sexta-feira, 29 de agosto de 2014

História Bíblica - do Dilúvio às Conquistas

O DILÚVIO: VERDADE E FICÇÃO

Em 1929, o arqueólogo inglês Leonard Woolley comunicou ao mundo a descoberta de evidências do Dilúvio bíblico, durante uma campanha de escavações na Mesopotâmia. As evidências foram detalhadas por ele, no livro Ur e o Dilúvio, publicado dois anos depois. Após a descrição delas, segue-se a reafirmação de que “a descoberta demonstra a realidade histórica do dilúvio ao qual se referem as narrações suméricas e hebraicas, embora nada provasse, evidentemente, quanto aos detalhes de uma ou de ambas as narrações. Foi uma catástrofe local, não universal, limitada ao baixo vale do Tigre e do Eufrates, que se abateu sobre uma região de aproximadamente 600 km de comprimento e 150 de largura: mas para seus habitantes, aquilo era o mundo inteiro!” (WOOLLEY, Leonard. Ur e o Dilúvio. Leipzig, 1931).
Saudada, a princípio, como verdadeira evidência do Dilúvio, a descoberta de Woolley foi pouco a pouco reinterpretada. O historiador Robin Lane Fox reconhece que ela "permanece, com justiça, num pináculo da arqueologia, mas suas interpretações nos recomendam cautela”. Porém, “de 1929 para cá, o Dilúvio de Woolley foi se encolhendo e se tornando cada vez mais local e não espalhado por uma área de 100 mil quilômetros quadrados". O encolhimento deveu-se à descoberta de que as inundações em diferentes pontos dessa enorme área ocorreram em épocas distintas. Por isso, Fox conclui que "não há razão para se atribuir as origens dos relatos mesopotâmicos e hebraicos sobre o Dilúvio a alguma enchente determinada; é provável que a ficção hebraica se tenha desenvolvido a partir de lendas mesopotâmicas. São relatos ficcionais, e não históricos” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 202-203).
Por essas declarações se percebe quão controverso o Dilúvio bíblico permanece. Não há consenso algum sobre a sua relação com determinado acontecimento histórico. E a falta desse consenso é interpretada, por historiadores e arqueólogos, como sinal de que o acontecimento bíblico é uma ficção.
Porém, embora Woolley tenha interpretado incorretamente a sua descoberta como evidência do próprio Dilúvio, parece-me ainda possível associá-la ao contexto do Dilúvio bíblico. Isso porque a Bíblia insere o Dilúvio num contexto mais amplo, que começa com a união dos filhos de Deus com as filhas dos homens em Gênesis 6:2.
O fato de essa união vir logo após a menção dos 500 anos de Noé, em Gênesis 5:32, tem levado os intérpretes a entender que ela se deu muito tempo após o nascimento do construtor da arca. Porém, a verdade não parece ser essa, pois cada novo relato, em Gênesis 1 a 11, é introduzido por um recuo narrativo. O relato da criação, no capítulo 1, termina com o descanso divino do sétimo dia, quando o homem já existia. Porém, os versos seguintes, em vez de continuar a história a partir desse ponto, retornam ao período em que o homem ainda não existia para narrar a criação de Adão de outra perspectiva (Gn 2:4). 
Esse mesmo tipo de recuo ocorre cada vez que o narrador sagrado muda de história, nos capítulos 1 a 11. Por exemplo, o capítulo 4 se encerra com a lista dos descendentes de Caim; e o capítulo que se segue não prossegue a partir desse ponto, mas retrocede (pela segunda vez) ao dia em que Deus criou o homem. Do mesmo modo, o capítulo 10 termina com a difusão das nações pela Terra, e o 11 retorna à construção da Torre de Babel ocorrida antes.
Não é diferente com a história do Dilúvio, encontrada em Gênesis 6 a 9. O capítulo 5 termina com a menção dos 500 anos de Noé e a geração dos seus filhos Sem, Cão e Jafé. Porém, em vez de continuar desse ponto, o capítulo 6 retorna ao período em que os homens começaram a se multiplicar sobre a terra. Não é essa a época de Sem, Cão e Jafé, mas dos primeiros descendentes de Adão que tiveram “filhos e filhas”, logo após o nascimento de Enos.
O recuo a esse tempo remoto tem grande importância, pois nos permite fixar a época em que a história do Dilúvio realmente começa. Ela não principia quando Deus prediz a inundação a Noé, mas nos primórdios da humanidade, quando os homens começaram a se multiplicar na terra, e os filhos de Deus desposaram as filhas dos homens. Nas palavras de Gênesis: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram” (Gn 6:1-2).
Essa união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens é o marco inicial da história de Noé, pois o relato bíblico mostra que Deus se indignou contra ela e decidiu reduzir a vida do homem para 120 anos: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3).
A limitação da vida do homem a 120 anos é uma das declarações mais obscuras dos 11 primeiros capítulos de Gênesis. Os estudiosos perguntam se ela indica que a extensão da vida humana foi reduzida para 120 anos ou se, em 120 anos, a humanidade seria dizimada pelo Dilúvio, como o versículo 7 menciona: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.
Contra a primeira interpretação milita o fato de a vida dos patriarcas de Gênesis só atingir extensão inferior a 120 anos no último capítulo: “José habitou no Egito, ele e a casa de seu pai; e viveu cento e dez anos” (Gn 50:22). Todas as personagens bíblicas cuja morte é datada, antes de José, viveram mais que 120 anos. Geralmente, centenas de anos mais. Portanto, mais de dois milênios transcorreram até que uma personagem bíblica cumprisse o dito de Deus em Gênesis 6:3.
Por outro lado, os 120 anos foram claramente estabelecidos por causa da união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:2-3), ao passo que o Dilúvio foi consequência da multiplicação da violência na terra (Gn 6:5-7). A Bíblia parece ensinar-nos que a essas causas diferentes corresponderam consequências também distintas.
Diante dessas dificuldades interpretativas, só nos resta apegar-nos ao sentido claro do verso em que lemos: “Os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3). Em Gênesis, sempre que a palavra “dias” é seguida por “anos”, como em 6:3, a intenção é designar a duração de uma vida. Em 5:5, lemos “Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos”. Seguem-se declarações semelhantes sobre todos os outros patriarcas. Mais tarde, de Abraão, Isaque e Jacó, é dito: “Foram os dias da vida de Abraão cento e setenta e cinco anos”, “Foram os dias de Isaque cento e oitenta anos” (Gn 35:28) e de novo: “Perguntou Faraó a Jacó: Quantos são os dias dos anos da tua vida? Jacó lhe respondeu: Os dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos” (Gn 47:8-9).
Em todos esses versículos, a palavra dias seguida de um número de anos indica a extensão de uma vida. Esse é o sentido do termo também em Gênesis 6:3. Cento e vinte anos são, ali, a vida de um indivíduo humano. A intenção de Deus ao fixar esse limite foi garantir que o seu espírito [em hebraico, ruach, sopro de vida] não permanecesse por tempo maior no homem, “pois este é carnal” (Gn 6:3). A luta do espírito contra a carne já se delineava e devia ser limitada para que o ser humano não sucumbisse a ela.
Claro que isso implica que as centenas de anos dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 não são literais. Não são idades de indivíduos, mas de clãs, famílias ou povos. Enfim, de coletividades. Não me é possível tratar desse ponto, aqui, mas remeto os interessados aos textos “A idade de Adão” e “E Matusalém?”, publicados em lobaomorais.blogspot.com.br nos dias 29/11/12 e 13/02/13.
A história do Dilúvio é antecedida pela união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:1-3), porque o descontentamento de Deus com a humanidade teve início nessa época. E, se começou tão cedo, pode-se concluir que o julgamento divino das pessoas envolvidas naqueles erros principiou na mesma época. É possível que as grandes cheias dos rios Tigre e do Eufrates tenham sido interpretadas como tais julgamentos, pelos homens da Antiguidade.
As cheias mesopotâmicas mais antigas conhecidas são exatamente as que Woolley, a princípio, associou ao Dilúvio. Elas se deram entre 4.000 e 3.000 a. C. Como a Bíblia situa o nascimento de Noé, por volta de 3.200 a. C., é possível entender que aquelas inundações ocorreram durante a sua vida e podem ter constituído o antecedente necessário para que o patriarca construísse a arca muito antes do Dilúvio desabar sobre a terra. Se tiver sido assim, Noé não construiu seu navio, sem ter presenciado qualquer inundação semelhante à que Deus lhe anunciou, mas tendo visto, vivido ou recebido notícia de várias delas.
Embora o Dilúvio não se confunda com qualquer das inundações ocorridas entre 4.000 a 3.000 a. C., ele se insere no contexto delas. Uma sequência de grandes catástrofes ocorreu na época e no lugar em que Noé e os outros patriarcas de Gênesis 4 e 5 provavelmente habitaram.
Para nos certificarmos disso, é útil recordar que o território do Éden ficava “na banda do oriente”, como lemos em Gênesis 2:8. Do ponto de vista do narrador, oriente é o oriente da Terra Santa, pois nenhuma outra coordenada de espaço é dada antes, no texto. Sem outro referencial de espaço, devemos adotar a posição em que o narrador e os destinatários do texto se situavam, isto é, a da Palestina. Como Gênesis 3:23-24 afirma que Deus expulsou o homem do paraíso, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”, devemos concluir que, ao deixar o horto, Adão rumou para o leste. Caim, por sua vez, ao se retirar da presença do Senhor, foi para a “terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Se o jardim que Deus plantou ficava no Éden, pois se diz que era “um jardim no Éden” (Gn 2:8), ao ser expulso do jardim, Adão não saiu propriamente daquele território. Caim foi o primeiro a fazê-lo, pois foi morar em Node, não ao oriente do jardim, mas “ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Vários acontecimentos são, assim, localizados, sucessivamente, no leste: o Éden ficava ao leste da Terra Santa, Adão foi para o leste, ao sair do jardim do Éden, e Caim foi para o leste não só do jardim, mas do próprio Éden, ao sair da presença de Deus. Isso nos aproxima muito da Mesopotâmia e nos induz a entender que os fatos de Gênesis 4 a 9 transcorreram naquela região.
E se tanto Adão como Caim e os descendentes deles viveram na Mesopotâmia e vizinhanças, não há equívoco algum em associarmos a Noé as inundações descobertas por Woolley, naquela região, as quais ocorreram entre 3.200 e 2.900 a. C. Trata-se de acontecimentos arqueologicamente comprovados e situados tanto no lugar como na época em que Noé viveu. Chega a ser improvável que tanta coincidência de tempo, lugar e tema não se deva a uma relação real.
Pergunto-me se esses dados não sugerem outra reviravolta, na interpretação das descobertas de Woolley. Se não indicam que o Dilúvio não é ficção, mas verdade, ainda que os detalhes narrativos de Gênesis tenham sido dourados para pôr em destaque a fidelidade de Noé a Deus e, portanto, inspirar a fé.
Na Idade Média, os pedaços da cruz de Cristo vendidos no mundo davam para construir muitas arcas, e os pedaços da arca bastavam para uma cidade. Semelhantemente, ainda há quem procure os restos da arca no Monte Ararate. De tempos em tempos, não coram em anunciar inclusive que a acharam. Mais de uma arca foi localizada ali, nos últimos anos. Mas isso não quer dizer que não haja pesquisa série sobre o grande acontecimento ou que se trate de pura lenda. Penso que o cerne dessa pesquisa, no campo da Arqueologia, encontra-se nas descobertas de Woolley e seus sucessores. Mas há evidências igualmente relevantes em outros campos. No próximo texto, trataremos dos registros literários da devastadora inundação que sacudiu o antigo mundo mesopotâmico.

O NOÉ BABILÔNICO

Incontáveis narrativas de dilúvios foram descobertas, em diferentes povos. Já se sugeriu que esses textos são ecos de acontecimentos globais, como os degelos que se seguiram às glaciações e que produziram inundações simultâneas em vários lugares do mundo. No meio fundamentalista cristão, chega-se a sugerir, até mesmo, que são evidências do Dilúvio universal narrado em Gênesis.Porém, essas interpretações têm forte teor imaginativo. A menos que alguém demonstre que a memória de inundações se depositou no inconsciente coletivo de múltiplos povos e inspirou pessoas a comporem narrativas assemelhadas, o que é pouco verossímil, não se pode identificar nelas um eco de qualquer evento universal. Se fossem lembranças dos grandes degelos, por que as centenas de relatos diluvianos não recordam os gelos que os precederam? Por que falam de inundações, mas não de geleiras? Ou, se são testemunhos de uma inundação de âmbito universal, como se explicam as diferenças profusas entre as histórias? O fato parece ser que nem a teoria que liga os textos diluvianos às glaciações, nem a que os associa à inundação narrada na Bíblia tem bom fundamento.
No entanto, se tomarmos os achados arqueológicos de Leonard Woolley, Max Mallowan e outros como evidências de dilúvios regionais ocorridos por volta da época de Noé, será possível relacioná-los senão com todas, ao menos com algumas histórias diluvianas provindas dos mesmos lugares. Três dessas histórias destacam-se como mais provavelmente relacionadas a inundações do Antigo Oriente: o relato sumeriano do Dilúvio, a Epopeia de Gilgamesh e o Dilúvio do poema indiano Mahabharata. Vale a pena examiná-los para verificar se guardam ou não relação com os achados de Woolley.
Comecemos pelo texto sumeriano. Escrito por volta de 1.600 a. C., ele se inicia com a menção de oito reis, que governaram cidades mesopotâmicas antes da inundação (BRIEND, Jacques. “Relato sumério do dilúvio”. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 77). Após indicar os nomes desses soberanos, o prisma em que o relato se encontra completa: “Então o dilúvio ocorreu” (idem. “Os reis antediluvianos”. pp. 55-56). A inundação narrada pelos sumérios atingiu toda a humanidade. Só o heroi Ziusudra e outros sábios sobreviveram numa grande embarcação.
A mais célebre versão extrabíblica de um dilúvio não é, porém, a sumeriana, mas a babilônica contida no décimo-primeiro livro da Epopeia de Gilgamesh, datada de 1.750 a. C. Esse épico narra as aventuras de Utnapshitim, que sobreviveu num navio a um Dilúvio que sepultou todos os homens da sua época. Assim como o relato sumério, a Epopeia atribui alcance geral à enchente: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62).
Mas as semelhanças entre a epopeia babilônica e Gênesis vão muito além desse ponto. As dimensões do navio de Utnapshitim, o Noé babilônico, são comparáveis às da arca bíblica: “Eu tracei os contornos/ sua superfície [área] era de um campo [3.600 m2]/ suas paredes de 10 perchas [60 metros] de altura cada uma” (idem, 55). O uso do betume na construção do navio recorda igualmente Gênesis: “Derramei 3 vezes 3.600 medidas de betume refinado no forno/ 3 vezes 3.600 medidas de betume cru dentro” (idem, 65). O atraque numa montanha, ao final do Dilúvio é outro ponto de semelhança: “O mar se acalmou/ calou-se o vento mau/ o Dilúvio cessou / [...] A embarcação acostou no monte Nicir” (idem, 140). Utnapshitim enviou uma pomba e um corvo para verificar se as águas tinham baixado, antes de sair do navio: “Fiz sair uma pomba e soltei-a/ a pomba se foi e voltou/ não encontrando onde pousar, voltou/ Fiz sair um corvo e soltei-o/ o corvo se foi e/ vendo o refluxo das águas/ comeu, patinhou, crocitou, e não voltou” (idem. 150). O herói babilônico ofereceu sacrifícios aos deuses, por haver sido salvo: “Ofereci um sacrifício/ fiz uma oferta/ expandida sobre o piso da montanha/ ergui sete e sete vasos de libação/ a seus pés coloquei cana, cedro e mirta” (idem, 155). Os deuses agradaram-se do sacrifício: “Os deuses sentiram o odor/ os deuses sentiram o bom odor/ os deuses, à semelhança de moscas, reuniram-se em torno do sacrificador” (idem. 155, 160).
Tanta semelhança com o texto bíblico não pode ser devida ao acaso. Tampouco há razões de ordem sobrenatural que a justifique. Para explicá-la é preciso supor a dependência de um dos textos em relação ao outro, ou seja, que um dos autores baseou-se na obra do outro para redigir a sua. Ou Gênesis 6 a 9 dependem da epopeia babilônica, ou há dependência no sentido contrário. Como a autoria mosaica de Gênesis não pode ser exagerada e há fortes indícios de composição desse livro bíblico no século VI a. C., é mais provável que o autor da narrativa bíblica tenha utilizado a epopeia.
No século VI a. C., os judeus estavam cativos em Babilônia. Portanto, é possível que tenham encontrado a famosa epopeia, num arquivo real de Babilônia, e tido a mais funda impressão da história de Utnapshitim. 
Ao entrar em contato com a epopeia, na Mesopotâmia, portanto, o editor do Livro de Gênesis deve tê-la reinterpretado em termos monoteístas, não só por influência da história indiana do Dilúvio, mas dos próprios hebreus que tinham levado tradições judaicas à Índia. Se isso tiver ocorrido, a reinterpretação monoteísta da Epopeia de Gilgamesh não terá sido inventada a partir do nada ou da imaginação de alguém, mas de uma versão monoteísta preexistente sobre o Dilúvio.Por que o autor bíblico não contou, simplesmente, essa versão? Por que preferiu mesclá-la com dados do texto babilônico? Provavelmente porque considerou que os fatos da Epopeia de Gilgamesh eram históricos. Nessa condição, eles não conflitavam com os que os antigos judeus tinham preservado sobre a grande inundação. De modo que não havia por que excluir os fatos da epopeia do texto bíblico, mas apenas eliminar seu sentido politeísta.
Após as escavações realizadas na década de 1920, de que falamos no texto anterior, “Sir Max Mallowan, cavando em Nimrud (Calah), propôs uma revisão da teoria de Woolley. Ele queria atribuir o dilúvio bíblico a um nível diferente de depósito aluvial em outros lugares da Mesopotâmia. Ao passo que o dilúvio de Woolley [fora] fixado por volta de 3500 a. C., na maneira convencional de datação arqueológica, o professor Mallowan propôs a data de 2900 a. C. à camada que deu origem às histórias na Mesopotâmia, e depois na Bíblia” (www.dialogue.adventist.org/articles/09. Acesso em 27/12/2008).
Um dado a ser destacado é que o nível de inundações mais antigo descoberto por Mallowan está em Shuruppak, epicentro da Epopeia de Gilgamesh e última cidade antediluviana, no relato sumério da inundação, após a menção da qual aparece a assertiva: “Então o dilúvio ocorreu”. O ano 2.900 a. C., que assinala a época em que Shuruppak foi inundada, está situado no meio da vida de Noé. Portanto, se não foi exatamente o Dilúvio bíblico, a destruição de Shuruppak pertenceu ao contexto daquele patriarca.
Em suma, não me parece que tenhamos de explicar o Dilúvio bíblico pela teoria das glaciações, como fazem diversos biblistas contemporâneos. As descobertas de Woolley e Mallowan, associadas aos relatos sumério e babilônico do Dilúvio, formam um quadro mais aceitável da catástrofe bíblica que o que emerge daquela teoria. Não precisamos considerar que os textos mesopotâmicos e Gênesis narrem, necessariamente, uma só inundação ou que Noé e Utnapishtim tenham sido uma só pessoa. Porém, a influência dos primeiros sobre o último é inegável. A conclusão mais fundamental a que se pode chegar, a partir dessas análises, é a de que, sejam as inundações dos diversos textos uma só ou várias, elas provavelmente ocorreram.

