É universalmente aceito que a Filosofia surgiu entre os gregos, no século VI a. C. Porém, ao longo do tempo, muitos pensadores a relançaram, ao proporem mudanças significativas no rumo das suas reflexões. Platão foi o mais bem-sucedido deles, do ponto de vista do tempo durante o qual a sua revolução filosófica exerceu influência.
Todavia, se considerarmos o número de séculos transcorridos de Platão até hoje, não será difícil concluir que o seu modo de ver o mundo esgotou-se, encontrou os próprios limites e foi superado por concepções concorrentes. Foi o que procurei demonstrar na série O romance da Filosofia. O problema é que um filósofo tão influente quanto Platão, cujas ideias serviram de inspiração à maioria dos grandes pensadores durante 15 séculos, não pode ser destronado sem que a sua superação signifique outro modo de exercer influência.
Ralph Waldo Emerson declarou, certa vez, que “Platão é a Filosofia”. É possível concordar com ele, tanto do ponto de vista da aceitação das concepções de Platão como da superação delas. A aceitação produziu os 15 séculos, durante os quais o maior discípulo de Sócrates exerceu influência sobre o pensamento ocidental. A superação fez com que as concepções que se seguiram fossem, de certo modo, as de Platão invertidas. Assim, se insistirmos em olhar para a História sob o prisma da última palavra, a Filosofia terá de ser vista, indefectivelmente, como uma inversão de Platão.
Nesta série, tentarei mostrar que a inversão é difícil demais para que uma lista de dúvidas capitais não resulte de sua conturbada consecução. Dúvidas sobre a natureza do conhecimento, a estrutura do mundo físico, o nível divino da realidade, entre tantas outras. No entanto, pelo modo como a Filosofia foi historicamente construída, a dúvida que a crítica de Platão introduz em primeiro lugar é a que incide sobre as categorias.
Vimos que Aristóteles propôs a existência de 10 categorias do ser e Kant, de 12 do entendimento. Foram essas as mais importantes contribuições já ofertadas, sobre os conceitos fundamentais em que as visões de mundo das várias épocas se basearam. É preciso acrescentar, porém, que tanto as categorias aristotélicas quanto as kantianas foram seriamente contestadas. O enfraquecimento das posições realistas sobre os universais, cujo auge coincide com a obra de Ockham, infirmou a interpretação tradicional das categorias aristotélicas, que podem ser vistas como espécies de universais. Por outro lado, a crítica de David Hume à causalidade e a de Bertrand Russell ao espaço e ao tempo colocaram as categorias kantianas em sérias dificuldades.
Esse duplo desafio à doutrina das categorias não representa uma construção particular ou especializada. Tampouco é um gueto da Filosofia. Corresponde, ao contrário, ao próprio núcleo do pensar filosófico dos séculos. Se esse núcleo pode ser mesmo concebido como uma desconstrução de Platão, o problema das categorias deve constituir o território mais importante em que a obra em questão é levada a efeito.
Platão é a Filosofia, inclusive ao ser desconstruído. A desconstrução, porém, não é qualquer.Tem como núcleo a desintegração das categorias. Os universais não constituíram o problema maior da Filosofia Medieval pela multiplicidade dos ângulos em que foram discutidos, mas por um único aspecto deles: a existência no mundo real. Quando essa existência ameaçou ruir, o colapso das correntes platônicas que a tinham sustentado durante séculos tornou-se inevitável. Todo o leque de posições derivadas de Platão ruiu, mais depressa ou devagar.
A principal característica de um universal é ser utilizável como critério de agrupamento de indivíduos e coisas (GILSON, Éttiene. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 823). Já que as categorias cumprem essa função, não há como negar que elas constituam verdadeiros universais. Tomemos a quantidade e a qualidade como exemplos. Não é possível negar que dois, três e um milhão sejam expressões de quantidade e que duro, macio, áspero e liso constituam qualidades. Portanto, a quantidade e a qualidade são gêneros sob os quais reunimos diferentes elementos. Como tais, elas são autênticos universais.
O problema é que, se as categorias são universais, e estes não têm existência real, temos de concluir que nem o tempo, nem o espaço, nem a quantidade, a qualidade ou qualquer outra categoria é real. As categorias não existem, e isso tem graves implicações, pois, sem elas, não somos capazes de constituir um conhecimento minimamente ordenado do real ou sequer de nos comunicar.
O envolvimento das categorias na derrocada dos universais liga-se à própria gênese delas. Na obra que escreveu sobre o tema, Aristóteles explicou as categorias a partir dos conceitos fundantes da sua metafísica, a saber: a matéria e a forma. De fato, para ele, tudo o que existe é uma combinação de matéria e forma, como Étienne Gilson recordou, em feliz síntese: “O universo é composto de naturezas, isto é, de corpos materiais, cada um dos quais possui sua forma. O elemento que particulariza e individualiza essas naturezas é a matéria de cada uma delas; o elemento universal que elas contêm é, ao contrário, sua forma” (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 667).
Se a matéria é o que individualiza, e a forma é o universal, temos de concluir que, na filosofia aristotélica, o conceito com características universais resulta da assimilação da forma pelo intelecto. Em São Tomás, essa assimilação é complexa; em Ockham, muito mais simples. Porém, as diferenças entre esses filósofos e suas escolas não são decisivas para os propósitos deste curto texto, já que, para ambos, o universal é a forma interiorizada, a forma enquanto objeto de pensamento.
