O pecado de Adão, em Gênesis 3, e o de Caim, no capítulo seguinte, são apresentados em rigoroso paralelismo, como indicado por uma série de circunstâncias. A transgressão de Adão foi antecedida pelo mandamento de não comer do fruto da árvore do conhecimento e consistiu na transgressão dele (Gn 2:17); Caim recebeu o mandamento de dominar o seu ímpeto para o pecado e também o transgrediu (Gn 4:7). Adão foi arguido por Deus, após ter pecado (Gn 3:11-12); Caim também (Gn 4:10-15). A terra foi amaldiçoada pelo pecado de Adão (Gn 3:17-19); o mesmo ocorreu em consequência da transgressão de Caim (Gn 4:12). Adão foi expulso do Jardim do Éden por ter pecado (Gn 3:23); Caim foi expulso da terra em que habitava (Gn 4:14,16). Apesar de ter arcado com as consequências do seu ato, Adão foi tratado de modo relativamente brando por Deus, depois de pecar (Gn 3:17), assim como Caim (Gn 4:15). Deus matou animais para vestir Adão e Eva (Gn 3:21) e permitiu o derramamento de sangue humano por Caim, quando ele transgrediu (Gn 4:15).
Tão meticuloso paralelo não há de ser casual. É, antes, deliberado. Podemos até afirmar que nenhum outro par de transgressões, em toda a Bíblia, é descrito em termos tão simétricos, o que indica a intenção do autor de Gênesis de identificar os pecados de Adão e Caim. Claro que eles constituíram duas violações, mas tiveram um só princípio. Por isso, o propósito da história de Caim é interpretar e continuar a de Adão. A natureza do pecado adâmico permanece encoberta, enquanto a procuramos no relato da queda, que não consistiu em comer o fruto de uma árvore e sim num ato que permanece desconhecido. Porém, na história de Caim e Abel, ela é elucidada.
O propósito de todos os relatos de Gênesis 1 a 11 é transmitir lições históricas. No capítulo 1, essa lição é a criação do planeta, no 7 e no 8 é o Dilúvio e assim por diante. Isso é manifesto, no texto, e foi reconhecido por intérpretes de todas as eras. Todavia, ao lermos Gênesis 1, 7 e 8, percebemos facilmente quais são os fatos que o texto transmite. O mesmo não ocorre, ao lermos Gênesis 3. Percebemos que o texto quer transmitir o pecado de Adão, mas não em que consistiu tal pecado. Sabemos que não consistiu em ingerir o fruto proibido, mas não conseguimos entender qual pecado Adão cometeu.
Ora, o propósito de uma parábola como a de Gênesis 2 e 3 é frustrado se não se compreende o que ela quer ministrar. Podemos pensar que o objetivo do texto é ensinar que é preciso obedecer a Deus. Mas que é obedecer? Se Deus quer que cumpramos os seus mandamentos, precisamos saber o que ele manda. Se não manda comer determinados frutos e se abster de outros, se esse mandamento é apenas um símbolo de certas condutas, quais atos são permitidos e quais, proibidos?
Gênesis 3 não o esclarece. Podemos dizer, por isso, que o propósito do texto é frustrado, enquanto tentamos descobri-lo no interior dele próprio. Contudo, ao lermos a história de Caim e Abel, a natureza do pecado de Adão se torna tão evidente quanto que a Terra foi criada, no capítulo 1, e um Dilúvio ocorreu, no 7 e no 8. Pelo paralelo entre os pecados de Adão e Caim, compreendemos que o primeiro consistiu no derramamento de sangue humano, exatamente como o último. Assim, a natureza do ato de Adão se elucida.
Essa conclusão não se extrai somente do capítulo 4. Está implícita também nas histórias anteriores. Após ter criado o homem e a mulher, em Gênesis 1:29, Deus lhes deu um mandamento dietético: “Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente: isso vos será para mantimento”. Devemos considerar com a devida atenção a semelhança entre esse mandamento e o de Gênesis 2:16: “De toda árvore do jardim comerás livremente”.
Gênesis 1:29 e 2:16 são um e o mesmo mandamento. São o mandamento dietético de Deus a Adão e sua esposa. Porém, o sentido da ordem transmitida a Adão e Eva é simbólico. O propósito de Deus não é permitir-lhes comer literalmente isso e não comer aquilo, mas que praticassem algo e não o contrário. Que coisa Deus quer que o homem pratique e que outra o proíbe de praticar? A resposta é que ele quer que o homem se alimente, assim como deseja que cresça e se multiplique, sem derramar sangue de outros seres vivos. Esse é o sentido do preceito de se alimentar exclusivamente de vegetais. Interpretado a contrario sensu, esse preceito implica a proibição de matar.
A árvore dita do conhecimento do bem e do mal não indica coisa diversa do que o seu nome manifesta. Que eram o bem e o mal para Adão e Eva, a não ser cumprir e não cumprir o mandamento dietético? E que era cumpri-lo, a não ser alimentar-se de vegetais, sem derramar sangue?
Essa conclusão torna o pecado de Adão ainda mais semelhante ao de Caim. Adão ter comido do fruto proibido significa que passou a matar. Não só a matar animais para se alimentar, o que também lhe era vedado, mas a matar outros seres humanos por ódio e ressentimento, como Caim matou Abel.
Por todos esses motivos, o pecado original, o pecado de Gênesis 3, deve ter sido o derramamento de sangue humano. Nada tão leve quanto comer um fruto, ou menos leve, embora grave, como matar um animal, justificaria erigir a transgressão de Adão em princípio de toda a maldade humana, como as Escrituras manifestamente fazem. Só uma transgressão intrinsecamente grave como o homicídio o justificaria.
Essa interpretação é, de algum modo, reforçada por João 5:44, onde lemos
que "o Diabo foi homicida desde o princípio". No contexto do primeiro
século, as palavras "desde o princípio" remetem-nos a Gênesis 3 e somente a esse capítulo, no
qual a serpente levou o homem a pecar. O verbo no passado não aponta para uma
ação apenas planejada ou iniciada, porém não concluída. Aponta, ao contrário,
para uma ação consumada. Indica, portanto, que o Diabo foi a causa de um homicídio
cometido, em Gênesis 3, o que pode ser entendido como se o ato real por trás
da ação simbólica de comer o fruto tivesse sido exatamente esse crime.