi historiador e filósofo materialista. Para ele, “à diferença do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina [...] o mundo da história efetiva conhece apenas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 28).
Mas, em Foucault, pressupostos materialistas como estes não importam tanto. A contribuição por excelência dele consistiu na tradução do pensamento de Marx em linguagem política, na extração de toda uma série de consequências políticas que tinham permanecido à sombra do corpus marxista e careciam de desenvolvimento. Foucault mostrou que o poder não se encarna num sujeito particular, por mais privilegiado que seja (por exemplo, o Estado ou uma classe), mas se difunde no tecido social. Por isso, o poder é impessoal. Sempre que se apresenta personificado ou concentrado, ele não é mais que a miragem de um fato complexo não discernido ou a cristalização provisória de uma potência prestes a se desagregar.
Nada melhor que as palavras do próprio Foucault sobre o tema: “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (idem. p. 183).
Embora vacile ao se ver questionado sobre a natureza do poder, Foucault tende afinal a considerá-lo a expressão de uma luta. O contorno dos fatos, do real histórico, “não obedece a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta” (idem. p. 28). Essa concepção é tributária da noção de igualdade de Marx. Ambas afirmam a igualdade com prejuízo, maior ou menor, para a liberdade. Por maior que tenha sido a boa vontade de Foucault, não é possível concluir que a luta constante produza outro resultado. Ao menos como a vimos travar-se até hoje, é preciso concluir que a luta por si só não liberta, mas acorrenta.
Marx falou da revolução permanente. Que é tal revolução, a não ser a luta contínua? Na imensa rede de conflitos que ela envolve, o homem não pode ser livre. Permanece cativo. De quem? De ninguém. Apenas da própria luta. Lutar, lutar e lutar, sem solução e sem fim, torna-se o destino dele.
É essa uma doutrina da liberdade? Não aparenta. Marx e Foucault criaram doutrinas que priorizam a igualdade, mas que conduzem à ampliação demasiada e à perpetuação dos conflitos, não à pacificação social. Portanto, não à libertação do homem. A não ser que creiamos que o “acaso da luta” trará paz à Terra e libertará o homem da violência.
A partir do século XVIII, em muitas sociedades, a fé em Deus foi parcialmente substituída por utopias políticas como a de Marx. Quase todas as vezes em que isso ocorreu, uma versão de materialismo, teórico ou prático, operou a transição entre as duas. Mas Deus e a política são incomensuráveis. Deus é o transcendente, a política, o imanente. Deus é invisível, a política, visível. Deus é o atemporal; a política, o temporal. Deus, o incompreensível, a política é o que compreendemos da sociedade. Não há elemento comum entre eles. Por isso, não podem ser aproximados e comparados. E, se não o podem, como é possível opô-los ou substituir um pelo outro? Toda e qualquer substituição operada, por esse meio, padecerá de uma falha lógica cujo preço será um dia cobrado.
No entanto, que fazem os materialismos modernos quase sem exceção? Comparam Deus e a política. Não contente, Marx ainda compara a libertação promovida por Deus com a igualdade alcançável pela política. À primeira chama ópio do povo, por desviar da outra. Não há, nessa vindicação da política, uma pretensão excessiva? Pode Marx, por qualquer outro método, chamar ópio a religião, a não ser comparando-a com a política? Mas a comparação é devida?
Se o melhor dos materialismos tem esse fim, que dizer dos piores? Por outro lado, o valor científico nulo das metafísicas ficou demonstrado, ao longo da História. Assim se chegou não à falência, mas ao paradoxo do conhecimento atual, que faz sentir e pressentir a escassa disponibilidade de visões de mundo que nos ajudam realmente a viver. Resta indagar se o paradoxo permite novos tratamentos para a histórica disjunção entre Deus e a matéria.