Se, no mundo cristão, o desaparecimento dos textos de Aristóteles levou ao ocaso do pensamento mais técnico e demonstrativo que jamais existira, nos povos muçulmanos, onde eles foram preservados, não ocorreu o mesmo. Étienne Gilson atesta que, enquanto o Ocidente se consumia na reflexão sobre “documentos incompletos”, os árabes se debruçavam sobre “toda a filosofia já dada” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 462-463).
Claro que uma condição tão crucial para o progresso filosófico produziu resultados decisivos para a História do Pensamento, no mundo muçulmano. O principal desses resultados foi o desenvolvimento maior da Filosofia nos povos árabes do que na Europa cristã, entre os séculos X e XII. Ainda que nos limitemos aos maiores expoentes da Filosofia Árabe desse período, o conjunto das obras deixadas por eles parecerá superior à produção filosófica da Europa.
Esse fato foi reconhecido pelos filósofos cristãos do fim do século XII e do século XIII, na medida em que não vacilaram em seguir o caminho trilhado pelos seus pares muçulmanos, isto é, em traduzir para o latim as obras de Aristóteles que estavam perdidas e em se debruçar não só sobre elas, mas também sobre os textos dos pensadores árabes. Essa nova prática preparou a revolução do pensamento filosófico europeu observada, a partir do século XIII, com todos os desdobramentos que teve, como o Renascimento e a Reforma.
Os principais centros dessa renovação dos estu-dos filosóficos foram Paris e Oxford. Ali se formaram as tendências responsáveis pela regeneração do pensa-mento europeu, nos séculos seguintes. Ali se recolheu e concentrou a influência árabe e se definiu o método escolar, pelo qual a renovação se processou. Mas não são esses os pontos que mais interessam, na narrativa sobre o hábito de substantificação de ideias, que empreendemos. Mais do que definir os centros do pensamento filosófico nos séculos X a XIII, interessa-nos considerar as razões da renovação espiritual verificada nessa época e que não foram, primeiramente, de ordem geo-gráfica, mas relacionadas ao conteúdo do pensamento então produzido.
Tão vasta foi a reflexão dos filósofos árabes sobre os livros de Aristóteles que haviam permanecido desconhecidas do Ocidente que é difícil determinar os pontos em que o seu pensamento mais se intensificou e adensou. Mas é importante destacar, ao menos, os tópicos que foram decisivos para aprofundar ou livrar a Filosofia do vício da substantificação das ideias. Sob esse prisma específico, merecem destaque as reflexões de Alfarabi, Avicena e Averrois sobre o Intelecto agente, o Intelecto possível e os universais, assim como as ideias deles e do judeu Maimônides a respeito do ser enquanto ser.
Comum a quase todos os filósofos árabes desse período foi a pretensão fundamental de produzir uma síntese dos sistemas de Platão e Aristóteles. Como já se passara, no Ocidente, alguns séculos antes, por muito tempo, predominaram, nas sínteses árabes, as cores da filosofia de Platão. Porém, à diferença do que se passou na Europa até o encontro de águas com o pensamento proveniente do Oriente Médio, a partir de Averrois, o ideal de síntese foi abandonado em favo do pensamento de Aristóteles.
Essa a grande mudança ocorrida, na Filosofia, no período situado entre o fim do século XII e o fim do XIV. Ela se fez sentir como um adensamento, a prin-cípio titubeante, das preocupações com o ser. Porém, conforme os sistemas mais consistentes se impunham, os progressos reflexivos se generalizaram, e o pensa-mento se alçou a um patamar nunca antes alcançado, na História da Filosofia.
No quadro das posições filosóficas que procuramos seguir no capítulo anterior, os filósofos de orientação patrística tendiam a conceber o ser como realidade análoga, ao passo que os pensadores marcados pelo neoplatonismo, como Dionísio, Erígena e Mestre Eckhart, o consideravam unívoco ou, pelo menos, redutível a um nível fundamental. Com o tempo, apesar da divergência em relação a Santo Agostinho, essa posição se tornou muito influente, no mundo cristão.