A INUNDAÇÃO LOCAL

O termo hebraico empregado para designar o Dilúvio (mabbul) só aparece duas vezes na Bíblia. A primeira é nos capítulos 6 a 9 de Gênesis. A segunda é num versículo isolado do Salmo 29, que afirma que “o Senhor se assentou sobre o dilúvio” (Sl 29:10). Muitas outras passagens referem-se a tempestades, mas essas são as únicas em que mabbul aparece. É o caso de perguntarmos o que justifica o uso de termo tão especial: o alcance universal da inundação ou outra característica?
A Bíblia afirma que o Dilúvio foi causado por chuvas torrenciais e pela abertura das fontes do abismo (Gn 7:11). A palavra abismo indica as profundezas da terra ou do mar. A abertura das suas fontes, portanto, pode significar o rompimento da própria terra ou o aumento das águas do mar por uma forte agitação no seu solo.
No século XIX, G. H. Pember adotou a segunda interpretação, ao descrever o Dilúvio nos seguintes termos: “Um rugido aterrorizante vindo do mar anunciou que alguma poderosa convulsão [...] começara nas grandes profundezas. Todas as suas fontes fechadas foram explodindo. Deus removera os limites do oceano, e suas ondas orgulhosas não deveriam mais permanecer, mas elevar-se com tumulto prodigioso e começar a avançar, mais uma vez, em direção à terra seca” (PEMBER. G. H. As eras mais primitivas da terra. São Paulo: Editora dos clássicos, 2002. Tomo 1,p. 217).
Vê-se que Pember referiu-se à abertura das fontes do abismo como um acontecimento no mar, que afetou também a terra. Por isso aludiu ao “rugido aterrorizante vindo do mar”, à “poderosa convulsão nas profundezas” e à remoção dos limites do oceano. Que pode ter sido essa remoção, a não ser uma inundação da terra pelo oceano? Mas, se for esse o caso, o Dilúvio terá sido um tsunami!
A narrativa bíblica é clara, ao afirmar que os eventos catastróficos começaram, no dia em que Noé entrou na arca: “Nesse dia, romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram [...] Nesse mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos” (Gn 7:11,13).
Porém, embora o cataclisma tenha-se iniciado no dia do embarque de Noé, somente após sete dias, as águas inundaram a terra: “[Os animais] entraram para Noé, na arca, de dois em dois, macho e fêmea, como Deus lhe ordenara. E aconteceu que, depois de sete dias vieram sobre a terra as águas do dilúvio (Gn 7:9-10). Esse é um pormenor muito significativo. Sabemos que chuvas torrenciais causam inundações quase instantaneamente. Todavia, não é isso que a Bíblia relata ter ocorrido no Dilúvio. Se a inundação da terra começou sete dias após a abertura das comportas dos céus e das fontes do abismo, é improvável que ela tenha sido causada por chuvas. Mais provável é que tenha sido provocada por um devastador tsunami. E, como esse fenômeno é geralmente relacionado a terremotos, não deve ser descartada a possibilidade também desses últimos.
Somos assim levados a um evento cujo potencial de destruição foi muito superior ao de inundações causadas apenas pelo transbordamento de rios. A conjugação de chuvas torrenciais com um tsunami e um ou mais terremotos explica tão bem o caráter devastador do Dilúvio que não precisamos supor que ele tenha sido universal para entender por que foi chamado mabbul (Grande Dilúvio). A inundação pode ter sido considerada tão peculiar pela violência que o fenômeno triplo assumiu.
Embora preserve uma tradição judaica, sabemos que a história bíblica do Dilúvio sofreu inegável influência de narrativas mesopotâmicas assemelhadas. No acervo constituído pela literatura da Antiga Acádia, vários relatos de inundações semelhantes podem ser encontrados. Porém, a Epopeia de Gilgamesh se refere à inundação por meio do termo abubu, que corresponde a mabbul em acádico. É provável que esse termo tenha chamado a atenção dos autores de Gênesis, que encontraram e percorreram com assombro a epopeia na famosa biblioteca de Assurbanípal. E talvez por isso, o autor sagrado tenha-se referido ao Dilúvio por meio de uma palavra tão rara no vocabulário bíblico quanto mabbul.
Porém, a memória do fenômeno descrito pela palavra mabbul não se encontra apenas em Gênesis. Conservou-se, de maneira clara, também em outras partes das Sagradas Escrituras. Talvez a mais eloquente delas seja 2ª de Pedro 3:5-6, que afirmam que os críticos da mensagem cristã, nos primeiros dois séculos, "deliberadamente esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo afogado em água". 
Que afogamento do mundo antigo em água é o mencionado no verso 6, a não ser o causado pelo Dilúvio. A intenção do autor sagrado foi comparar a atitude dos críticos do evangelho, nos primeiros séculos desta era, à dos descrentes do tempo de Noé - as únicas pessoas que a Bíblia afirma terem morrido afogadas em água, em grande número, na Antiguidade. No entanto, as águas que os afogaram são descritas como as mesmas das quais a terra surgiu, no terceiro dia da criação, quando “disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar e apareça a porção seca. E assim se fez” (Gn 1:9).
Essa relação das águas do Dilúvio com as que cobriam a terra quando ela emergiu, em Gênesis 1:9, significa que o Dilúvio só pode ter sido um tsunami, já que a terra não emergiu de chuvas e sim do mar, naquele versículo. Portanto, o Dilúvio não consistiu só em chuvas torrenciais e prolongadas, mas também num devastador tsunami causado por um maremoto. 
O caráter duplo do Dilúvio como uma sequência de fortes chuvas concomitante com a abertura das fontes do abismo foi tomada pelo autor de Gênesis de relatos hebreus antigos e da Epopeia de Gilgamesh. Em tudo, a atitude do escritor sagrado consistiu em recepcionar os fatos contidos naqueles escritos e rejeitar o sentido religioso da narrativa babilônica. E, quando falamos em recepcionar os fatos, o primeiro de todos eles parece ter sido o alcance da inundação da qual Noé escapou.
A Epopeia de Gilgamesh preserva a memória de um Dilúvio amplo. Contudo, ao lermos cuidadosamente o seu texto, percebemos que esse ponto não é enfatizado. O alcance geral só aparece na descrição do resultado da inundação: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62). Além disso, a narrativa de Utnapishtim, no grande épico, começa com a contextualização dos acontecimentos em Shuruppak, que por isso deve ser entendida como o teatro da inundação.
Temos, assim, a alusão a uma catástrofe sem precedentes, como o termo abubu denota, mas não necessariamente a um evento universal. De acordo com a Epopeia de Gilgamesh, o Dilúvio foi geral, pois atingiu todos os seres vivos, porém seu alcance territorial, como o de Gênesis, não é claramente definido.A presunção é de que não se estendeu muito além de Shuruppak.
E o texto bíblico, que diz a respeito do alcance da inundação? Diz, repetidamente, que o Dilúvio atingiu “toda a terra” e que o tudo o que havia “debaixo do céu” pereceu. Porém, essas expressões parecem indicar apenas a terra que os descendentes de Adão habitavam. Se seguirmos os passos dessa descendência, em Gênesis 2 a 9, veremos que ela nunca deixou as vizinhanças do território denominado Éden. Tudo o que o narrador do livro conta passa-se nesse território. De sorte que não há razão para entendermos que “toda a terra” e “debaixo do céu” signifiquem o planeta inteiro.
Jeremias clamou: “Ó terra, terra, terra! Ouve a palavra do Senhor” (Jr 22:29). Nem por isso quis referir-se ao planeta inteiro. Os índios da América não estavam incluídos na exortação do profeta. Do mesmo modo, Zacarias 1:9-11 menciona cavalos que percorrem “toda a terra”, porém não o planeta inteiro. Em ambas as passagens, terra é o contexto geográfico imediato dos profetas: a terra de Israel.
Quando Deus disse a Sofonias “Consumirei todas as cousas sobre a face da terra. Consumirei os homens e os animais, consumirei as aves do céu e os peixes do mar e as ofensas com os perversos; e exterminarei os homens de sobre a face da terra” (Sf 1:23), não anunciou um segundo Dilúvio. Previu uma destruição relevante, mas não de todo o planeta. Do mesmo modo, Gênesis narra o Dilúvio em relação ao território em que os capítulos 2 a 11 se passam.
Nesses capítulos, quando a palavra terra é usada para indicar um lugar diferente daquele em que a narrativa se centra, ela é anexada a outro nome, como Node, para onde Caim se dirigiu (Gn 4:16). Do contrário, é a terra em que a  maior parte dos acontecimentos transcorre, à qual Caim se referiu ao exclamar: “Hoje me lanças da face da terra” (Gn 4:14). Em nenhum versículo de Gênesis 2 a 11, a palavra é usada para indicar o planeta todo.
Desde a apresentação do Jardim do Éden, nos capítulos 2 e 3 de Gênesis, a narrativa bíblica gira em torno da Mesopotâmia. É o que a menção dos rios Tigre e Eufrates, em Gênesis 2:14, claramente indica. A palavra terra é, portanto, utilizada para indicar essa região. E não é diferente, na narrativa do Dilúvio, que se abre com a alusão à multiplicação dos homens. Devemos entender que isso se deu na Mesopotâmia e vizinhanças (Gn 6:1), onde os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens (Gn 6:2), e os gigantes resultantes dessa união também habitaram (Gn 6:4).
Diz a Escritura: “Naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e estas lhes deram filhos, os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os herois dos tempos antigos”. A inserção das palavras “e também depois”, no versículo acima, indica que os nefilins continuaram a existir, após o Dilúvio. Como a palavra designa uma raça diferente dos enaquins, refains e emins (Dt 2:10-11), devemos entender os nefilins como uma estirpe ou descendência específica. Números 13:33 registra a presença deles na Palestina, muito tempo depois depois do Dilúvio, o que indica que a estirpe sobreviveu àquela catástrofe. Portanto, a presença dos nefilins, na Palestina, depois do Dilúvio, é uma primeira prova de que este não foi universal, mas local.
Outra prova pode ser encontrada em Gênesis 4:20-21, que afirma que Jabal e Jubal foram pais dos que habitam em tendas e possuem gado, bem como dos que tocam harpa e flauta. O tempo verbal presente, nesses versículos, indica que Jabal e Jubal foram ancestrais de pessoas que estavam vivas, na época em que Gênesis foi redigido. Do contrário, o escritor do livro não teria feito referência “aos que habitam” em tendas, “aos que tocam” harpa e flauta e “aos que possuem” gado. E, se entendermos que Gênesis 2 a 11 trata continuamente de linhagens, teremos de concluir que os pais dos que habitam em tendas, dos que tocam harpa e flauta e dos que possuem gado não foram precursores sem relação de sangue com eles, mas ancestrais de povos específicos que tinham aqueles costumes. Portanto, assim como os nefilins, os descendentes de Jabal e Jubal também devem ter sobrevivido à catástrofe de Gênesis 6. E só o fizeram porque ela foi local.
Não é diferente com os “filhos de Sete” mencionados em Números 24:17-18, junto com os povos de Moabe e Edom. Como os descendentes de Sete poderiam estar vivos na época a que Números se refere, se o Dilúvio tivesse sido universal? Ou, se os filhos de Sete fossem todos os descendentes de Noé, por que se diz que habitavam num território particular (o de Moabe e Edom)? Na verdade, Números 24:17-18 quer afirmar que, na época de Balaão, os filhos de Sete eram um povo da Palestina, assim como Moabe e Edom.
O livro continua: “Balaão viu  Amaleque [...] Depois viu os quenitas e pronunciou o seu poema. Disse: ‘A tua morada está segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o rochedo’” (Nm 24:20-21). Alguém duvida de que Amaleque e os quenitas são povos específicos? No entanto, os quenitas são tratados como descendentes de Caim. Como é evidente que Caim viveu muito antes do Dilúvio, concluímos que as Escrituras não consideram que a catástrofe do tempo de Noé foi universal e sim local.
As dimensões da arca também favorecem a tese da inundação local. Gênesis afirma que sete casais de cada espécie de animal limpo e de ave e um casal de cada espécie de animal imundo entraram na arca. Está implícito que o alimento necessário para sustentar essa fauna, durante um ano, também foi carregado para dentro do navio. E que uma arca com 136 x 22 x 13 metros não poderia comportar tudo isso, como Orígenes percebeu, no século III. Disse esse autor: “Os números de trezentos côvados de comprimento, cinquenta de largura, trinta de altura não permitem sustentar que a arca abrigou os animais que estão na terra, quatorze de cada espécie pura, quatro de cada espécie impura” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 321).
Mas as evidências do Dilúvio local não acabam. O fato de Ninrode ter edificado cidades, pouco depois da inundação, é outro indício do caráter local. Ninrode foi bisneto de Noé (Gn 10:1,6,8). Não devemos, portanto, supor que se passaram mais do que poucas décadas entre o Dilúvio e o seu nascimento. Se o Dilúvio foi universal, para que Ninrode construiu várias cidades menos de meio século depois de a população do planeta ter sido zerada?
Por fim, há o número de anos da vida de Metusalém. Na Bíblia grega (Septuaginta), essa personagem morreu 14 anos depois do Dilúvio; na hebraica, dois anos depois (Gênesis 5:25-28; 7:11). Quer a Escritura, com isso, afirmar que Metusalém foi o único sobrevivente do Dilúvio, dentre as pessoas que ficaram fora da arca? Não é mais natural entender que, também nesse particular, ela admitiu que o Dilúvio não foi universal?
Temos de concluir que a crença num Dilúvio universal resulta de um erro de interpretação de Gênesis. E que reinterpretar esse texto é preciso, a não ser que queiramos perseverar no erro. Por um lado, a reinterpretação reconcilia o texto bíblico com a ciência contemporânea. Por outro lado, a ciência auxilia a entender o relato das Escrituras.
Descobertas como as de Woolley e Mallowan, a que nos referimos nesta curta série, provam a ocorrência de inundações semelhantes à que a Bíblia narra, imediatamente antes e durante a vida de Noé. Nenhuma delas pode ser identificada com o Dilúvio, já que uma distância de séculos as separa da catástrofe de que Noé escapou, a qual a Bíblia localiza por volta de 2.600 a. C. São, porém, importantes para mostrar que a preocupação com enchentes foi constante, na época e no lugar em que o patriarca viveu.
Pode-se perguntar por que não foram encontrados vestígios da própria inundação de Noé. Basicamente porque as cheias de Woolley e Mallowan resultaram de transbordamentos do Tigre, do Eufrates ou de seus afluentes, enquanto o Dilúvio foi causado, ao que tudo indica, por um tsunami. Mudanças no curso de rios permanecem por muito tempo. Deixam, pois, marcas e aluviões, como os que Woolley e Mallowan descobriram. As águas de um tsunami vêm e vão. Inundam e logo refluem para o mar, deixando marcas superficiais que desaparecem em pouco tempo, mais ou menos como uma espécie que se extingue rapidamente não deixa marca no registro fóssil.
Os céticos querem que acreditemos que o Dilúvio é como a estória do coelhinho. Os fatos e os textos nos mostram que ele é muito mais parecido com a história da Guerra de Troia.