O problema do universal é, de fato, genético. Está presente na geração do conceito, em Aristóteles, que o concebeu como forma interiorizada. Se, em Aristóteles, a forma é constitutiva das coisas, segue-se que o universal, como forma transposta ao intelecto, é por definição uma ideia substantificada.
Esse defeito genético do universal não escapou ao olhar percuciente de Russell, que lembrou que Aristóteles criticara Platão por atribuir realidade às ideias, mas incidiu no mesmo erro dele: “A ideia de que as formas são substâncias que existem independentemente da matéria em que são exemplificadas parece expor Aristóteles aos seus próprios argumentos contra as ideias platônicas [...] ‘As formas tinham para ele [Aristóteles], como as ideias tinham para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais’” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 192-193).
A “existência metafísica própria" da forma é, em Aristóteles, o correspondente à existência metafísica da ideia, em Platão. Por isso, a negação da existência dos universais há de ser entendida tanto como negação da objetividade das ideias platônicas como das formas aristotélicas, o que confirma que os universais não equivalem a coisa alguma no mundo. Simplesmente, não são. É demasiado afirmar que eles são cópias, fieis ou modificadas, de partes do real. Por outro lado, como Russell também apontou na sua crítica do tempo e do espaço kantianos, afirmar que eles não têm relação alguma com o real é permanecer aquém da evidência. O universal está em alguma relação com o real, embora essa relação não seja de identidade ou reprodução.
Devo admitir que a conclusão a que chego por essa via conflita com o princípio da filosofia de Kant, para quem o conhecimento não tem qualquer relação definida com o real. Como esse princípio foi amplamente assimilado pelos filósofos contemporâneos, precisamos procurar fora da tradição kantiana e também da filosofia contaminada pelo seu subjetivismo o caminho para uma correta compreensão dos universais e das categorias em particular.
Hume é uma das alternativas mais sedutoras a Kant, pelo seu ceticismo geral e por ter desenvolvido uma crítica da causalidade que se tornou altamente reconhecida. Por muito tempo se pensou ter Hume negado a objetividade da relação causal. Porém, Galen Strawson e outros mostraram que essa jamais foi sua real posição. Hume nunca afirmou a inexistência da relação causal. O que ele negou foi a capacidade humana de conhecer a natureza íntima dessa relação. Se o efeito é determinado pela causa é-nos de fato desconhecido, embora o intelecto tenda a conceber as coisas dessa maneira. Sabemos, porém, que a causalidade é uma conjunção de duas coisas. Nisso consiste o nosso conhecimento dela.
Entre muitos outros textos, Strawson fundamenta o seu ponto de vista numa curta, mas clara declaração de Hume sobre a conjunção causal: “Não podemos penetrar a razão da conexão”. E a comenta em seguida: “Há certamente uma razão para a conexão regular, mas nós nada sabemos sobre a sua natureza intrínseca” (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012. p. 138). Cita ainda outra declaração, que dispensa comentários: “Em nenhum caso particular, a conexão [causal] subjacente aos objetos pode ser descoberta, seja pelos sentidos, seja pela razão. Não podemos penetrar na essência e na construção dos corpos, de modo a perceber o princípio de que depende a influência recíproca que se estabelece entre eles. Podemos familiarizar-nos apenas com a sua constante união” (idem. p. 146).
É possível clareza maior? “Hume acredita na causalidade (nunca lhe ocorre realmente duvidar dela), por adotar um realismo básico sobre os objetos, vale dizer, qualquer interpretação dos objetos segundo a qual a sua existência envolva algo mais que a nossa percepção” (idem. p. 137). “Algo mais que a nossa percepção” significa algo real. Hume é um realista básico, como Strawson o denomina, na medida em que admite a existência de algo situado além das nossas percepções, portanto de algo objetivo.
O que Hume acredita existir fora e além das percepções, sem dúvida, inclui a causa e o efeito. A conexão entre estes é algo real, embora não estejamos em condições de provar a precedência da causa ao efeito ou a determinação do último pela primeira. Essa é uma conclusão relevante, pois nos permite evitar o subjetivismo de Ockham e Kant e, ainda assim, permanecer numa sólida posição crítica, até mesmo cética, quanto à estrutura do real e suas relações com o intelecto.
Claro que o que concluímos sobre a causalidade (sua existência e regularidade) pode ser estendido, de maneira aproximada, às outras categorias, que também correspondem a algo existente e regular. Não conhecemos a natureza intrínseca de qualquer das categorias. Menos ainda podemos estabelecer a lista completa delas. Após a devastadora crítica das categorias de Aristóteles e Kant, seria pedante criar um rol determinado de conceitos para as substituir. Porém, se as categorias existem, deve ser possível, ao menos, citar exemplos e demonstrar em que sentido elas podem ser pensadas hoje.
Toda relação real é oculta. Por isso, a dúvida é a base de todo saber. O conhecimento é como um corpo, que parece cheio, mas está realmente cheio de vazio. O conhecimento está cheio de dúvida. Não é de espantar que chegue a se orientar e a se estruturar por ela. Só não admito que a dúvida exclua a fé. Como o vazio absoluto não existe, tampouco existe o não conhecimento. A dúvida é um conhecimento mais fraco que, como tal, encaminha a outro mais forte: a fé.