De Parmênides a Hegel, passando por Erígena, os adeptos da univocidade do ser sempre o consideraram necessário. Ora, cada parte de um ser necessário e unívoco deve ser, ela própria, também necessária. Porém, não devemos aos gregos ou à Europa cristão e sim a Avicena (nascido em 980) a mais consistente formulação desse ponto de vista, na História do Pensamento.
Avicena partiu da constatação de que o ser acompanha todas as nossas representações, mas nem por isso é uma realidade simples. Há ser necessário e possível. O possível se manifesta como possível puro, enquanto sua causa não está posta, ou possível por essência, que é no fundo necessário, pois sua causa existe e o produz infalivelmente (idem. p. 435).
O fato de o necessário e o possível existirem não cria uma clivagem no ser, já que o último tem todos os elementos para se tornar, ele próprio, necessário, se tão-somente lhe for dada uma causa que o exija. Para Avicena, esse procedimento ocorreu muitas vezes, na História do Universo. O próprio Universo veio a existir por ele. Deus é o Primeiro de todos os seres. Como Primeiro, ele é simples, necessário e uno, do que se segue a univocidade fundamental do ser. Porém, o ser uno e Primeiro, ao conhecer-se a si mesmo, produz o que Avicena chama o Primeiro Causado. Essa geração não se dá por causalidade física, mas inteligível, uma vez que, no nível mais elevado do real, a matéria ainda não existe. Por isso, tanto o Primeiro como o Primeiro Causado são Inteligências.
O processo de produção (poderíamos também chamá-lo geração ou emanação) do Primeiro Causado repete-se vezes sem fim no Universo. O que mostra que o Primeiro Causado é o primeiro de uma série entre outras. Cada um desses Primeiros Causados produz ou-tros seres Causados que, por sua vez, geram outros. Até que se chega ao que Avicena chama última Inteligência separada, que encerra as emanações, por não possuir mais a força necessária para gerar outras Inteligências (idem. p. 437).
Desse ponto em diante, surgem, no mundo, as almas, que são mistos de Inteligência e matéria. Surgem também os corpos. O Universo povoa-se de seres de várias ordens, cada qual contingente em si mesmo, mas necessário na conexão que mantém com sua causa.
Essa vertiginosa cosmogonia é, ao mesmo tempo, cosmologia, já que faculta uma visão completa do mundo físico. Por ela se chega a uma fundamentação do Universo e, o que é ainda mais impressionante, a uma fundamentação que mantém intocado o princípio de que o real é uno e necessário, pois posto por um ser que se pensa necessariamente e, ao pensar-se, produz outros seres que dão continuidade à criação e ao povoa-mento do cosmos, com base na mesma necessidade inteligível.
Contra essa fundamentação do ser ou certos aspectos dela, ergueu-se Averrois (nascido em 1126). Sua posição se tornou notória, pois, pela vez primeira, na História, um pensador de grandeza inconteste deixou o arraial platônico, sem que isso significasse deixar também Aristóteles. Aliás, foi para abraçar exclusivamente o aristotelismo que Averrois renunciou a Platão.
A solução de Averrois ao problema do ser constitui um dos mais importantes cortes já verificados, na História da Filosofia, pois depois dele não só o ser passará a ser entendido de modo distinto como uma nova série de provas da existência de Deus virá à luz, a partir da novel concepção metafísica. Não que a com-preensão do ser de Averrois fosse nova, pois era a filo-sofia aristotélica reafirmada. Mas consequências novas foram extraídas dela, senão pelo próprio Averrois, por Maimônides e Tomás de Aquino.
Pela divisão do ser em necessário e possível, Avicena já mostrara que, se houvesse apenas possíveis, nada existiria. De sorte que, se existem possíveis (do que não podemos duvidar), tem de existir um ser necessário como sua causa. Esse ser é Deus (idem. p. 435). Averrois concorda com essa conclusão de Avicena, mas se decide a fundá-la não num sistema monista ou univoco e sim numa concepção análoga do ser.