UM DEUS, MUITOS DEUSES

No Ocidente, a ruptura pós-moderna começa com o abandono da inspiração divina das Escrituras. Porém, essa ruptura não se deu, ao mesmo tempo ou na mesma intensidade, em relação a todas as partes do Antigo e do Novo Testamento. A rejeição da ideia de que as Escrituras são infalíveis, por terem sido inspiradas por Deus, começou com as dúvidas sobre o que se usa denominar Pré-História Bíblica, ou seja, sobre os 11 primeiros capítulos de Gênesis. Não vem ao caso quando isso aconteceu. Todos sabemos que aconteceu. Sabemos que o leite da ruptura se derramou. Trata-se de entender por que se derramou e, principalmente, como devemos viver numa cultura que se privou em tão grande medida dele.
Contraditoriamente com o que os céticos mais extremados sustentam, há poucas razões para duvidarmos de que a edificação da torre e da cidade de Babel (Babilônia) ocorreu, na Mesopotâmia, por volta de 2.500 a. C. A descoberta de zigurates (edificações em forma de torre), em escavações arqueológicas, tornam no mínimo plausível que o relato de Babel constitua a memória de um acontecimento real: "Robert Koldewey e Bruno Meissner puderam demonstrar que as grandes torres em degraus, os chamados zigurates (‘colinas do céu’, ‘montanhas dos deuses’) eram característicos dos templos e das cidades da antiga Mesopotâmia, como o são hoje as torres das igrejas e os arranha-céus" (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. p. 46.).
Läpple acrescenta que torres assim foram edificadas “em todas as grandes cidades da Mesopotâmia”. Mas o que chama muito a atenção é que a de Babilônia não foi descrita só em Gênesis, mas também nos escritos do historiador grego Heródoto, que viveu de 482 a 420 a. C. De acordo com Heródoto, a torre tinha cerca de 90 metros de cada lado. À altura de 33 metros surgia o primeiro patamar e, sobre ele, outros seis. O último patamar do edifício dedicado aos deuses foi revestido de azulejos azuis. Essa torre a que Heródoto se referiu foi edificada por Nabopolassar e Nabucodonosor, sobre a “gigantesca base” de uma outra (a torre bíblica), cujo nome tomou. Essa gigantesca base foi o monumento desenterrado por Koldewey e sua equipe.
A “primeira torre” a que Läpple aludiu, portanto, foi a edificação mencionada na Bíblia. Embora a data da sua construção não tenha sido estabelecida, por dados arqueológicos, o também historiador C. W. Ceram mostra que a sua existência é estreme de dúvidas: "Koldewey desenterrou a gigantesca base [da torre primitiva]. Mas as inscrições provaram-lhe que a torre existira. Pelo menos a torre de que fala a Bíblia (e que, sem dúvida alguma, foi construída) já devia ter desaparecido nos tempos de Hammurabi. Mas a mais recente fora erguida ali pelos sucessores em memória da antiga. Nabupolassar deixou estas palavras: “Naquele tempo, Marduk ordenou que se construísse a Torre de Babel, que tinha enfraquecido e desmoronado em tempos anteriores a mim” (CERAM, C. W. Deuses, túmulos e sábios – o romance da Arqueologia. 7ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 252).
A convicção com que Ceram afirma que a torre foi construída não é gratuita ou destituída de fundamento histórico. Poucas linhas antes, ele se referiu às “informações que temos sobre a lendária Semíramis” como “duvidosas”. Percebe-se por essas palavras que Ceram não estava disposto a acreditar em qualquer documento ou a aceitar o depoimento de qualquer testemunha. Portanto, a existência da primitiva Torre de Babel é, historicamente, provável.
Comparemos essas informações com o que se encontra em Gênesis. Diz esse livro que o princípio do reino de Ninrode foi Babel, na terra de Sinear (Gn 10:10). A construção de Babel, por sua vez, aparece no capítulo 11 de Gênesis. Ninrode não é aí mencionado, porém a edificação de outras cidades lhe é atribuída (Gn 10:11).
Ninrode é, hoje, o nome de um lugar na Mesopotâmia. Como muitos nomes de cidades foram atribuídos em homenagem a personalidades destacadas do passado, é provável que Ninrode tenha realmente existido. Se assim for, ele deve estar relacionado não apenas com a construção de Babel e sua torre, mas também com o movimento religioso que inspirou essas notáveis obras da Antiguidade.
No seu clássico The two Babylons, Alexander Hislop propôs que esse movimento consistiu no abandono do culto ao Deus único (HISLOP,Alexander. The two Babylons. Disponível em www.biblebelievers.com/babylon/sect225.htm). Embora tenha levado longe demais essa intuição, é possível que Hislop estivesse correto ao relacionar a construção da torre bíblica à substituição do culto a uma divindade única pelo de vários deuses. Não que essa substituição tenha constituído uma simples transformação do monoteísmo em politeísmo. O que hoje denominamos monoteísmo não estava presente, no Oriente Médio ou em outro lugar do mundo, naquela época. É verdade que a história de Melquisedeque, em Gênesis 14, e a de Jó, no livro de mesmo nome, nos falam do culto ao Deus único, fora do povo de Israel. Sabemos da existência, nessa região, de muitos povos (chamados henoteístas) que adoravam um só Deus, mas não devemos pensar que o faziam do modo como Israel cultuava Iahweh. O culto monoteísta propriamente dito firmou-se em Israel, por volta da época de Moisés. De sorte que Melquisedeque, Jó e outras personagens bíblicas anteriores devem ter sido precursores desse monoteísmo, mas não exatamente monoteístas.
Sabemos que, quando Deus chamou Abraão para fora de Ur dos caldeus, não apenas a sua família, mas todas as tribos semitas daquela região adoravam outros deuses (Js 24:2). A exceção eram núcleos remanescentes do henoteísmo, não muito distintos dos de Melquisedeque e de Jó, espalhados pelo Oriente Médio. Gênesis explica essa situação como resultante do abandono do henoteísmo, a partir da construção da Torre de Babel.
Karen Armstrong informou que, no centro de Babilônia, o zigurate de Esagila era considerado a morada dos deuses na terra. De acordo com ela, “a cidade é chamada bab-ilani” (portão dos deuses), por esse motivo (ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 61). Através de Babilônia, o divino penetrava no mundo dos homens.
Armstrong chegou a afirmar que, no Período Paleolítico, pessoas de diversas partes do mundo passaram a representar o céu como um Deus Celeste ou Deus das Alturas único e sobranceiro, que criou todas as coisas a partir do nada. Sua opinião não se distancia da do filósofo do século XVIII David Hume, de acordo com o qual “o plano da natureza evidencia um autor inteligente, e nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão, suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro monoteísmo” (HUME, David. História natural da religião. São Paulo: UNESP, 2004. p. 21). Embora essas palavras do cético Hume transpareçam alguma ironia, a posição que ele assume sobre a religião, na obra citada, não parece divergir da sua convicção íntima, a não ser por figuras de exagero (e ironia) empregadas aqui e ali.
Hume afirmou, por exemplo, que a mente humana só se fixa na ideia da existência de vários deuses, quando deixa “de lado as obras da natureza” e passa a observar “os sinais do poder invisível em diversos e contrários acontecimentos da vida humana”. Somente quando isso acontece, somos “levados ao politeísmo e ao reconhecimento de várias divindades”. A elevação da divindade “aos mais altos níveis de perfeição engendra enfim os atributos de unidade e infinitude, de simplicidade e espiritualidade. Esses conceitos sutis, que ultrapassam o alcance da compreensão comum, não conservam por muito tempo sua pureza original, mas precisam ser apoiados pela noção de intermediários inferiores ou de agentes subordinados que se interpõem entre os homens e a divindade suprema” (idem. pp. 30, 72).
Não se deve pensar que a História das Religiões tenha seguido um desenvolvimento único, do monoteísmo racional de Armstrong e Hume ao politeísmo posterior. O que a Pré-História Bíblica aponta é a existência do henoteísmo ao lado do politeísmo. Hans Küng resume de modo cristalino os estudos que levaram a essa conclusão: "Estudiosos do final do século 19 [...] como por exemplo Sir James G. Frazer (1854-1941), viam toda a história da humanidade dentro de um esquema preconcebido de estágios: primeiramente magia – em seguida religião – e hoje ciência [...] Na linha oposta, outros estudiosos, que em vez de seguirem a Darwin acreditavam na Bíblia – como por exemplo o Pe. Wilhelm Schmidt (1868-1954) e sua escola histórico-cultural – achavam que [...] os primitivos habitantes da Austrália teriam partido de um monoteísmo primordial. Só com o tempo este teria evoluído para um politeísmo, vindo por fim a degenerar em magia [...] Hoje estas duas teorias extremas estão abandonadas. Falta-lhes simplesmente a base empírica, porque na realidade as culturas dos diversos grupos tribais desenvolveram-se de maneira totalmente assistemática [...] Hoje os estudiosos estão convencidos de que os fenômenos e as fases [monoteístas e politeístas] se interpenetram. Por isso, em vez de se falar de fases e épocas (de uma sequência), prefere-se falar (de uma superposição) de camadas e estruturas, que podem se encontrar em estágios, fases ou épocas inteiramente diferentes [...] Em lugar algum se pode encontrar uma religião primordial" (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 226-227).
Pode parecer que Küng exagera a importância do monoteísmo, ao mencionar a presença de elementos desse tipo de culto, ao lado de crenças e ritos politeístas tão remotos. Porém, a predominância do politeísmo é válida apenas do ponto de vista cultual. O reconhecimento de um Deus Supremo não cultuado é quase tão comum quanto o politeísmo. Armstrong se referiu a ele: "Quase todos os panteões têm seu Deus do Céu. Os antropólogos também O encontraram entre povos tribais, como pigmeus, australianos e habitantes da Terra do Fogo. Ele é a Causa Primeira de tudo e Senhor do céu e da terra. Nunca é representado por imagens, não tem templo nem sacerdotes, sendo sublime demais para o culto humano” (ARMSTRONG, Karen. Ob. cit. p. 23).
O que a história da Torre de Babel preserva é, portanto, a substituição do culto a um Deus único pelo culto a diversos seres divinos. Por que, no capítulo seguinte à história de Babel, Abraão deixa Ur dos caldeus? Sabemos que a sua migração está relacionada não só ao culto a Iahweh, mas à renúncia do que se tributava a outros deuses. “Então Josué disse a todo o povo: Antigamente vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates, e serviram a outros deuses” (Js 24:2). Como surgiu esse culto, se a Mesopotâmia foi povoada pelos descendentes de Noé, que adoravam um só Deus? A resposta bíblica se centra em Babel e na construção da sua torre. Ali, embora não somente ali, o culto do único Deus foi traído e substituído pelo de muitos outros. Ali, o henoteísmo cedeu lugar ao politeísmo.
Porém, contra toda essa evolução da pesquisa bíblica e extrabíblica, o caráter lendário, quando não infantil e atrasado, dos relatos da Pré-História Bíblica é-nos proposto não só como provável, mas como certo. A ideia é sedutora, mas só para quem não conhece bem a estrutura dos textos bíblicos. Para quem compara com atenção as listas de personagens de Gênesis 5 e 10 com as de Esdras 2 e Neemias 7, cujo conteúdo é aceito como verdadeiro pelos críticos de Gênesis, a ideia do caráter lendário da Pré-História Monoteísta é que se afigura contraditória. Por que Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Jerede, Enoque teriram sido inventados, e Zorobabel, Jesua, Neemias, Seraías e outros não?
As simples palavras pós-moderno infundem impressão da mais alta inovação e do mais profundo poder crítico. Custa, porém, acreditar nesse ponto particular do grande movimento, cuja aceitação não cessam de nos demandar como se fosse o Everest diante do alpinista. Para propiciá-los ou simplesmente calá-los, só posso prometer que crerei no seu monte crítico no dia de São Nunca!

O MISTERIOSO NINRODE

Werner Keller relata o esplendor da antiga cidade mesopotâmica de Ur, em termos que até hoje nos assombram: “Em nenhuma outra cidade da Mesopotâmia vieram à luz do dia habitações tão esplêndidas e confortáveis. Comparadas com elas, as habitações que se conservaram de Babilônia parecem pobres, miseráveis mesmo. O Professor Koldewey [...] só encontrou construções simples de barro, de um andar, com três ou quatro cômodos, em volta de um pátio aberto. Assim vivia também a população da tão admirada e louvada metrópole do babilônio Nabucodonosor. Os cidadãos de Ur, ao contrário, já 1.500 anos antes [2.100 a. C.], viviam em construções maciças em forma de vilas, a maioria de dois andares, com 13 a 14 cômodos. O andar inferior era sólido, construído de tijolos cozidos no forno, o de cima, de barro, as paredes caiadas de branco” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 36).
Ur foi habitada por vários milênios. A cidade que Keller descreve foi uma delas: a que dominou boa parte da Mesopotâmia, após o meado do terceiro milênio. Foi a cidade que venceu a Acádia de Sargão e lhe arrebatou o controle de tantas regiões entre o Tigre e o Eufrates.
Porém, antes da ascensão de Ur e da própria Acádia, os sumérios dominaram a Mesopotâmia. Os nomes de reis dessa época são conhecidos de inscrições que foram desenterradas, após laboriosas escavações. Enadu, Entemena, Urukagina são alguns desses reis sumérios, cuja existência foi firmemente estabelecida.
Por duas razões, porém, os acontecimentos de Gênesis 1 a 11 não constam nos anais de reinos como a Suméria, a Acádia e a cidade-Estado de Ur, que dominaram os lugares em que eles transcorreram: primeiramente, porque foram fatos de pequena importância econômica, política e militar cuja memória logo se dissipou para a maioria das pessoas e povos; em segundo lugar, porque não estavam relacionados à identidade daqueles reinos, pelo contrário: contribuíam para questioná-la.
Em suma, a Pré-História Bíblica é uma micro-história. É o relato de pequenos acontecimentos, que se revestiram de importância extraordinária, do ponto de vista do culto ao único Deus. Mas nem por isso, as parábolas e os relatos a respeito de Adão e Eva, Caim, Abel, Noé e seus descendentes são incompatíveis com a História dos grandes impérios que conhecemos.
O primeiro elo de ligação entre a micro-história bíblica e a História da Mesopotâmia é, provavelmente, a figura de Ninrode. Gênesis 10 diz dessa grande e misteriosa personagem: “Cuxe gerou a Ninrode, o qual começou a ser poderoso na terra. Foi valente caçador diante do Senhor; daí dizer-se: Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor. O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. Daquela terra saiu ele para a Assíria, e edificou Nínive, Reobote-Ir e Calá. E, entre Nínive e Calá, a grande cidade de Resém” (Gn 10:8-12).
Para os padrões literários da Pré-História Bíblica, que se centra quase inteiramente em Adão e Noé, os cinco versículos sobre Ninrode formam um relato longo e significativo. A começar porque o caçador Ninrode é descrito como o primeiro a se tornar poderoso na terra. Temos aqui, a primeira menção de um rei. Até porque a Escritura declara que “o princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné”.
Essas cidades ficavam na faixa central da Mesopotâmia. Notem que Gênesis não afirma que Ninrode as construiu, mas que ele edificou uma série de outras cidades, no norte da Mesopotâmia, quais sejam: Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém. Curiosamente, Ninrode não é associado a Ur. Disso se extrai que ele não a construiu, nem a conquistou. Como Ur ficava no sul da Mesopotâmia, e o reino de Ninrode, no centro, devemos concluir que ele foi um rei local. As ruínas de Tell Nimrud, situadas perto de Bagdá, no centro da Mesopotâmia, podem constituir um testemunho físico da região a partir da qual ele expandiu seus domínios.
O fato de Ninrode ter construído Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém não implica que as tenha fundado. Gênesis narra a recolonização do norte da Mesopotâmia, após o Dilúvio. Se a arca de Noé pousou no Monte Ararate, que fica na Armênia, no extremo norte, a inundação de Gênesis 6 a 8 deve ter atingido, precisamente, a parte setentrional da Mesopotâmia. Assim, nada mais natural do que as cidades daquela região terem sido reedificadas e não construídas por Ninrode. Em Assur, Nínive e Calá, foram desenterradas cerâmicas de 5.000 a 3.000 a. C. (TOGNINI, Eneas. Geografia das terras bíblicas. São Paulo: Louvores do Coração, 1980. p. 59), o que confirma a sua anterioridade a Ninrode.
É útil lembrar os termos com que Josefo transmitiu a tradição dos judeus sobre esse ponto: “Ninrode, neto de Cão, um dos filhos de Noé, foi quem levou [os descendentes de Noé] a desprezar a Deus [...] Ele os persuadiu de que deviam unicamente ao seu valor, e não a Deus, toda a sua boa fortuna. E como ele aspirava ao governo e queria levá-los a escolhê-lo para seu chefe e deixar a Deus, ofereceu-se para protegê-los contra Ele (se Ele ameaçasse a terra com outro dilúvio), construindo uma torre para esse fim” (JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2001. p. 53). Essa passagem evoca tradições adicionais às de Gênesis sobre Ninrode. Os acréscimos parecem seguir o significado do nome da personagem, que em hebraico é ma-rádh, rebelar-se (www.wikipedia.org/nimrod).

Lutero demonstrou ter recebido essa antiga tradição, a respeito de Ninrode, pois escreveu: "Abraão, juntamente com seu pai e irmãos, era idólatra e não era justo diante de Deus, mas diante de Nimrod, cujo culto segui [...] A religião babilônica de Nimrod tinha uma belíssima aparência. Eles cultuavam a Deus sob o título de Luz, que é a melhor forma ou a [melhor] figura da majestade divina, haja vista que as próprias Sagradas Escrituras chamam Deus de Luz" (LUTERO, Martinho. Preleção sobre Gênesis. In Martinho Lutero – obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/ Concórdia, 2014. pp. 348-349).
A tradição transmitida por Josefo, que chegou até Lutero, provavelmente por intermédio dos grandes comentadores, parece ter-se originado do costume dos antigos orientais de atribuir outros nomes a pessoas de destaque, após a morte delas e de acordo com os feitos que realizaram. Essa é a razão de tantas personagens de Gênesis, como Jacó e Israel, terem nomes que refletem suas obras. É o que parece ter ocorrido com Ninrode, cujo nome lembra a rebelião que levou ao abandono do henoteísmo.
Alexander Hislop foi o mais erudito defensor da doutrina conhecida como pan-babilonismo. De acordo com ele, parte substancial dos cultos pagãos de todas as épocas originou-se de Babilônia e, particularmente, do culto prestado a Ninrode. Hislop, porém, reconheceu que "o significado do nome [dele é dado] na voz passiva, não como ‘o rebelde’, mas como ‘aquele contra quem se rebelaram’” (HISLOP, Alexander. The two Babylons. Chapter II, Section II, Sub-Section IV, p. 32).
Alexander Hislop foi o mais erudito defensor da doutrina conhecida como pan-babilonismo. De acordo com ele, parte substancial dos cultos pagãos de todas as épocas originou-se de Babilônia e, particularmente, do culto prestado a Ninrode. Hislop, porém, reconheceu que "o significado do nome [dele é dado] na voz passiva, não como ‘o rebelde’, mas como ‘aquele contra quem se rebelaram’” (HISLOP, Alexander. The two Babylons. Chapter II, Section II, Sub-Section IV, p. 32).
Sabemos que Ninrode foi neto de Noé. Se considerarmos que Cuxe pode ter nascido poucos anos depois do Dilúvio, como Arfaxade, filho de Sem, é possível que Ninrode tenha alcançado a idade adulta cerca de 60 anos, contados a partir do Dilúvio. Isso nos remete a cerca de 2.610 a. C. Embora Eusébio, o historiador eclesiástico, tenha situado Ninrode, no tempo de Abraão (HISLOP, Alexander. Ob. cit. Chapter I, p. 6. Disponível em www. biblebelievers.com), ele deve ter vivido muito antes.
A localização do princípio do reino de Ninrode no centro da Mesopotâmia e a datação de sua vida, em meados do terceiro milênio a. C. constituem fortes argumentos a favor da ideia de que ele foi um rei sumeriano. Porém, terá sido um rei peculiar, já que a Suméria abrangeu o centro-sul da Mesopotâmia, enquanto Ninrode edificou cidades também ao norte.

Não é comum uma personagem ser inserida nas Escrituras somente em razão de seus feitos políticos. Se foi mencionado em Gênesis, Ninrode deve ter sido o pivô de importantes acontecimentos da História do culto ao Deus único. Seguindo as pegadas da tradição judaica, Hislop propôs que essa importância foi negativa: para ele, Ninrode foi o líder de uma rebelião contra o Deus único, que continuou e se disseminou pelo mundo após a sua morte. Vimos, porém, que o significado do nome Ninrode não é “o rebelde”, mas “aquele contra quem se rebelaram”. Por isso, ele pode não ter liderado rebelião alguma, mas sido derrubado ou vitimado por uma.
Além de ter apontado a incongruência entre o significado hebraico do nome de Ninrode e a ideia de que ele teria sido um rebelde, Hislop lembrou que nossa personagem deve ter sofrido morte violenta (HISLOP, Alexander. Ob. cit. Chapter II, Section II, Sub-Section IV, p. 32), o que é compatível com a ideia de que uma rebelião foi movida contra ela. A ideia se coaduna com a afirmação bíblica de que Ninrode foi “poderoso caçador diante de Iahweh” (Gn 10:9). Em Gênesis 1 a 11, “diante de Iahweh” é uma expressão com significado positivo, assim como “invocar o nome de Iahweh” (Gn 4:26) e “andar com Deus” (Gn 5:22; 6:9). Não vejo por que interpretá-la em sentido negativo. E notem que a expressão “diante de Iahweh” é empregada como um resumo ou síntese da vida de Ninrode, o que ressalta ainda mais o valor positivo dela.
A atividade de caçador não é, em si, meritória. Mas o é, certamente, no contexto pós-diluviano em que o número de habitantes da região havia diminuído, e o de feras, aumentado proporcionalmente. E ainda mais se, depois do Dilúvio, Deus permitiu a Noé e seus filhos alimentar-se de carne (Gn 9:3). Situado, pois, no contexto da época, o ofício de caçador de Ninrode não só se revertia em benefício da população local como se baseava diretamente numa autorização de Deus.
Lembremos, por fim, que Ninrode reedificou Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém, arruinadas pelo Dilúvio e situadas fora dos seus domínios históricos. Admitamos que também isso aponta para um benfeitor de populações locais.
Tudo isso argumenta em favor de que a divinização de Ninrode não é, por certo, improvável. Santo Agostinho lembrou que os deuses gregos e romanos foram homens de grande destaque cujos pósteros passaram a adorar, após a sua morte: “A razão mais verossímil que se pode dar [para o politeísmo] é haverem os deuses sido homens e deverem à lisonja que os fez deuses as solenidades e os ritos que souberam compor segundo o espírito, o caráter, os atos e o destino de cada um deles” (AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus – contra os pagãos. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1990. Livro Sétimo, Cap. XVIII. p. 279). E de novo: “Os deuses [...] é mais crível hajam sido homens, como dizem não apenas os escritos poéticos, mas também os históricos” (idem. Livro Sétimo, Cap. XXVII, p. 289).
Os escritos históricos a que Agostinho se referiu são obras, como as de Evêmero, que ele mencionou expressamente: “Não é verdade que todos deram aprovação a Evêmero, que escreveu, não com charlatanice mítica, mas de História em punho, haverem todos esses deuses sido homens e mortais?” Por isso, “nos escritos gentios não se encontram ou com dificuldade se encontram deuses que não hajam sido homens e não tenham, uma vez mortos, recebido honras divinas” (idem).
E exemplificou: “Telexião reinou sobre os siciões. Durante o seu reinado, houve paz e alegria em tal medida que, após sua morte, o povo passou a adorá-lo como deus, ofereceu-lhe sacrifícios e celebrou jogos [...] Após a morte de Foroneu, seu irmão mais jovem, Fego, construiu um templo sobre seu túmulo, no qual ele passou a ser adorado como deus [...] O nome da filha de Inaco foi mudado para Ísis, a partir de quando ela passou a ser adorada como uma grande deusa no Egito, embora alguns afirmem que Ísis foi uma rainha procedente da Etiópia” (AGOSTINHO, Santo. Ob. cit. pp. 538-539).
É provável que Agostinho tenha aderido à opinião de Evêmero, por ter lido Cícero, que em De natura deorum adotou as ideias daquele filósofo. Orígenes deve ter cumprido o mesmo percurso de Agostinho, pois afirmou que a divinização de “Dióscuros, Héracles, Asclépio e Dioniso” era “uma crença grega” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. Livro I, 37.p. 220). A palavra divinização implica que, antes de terem sido deuses, Dióscuros, Héracles, Asclépio e Dioniso foram seres mortais, isto é, personagens históricas. Outro cristão erudito da Antiguidade, Tertuliano, também sustentou que os deuses pagãos foram homens (TERTULIANO. Apologético. Cap. 10). Trata-se, pois, de uma ideia disseminada, a partir de Evêmero, em razão da influência de Cícero.
É claro que tanto Cícero como Agostinho, Orígenes e Tertuliano conheciam o que Hermann Usener mais tarde mostrou, a saber: que, entre os deuses romanos, alguns eram considerados especiais e tratados à parte. Esses deuses não apareciam nas fontes literárias, mas em livros litúrgicos particulares. Usener provou que eles se originaram de tarefas do dia a dia, como o ato de semear, o de lavrar a terra e o de adubá-la com esterco. Mostrou mais que até os nomes de deuses conhecidos por meio das fontes, como Proserpina e Promona, derivam de eventos cotidianos, no caso o aparecimento dos brotos (prosero) e a maturação dos frutos (poma). Chegou a propor, aliás, que os nomes dos deuses eram, em geral, derivados de atos ou fatos cotidianos (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. pp. 54-55).
A proposta se deve a um provável exagero, já que os autores antigos nunca excluíram a gênese humana dos deuses antropomórficos por causa da relação dos seus nomes a determinados fatos naturais. Cícero, por exemplo, escreveu na sua obra clássica sobre o tema: “Se o nome de Ceres deriva da sua fertilidade, a terra é uma deusa (como é, de fato, considerada, já que é idêntica à deusa Telos). E, se a terra é divina, o mar identificado com Netuno, os rios e as fontes também devem ser [...] Devemos refutar a teoria de que esses deuses, que são seres humanos deificados e constituem objeto da mais devota e universal veneração, não existem na realidade, mas apenas na imaginação. Primeiramente, os chamados teólogos enumeram três Júpiters, dos quais o primeiro e o segundo nasceram na Arcádia. O pai do primeiro foi Éter, que é considerado progenitor de Proserpina” (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. III, xxi. p. 337).
Vemos com que naturalidade Cícero, ao mesmo tempo, admite a relação dos nomes dos deuses com fatos naturais e a origem humana deles. Ele afirma que Proserpina, que Usener dá como exemplo de divindade especial, foi filha do grego Éter, originário da Arcádia. Portanto, o fato de alguns deuses receberem nomes de eventos da natureza, de modo nenhum afasta, a sua origem humana.
Evêmero foi um von Daniken mais bem-sucedido. É difícil negar que as suas ideias expliquem o paganismo, em alguma medida. Não precisamos exagerá-las para concluir que Ninrode recebeu a apoteose pós-diluviana. É a mais provável explicação para a inclusão do relato sobre aquele descendente de Cão, num texto que marcha em direção a Abraão. Não há suficiente evidência de que Ninrode tenha sido um apóstata. Mas há grandeza bastante, em seus feitos, para tremermos ante a ideia de que eles podem ter sido exagerados até o ponto da divinização.
O homem nunca pensou muito diferentemente. Nunca abandonou o esquema das divinizações, só o tornou maleável para assumir as mais variadas cores, em situações as mais variadas. Para que Iahweh, se um bezerro basta como memória do Êxodo? Para que Deus, se uma torre que toca o céu é capaz de livrar de dilúvios? A obsessão atual do homem é provar que fez Deus à sua imagem, mas tudo o que consegue é mostrar que faz sucessivos deuses e os troca uns pelos outros. Em vez de deuses, astronautas. Por que não? Mas não há novidade alguma nisso. Como não há novidade em o homem contemporâneo perguntar-se para que Jesus Cristo, se suas mãos já plasmaram o seguro social.

QUEM FOI ABRAÃO?

Ao percorrer repetidamente as páginas das Escrituras, o estudioso atento se dá conta do hábito de seus autores de só inserirem no texto bíblico citações deles próprios, nunca de tradições paralelas. Esse é um dado importante ao qual, por falta de nome mais apropriado, chamarei autorreferência. Poucas vezes, o hábito é excetuado por menções a dados externos às Escrituras, como os nomes dos opositores egípcios de Moisés, na corte de Faraó, Janes e Jambres (2 Tm 3:8).
No entanto, o hábito de citar apenas os seus próprios textos não exclui a possibilidade de utilização de outras fontes pelos autores bíblicos. Estudos especializados indicam que as histórias da Bíblia nasceram de uma abundância de fontes orais e escritas. Por isso, não faz sentido entender a autorreferência como um critério de exclusão de outras fontes, mas de atribuição de pesos distintos a fontes também distintas, que foram utilizadas para compor o texto. Em outros termos, a autorreferência significa que o peso das fontes bíblicas é superior ao das fontes externas à Bíblia. Essa é uma consequência direta da autorreferência.
Outra consequência é a ampliação da diversidade no interior das Escrituras e da revelação. Sem a autorreferência, o intérprete seria obrigado a adotar a contradição como único critério de limitação da diversidade encontrada nos textos. Só assim ele seria capaz de eliminar oráculos conflitantes. Graças à autorreferência, torna-se possível estabelecer um limite distinto para a diversidade no interior da revelação. Como o texto bíblico reveste-se de autoridade superior à das fontes externas, duas tradições que se contradizem, mas não contradizem a Bíblia podem ser consideradas parte da palavra de Deus. Assim, elas podem ser utilizadas tanto como fontes secundárias da própria Bíblia quanto como oráculos suplementares às Escrituras. De sorte que uma diversidade maior de textos e tradições pode ser acumulada no âmago do que se costuma aceitar como revelação.
A autorreferência amplia o número de proposições extrabíblicas passíveis de serem aceitas como palavras de Deus. O que não contradiz a Bíblia pode ser uma palavra divina, ainda que entre em conflito com outro oráculo dado por Deus ao seu povo em outro contexto. O fato de a revelação, como conjunto de todas as palavras divinas, possuir um núcleo vital (as Escrituras) é tão significativo que faz com que toda a comunicação divina com o homem refira-se a ele, tenha o objetivo contínuo de reafirmá-lo e, por isso, não o contradiga jamais. O mesmo não acontece com as tradições situadas fora daquele núcleo, que se podem contradizer sem perder o caráter de palavras de Deus. Por terem sido compostas por métodos os mais distintos e em contextos históricos diversificados, esses oráculos adicionais não precisam manter uma organicidade, a não ser a que decorre de não negarem as Escrituras.
Até aqui, mencionei duas consequências da autorreferência. Uma terceira poderia ser acrescentada, a saber: o caráter flexível das informações contidas nas Escrituras. Se a Bíblia foi composta a partir de fontes que se contradizem, o sentido das informações que contém não se define só pela intenção do autor final do texto, mas também dos autores das fontes. As intenções desses autores podem coincidir em alguns casos, mas não sempre, nem invariavelmente. Quanto mais recuada no tempo se encontra uma fonte, maior pode ser a divergência entre o sentido dela e o emprego que o autor bíblico lhe deu.
Essa divergência não precisa ser negada, sob a justificativa de que a Bíblia é a palavra de Deus, e Deus não se contradiz. A autorreferência nos ajuda a entender que há espaço para informações conflitantes, no interior das Escrituras, desde que o conflito não atinja o objetivo da comunicação de Deus com o homem, que é estabelecido pelo texto bíblico e não pelas fontes externas. Respeitado esse objetivo, a Bíblia usa outras fontes com toda a pluralidade de significados que implicam.
Essa última consequência da autorreferência é fundamental para entendermos quem foram as personagens do passado remoto a que as Escrituras fazem referência, assim como Abraão. Poucos especialistas em ciências bíblicas reconhecem que Abraão existiu. Parte deles o considera uma figura lendária; outra parte pensa que resultou da fusão de vários ancestrais dos judeus, cujas histórias foram transmitidas de geração em geração.
A redução da narrativa bíblica a lenda é problemática, pois supõe que ela foi inventada. É difícil que histórias tão detalhadas e internamente concatenadas, como a maioria das que compõem o texto bíblico, tenham sido simplesmente imaginadas. Por isso, a teoria da lenda deve ser afastada.
O mesmo não ocorre com a teoria da fusão de várias pessoas sob o nome de uma personagem única. Se aceitarmos a flexibilidade das informações sobre o passado remoto, Abraão poderá ser entendido como uma fusão de vários ancestrais judeus. O historiador Georg Fohrer resume o processo de formação das histórias de Gênesis da seguinte maneira: “Quando a primeira narrativa básica [do Pentateuco] foi sendo formada, muitas outras tradições primitivas foram incorporadas: listas (Gn 22:20-24; 25:1-6; 36:31-39), narrativas concernentes à história das tribos e nações (Gn 16:4-14; 19:30-38; 21:8-21; 25:21-26a, 29-34; 29—30; 34; 38:27-30); sagas da natureza (Gn 19; Êx 16—17; Nm 11; 20); pequenas histórias (Gn 12:10ss; 20; 24; 26)” (FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 153). Por terem-se originado separadamente, essas múltiplas tradições podem fazer referência a mais de um Abraão.
Fohrer adere à teoria de que o Pentateuco é uma compilação de histórias transmitidas independentemente. Os versículos citados por ele são exemplos de narrativas reunidas, quando os judeus começaram a compor uma história coesa da sua nação, por volta de 1.200 a. C. A maior parte deles pertence ao Livro de Gênesis. Por isso, ajuda-nos a entender como as histórias sobre Abraão se formaram.
Se Abraão é um aglutinado de várias figuras antigas, umas bem conhecidas, outras não, a fusão das histórias a seu respeito pode ter ocorrido, quando a narrativa básica mencionada por Fohrer foi reduzida a escrito. Um autor bíblico desconhecido coseu as histórias umas nas outras, de modo a formar a biografia de um homem. Essa é, hoje, a visão mais provável do processo de formação do relato bíblico sobre Abraão.
Porém, a transformação do texto não estancou com a elaboração do primeiro Pentateuco. Na época de Jesus e de Paulo, muitas histórias sobre Abraão tinham sido acrescidas às que o Antigo Testamento transmite. Isso indica que a transformação dos relatos sobre aquele patriarca prosseguira. Uma parte dos acréscimos encontra-se na literatura apócrifa dos judeus. Outra parte foi incorporada, mais tarde, ao Talmude.
Os fariseus, partido mais numeroso e influente da época, criam tanto na inspiração divina das histórias bíblicas quanto nesses acréscimos. Aos seus ouvidos, os nomes de Adão, Abraão e Moisés evocavam mais do que as narrativas da Bíblia estabelecem a respeito deles. Por isso, é interessante recordar como Jesus e os primeiros cristãos trataram essas crenças.
Sabemos que Jesus combateu o costume fariseu de aceitar todo acréscimo à Lei e aos Profetas que circulava na sua época. Porém, as suas declarações sobre isso, em Mateus 15:1-6, são frequentemente distorcidas. Jesus apontou incoerências não percebidas entre algumas tradições orais dos judeus e as Escrituras. Disse, por exemplo, que a dispensa da obrigação de honrar pai e mãe, por meio de uma doação, violava o espírito dos Dez Mandamentos. Nas suas exatas palavras: "Por que transgredis vós o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe e Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe" (Mt 15:3-6).
Os fariseus eram os primeiros a reconhecerem que as Escrituras se situavam num plano superior ao das tradições orais que circulavam. Eles viam as tradições como comentários e adendos às Escrituras. Portanto, como acessórios do principal, que era a Bíblia. O historiador Flávio Josefo deixa isso claro na sua Resposta a Ápio. O problema é que os fariseus não reconheciam as incoerências entre as tradições e a Bíblia. Jesus apontou essas incoerências e acusou os escribas e fariseus de transgredirem o mandamento de Deus por apego a elas. De modo nenhum, porém, isso implica que Jesus tenha incidido no contrário do que os fariseus praticavam, isto é, que ele tenha declarado as tradições de nenhum valor.
As próprias Escrituras citam e aceitam partes da Tradição. Já disse que o autor de Timóteo adotou os nomes dos opositores egípcios de Moisés criados pela Tradição (2 Tm 3:8). E Jesus, ao condenar os escribas e fariseus por observarem as menores coisas da lei em prejuízo das maiores, não disse que os seus seguidores deviam desconsiderar as primeiras, mas que deviam “fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23:23).
Será que, entre as menores coisas que os discípulos deviam praticar, não estavam incluídas as ordenanças da Tradição? Certamente estavam. Por isso também, Jesus ordenou a seus discípulos guardarem “tudo quanto” os escribas e os fariseus lhes ensinavam (Mt 23:3). Na palavra tudo, estão abrangidas as tradições.
Mas, se Jesus admitia as regras que não entravam em conflito com as Escrituras, não devemos concluir que aceitava também as histórias que a Tradição tinha acrescentado sobre Adão, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jonas e Daniel? E essa aceitação não implica que ele se referiu em termos bastante elásticos? O Abraão de Jesus, portanto, podia incluir nuanças como as histórias sobre esse patriarca transmitidas pela Tradição?
Sob essa perspectiva, não há razão para não admitirmos que o próprio Abraão bíblico resulta da fusão de vários patriarcas. Se as personagens do Antigo Testamento, em geral, eram mistos de dados da Bíblia e da Tradição, por que os relatos sobre a época patriarcal não podem ter-se fundido, de modo a formar a história de Abraão? Não há nessa fusão qualquer anormalidade. Pelo contrário, é a própria essência do processo de combinação das palavras da Bíblia com as da Tradição.
Estou a propor que Abraão não existiu? Que não fez o que a Bíblia afirma que fez? Ou que Deus não disse a ele o que Gênesis narra? De modo nenhum. Existiram adoradores de Deus que fizeram o que a Bíblia atribui a Abraão. Deus deu-lhes promessas e mandamentos. Porém, os nomes de alguns ou de todos eles e certos detalhes das suas histórias perderam-se. Só o que sobrou foi reunido, de modo a compor a vida de Abraão como a conhecemos.
O que firmei até este ponto não nos deixa com mais do que uma nuvem de personagens, histórias transmitidas oralmente e costumes de época. Abraão está nessa nuvem. No entanto, o Abraão bíblico, mesmo quando levamos em conta todas as lições aproveitáveis da Crítica Histórica e Literária, parece mais sólido do que tal nuvem. E, se for mesmo assim, crer na existência de um ou dois homens que viveram parte da saga atribuída a Abraão pode não ser necessariamente um erro. A multiplicidade de histórias sobre o patriarca e o grau de detalhamento do seu conteúdo parecem falar-nos de fatos reais, que se tornaram históricos. Por outro lado, está fora do campo do possível que um ou mais escribas tenham inventado relatos tão numerosos, detalhados e concatenados, poderíamos acrescentar: relatos tão significativos e belos quanto os de Gênesis sobre Abraão. Até porque, se tais escribas tiverem existido e criado o Abraão bíblico, estaremos diante de uma verdadeira teoria da conspiração e não me parece que textos se expliquem por teorias desse jaez.
Contudo, na era da ciência, precisamos explicar um pouco melhor o Abraão bíblico, se quisermos conferir-lhe solidez parecida com a que, por séculos, a letra da Bíblia lhe atribuiu. Precisamos, ao menos, mostrar como as histórias a respeito dele podem ter-se formado. Não tenho, a esse respeito, uma explicação pronta para fornecer. Mas, se pudermos reunir e compactar em Abraão não só a nuvem de personagens e as linhas gerais das histórias, mas também os detalhes a respeito delas, enfim se pudermos aceitar que esses detalhes não são sinais de invenção, mas de transmissão de fatos verdadeiros, estaremos em condições de concluir que, ao lado da tradição oral, relatos escritos podem ter sido compostos sobre uma ou duas personagens denominada(s) Abraão. E, se a veneração dos textos tiver sido levada tão longe quanto a das histórias orais, não será impossível que, num momento da História, relatos semelhantes aos que hoje lemos sobre Abraão tenham sido compostos.

Não desenvolvo essas conjecturas para enaltecer ou diminuir a figura de Abraão. Meu objetivo é somente entendê-lo melhor. Tudo considerado, o patriarca bíblico não é simplesmente o da letra: é o da verdade, seja qual for e esteja onde estiver. Interpretar a Bíblia é amar essa verdade, ainda que se apresente fluida, como no caso de Abraão. A figura arrancada à letra de Gênesis não é o pai de muitas nações. É a sua caricatura, uma estátua de letra, um ídolo. O Abraão verdadeiro é imaterial e volátil como as tradições que o originaram. Mesmo assim, é portador dos princípios da salvação pela fé que Paulo tanto encarece e dos quais vivemos, pois “o justo viverá pela fé”.
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JOSÉ DO EGITO