Para Averrois, “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada. Este último se divide em dez categorias das quais é o gênero, e é anterior aos se-res entendidos no outro sentido. O ser entendido como verdadeiro é uma intenção mental que expressa que a ideia existente na mente é tal como existe fora dela. Quanto à essência [das coisas], não é uma essência real em sentido próprio, mas a expressão do sentido do no-me” (AVERROIS. In HERNANDEZ, M. Cruz. Averrois: vida, obra, pensamento, influencia. Córdoba: Monte de Piedad y Caha de Ahorros de Córdoba, 1986. p. 103).
Quantas lições estão implícitas nessa declaração! Ser é o que está fora do nada: isso seria óbvio, se não implicasse que o oposto do nada não é verdadeiro, pois “o ser se diz em dois sentidos: o verdadeiro e o oposto ao nada”. A classificação do ser de Averrois desafia a Metafísica clássica, ao postular o verdadeiro como algo determinado, não como o oposto do nada, não como tudo.
O verdadeiro é a essência invariável nos indivíduos de um grupo. Como ser, esse quid é também real. Não real em sentido próprio, já que a essência é apenas um nome ou o sentido de um nome que atribuímos ao invariável. O nome não é o mesmo que a coisa que ele designa. Portanto, não é o invariável, mas a intenção com que nos referimos a ele.
Por outro lado, o ser como oposto do nada divide-se nas categorias aristotélicas. Não se pode predicar esse ser, univocamente ou da mesma maneira, de tudo o que é, pois ele se desdobra nas 10 categorias (GILSON, Étienne. Ob. cit. p. 445). Se é 10, não é um. Logo, o ser não é unívoco. Tampouco é equívoco, pois cada categoria é uma divisão do ser. Portanto, o ser é análogo.
Quão longe essa doutrina está da concepção de Parmênides! Quão longe da de Platão! Caberá a Tomás de Aquino retirar dela a lapidar consequência da existência de Deus, como o escultor tira a obra de arte do bloco de pedra. Se o ser é análogo, o necessário e o contingente devem existir, mas o que é por necessidade deve constituir o fundamento do possível. Deve haver igualmente o simples e o composto, porém o último se funda no primeiro, não o contrário.
Enfim, os caminhos ou provas da existência de Deus (Tomás aponta cinco, mas devem existir outros) nada mais são que reafirmações variadas de um mesmo dado. “Por mais diversos que sejam na aparência, esses caminhos em direção a Deus comunicam-se entre si por um elo secreto. Cada um deles parte, com efeito, da constatação de que, pelo menos sob um de seus aspectos, um determinado ser dado na realidade não contém a razão suficiente de sua própria existência” (idem. p. 660).
Essa falha, essa brecha na existência das coisas constitui o mais sólido fundamento para se postular a existência de Deus. Ela é um dado do real. Ao olharmos para ela, não vemos um fantasma. Vemos o que realmente é. A fratura metafísica, o defeito na superfície do ser que identificamos como o possível é real e fundamental, não uma ilusão causada pelo vício da substantificação.
Ainda que retiremos a concepção plurívoca do ser, que realça a existência da falha, ainda que em seu lugar instalemos de volta a concepção unívoca, a filoso-fia árabe mostra que o possível continua a existir e a demandar explicação. Nem um mundo unívoco pode reivindicar a homogeneidade. Também nele se verificam um enrugamento aqui, um ponto rarefeito ali, o que exige a postulação do possível.
A bifurcação entre o necessário e o possível é por demais fundamental para não a observarmos com o cuidado com que o geólogo investiga a falha tectônica. É o que basta para a falha na existência, a fratura meta-física, evidenciar-se. A falha pede uma explicação, que Avicena, Averrois e São Tomás identificaram com Deus. Porém, só à obra de Tomás a conclusão se engasta como o sol no firmamento do quarto dia.