Por todo o livro de Gênesis, encontramos relatos derivados de fontes antiquíssimas, umas escritas, outras orais, a respeito da Pré-História Bíblica. Essa derivação sugere que a base do texto é histórica, embora o autor interprete os acontecimentos narrados em termos da sua relação com Iahweh.
Quando chegamos à história de José, porém, tudo muda. As evidências de derivação de fontes antigas não desaparecem completamente, mas se tornam tênues. Por outro lado, a criação literária de narrativas e seus pormenores intensifica-se. De real, nessa história, permanece a menção de cargos egípcios típicos, como os de copeiro-chefe, padeiro-chefe (Gn 40:2), mágico (Gn 46:26-34), mordomo (Gn 39:4) e administrador do reino, posição ocupada pelo próprio José, assim como os costumes egípcios que menciona. Permanecem os pormenores que o texto cita e que se referem a fatos cuja existência foi comprovada por uma enorme coleção de fragmentos da época.
O arqueólogo John Thompson, de Cambridge, fornece elementos que permitem interpretar os relatos de José como ficção. De acordo com ele, “os reis hicsos formaram as dinastias XV e XVI [do Egito] e reinaram durante cerca de 140 anos. Eles estabeleceram uma segunda capital no delta oriental, em Avaris. Esses faraós semitas adotaram os costumes dos reis egípcios locais e usaram a administração egípcia de então, empregando oficiais egípcios de acordo com o antigo regime. No decorrer do tempo, oficiais semitas naturalizados ocuparam muitos desses cargos. Entre eles achava-se um certo Hur, que era uma espécie de chanceler” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. p. 60). As informações de Thompson permitem pensar que o costume hicso de empregar administradores semitas inspirou a criação de relatos parecidos com o de José.
Por outro lado, dados do texto bíblico, como a perfeição do caráter de José (tão destoante do de seus irmãos), a extensão dos dons sobrenaturais que possuía e a sua ascensão meteórica à testa do reino do Egito, indicam que a falta de informações precisas sobre esse patriarca pode ter sido preenchida com noções do imaginário judaico sobre o Período Hicso. Não é impossível que a criação tenha-se inspirado na figura histórica do chanceler egípcio Hur, mencionado por Thompson, ou em outra personagem semita que tenha ocupado cargo de destaque na administração do Egito, naquela época.
Não estou a afirmar que José viveu durante as Dinastias XV e XVI do Egito. A inspiração do relato bíblico em determinadas pessoas só indicará que José viveu na época delas, se os dados da sua história forem entendidos literalmente. Porém, não é essa a conclusão mais verossímil. Sabemos que os hicsos se estabeleceram, no Delta do Nilo, por volta de 1.790 a. C. A família de Jacó (Israel) tinha migrado para esse lugar, mais de dois séculos antes. Portanto, o José real, que foi filho de Jacó, viveu aproximadamente em 2.000 a. C. As narrativas bíblicas sobre ele, porém, ao que tudo indica, foram criadas mais de dois séculos depois, num contexto marcado pela presença dos hicsos ou pela lembrança deles.
Um dos motivos para a redação da história pode ter sido o fato de José ter arrebatado a primogenitura a Rúben, assim como seu pai, Jacó, a tomara a Esaú. A atribuição da primogenitura a José é comprovada pelo fato de seus filhos Manassés e Efraim terem recebido herança dobrada em Israel (Gn 48). Portanto, a história de José pode ter sido escrita, a partir de dados do Período Hicso, para explicar essa mudança inusitada.
Gênesis está longe de dissimular o caráter de ficção da história desse patriarca. Após ter narrado episódios da vida de Abraão, Isaque e Jacó e de os ter interpretado teologicamente, o autor do livro passa, repentinamente, a reproduzir uma série de padrões literários cujo caráter imaginativo não passa despercebido. Logo na primeira página da história de José, quando ele vai ao encontro de seus irmãos, que apascentam o rebanho e o avistam, eles têm tempo de discutir, traçar e pactuar um plano para tirar a vida do irmão mais novo, antes de ele chegar ao lugar em que estavam:
“De longe o viram e, antes que chegasse, conspiraram contra ele para o matar. E dizia um ao outro: Vem lá o tal sonhador! Vinde, pois, agora, matemo-lo, e lancemo-lo numa destas cisternas; e diremos: Um animal selvagem o comeu; e vejamos em que lhe darão os sonhos. Mas Rúben, ouvindo isso, livrou-o das mãos deles, e disse: Não lhe tiremos a vida. Também lhes disse Rúben: Não derrameis sangue; lançai-o nesta cisterna, que está no deserto, e não ponhais mão sobre ele; isto disse, para o livrar deles, a fim de o restituir ao pai (Gn 37:18-22).
A formulação, discussão e deliberação de um plano tão lógico estão, por si sós, muito além do que é razoavelmente possível, do ponto de vista cotidiano. Os irmãos de José estavam longe de ser figuras muito racionais ou calculistas. Alguns deles são descritos como pessoas sanguíneas e impulsivas. Ao menos é o que Gênesis coloca além de toda dúvida.
Porém, o livro não se limita a afirmar que os patriarcas criaram, discutiram e deliberaram adotar o seu plano perfeito, durante o tempo que José despendeu para chegar até eles. Acrescenta que eles realizaram a sua façanha deliberativa contra a vontade do primogênito Rúben, o que torna o relato ainda mais difícil de conceber, do ponto de vista dos costumes e instituições da época. Em 2.000 a. C., se existia uma chance de dez irmãos deliberarem uma pequena parte do que Gênesis 37 afirma que deliberaram, ela dependia da concordância do primogênito, negada expressamente pelo texto bíblico. Isso nos leva a concluir que o autor sagrado não tratou o relato da venda de José por seus irmãos como fato histórico.
Ainda mais impressionante é que o padrão deliberativo adotado pelos irmãos se repete, quando a caravana de ismaelitas se aproxima: “Olharam e viram que uma caravana de ismaelitas vinha de Gileade; seus camelos traziam arômatas, bálsamo e mirra, que levavam para o Egito. Então disse Judá a seus irmãos: De que nos aproveita matar o nosso irmão e esconder-lhe o sangue? Vinde, vendamo-lo aos ismaelitas; não ponhamos sobre ele a nossa mão, pois é nosso irmão e nossa carne. Seus irmãos concordaram. E, passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas; estes levaram José ao Egito. Tendo Rúben voltado à cisterna, eis que José não estava nela; então rasgou as suas vestes. E, voltando a seus irmãos, disse: Não está lá o menino (Gn 37:25-30).
Pela segunda vez, no mesmo capítulo, observamos a formulação de um plano complexo, sua discussão e a convergência de todos os irmãos contra a vontade do primogênito. Exatamente o que era inconcebível, no século XX e também depois. Claro que o imponderável pode ter ocorrido, mas não é comum as Escrituras o registrarem de modo tão diametralmente contrário aos costumes da época. Somos, pois, levados a concluir que o texto bíblico não dissimula o caráter imaginário dos pormenores da venda de José como escravo aos ismaelitas. Pelo contrário, admite-o implicitamente. E podemos acrescentar que essas mesmas características de criação repetem-se, nos capítulos seguintes da história do patriarca.
Não menos digno de nota é o fato de o verso 37:28, transcrito acima, identificar os viajantes que levaram José, sucessivamente, como midianitas e ismaelitas: "Passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas". Desde o desenvolvimento da chamada hipótese documentária, considera-se que a menção dos dois povos deve-se ao fato de a história de José sobrepor duas fontes (escritos originais) conhecidas como E (Eloísta) e J (Javista), que foram reunidas em Gênesis 37 a 50. Como considerava os dois relatos sagrados, o editor judeu utilizou-se delas, sem se atrever a apagar as suas contradições.
Essa interpretação de Gênesis leva-nos à conclusão de que José de fato existiu. Pode inclusive ter sido vendido como escravo por seus irmãos e ido parar no Egito, antes deles. Porém, ele não governou o país, já que os registros bastante completos daquele povo, relativos à época patriarcal, o calam completamente. A história de José registrada em Gênesis 39 a 47 foi criada para justificar a herança dobrada que os filhos desse patriarca receberam. Por isso, tem o nítido caráter de parábola bíblica.
A forma literária do relato imaginativo, cujas espécies são a lenda, o mito, a parábola, o apólogo, entre muitas outras, não é incompatível com o texto bíblico. Não há dúvida de que, nas Escrituras, prevalece o elemento histórico, porém o relato imaginativo não está ausente nelas. Quando se põe a ensinar por parábolas, Jesus não cria algo novo, renova uma prática antiga, até mesmo ancestral. O próprio conceito de parábola, para os judeus, era bastante elástico. Incluía numerosas espécies de textos imaginativos, como Joachin Jeremais mostrou numa obra que se fez clássica (JEREMIAS, Joachin. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976). O relato de José deve ser considerado um feixe ou conjunto de parábolas históricas, nesse sentido amplo do termo.
Porém, o relato é interceptado, após o episódio da venda de José aos ismaelitas, pela abrupta separação de Judá de seus irmãos (Gn 38). A intenção da interceptação pode ter sido relacionar a longa temporada de Judá numa família cananeia e a sua união a uma mulher local com a intervenção violenta dele na venda de José. O relato inserido nada tem de nobre. Está longe de exaltar Judá. Mas serve de elo inicial para a longa história posterior do desenvolvimento apartado da Tribo de Judá.
Nada há de ofensivo à inspiração divina da Bíblia, no emprego de textos imaginativos, como os encontrados na história de José. Até porque a intenção do escritor de Gênesis nunca foi iludir, alterar ou falsificar a verdade histórica, como ficou claro na discussão de Gênesis 37 desenvolvida acima. O desenvolvimento da pesquisa bíblica torna indispensável que o intérprete saiba reconhecer o caráter imaginativo de um texto, quando chega a ele, em vez de considerar que todas as narrativas têm o mesmo caráter. A atribuição de caráter histórico a todos os textos era típica do intérprete antigo. A atitude do moderno há de ser outra, mais consoante com o tempo atual e tanto mais necessária quanto a Teologia permanece carente de renovação nos nossos dias.

A ÉPOCA DE MOISÉS

Nenhum fato histórico reveste-se de importância maior, para a estrutura literária e teológica do Antigo Testamento, do que o Êxodo e a formação da nação de Israel, sob a liderança de Moisés. Se esses acontecimentos forem reais ou se o teor histórico das narrativas que os transmitem for elevado, o impacto sobre a Teologia e disciplinas como a História e a Literatura será tão forte que desencadeará inevitável pressão no sentido de mudanças culturais mais amplas.
Não me refiro apenas aos aspectos miraculosos das narrativas, mas ao seu arcabouço fundamental. Se os fatos desse arcabouço constituírem verdades históricas, não literais, mas, digamos, literárias, isto é, se elementos arcaicos das Tribos que mais tarde se uniram para formar Israel tiverem sido escravizados no Egito, fugido de lá, sob a liderança de Moisés, peregrinado no deserto, adquirido dimensões nacionais e uma cultura baseada na Lei (Torá), o Pentateuco terá de ser considerado amplamente veraz, do ponto de vista histórico. E, se a época em que esses grandes acontecimentos se passaram tiver sido a que os dados cronológicos da Bíblia apontam (século XVI a. C.), então o inteiro arcabouço da História das nações vizinhas de Israel, principalmente das grandes potências, como o Egito e a Assíria, terá de ser revisto, nos pontos de desacordo com o Pentateuco, que não são poucos.
Para pôr as coisas em termos claros, é inegavelmente revolucionário pensar que os fatos narrados no Pentateuco podem ser verdades históricas, pois historiadores e arqueólogos contemporâneos, em grande número, deixaram de crer nisso, há muito tempo. E o que possibilita a dúvida sobre a posição assumida por eles é a fragilidade do fundamento em que se estriba, já que a evidência externa ao Pentateuco é lacunosa demais para elidi-lo, nos pontos em que o contraria. Procurarei demonstrar por quê, na série de textos que hoje se inicia.
Devo esclarecer, a princípio, que a história a que farei referência, ao discutir o problema assim colocado, não é um feixe de acontecimentos narrados literalmente, no Pentateuco. Não é uma História Literal, mas Literária, uma História preservada e reestruturada continuamente sob forma de textos, que acabaram por se confundir com os fatos que narram.
Esses textos são, é claro, os do Pentateuco, mas também os das suas fontes, pois elas existiram e foram muito numerosas. Parto da pressuposição de que essas fontes realizaram o trabalho básico de preservar e reestruturar os fatos que nos transmitiram. Mas esse não é o único pressuposto que adoto, ao refletir sobre o Êxodo e a formação de Israel no deserto. Considero que a veracidade básica do Pentateuco depende, ainda e de maneira nuclear, da existência histórica de um líder como o Moisés bíblico. Sem esse líder, os dados do Pentateuco desconectam-se uns dos outros e perdem factibilidade, do ponto de vista da História Comparada. Enfim, sem Moisés, não é sequer possível constituir uma hipótese sobre a História do Pentateuco.
A existência real de Moisés é, porém, um problema conexo à inserção de sua vida em determinado recorte do tempo histórico. Claro que, se procurarmos um Moisés real no século XXI, não o encontraremos. O mesmo é verdade se o procurarmos numa época muito recuada de tempo, na qual, por motivos claros, ele não possa ter existido. De sorte que o Moisés histórico tem, antes de tudo, de ser associado a um período em que as informações sobre ele façam amplo sentido.
Infelizmente, um consenso duvidoso formou-se não só em torno da época de Moisés, mas de todo acontecimento bíblico anterior aos Juízes. O problema coloca-se de maneira simples: na cronologia interna da Bíblia, cerca de 973 anos se passam entre o Êxodo e o Cativeiro Babilônico (605 a. C.). Desse período, 433 anos correspondem às conquistas das Tribos por povos locais e sua libertação pelos juízes. Porém, dos 433 anos dos juízes, os historiadores só costumam reconhecer 100 ou 150. Sobrepõem os outros ou consideram-nos simples invenção literária. Claro que esse entendimento leva à localização de todo e qualquer evento anterior aos juízes cerca de 350 anos depois da época em que a Bíblia o situa. O Êxodo e a formação de Israel, no deserto, não são absolutamente exceções. Eles costumam ser arrastados para o século XIII a. C. pelo expurgo parcial do tempo dos juízes.
Pode-se perguntar se essa mutilação cronológica tem bom fundamento histórico. Se olharmos atentamente os dados bíblicos e a História Paralela, veremos que nada disso não está absolutamente claro. Por exemplo, por volta de 1.200 a. C., os filisteus avançaram do sul da Europa para a Ásia Menor e o Oriente Médio. Juízes nos informa que alguns integrantes dessa enorme onda invasora e os amonitas oprimiram os filhos de Israel que habitavam na Transjordânia (Jz 10:8). Enquanto a opressão ocorria, o juiz Jefté dirigiu-se ao rei de Amom. Na mensagem que transmitiu a esse príncipe opressor, Jefté referiu-se a um dado cronológico fundamental. Afirmou que Israel havia habitado 300 anos na Transjordânia, sem que os amonitas tivessem recuperado as cidades daquela região (Jz 11:26). Se somarmos as parcelas de tempo entre o juizado de Jair, que foi o último antes da opressão amonita-filisteia,  até a opressão de Israel por Cusã-Risataim (Jz 3:8), que inaugura o Período dos Juízes, chegaremos a  301 anos.
Não há razões internas ou externas à Bíblia para desconsiderarmos esses 300 anos. Se o fizermos, a invasão filisteia tornar-se-á contemporânea à conquista de Canaã pelos israelitas. Dificilmente, há lugar, na História da Palestina, para essas invasões simultâneas. Supô-las seria como admitir que dois exércitos rivais pudessem invadir ao mesmo tempo um mesmo território. De sorte que não há motivo para admitirmos o expurgo dos 300 anos. E, se recuarmos 973 anos da conquista de Jerusalém por Nabucodonosor, em 605 a. C., chegaremos a 1.578 a. C. Essa é a época do Êxodo, de acordo com a evidência interna da Bíblia.
O consenso arqueológico vigente, por outro lado, costuma situar o Êxodo no século XIII a. C., não evidentemente com base na cronologia  bíblica, mas em evidências científicas recentes. No entanto, esse consenso desconsidera um outro corpo de conhecimentos a respeito do Êxodo, a saber, a descrição desse acontecimento que Flávio Josefo legou-nos na sua obra. Josefo reporta-se ao historiador egípcio Maneton, o único a registrar a conquista do Egito pelos hicsos e sua posterior expulsão. Como o historiador judeu identificou claramente os israelitas do Êxodo com os hicsos, a associação do seu relato ao de Maneton reveste-se de considerável autoridade no que tange àquele grande acontecimento.
Reitere-se que Josefo é absolutamente claro, ao identificar os israelitas com os hicsos. De acordo com ele, Maneton, "depois de ter protestado que tiraria dos livros santos a história do Egito, que ele queria escrever, diz que nossos antepassados, tendo ido para lá em grande número, se haviam tornado senhores de tudo [exatamente como sucedeu com os hicsos], mas que algum tempo depois foram expulsos de lá e se estabeleceram na Judeia".
Sabemos que os hicsos foram semitas, como os hebreus. E que, também como os filhos de Jacó, eles vieram da Palestina, que dominaram na mesma época em que oprimiram o Egito. É  o que o arqueólogo John Arthur Thompson, da Universidade de Cambridge, esclarece: “A Palestina era organizada de maneira feudal nesse período e consistia de vários pequenos estados, que prestavam lealdade ao rei hicso” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. 2ª ed., São Paulo: Vida Cristã, 2007. p. 61).
O  testemunho de Josefo é, portanto, uma primeira evidência externa à Bíblia de que o Êxodo se deu, no fim do Período Hicso. Há outras evidências do mesmo fato.  Uma delas é a ausência de relatos diretos da saída dos hebreus, nos anais egípcios. Sabemos que, ao contrário de todos os períodos anteriores e posteriores, em que os nomes e atos dos governantes egípcios foram cuidadosamente registrados, durante o domínio dos hicsos (1.730-1.570 a. C.), a História Egípcia mergulha em profundo silêncio. De acordo com Werner Keller: “Nenhuma nação do antigo Oriente nos transmitiu a própria história com tanta fidelidade como o Egito. Até 3.000 anos a. C., podemos acompanhar quase sem uma falha os nomes dos faraós, conhecemos a sucessão de dinastias do Antigo, do Médio e do Novo Império. Nenhum outro povo traçou com tanta precisão os acontecimentos importantes [...] porém as informações quase ininterruptas sobre séculos remotos cessam bruscamente pelo ano 1730 a. C. A partir de então envolve o Egito a mais profunda escuridão. Só em 1580 a. C. ressurgem testemunhos” (Idem. pp. 88-89).
O arqueólogo John Arthur Thompson, da Universidade de Cambridge, explicou o silêncio a respeito dos hicsos da seguinte maneira: “Sabemos hoje que os reis da XVII Dinastia se esforçaram ao máximo para apagar todos os traços dos governantes hicsos [pelo fato de terem sido estrangeiros que conquistaram o Egito]. Os nomes deles foram eliminados dos monumentos e todo registro escrito foi destruído” (THOMPSON, John A. Ob. cit. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 61).
A suspensão dos registros históricos, durante o Período Hicso, permite entender por que a saída tumultuada dos israelitas não foi expressamente descrita, nos anais egípcios. Embora o Egito tenha mantido o registro mais completo de que se tem notícia, na Antiguidade remota, o período em que esteve sob domínio dos hicsos é marcado por uma ampla lacuna de dados.
Não há igual lacuna, no período da XIX Dinastia. Menos ainda no reinado de Ramsés II, em que o Êxodo costuma ser localizado. No livro O Egito no tempo de Ramsés, Pierre Montet resume o que se conhece dessa época áurea: "Nenhuma porção desse vasto império foi negligenciada por Ramsés I e seus sucessores. Da Núbia a Pi-Ramsés e a Pitum quantas cidades foram fundadas, quantos edifícios foram ampliados, restaurados e até mesmo erigidos! Esses monumentos, essas tumbas dos reis e das rainhas, principalmente os dos contemporâneos, fornecem uma abundante documentação. Para completá-la, dispomos de numerosos papiros que datam dos séculos XIII e XII, romances, obras de polêmica, coletâneas de cartas, listas de obras e de operários, contratos, atas" (MONTET, Pierre. O Egito no tempo de Ramsés - 1.300 a. C. a 1.100 a. C. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp. 15-16).
Em contraste com a ausência de informações sobre o Período Hicso, há abundância de documentos sobre o reinado de Ramsés. Montet esclarece por quê: "Faraó é filho de um deus. O que fez realizou-se com a permissão desse deus e geralmente com a sua ajuda. Relembrar os feitos heroicos de seu reinado era portanto um meio de honrar os deuses" (idem. p. 13). Era dever dos Faraós honrar os deuses, o que se fazia pela preservação da narrativa dos seus feitos como rei. Portanto, nada do que Ramsés realizou, em sua época, foi omitido nos documentos a que Montet alude. Devemos, pois, perguntar por que a utilização do trabalho hebreu na construção de cidades, templos e outras obras não é neles mencionada? Por que as conversações de Faraó com Moisés e Arão tampouco aparecem? E a saída dos israelitas? E a sua perseguição pelo exército egípcio? Por que ao menos a versão egípcia desses acontecimentos não se encontra no vasto acervo de documentos disponível? Vê-se que a lacuna de informações, tão justificada para o Período Hicso, torna-se injustificável no de Ramsés, o que afasta a localização do Êxodo no século XIII, deixando-nos com a só alternativa do fim do Período Hicso.
Josefo afirmou que os israelitas e os hicsos não foram só parentes, mas contingentes distintos de um mesmo povo. Ele baseou essa teoria no historiador egípcio Maneton, que vimos ter sido o único a fornecer informações sobre a expulsão dos hicsos. Mas Josefo não depende inteiramente de Maneton. Pelo contrário, ele ao associar os hebreus com os hicsos, ele parece seguir tradições judaicas imemoriais. Um eco, a meu ver muito claro, dessas tradições pode ser encontrado na passagem em que o profeta Ezequiel trata Israel e Judá como duas prostitutas: " Filho do homem, houve duas mulheres, filhas de uma só mãe. Estas se prostituíram no Egito; prostituíram-se na sua mocidade; ali foram apertados os seus peitos e apalpados os seios da sua virgindade.  Naquela terra os seus peitos foram acariciados e os seus seios da sua virgindade. Os seus nomes eram: Oolá, a mais velha, e Oolibá, sua irmã; e foram minhas e tiveram filhos e filhas; e, quanto ao seu nome, Samaria é Oolá, e Jerusalém é Oolibá" (Ez 23:3-5).
Embora a linguagem do texto seja figurada, a lição que ele transmite não o é. O profeta afirma claramente que Oolá é o Reino do Norte, Israel, e Oolibá, o Reino do Sul, isto é, Judá. Esses povos não só já existiam (embora não fossem politicamente independentes), na época do Êxodo, como se tinham prostituído no Egito. Ainda que admitíssemos que o Grupo de Moisés se envolveu na adoração de outros deuses, antes de se retirar do Egito, não é possível pensar que eles tenham sido retratados, pelas prostitutas Oolá e Oolibá, posto que a geração do Êxodo pereceu no deserto, com exceção de Josué e Calebe.
Quem originou Israel e Judá, portanto, não foi o Grupo de Moisés, mas a chamada segunda geração, que nasceu, no deserto, ou foi acrescida ao contingente liderado por Moisés, quando ele ali peregrinava. Porém, sob o véu da figura de linguagem, o texto afirma que as duas nações de hebreus originaram-se dos povos prostituídos (idólatras) Oolá e Oolibá, que saíram do Egito. Essa representação coaduna-se, perfeitamente, à teoria de que os hicsos foram expulsos do Egito e juntaram-se ao Grupo de Moisés no deserto.
Ezequiel era sacerdote. Como ele não faz da prostituição no Egito o cerne da sua pregação, mas a cita de passagem, como se fosse um dado aceito por muitos, temos de reconhecer, no seu oráculo sobre Oolá e Oolibá, um eco da antiga tradição judaica, da qual a teoria de Josefo descende.

É verdade que a teoria de Josefo padece de imprecisões naturais para a época em que foi elaborada, mas elas não lhe retiram o valor de verdade. Josefo baseia-se no fato de que, em tempos tão recuados, o parentesco e a proveniência comum de hebreus e hicsos de Canaã os tornavam um só povo, para todos os fins práticos, o que não faz pouco sentido.
No entanto, o grupo que se alçou ao poder, no Delta do Nilo, naquela época, foi o dos hicsos, não o dos israelitas. Nessas condições, não é improvável que o grupo hicso tenha oprimido os descendentes de Jacó, obrigando-os a construir as cidades-celeiros e a realizar outras obras. Josefo chega a descrever essas obras como a escavação "de vários diques para deter as águas do Nilo e diversos canais para levá-las. Faziam-nos trabalhar na construção de muralhas para cercar as cidades, levantar pirâmides de altura prodigiosa e mesmo os obrigavam a aprender com dificuldade artes e diversos ofícios”.
 Porém, à identificação dos israelitas com os hicsos podem-se opor argumentos como a declaração de Faraó de que “o povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte do que nós” (Êx 1:9). Nesse verso, o rei do Egito diferencia os israelitas do seu próprio povo. Porém, já expliquei que a hipótese de Josefo não implica a identificação total dos dois grupos. Hicsos e israelitas foram levas distintas de imigrantes do mesmo povo. Faraó referiu-se a essa distinção, para justificar a opressão dos hebreus.
Interpretado corretamente, Êxodo 1:19 chega a ser favorável à teoria da localização no Período Hicso, pois os israelitas, como estrangeiros, dificilmente poderiam ser mais numerosos do que os egípcios, mas poderiam superar os hicsos em número, pois haviam chegado ao Egito antes deles, o que explica o temor do "rei do Egito" de que os israelitas viessem a tornar-se mais fortes que eles.
Mas, se insistirmos, poderemos imaginar outros argumentos contrários à teoria de Josefo. Por exemplo, quando saíram do Egito, os israelitas não cruzaram a “terra dos filisteus”, para não “ver a guerra”. Nos exatos termos do Livro de Êxodo, “Tendo Faraó deixado ir o povo, Deus não os levou pelo caminho da terra dos filisteus, posto que mais perto, pois disse: Para que porventura o povo não se arrependa, vendo a guerra, e tornem ao Egito” (Êx 13:17).
Sabemos que os filisteus só se fixaram na região costeira da Palestina, em 1.200 ou pouco depois. Por isso, a referência à “terra dos filisteus”, em Êxodo 13:17, é um anacronismo típico da literatura da época. Na realidade, a intenção do seu autor foi afirmar que os israelitas não passaram pela terra que viria a ser dos filisteus. E, pelo mesmo motivo, a guerra a que o verso se refere não envolvia os filisteus. Era antes a “movimentação militar” dos hicsos, na costa do Mediterrâneo, nos moldes que a Bíblia de Jerusalém esclarece: “Esse era o caminho normal, paralelo à costa, passando por Silé (El-Kantara atual), pontilhado de poços e policiado. O grupo que fugiu certamente não o tomou (Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. Êx 13:17, nota 3. p. 120). A ambientação do Êxodo no século  XVI exige que o policiamento mencionado na nota seja o exercido pelos hicsos, que dominavam o local naquela época.
No entanto, o argumento talvez mais forte, em prol da localização do Êxodo no fim do Período Hicso, é o fato de o Grupo de Moisés, que saiu do Egito, ser geralmente descrito como pequeno, pois teve sérias dificuldades para vencer Amaleque, uma tribo pouco numerosa, ao passo que os censos do Livro de Números apontam cerca de 600 mil israelitas aptos para a guerra, pouco tempo depois. A melhor explicação para a passagem do pequeno grupo mosaico à nação de Números é a proximidade entre o Êxodo e a expulsão dos hicsos. Isso porque, se os israelitas fugiram, e os hicsos foram expulsos quase ao mesmo tempo do Egito, os dois contingentes podem ter-se gradativamente reunido no deserto e formado uma só nação. Nada disso destoa do tratamento que Josefo dispensa aos dois povos. Explica também por que, embora o Grupo de Moisés fosse militarmente fraco, Israel veio a ser uma nação poderosa após a fusão com os guerreiros hicsos.

RELATOS DO ÊXODO

Um fato sobre a ida e a escravização dos filhos de Israel, no Egito, está incontestavelmente estabelecido: que muitos estrangeiros se mudaram para aquele país, na época dos patriarcas, devido às dádivas com que o Nilo frequentemente o coroava. Por isso também, os governantes do Egito chegaram a reservar um lugar específico para abrigar os estrangeiros que para lá afluíam: o Delta do Nilo.
Nesse local, devemos supor que os israelitas viveram e é, de fato, ali que a Bíblia os localiza, uma vez que a Terra de Gósen, mencionada como morada dos filhos de Jacó, ficava no Delta. Ali também, Moisés emergiu, ao regressar de Midiã. De Gósen, a Bíblia relata frequentes deslocamentos dele e de Arão até a Corte de Faraó, a fim de pedir-lhe que libertasse os israelitas.
Essa cena, no início do Livro de Êxodo, faz supor que a Corte egípcia estava na época estabelecida no Delta, pois não haveria condições de Moisés ir com tanta frequência de Gósen à presença de Faraó, se ela estivesse longe dali. Sabemos, porém, que, a Corte de Faraó esteve estabelecida no Delta apenas em duas épocas: durante o Período Hicso e no longo reinado de Ramsés II, da XIX Dinastia. Em todas as outras etapas da História do Egito, a Corte dos Faraós radicou em locais distantes do Delta, o que impede a cena dos deslocamentos constantes de Gósen até ela e vice-versa que observamos em Êxodo.
Isso nos deixa com os únicos dois períodos citados como épocas em que o Êxodo pode ter ocorrido. E não é só. Outro conjunto de dados reforça essa mesma, dupla possibilidade: só os séculos XVI e XIII a. C. fornecem vestígios da destruição das cidades de Canaã localizada pelo Livro de Josué pouco depois do Êxodo. Em todos os outros séculos, não há idênticos sinais disponíveis. Portanto, também sob esse ângulo, somos levados a localizar o Êxodo em uma das duas épocas.
Claro que a existência de duas localizações quase igualmente possíveis para o Êxodo não justifica a do século XIII ter-se tornado tão mais usual do que a outra. Por que a preferência pelo período mais recente, em prejuízo do mais remoto? A resposta parece associada à atitude dos estudiosos para com os dados cronológicos do Antigo Testamento. O Pentateuco e os livros históricos fornecem-nos dois conjuntos de localizações cronológicas dos acontecimentos que narram. Chamarei cronologia remota o primeiro conjunto. O outro é a cronologia real, formada com dados das Cortes israelitas do Norte (Samaria) e do Sul (Jerusalém), que está contida nos livros de Reis e de Crônicas.
Os historiadores não duvidam da precisão desse segundo conjunto de dados, já que, nas Cortes do Antigo Oriente, existiam funcionários responsáveis pelo registro dos principais acontecimentos, ao contrário do que ocorria fora delas. Não foi diferente no caso dos israelitas, cuja primeira Corte foi organizada por Davi. Em torno da de Corte Davi e Salomão, é que o hebraico surgiu como idioma escrito, assim como outras línguas o fizeram ao redor de outras Cortes. É bastante crível, portanto, que os eventos da cronologia real das Escrituras tenham sido compostos, com certa precisão, nesse idioma.
Todavia, como a condição consistente numa Corte e num idioma escrito estava ausente antes, a precisão da cronologia de Reis e Crônicas aparentemente não se reproduz na cronologia remota. como a condição consistente numa Corte e num idioma escrito estava ausente antes, a precisão da cronologia de Reis e Crônicas aparentemente não se reproduz na cronologia remota. Pelo contrário, nesta, a maior parte das parcelas de tempo é constituída por números redondos como 40. A título de exemplo, a peregrinação de Israel no deserto (Nm 14:33-34) e os juizados de Otniel (Jz 3:11), Eúde, Sangar (Jz 3:30), Baraque (Jz 5:32) e Gideão (Jz 8:28) foi atribuída essa duração. O mesmo acontece com os reinados iniciais de Saul (At 13:21), Davi (1 Rs 2:11; 1 Cr 3:4) e Salomão (2 Cr 29:30), que também duraram 40 anos. Sem mencionar outros números redondos, como os 140 anos entre os nascimentos de Abraão e Isaque (Gn 11:26,32; 12:4) e os 100 entre Isaque e Jacó (Gn 21:5).
Os historiadores costumam pensar que esses números redondos são todos aproximados ou têm função meramente mística. Em qualquer caso, eles não refletem a real duração dos juizados e reinados a eles associados. Por isso, os especialistas concluem que as épocas e o conteúdo dos fatos remotos da Pré-História e da História de Israel foram estabelecidos arbitrariamente e que a História confiável, na Bíblia, é, portanto, a que cobre o período do reino dividido. A outra História, anterior, apresenta características fabulosas. Esta, a situação dos debates sobre a História dos israelitas e sua peculiar cronologia.
A conclusão dos historiadores que acabo de mencionar contém um furo, uma falha que pode ser demonstrada da seguinte maneira maneira. É possível estabelecer pontos fixos, acontecimentos datados com precisão, no corpo da História remota das Escrituras, tanto por meio de dados bíblicos como por informações paralelas. O Dilúvio de Noé é um desses possíveis pontos. Sua época, de acordo com a Bíblia, é aproximadamente 2.635 a. C. Vestígios de inundações, no local onde o Dilúvio ocorreu, foram datados do fim do terceiro milênio a. C. São, pois, bons exemplos da confirmação de dados bíblicos por extrabíblicos.
Mas estão longe de serem os únicos. O fundador da Antiga Assíria (Sargão) é amplamente conhecido de inscrições e testemunhos paralelos. É possível o identificarmos com Ninrode (Gn 10:10-11) ou um de seus descendentes. Esse é, portanto, um segundo ponto firme, estabelecido por informações bíblicas e extrabíblicas, na História remota. Podemos ainda mencionar os conquistadores das Tribos, no Período dos Juízes, como Cusã-Risataim, Eglom, Jabim e outros cujos feitos, embora não apareçam identicamente em inscrições estrangeiras, se coadunam com o que conhecemos da Palestina da época. A ocupação da Transjordânia pelos filisteus (Jz 13:1) se destaca, entre esses acontecimentos do Período de Juízes consistentes com as crônicas de outros povos. De sorte que não poucos acontecimentos podem ser confirmados por informações bíblicas e extrabíblicas, entre o Dilúvio e o final da História remota.
A questão, portanto, é: se a História do Pentateuco, de Josué e Juízes (chamada História remota) foi composta mediante a utilização de números redondos, como acontecimentos a exemplo dos que acabo de apontar puderam ser datados corretamente? Números redondos levam ao estabelecimento de épocas arbitrárias. Como algumas podem não o ser? Como a distância entre o Dilúvio (2.635 a. C.) e a ocupação da Transjordânia pelos filisteus (1.191 a. C.), por exemplo, pode estar correta, se foi estabelecida por comparação com um sem-número de datas redondas?
Sejamos, se possível, ainda mais claros: se A, B, C, D até J são acontecimentos da História remota, como as distâncias entre quaisquer deles são arbitrárias, e a distância entre D e E não o é? Como pode ser assim, se a fixação das épocas de todos os acontecimentos se deu por um só e mesmo método (comparação de números redondos)?
Temos, pois, de reconhecer que a conclusão de que as datas da História remota são incorretas é contraditória, pois algumas dentre elas, manifestamente, não o são. E, se não o são, como as outras podem ser, quando todas foram estabelecidas pelo mesmo método?
Não podemos esquecer-nos ainda de que muitas datas da História remota não são redondas. Consideremos a genealogia de Gênesis 5: ela possui nove números e apenas dois redondos. Não escapa, portanto, às características de uma distribuição aleatória de números. Menos ainda exige que as suas datas se tenham formado, na ausência de informações específicas. A situação da genealogia de Gênesis 11 não é muito distinta. Também nela, os números redondos parecem indicar suplementação de informações disponíveis, não inexistência de informações.
E, se as informações que levaram ao estabelecimento dos números não redondos existiram, devemos perguntar se eram confiáveis. É provável que sim, pois vimos que nos conduzem a muitas localizações corretas de acontecimentos. Se as localizações estão certas, por que as datas ou épocas em que se baseiam estariam erradas? Simplesmente, não parece provável.
Nada indica que os números não redondos das genealogias de Gênesis 5 e 11 não tenham sido produzidos em Cortes, que já conheciam a escrita. As gerações dessas listas são muito antigas, mas não pré-históricas. Viveram num dos lugares mais desenvolvidos do mundo antigo: a Mesopotâmia. Listas com os seus nomes podem, portanto, ter sido escritas bastante cedo. Penso que foi o que aconteceu.
Os judeus entraram em contato com essas listas, onde elas foram compostas, isto é, na Mesopotâmia, durante o Exílio Babilônico. Usaram-nas para compor Gênesis 5 e 11, que, acrescidos às informações cronológicas de Josué e Juízes, vieram a formar o arcabouço da História remota do povo hebreu, comumente chamada Deuteronomista.
Nada disso nos aconselha a considerar não fidedignas as informações sobre as épocas da História remota. E, se elas são fidedignas, exigem localizarmos o Êxodo no século XVI. não no XIII a. C. Quando lemos, portanto, Moisés e Arão irem a Faraó e retornarem às residências hebreias, irem de novo e de novo retornarem, sabemo-nos diante de uma cena somente possível no Período Hicso. Exatamente como Josefo afirmou, com base no único historiador que escreveu sobre aquele período (Maneton).
Maneton diz-nos, inclusive, que os hicsos reconstruíram Avaris, que é Ramsés, e a fizeram sua capital em pleno Delta, ao que tudo indica no século XVII a. C. Moisés e Arão nasceram, por essa época. Exatamente como Êxodo informa.
O palácio em que Moisés se criou deve ter sido, portanto, o do soberano hicso. A filha de Faraó, sua ama na primeira idade, também foi hicsa. E o próprio Moisés, com o tempo, absorveu a cultura desse povo, não a cultura egípcia. Os hicsos, provavelmente, falavam semítico ocidental. Porém, não podem ter utilizado uma escrita baseada em alfabeto, já que não havia alfabeto no Egito, no século XVII a. C. Embora Moisés deva ter aprendido a escrita baseada em hieróglifos dos egípcios, é duvidoso que ele tenha escrito as palavras sagradas do seu Deus no idioma dos inimigos egípcios.
Como as escritas baseada em alfabetos ainda não haviam sido inventadas, é mais provável que Moisés tenha escrito seus textos legais em cuneiforme. A favor dessa alternativa está o fato de os Dez Mandamentos terem sido escritos em tábuas de pedra. Henri Cazelles escreveu que "As fontes cuneiformes (Mesopotâmia, Síria, Ásia Menor) são escritas com ferramentas, fazendo-se sulcos com ferramentas sobre uma tabuinha de argila. Mas costumavam-se gravar sinais sobre a pedra dura [...] A cultura cuneiforme dominou a Síria-Palestina durante mais da metade do segundo milênio a. C." (CAZELLES, Henri. História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 35).
Os sinais cuneiformes gravados “sobre pedra dura”, a que Cazelles se refere, podem ter constituído a técnica, segundo a qual o Decálogo foi escrito. Não podemos perder de vista, aliás, que o mesmo capítulo de Êxodo afirma que ele foi escrito por Deus e por Moisés (Êx 34:1,28).

Na verdade, o fato de o Decálogo ter sido escrito em pedra é mais uma confirmação da localização do Êxodo no décimo-sexto século, uma vez que o cuneiforme era a única escrita disponível na Palestina, nesse período. A situação da fuga dos israelitas no século XIII diminui a harmonia entre Êxodo e as técnicas de redação atestadas.

De qualquer forma, a esse livro misterioso Moisés deve ter acrescido dois outros textos principais: um com episódios do livro de Êxodo que conhecemos e outro com o famoso discurso de Deuteronômio.
Josué 8:32,34-35 confirmam a autoria mosaica de um escrito antiquíssimo, ao afirmar que o seu sucessor Josué escreveu, no Monte Ebal, "uma cópia da lei de Moisés, que já este havia escrito diante dos filhos de Israel [...] Depois leu todas as plavras da lei, a bênção e a maldição, segundo tudo o que está escrito no livro da lei. Palavra nenhuma houve, de tudo o que Moisés ordenara, que Josué não lesse para toda a congregação de Israel”. Se Josué leu toda a lei para o povo, num tempo em que o analfabetismo e o desinteresse por textos eram elevadíssimos, essa lei devia ser muito mais curta que o Pentateuco. Na verdade, não devia ter mais que algumas páginas de extensão. É possível que esse livro tenha sido a versão original do discurso de Moisés em Deuteronômio.
Os fatos indicam, em suma, que a história do Êxodo não se originou de uma única fonte, mas de várias, que foram reunidas e modificadas, até se transformarem no texto que conhecemos. O Êxodo nunca foi um relato, mas vários. Porém, há indícios da participação decisiva de um autor situado em tempo bastante remoto, que reuniu os primeiros materiais e redigiu a primeira versão dos acontecimentos. As gerações identificaram esse autor ancestral com o próprio Moisés.
Todas essas cores, porém, essas linhas e informações, concorrem e se encaixam, somente, na grande tela do reino hicso estabelecido no Egito. Não estamos no Império de Ramsés, que reedificou Avaris muito mais tarde e a chamou pelo próprio nome. Estamos no crepúsculo do poderio hicso sobre o Delta, na aurora de um dos povos com passado mais insigne que já existiram.
Sobre a tez envelhecida de Moisés, o sol do vale do Nilo projetava seus raios, que na montanha, pouco mais tarde, a fariam rejuvenescer e brilhar em glória.

O GRUPO E O EXÉRCITO DE MOISÉS

À parte os milagres e os grandes prodígios, o dado que causa maior espanto ao historiador, na narrativa do Êxodo, é a súbita formação de Israel, com uma população de 600 mil homens com idade superior a 20 anos (Nm 1:44-46; 2:32; 26:51). A informação é considerada lendária, pois não parece possível que um grupo de escravos sequer mencionado nos anais do Egito, num curto espaço de tempo, possa ter alcançado proporções tão amplas, sem contar as mulheres e as crianças que o integravam.
Nem mesmo em sonho, a vasta sequência de desertos da Arábia e da Península do Sinai, com seu território tórrido, possuía a capacidade de alimentar contingente tão espetacular. Ainda hoje, após o insondável desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos, não se encontram, nessas regiões desérticas, mais do que alguns milhares de habitantes. Portanto, a população de israelitas que saiu do Egito nem de longe deve ter-se aproximado das cifras apontadas em Números.
Claro que Deus pode operar milhares, mas não encontramos um único, em toda a Bíblia, que coloque uma nação inteira, por tempo tão longo, em contradição com as condições normais de existência de todos os outros povos. Isso não deve ter ocorrido, portanto, durante a fuga de Israel do Egito e a sua permanência no deserto.
 Informações bíblicas sugerem que o contrário teve lugar, ou seja, que o número de israelitas que saiu do Egito era de, no máximo, alguns milhares. Êxodo, por exemplo, trata os israelitas radicados no Egito, antes do Êxodo, como uma colônia de escravos oprimidos. O contraste entre essa descrição e o poderoso exército de 600 mil homens com alto nível de organização, que Números retrata, é praticamente insuperável. Sobretudo se considerarmos que o exército formou-se num deserto inóspito.
Não podemos esquecer que apenas 70 descendentes de Jacó desceram ao Egito. Sabemos que eles se multiplicaram grandemente na Terra de Gósen, mas é inconcebível que o tenham feito a ponto de atingir uma população de dois milhões de pessoas em 430 anos. Essa é a população sugerida pelos censos de Números. Porém, quando lemos sobre a equilibrada batalha que Israel travou com os amalequitas, logo depois do Êxodo (Êx 17:11), percebemos que a realidade deve ter sido outra. Amaleque era uma pequena tribo que habitava em Canaã (Nm 13: 29; 14:43). Os amalequitas que enfrentaram os filhos de Israel, no deserto, não constituíam a totalidade da tribo. Eram só um grupo de integrantes dela. Mesmo assim, Israel teve grandes dificuldades para derrotá-lo, o que indica que o seu porte e organização militar não eram muito notáveis.
Por razões como essas, ao pintarmos o retrato do Moisés bíblico, um desafio que se coloca é o de explicar o contraste entre as informações que apresentam Israel como um modesto grupo de fugitivos e as que o retratam com 600 mil homens de guerra. Para superar o desafio, é importante recordarmos que, na época do Êxodo, havia dois principais contingentes de israelitas, no Oriente Médio. O primeiro era constituído pelos descendentes de Jacó radicados no Egito. O outro era integrado pelos descendentes de Abraão, Isaque e Jacó que não desceram com o último para o Egito. Os próprios hicsos podem ter feito parte desse contingente palestino de hebreus.
Moisés não ignorava a existência dos dois contingentes. É possível que ele tenha envidado esforços para atrair hebreus de Canaã, durante a peregrinação. Porém, nada justifica que a população implícita em Números possa ter sido alcançada, por esse meio.
A dificuldade relacionada à real população israelita é, portanto, considerável. Não é possível resolvê-la, nos moldes das interpretações tradicionais do Antigo Testamento. Há, porém, uma maneira de explicar os censos de Números, sem incidir na população exorbitante mencionada nesse livro. John Thompson mostrou que “o termo hebraico elef [traduzido mil, nos capítulos sobre os censos] pode ter vários significados – clã, um subgrupo de uma tribo, um grupo militar” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. 2ª ed., São Paulo: Vida Cristã, 2007. p. 86). Mil é somente uma das traduções possíveis do termo.
Quando Deus ordenou que Moisés levantasse o censo dos filhos de Israel, determinou que eles fossem contados nominalmente, cabeça por cabeça. Nas exatas palavras de Números: “Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça” (Nm 1:2). O que observamos no texto, porém, é que, a essa ordem, seguiu-se o levantamento da série de números redondos de Números 1:20-46. De cada tribo apurou-se existirem um número de milhares e outro de centenas de homens. As centenas são sempre expressas por cifras redondas: cinco na Tribo de Rúben, totalizando 500 israelitas, três na de Simeão (mais 300) e assim por diante.
Além de redondas, as centenas que exprimem o número de homens de cada tribo não são seguidas de dezenas e unidades. Isso faz com que cada número, estranhamente, termine nas próprias centenas. Nem uma vez o número de israelitas de uma tribo termina em 190, 180, 170, 30, 20, 10, 7, 6 ou qualquer outro número menor que 200. Somos levados a concluir que esses números não cumprem a determinação de Deus para levantar o censo nominalmente e cabeça por cabeça, pois, se isso tivesse ocorrido, teríamos mais números terminados em dezenas e unidades. Alguma informação deve, pois, faltar para termos acesso ao significado dos censos levantados no deserto.
Não é, de fato, possível que uma distribuição aleatória de números como os que quantificam as populações do mundo resulte em cifras redondas. Assim como não é possível que, das 26 populações de tribos e da nação de Israel medidas nos censos, todas tivessem números redondos de integrantes. E que esses números terminassem quase sempre em centenas (400, 500, 700 etc.), nunca dezenas ou unidades. Portanto, o que os milhares e as centenas dos censos exprimem não são populações, mas outra coisa.
Só alcançamos compreensão do que os censos realmente mediram, quando consideramos a sua finalidade de contar o número dos homens “da idade de vinte anos para cima [...] capazes de sair à guerra em Israel [...] segundo os seus exércitos” (Êx 1:3). Essas palavras tornam evidente que o objetivo dos censos não foi demográfico, não foi determinar o tamanho da população israelita, mas constituir exércitos. Os censos foram arrolamentos militares, atos de conscrição em massa e de organização de um vasto aparato de guerra. Por isso, as mulheres e as crianças não foram contadas.
Sob essa concepção alternativa, as cifras que encontramos antes da palavra elef, em cada número dos censos, não indicam quantos milhares de homens, mas quantos destacamentos militares havia em cada tribo de Israel. Por exemplo, em Rúben, foram contados 46 mil e quinhentos homens, o que significa que, nessa tribo, havia 46 destacamentos (milhares ou elefs), dos quais apenas 500 homens permaneciam fora. A conjunção e, que liga os 46 elefs aos 500 homens indica soma ou acréscimo. Portanto, que os 500 existiram ao lado dos 46 destacamentos.
Essa interpretação dos elefs de Números é melhor elucidada com ajuda de outras passagens das Escrituras. No 1º Livro de Crônicas 12:29-30, lemos: "dos filhos de Benjamim, irmãos de Saul, vieram três mil; porque até então havia ainda muitos deles que eram pela casa de Saul; dos filhos de Efraim, vinte mil e oitocentos homens valentes e de renome em casa de seus pais". O texto continua, até o verso 37, mencionando os elefs (milhares) das outras tribos. Porém, à diferença do Livro de Números, em Crônicas, somente num caso, os milhares são seguidos por outra cifra. Refiro-me aos "vinte e oito mil e seiscentos" guerreiros de Dã (1 Cr 12:35). 
Diferentemente de Números, portanto, em Crônicas, não temos centenas ao lado de milhares, a não ser no caso isolado de Dã. Pelo contrário, temos apenas milhares. Que isso indica? Indica uma reorganização militar. Indica que, após o Êxodo, os israelitas dividiram seu exército em grupos de milhares e de centenas. E que, na época de Davi, essa organização fora alterada apenas para grupos de milhares.
Miqueias 5:2 mostra que a nova organização perdurou. Nesse versículo, os “grupos de milhares” de Judá são os mesmos destacamentos militares (elefs) mencionados nos censos e em Crônicas. Miqueias afirma que Belém era uma aldeia pequena demais para constituir um único desses destacamentos. Disso depreendemos que a organização militar de Crônicas foi preservada, por muito tempo, após a entrada de Israel em Canaã.
Nada nos autoriza a supor que os “grupos de milhares” de Miqueias eram, invariavelmente, constituídos por mil homens. Talvez o número mil nunca ocorresse. Não havia necessidade alguma de manter vigilância para que o destacamento permanecesse com mil integrantes, se podia funcionar perfeitamente com 500, 700, 990 ou mais homens de guerra. O mesmo se conclui do período da peregrinação no deserto, ao qual o Livro de Números nos remete. Durante aquele período, não havia necessidade alguma de os elefs terem um efetivo de mil integrantes. Portanto, não devem ter mantido esse número de homens, mas qualquer outro.
Pode-se perguntar por que cada tribo possuía alguns elefs “e” algumas centenas de homens? Por que aos destacamentos somavam-se homens não incluídos neles? Ou, para exemplificarmos com o caso de Rúben, por que os 500 homens que aparecem ao final do resultado do censo da tribo não pertenciam aos 46 elefs?
Há várias explicações possíveis para isso. Uma delas é que a cada tribo foram atribuídas duas obrigações militares: a de manterem grupos maiores (elefs) e menores (centenas). Por exemplo: em Números 26:25, lemos que Issacar possuía 64 destacamentos (elefs ou milhares) e 300 homens não alocados neles. Números 26:27 indica que Zebulom tinha 60 mil  grupos e 500 homens.
Essa interpretação pode parecer imaginativa, mas a palavra elef era amplamente empregada para indicar um grupo militar. Vimos que, em Miqueias 5:2, não faz sentido pensar que os milhares de Judá fossem grupos de mil. Eram, antes, regimentos ou destacamentos com número variável de homens. Não há por que pensar que, em Números, fosse diferente. Também nesse livro, elef é um destacamento militar, não um grupo de mil.
Lembramos que, na Batalha de Jericó, essa cidade foi rodeada uma vez por dia, durante seis dias, por “todos os homens de guerra” de Israel. É o que Josué 6:3 expressamente informa. A cidade foi ainda rodeada sete vezes no sétimo dia. Sabemos que Jericó tinha poucas centenas de metros de extensão, na época em que os israelitas a conquistaram (aproximadamente 1.550 a. C.). Considerando que uma densidade muito elevada (poucas vezes verificada), em grandes aglomerações, é de 5 pessoas por metro quadrado: se Israel tivesse 600.000 homens de guerra, eles teriam ocupado uma extensão de 120 quilômetros, o que torna o relato da conquista de Jericó incompatível com os censos de Números. 
Temos de concluir, pois, que os números dos censos levantados durante a peregrinação nada nos informam sobre a população de Israel. Não sabemos quantos homens em idade de guerra havia, na nação, durante a marcha no deserto. Muito menos qual era a população total. Porém, nada indica que fosse superior a alguns milhares. Thomas Römer estimou que, muito mais tarde, no século VI a. C., a população total de Judá era de 80 a 100 mil pessoas (RÖMER. Thomas. A chamada História Deuteronomista – introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 111). Claro que, dez séculos antes, num lugar tão inóspito, ela era muito menor.
Chegamos, assim, à conclusão de que os 600 mil israelitas que o Pentateuco afirma terem saído do Egito e peregrinado, no deserto, por 40 anos, podem não ter sido 600 mil homens, mas 600 grupos militares em que a nação se dividiu, a fim de enfrentar os perigos do lugar e se preparar para a almejada conquista de Canaã. O número total de homens, nesses grupos, permanece desconhecido, assim como a população total da nação. Sabemos, porém, que as centenas de milhares ou mesmo milhões de pessoas que os censos parecem apontar, provavelmente, nunca existiram.
Ainda assim, o fato de Israel ter irrompido em Canaã, por volta de 1.540 a. C., e ter conquistado diversas cidades, inclusive algumas muradas, dá a entender que o número de homens, tanto quanto as alianças celebradas pelo Grupo de Moisés aumentaram muito, durante a peregrinação. A possível fusão com os hicsos que se retiraram do Egito, por volta de 1.570 a. C., é a melhor explicação disponível para esse crescimento espetacular. Sabemos do poderio e da experiência dos hicsos na arte da guerra. Porém, a existência de um líder extraordinário como Moisés permanece indispensável para completar a explicação, pois dificilmente as fusões e alianças poderiam ter ocorrido sem a atuação de um grande líder.
De alguns milhares de homens que deixaram o Egito, Israel deve ter chegado a dezenas de milhares, ao se aproximar dos limites da Terra Prometida. Desses, muitos eram experimentados guerreiros, sob uma aprimorada organização militar e o comando de um líder: Josué. Esse câmbio de horda em exército parece ter sido obra de Moisés. Seu incessante labor e o sucesso das suas audaciosas ações produziu a convergência necessária à formação de uma aliança, que permitiu aos israelitas a conquista da região central de Canaã.
Por tudo isso, a resposta mais provável à questão “Moisés existiu?” é que temos de pressupor que sim. O relato básico do Pentateuco é internamente indesafiável e harmônico com quase toda a evidência paralela que conhecemos. O que um dia pareceu lendário, nesse relato, estudos detidos mostram que pode constituir história. É o caso dos censos da nação de Israel.
Mas, se o Pentateuco é tão sólido e internamente consistente, como a figura mais importante que emerge, nas suas páginas, pode não ter existido? A existência de Moisés e os atos que ele praticou são difíceis de estabelecer em caráter definitivo, dada a sua localização remota no tempo, mas temos de pressupô-los para explicar o Pentateuco e, de resto, Israel. Para explicar, por exemplo, o parentesco dos israelitas com os hicsos e a informação de Josefo de que a saída de ambos do Egito constituiu o Êxodo, para explicar a comprovada presença de Israel, em Canaã, no Período dos Juízes, e todo um rol de coisas semelhantes.
Podemos não dispor de provas contundentes e inelidíveis, do Êxodo ou dos dados bíblicos sobre Moisés, mas não é nisso que consiste o compreender possível a partir da fé, que buscamos. Como crentes, basta-nos a fé nos acontecimentos das Escrituras; como homens, basta-nos exercer sobre eles a nossa razão. O exercício da razão não nos permite entender ou definir tudo, longe disso. Daí o campo sempre aberto que a razão deixa à fé. Mas, após tê-la exercido consistentemente e até o fim, sentimos ter cumprido o mandamento primeiro que Deus entregou ao homem: o de ser simplesmente homem, portanto pensar, não ser besta, nem anjo. Quem sabe, na interminável tarefa desse pensar, que não é ver, como os anjos, nem fazer sem pensar, como as bestas, o pano que cobre a História remota um dia será erguido e nos será dado espiar, de modo mais claro, o que lá se encontra. Enquanto isso, basta-nos continuar a exercer o duplo mister de ser homens e crentes, crentes e homens, não apenas uma dessas coisas.


A DISPERSÃO 

Em linhas gerais, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio tratam de dois períodos: o primeiro se estende do fim do cativeiro no Egito ao início da peregrinação no deserto; o segundo inclui as mortes de Miriã, Arão e Moisés, as vitórias sobre povos da Transjordânia e os preparativos para a entrada em Canaã.
Êxodo, Levítico, Números 1 a 19 e Deuteronômio 1—2:15 concentram-se nos primeiros dois anos da peregrinação no deserto.
Números 20 a 36 contam o que sucedeu no segundo período.
Esse o esquema geral dos fatos no Pentateuco.
Deuteronômio 1 introduz uma cunha de 37 ou 38 anos entre esses dois períodos: “Sucedeu que, no ano quadragésimo, no primeiro dia do undécimo mês, falou Moisés aos filhos de Israel [...] O Senhor, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis estado neste monte. Voltai-vos e parti [...] Então partimos de Horebe e caminhamos por todo aquele grande e terrível deserto que vistes, pelo caminho da região montanhosa dos amorreus, como o Senhor, nosso Deus, nos ordenara; e chegamos a Cades-Barneia [...] Desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede, foram trinta e oito anos até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu" (Dt 1:3,6-7,19; 2:14).
Essas palavras foram pronunciadas no fim do quadragésimo ano contado a partir do Êxodo. Elas recordam o transcurso de 38 anos entre a chegada a Cades-Barneia e a travessia do ribeiro de Zerede, onde o discurso de Moisés foi pronunciado.
Extraímos disso que os israelitas levaram dois anos para ir do Egito a Cades-Barneia e que, após a estada em Cades, passaram-se 38 anos até a travessia do ribeiro de Zerede.
Em Números 33, temos a lista dos lugares em que Israel acampou. Porém, se a examinarmos à luz do primeiro discurso de Moisés, em Deuteronômio, concluiremos que as paradas dos versículos 33:5-36 se deram nos dois primeiros anos.
Por outro lado, o verso 33:37 indica que as paradas seguintes (Nm 33:41-49) se deram após a travessia do Zerede.
Nesse quadro, os “muitos dias” (Dt 1:46) que os israelitas permaneceram em Cades-Barneia, após a humilhante derrota para os amorreus, inserem-se antes dos 38 anos.
Sabemos, portanto, o que se passou até os “muitos dias” em Cades, assim como possuímos informações detalhadas acerca dos acontecimentos posteriores à travessia do Zerede.
Porém, sobre os 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede não temos praticamente informações.
Moisés limita-se a declarar sobre esse período nebuloso: “O tempo que caminhamos desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede foram trinta e oito anos, até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu do meio do arraial, como o Senhor lhes jurara (Dt 2:14)”.
O verbo caminhar, inserto no verso acima, é o que temos de mais substancial sobre o enigmático período de 38 anos. A representação tradicional de que os israelitas perambularam 40 anos no deserto depende em grande parte dele.
O verbo informa-nos que Israel não permaneceu o período todo de 38 anos em Cades-Barneia, o que parece confirmar a teoria da perambulação.
Há muito tempo os arqueólogos identificam Cades com o Tel el-Qudeirat, situado no Neguebe.
Para entendermos se a identificação é correta, é útil investigar a localização de Cades-Barneia no Pentateuco.
Números e Deuteronômio informam que Cades ficava na extremidade de Edom, onde está Tel el-Qudeirat, às portas da região montanhosa dos amorreus, em Canaã:
“Enviou Moisés de Cades mensageiros ao rei de Edom a dizer-lhe [...] Estamos em Cades, cidade nos confins do teu país” (Nm 20:14,16).
“E chegamos a Cades-Barneia. Então eu vos disse: Ten-des chegado à região montanhosa dos amorreus” (Dt 1:19-20).
Cades também é associada ao entorno desértico da cidade referida por Moisés: “Partiram de Eziom-Geber, e acamparam-se no deserto de Zim, que é Cades” (Nm 33:36).
Isso nos leva algo além da identificação usual de Cades-Barneia com Tel el-Qudeirat. A localidade bíblica é o monte onde foram feitas escavações e também o deserto ao seu redor.
À luz desses dados, não é equivocado pensar que os israelitas acamparam em Tel el-Qudeirat e nos seus arredores, isto é, “no deserto de Zim, que é Cades”.
Esse é um ponto fundamental.
Além disso, os filhos de Israel “caminharam” 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede, o que indica que se afastaram ainda mais de Tel el-Qudeirat.
Embora caminhar não signifique o mesmo que dispersar-se, penso que o significado da palavra, no contexto da falta de informações sobre os 38 anos, pode ser exatamente esse.
Como os israelitas estavam acampados nos arredores do oásis de Cades, a palavra caminhar indica que eles se dispersaram dali para outros lugares.
Vemos que a imagem da dispersão do Grupo de Moisés, após os “muitos dias” em Cades-Braneia (Dt 1:46) é uma alternativa viável à do exército mobilizado durante 40 anos. Na verdade, o exército foi mobilizado duas vezes, por meio dos dois censos: uma no início da peregrinação, outra na parte final dela.
Como os censos indicam a existência de um contingente elevado de pessoas, é razoável supor que a aliança com os hicsos e outros grupos locais de hebreus ocorreu tanto num quanto no outro período de mobilização.
O intervalo maior de 38 anos sobre o qual a Bíblia se cala insere-se entre os censos da peregrinação.
Sabemos que, nesse interstício, os filhos de Israel retornaram (uma ou mais vezes) ao deserto de Zim e seu famoso oásis, pois Números 20:22 e 33:37 indicam que, após os 38 anos, eles “partiram de Cades, e acamparam-se no monte de Hor, na fronteira da terra de Edom”.
Se estavam em Cades, de onde se dispersaram, e partiram de Cades, 38 anos depois, os israelitas devem ter retornado àquele oásis. Talvez Cades tenha sido o centro de sua perambulação por 38 anos.
É oportuno lembrar que, na sua obra mais do que clássica sobre cronologia bíblica, James Ussher confirmou a inexistência de dados sobre os 37 anos intermediários da peregrinação: “Moisés registrou apenas os acontecimentos dos dois primeiros e do último ano da viagem pelo deserto” (USSHER, James. The Annals of the World. p. 48. Disponível em https:// ia801407.us. archive.org/8/items/AnnalsOfTheWorld/Annals. pdf.).
Como a Bíblia fornece pouquíssimos dados adicionais a esses, é possível e até recomendável que utilizemos, de maneira lógica e com necessário cuidado, as informações extrabíblicas disponíveis sobre os 38 anos.
Essas informações parecem confirmar à conclusão de que os israelitas realmente se dispersaram após os “muitos dias” (Dt 1:46) em Cades.
Finkelstein e Silberman afirmaram que, da lista de locais em que os israelitas acamparam, os únicos que foram identificados com segurança são Cades-Barneia e Eziom-Geber (FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 63).
Por isso, devemos voltar-nos a eles, sem desprezar as informações que outros sítios porventura possam fornecer.
O arqueólogo Israel Finkelstein publicou detalhado trabalho sobre as escavações em Cades (FINKELSTEIN, Israel. “Kadesh Barnea: A Reevaluation of Its Archaeology and History”. In Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. 2010. Issue 1, Volume 37, p. 111-125).
O mesmo fez o também arqueólogo Rudolph Cohen (COHEN, Rudolph. "Excavations at Kadesh-Barnea: 1976-1978", Ein el-Qudeirat, Rudolph Cohen, 1981 AD”. In Biblical Archeologist. Spring 1981. Disponível em http://www.bible.ca/archeology/ bible-archeology-exodus-kadesh-barnea-in-el-qudeirat-excavations-at-kadesh-barnea-rudolph-cohen-ba1976-1982ad.htm).
Tanto um quanto o outro demonstraram de maneira exaustiva que Tel el-Qudeirat foi ocupado em escala na Idade do Bronze Antigo (3.500-2.200 a. C.) e a partir do fim do século XI ou início do X a. C.
Três fortalezas foram encontradas  nas ruínas de  Cades-Barneia.
A evidência indica que elas foram utilizadas pelo Reino de Judá, uma no século X e as outras no VII a. C.
A descoberta das fortalezas do século VII levou Finkelstein e Silberman a relacionarem a redação dos relatos bíblicos da peregrinação a essa época.
Cohen interpreta a evidência diferentemente. 
No artigo citado acima, ele descreve as minuciosas pesquisas realizadas no local por Woolley e Lawrence, que foram “os primeiros eruditos com sólido treinamento em Arqueologia a estudarem o local” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The Excavations of C. L. Woolley and T. E. Lawrence” p. 94): “Nos escombros, Woolley e Lawrence encontraram fragmentos de cerâmica fabricada com roda e outros feitos à mão. Os primeiros eram do “tipo sírio”, o que associava o sítio com o norte. De acordo com a classificação de Macalister, então em uso, esses artefatos pertenciam ao Segundo e Terceiro Períodos Semíticos (aproximadamente 1800-900 a. C.), mas outros objetos com pintura refinada pareciam reduzir o tempo de ocupação ao fim do segundo ou início do primeiro milênio a. C. A cerâmica feita à mão era de aspecto notoriamente grosseiro e semelhante à observada em outros locais das vizinhanças” (1940 Lachish (Tell ed-Duweir) II: The Fosse Temple. Oxford: Oxford University, 1914-1915. Woolley C. L, and Lawrence, T. E. p. 6667).
O artigo  confirma  que  a  cerâmica grosseira forjada à mão é israelita.
Notemos que ela não foi encontrada apenas no sítio escavado, mas também “em outros locais das vizinhanças”.
Porém, o trecho transcrito não se limita a afirmar a existência das duas cerâmicas. Acrescenta que os artefatos mais refinados (de aspecto sírio) foram datados por Woolley-Lawrence entre 1.800 e 900 a. C.
Notem que Cohen não afirma que essa datação foi mais tarde revista para o século VII a. C., até porque alterações tão drásticas de idades estabelecidas por grandes arqueólogos são raríssimas. Cohen faz asseveração diferente: diz que escavações posteriores à de Woolley-Lawrence revelaram “outros objetos com pintura refinada”, os quais foram datados do fim do segundo milênio ou início do primeiro.
Ficamos, pois, com dois grupos ou conjuntos de cerâmicas: o primeiro do século XVIII ao X (descoberta por Woolley-Lawrence) e o outro do século XI ao VII a. C.
Os primeiros 250 anos do período 1.800-900 a. C., mencionado por Woolley-Lawrence, inserem-se na Idade do Bronze Médio. Parecem, pois, confirmar que a ocupação intensa da Idade do Bronze Antigo continuou nessa época.
Claro que a cerâmica síria desse período não foi fabricada pelos israelitas. Porém, é possível que tenha sido usada por hebreus da Palestina ou, mais especificamente, pelos hicos aparentados aos filhos de Israel.
Se o Êxodo aconteceu no fim do Período Hicso, como proponho, é consequente pensar que, por volta de 1.550 a. C., Cades fosse ocupada por eles.
Em outro trecho do seu artigo,
Cohen se refere às escavações de M. Dothan em Tel el-Qudeirat em 1.956, as quais tiveram por foco a primeira fortaleza encontrada no local.
Dothan localizou a edificação desse forte no século IX a. C., porém “reconheceu tanto a existência de assentamentos anteriores quanto de posteriores a ela” (DOTHAN, M. “The Fortress at Kadesh Barnea”. Israel Exploration Journal 15:134-51. 1965. Citado em COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The excavations of M. Dothan”, p. 96.).
A cerâmica correspondente aos assentamentos anteriores à fortaleza foi datada por Dothan do século X em diante.
Esses os resultados das escavações de 1.956 em Cades.
Em 1.976-1.978, Dothan regressou ao local para novas escavações. Nessa campanha é que as outras duas fortificações foram encontradas.
Dothan descobriu que um dos seus novos achados tinha sido edificado no século X a. C. Portanto, era anterior à fortaleza desenterrada por Woolley-Lawrence.
Em ambas as fortalezas foi identi-ficado o costumeiro padrão de cerâmica mais sofisticada, forjada com aparelhos, ao lado do tipo forjado à mão.
Ficamos, assim, com três fortalezas, uma do século X e duas do VII a. C.
Dothan observou que, no forte construído primeiro, “a proporção de cerâmica feita à mão era muito maior e imitava a cerâmica feita com rodas” (idem. p. 99).
Como já vimos, a ideia que o artigo de Cohen  favorece  é  de  que  essa  cerâmica  era de fabricação israelita.
Embora não confirme, o artigo de Finkestein sobre Tel el-Cudeirat, muito focado nos séculos VIII-VII, tampouco refuta essa conclusão de Cohen para quem “as escavações foram realizadas apenas em parte restrita do sítio arqueológico. Se vestígios anteriores existem, é possível que não se estendam a toda a área. Além disso, creio que pode haver uma relação entre a concentração de assentamentos do Bronze Médio I em toda a região e a tradição bíblica da extensa jornada dos israelitas em Cades-Barneia” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. p. 103).
Nesse trecho do seu artigo, Cohen refere-se a assentamentos da Idade do Bronze I (2.100 a 2.000 a. C.), portanto ainda mais antigos que os localizados por Woolley e Lawrence a partir de 1.800 a. C.
Temos, pois, por admissível a ideia de uma ocupação difusa dos arredores de Tel el-Cudeirat na transição da Idade do Bronze Antigo para o Bronze Intermediário. Essa ocupação continuou durante todo o Período do Bronze Médio, que inclui a época do Êxodo (cerca de 1.572 a. C.).
Voltemo-nos agora à outra localidade da lista de Números 33 que a Arqueologia localizou com pequena margem de dúvida: Eziom-Geber.
Tenho discorrido pouco sobre esse lugar até aqui, porque o Pentateuco menciona uma única estada inequívoca de Israel nele (Nm 33:35-36).
Quando tratam de Eziom-Geber, as numerosas fontes que consultei (inclusive Finkelstein e Silberman) reportam-se, invariavelmente, às escavações realizadas por Nelson Glueck entre 1.938 e 1.940 (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Trata-se, pois, de levantamentos antigos e não de revisões recentes deles.
A Enciclopaedia Britannica afirma que Eziom-Geber foi “quase certamente fundada por Salomão por volta de 1.950 a. C.” (“Ezion-Geber, ancient city, Jordan”. Enciclopaedia Britannica. Disponível em https://global.britannica.com/place/Ezion-geber. Acesso em 10/04/17).
Essa asserção deve-se ao testemunho expresso da Bíblia no sentido de que Salomão construiu navios e utilizou amplamente Eziom-Geber. Como as fontes históricas não trazem informação de que outro povo ocupou o local na mesma época, a fundação por Salomão se impõe.
Claro que o acampamento israelita em Eziom-Geber foi muito anterior ao povoamento do lugar. Por isso, devemos esperar encontrar ali o mesmo padrão de ocupação difusa observado em Cades-Barneia no século XVI a. C. ou talvez ainda mais difuso, pois em Eziom-Geber não havia sequer um centro em torno do qual acampar.
Padrão tão difuso é típico de povos nômades e seminômades.
Encontramo-lo em numerosos lugares do Oriente Próximo em toda a Antiguidade. Porém, assim como a proporção da cerâmica rústica era maior na Idade do Bronze, a ocupação nômade e seminômade também o era.
Consideradas em conjunto, essas evidências apontam para a conclusão de que os israelitas da época do Êxodo eram tribos nômades que, em dois curtos períodos, foram organizados num exército, sob a liderança de Moisés e Josué.
As famosas conquistas dos israelitas em Canaã ocorreram, principalmente, nesse último período.

JOSUÉ EM JERICÓ

Nos séculos XVIII e XIX, desenvolveu-se a abordagem revolucionária que se tornou conhecida como Crítica Histórica e Literária dos textos bíblicos. Há hoje um consenso, entre os especialistas dessa disciplina, de que o Livro de Josué integra uma das primeiras narrativas historiográficas conhecidas: a que principia em Deuteronômio e atravessa Josué, Juízes, 1º e 2º de Samuel e 1º e 2º dos Reis. Por depender amplamente das ideias semeadas no último livro do Pentateuco, essa narrativa se tornou conhecida como História Deuteronomista.
Os estudiosos críticos compararam os livros de Deuteronômio a 2º dos Reis com escritos de outros povos e com as evidências arqueológicas disponíveis sobre o mesmo período. Concluíram que “o Dtr [autor da narrativa] foi ao mesmo tempo um editor, já que editou fielmente documentos e materiais mais antigos, mas também um autor, já que construiu uma complexa visão da história de Israel” (RÖMER, Thomas. A chamada História Deuteronomista – Introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. p.33). Como autor, o Deuteronomista (Dtr) é “comparável aos historiadores helenistas e romanos, que também usam tradições mais antigas às quais dão um novo arranjo. A atitude de Dtr para com suas tradições é a de um corretor honesto” (idem. p. 32).
Portanto, para a maioria dos críticos, a História Bíblica propriamente dita começa com a obra do Deuteronomista. As narrativas sobre o período anterior pertencem ao território da lenda. As de Deuteronômio em diante pertencem à História. Mas Deuteronômio narra a peregrinação de Israel no deserto: devemos concluir disso que ela é parte do que os críticos reconhecem como inquestionável na narrativa bíblica? Aqui, os problemas da Crítica Histórica e Literária começam a aparecer.
A resposta mais coerente com as premissas da própria Crítica é a que reconhece que, se a narrativa de Deuteronômio a Reis foi composta pelo mesmo autor-editor, com base no mesmo método, a parte incluída em Deuteronômio é tão histórica quanto as demais. Mas, se assim é, temos de admitir um Moisés histórico muito bem definido (o de Deuteronômio) e um Josué histórico idem (o do Livro de Josué), o que está longe de ser pouca coisa para os padrões de uma História tão recuada.
O autor Deuteronomista não esconde a vantagem técnica e material dos cananeus sobre os israelitas, quando os dois povos se defrontaram, a princípio de maneira hostil, depois mais pacificamente. Pelo contrário, ele a admite: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro” (Js 17:16). E de novo: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro” (Jz 1:19) e “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Jz 4:3).
A falta de carros de ferro devia-se à incapacidade dos israelitas de fundir o ferro nesse período, como 1º de Samuel 13:19-20 claramente atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice”. Se no tempo de Saul os israelitas já estabelecidos em Canaã não fundiam o ferro, que dizer durante a peregrinação e as lutas sob a liderança de Josué?
Temos, portanto, dois povos a se confrontarem, um dos quais dominava o ferro, e o outro, não. É possível que os israelitas tenham fabricado instrumentos de bronze, pois passaram próximo de uma jazida desse minério, em Edom (Nm 21:4), durante a peregrinação. O arqueólogo Nelson Glueck provou que “o cobre era extraído [nesse local] em data bem antiga” (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Não podemos esquecer que, por essa época, Moisés foi capaz de forjar uma serpente de bronze (2 Rs 18:4; Nm 21:4). Porém, as armas de bronze dos israelitas eram inferiores às de ferro que os cananeus possuíam, de modo que a vantagem técnica do povo local deve ter-se refletido no campo de batalha e sido responsável por Josué e seus comandados terem conquistado Canaã de modo apenas parcial.
No entanto, apesar dessa vantagem bastante nítida, nas batalhas de Jericó, Gibeão e Hazor e na tomada de outras cidades, ela não garantiu a vitória aos cananeus. As lutas por tais cidades estão narradas nos capítulos 6 a 12 de Josué. Robin Lane Fox escreveu sobre elas: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções [da ocupação nesses lugares]: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão [...] Na Palestina, a passagem da média para a alta Idade do Bronze coincide com a presença conspícua de um certo tipo de cerâmica (a Bicromia Cipriota) nos níveis relevantes dos sítios. Este tipo de cerâmica data do século XVI a. C.” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 209-210).
Notem que Fox alude a “duas interrupções”, não a uma só, o que sugere duas épocas em que várias cidades de Canaã foram destruídas, ao mesmo tempo. Uma dessas épocas corresponde à data do Êxodo e das conquistas preferida pelos historiadores: o século XIII (passagem da “alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro”, no texto de Fox). Porém, a outra coincide com o período em que a Bíblia e Flávio Josefo situam o Êxodo, a saber: o século XVI a. C. Essa é a data do Êxodo que defendi nos textos sobre o Moisés histórico. Vejamos os reflexos dela na conquista de Canaã.
Alfred Läpple relata: “Em Tell-es-Sultan, lugar da antiga Jericó [...] há um montão de ruínas de 21 m. de altura. É atestada já no período neolítico (antes de 4000 a. C.) a existência de uma cidade munida de poderosas torres de defesa, que se estendia sobre uma área de 30 hectares mais ou menos. Sucessivamente foram construídas outras três cidades. A primeira, da época do Bronze Antigo, ficou de pé até 2000 a. C. aproximadamente. A segunda surgiu na época do Bronze Médio, em torno do ano 1700 a. C. e representa, entre todas as ocupações que se sucederam nesta colina, a mais extensa. A terceira cidade construída depois de 1580 a. C. sofreu em seguida uma tremenda destruição” (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. pp. 73-74).
A Crítica considera que a cidade da época do Êxodo não foi qualquer dessas. Foi, pois, uma quinta Jericó. Mas o problema é que não há sinais de destruição dessa quinta cidade, ao passo que a anterior “sofreu uma tremenda destruição”. Claro que, para os críticos, a destruição de Jericó narrada na Bíblia é miraculosa, portanto não ocorreu. Porém, Läpple nos diz que a quarta cidade foi efetivamente destruída. Miraculosa ou não, a sua destruição foi narrada pelo Deuteronomista. Portanto, deve ter ocorrido.
Läpple afirma sobre a destruição da quarta cidade: “Montes de tijolos avermelhados, pedras quebradas, madeira carbonizada e cinzas encontrados por John Garstang atestam um grande incêndio” (idem). Por que considerar que as conquistas se deram no século XIII a. C., se a Jericó dessa época não foi destruída? E por que não considerar que os filhos de Israel entraram em Canaã no século XVI, como a Bíblia e Josefo afirmam, se a Jericó que então existia foi de fato destruída?
Claro que há dúvidas arqueológicas sobre as características da cidade destruída e da própria destruição. Mas as dúvidas não se estendem aos dados básicos de que houve uma Jericó, no século XVI, e ela foi destruída. Arqueólogos da Universidade La Sapienza descobriram que a muralha dessa cidade foi parcialmente derrubada, mas não há nela sinais de saque (Folha de S. Paulo. 19/06/1997. p. 1-16). E não sei por que motivos eles concluíram que isso contraria o relato bíblico. Josué 8:2 esclarece que Jericó não foi saqueada: “Farás a Ai e a seu rei o que fizeste a Jericó e a seu rei; somente que para vós outros saqueareis os seus despojos”. As palavras “somente que para vós outros saqueareis” significam que Ai foi saqueada, e Jericó, não. Portanto, a descoberta dos arqueólogos confirma até o ponto desse pormenor o relato bíblico.
Há mais. Os pesquisadores de La Sapienza declararam que “o local onde surgiu a cidade esteve abandonado entre os anos 1.550 a. C. e 1.000 a. C.” (idem). Robin Lane Fox, de Oxford, confirma essa informação: “Pode ter havido uma aldeia de tamanho razoável em Jericó em torno de 1320 a. C., mas não havia nada que pudesse lembrar uma cidade ou muros intransponíveis. Desde 1.300 a. C., não houve qualquer ocupação humana no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. pp. 210-211). O problema é que, se entraram em Canaã no século XIII, os israelitas devem ter encontrado grande dificuldade para destruir uma cidade que não existia!
Depois de Jericó, caiu a cidade de Ai, que também foi saqueada e destruída (Js 8:27-28). A diferença é que os indícios da sua destruição não foram encontrados. Aliás, é de lembrar que muita outra coisa existente sob a terra ainda não foi exumada pelos arqueólogos. Talvez, no caso de Ai, a lacuna se deva às escavações terem sido feitas no lugar errado. O povoado encontrado pelos arqueólogos fica junto de Betel. Sua escavação revelou uma ocupação muito antiga, que terminou por volta de 2.210 a. C. Dessa época até o século XI a. C., não houve outra ocupação.
Lemos, aliás, em Champlin que “as escavações mostram que houve uma ocupação pré-urbana de Ai desde 3.200 a. C." Porém, "ainda não foram encontradas evidências arqueológicas sobre a própria Ai” (CHAMPLIN, Russel Norman. Dicionário. In O Antigo Testamento interpretado – versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2001. Verbete Ai, p. 3758). Lane Fox, por sua vez, escreveu que somente “alguns camponeses começaram a construir uma aldeia no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. p. 211).
Contrariamente a essas evidências, o Deuteronomista nos fala de uma cidade murada, que possuía um rei, repeliu a primeira agressão dos israelitas e só foi derrotada com a intervenção de milhares de guerreiros. É o que se depreende do fato de seus habitantes terem deixado “a cidade aberta” (Js 18:17), da grande derrota dos três mil que subiram contra a cidade (Js 7:4-5), das alusões ao rei de Ai (Js 8:1-2, 14) e dos cinco mil israelitas que participaram da emboscada bem-sucedida contra a cidade (Js 8:12).
Portanto, a Ai descoberta pelos arqueólogos não é a que foi derrotada pelos israelitas. Josué nos informa que esta ficava junto de Bete-Áven, ao oriente de Betel (Js 7:2), enquanto a aldeia descoberta pelos arqueólogos (et-Tell) ficava ao oriente de Betel, mas não junto de Bete-Áven: “Enviando, pois, Josué, de Jericó, alguns homens a Ai, que está junto a Bete-Áven, ao oriente de Betel, falou-lhes”. Por tudo isso, a Ai descoberta pelos arqueólogos, localizada a três quilômetos de Betel (LÄPPLE, Alfred. Ob. cit. p. 75), não pode ser a cidade situada junto de Bete-Áven a que a Bíblia se refere.
Sabemos que Ai, em hebraico, significa ruína. Atentos a isso e às dificuldades envolvidas na localização tradicional, alguns estudiosos propuseram, recentemente, sítios alternativos para Betel e Ai, que permitem a identificação para Beth-Áven. Sua proposta consiste em alterar a localização tradicional de Betel da moderna vila de Beitin para El-Bireh, situada a apenas três quilômetros de distância. Com isso, Beth-Áven passaria a ser Beitin, e Ai, uma fortaleza descoberta, nessa cidade, e datada da Idade do Bronze Média e Alta (www.biblearchaeology.org/post/2008/04/Beth-Aven-A-Scholarly-Conundrum.aspx#Article).
A localização alternativa corresponde, muito melhor, às informações bíblicas, pois não apenas fornece um lugar para Betel e Ai, mas também para Beth-Áven. Com ela, o triângulo entre essas três localidades se fecha. Além disso, ficamos com uma Ai que existiu, exatamente, no período de Josué (entre a Média e a Alta Idade do Bronze). Como o local nunca mais foi reconstruído, temos de concluir que, quando o Livro de Josué foi redigido, ele estava em ruínas. Por isso, era denominado Ai. Seu rei pode ter sido o mesmo de Betel ou outro. 
Com isso, o que os críticos têm a alegar de substancial em contrário à datação mais antiga das conquistas limita-se à ausência de sinais de destruição no sítio convencional de Ai (et-Tell), seja em Laquis ou Debir. Porém, a relocalização de Ai defendida acima, fornece um local adequado para a primeira daquelas localidades. Quanto a Laquis e Debir, o texto bíblico não afirma que foram destruídas como Jericó. A conquista delas é narrada com a de outros quatro lugares, numa sequência de poucos versículos (Js 10:28-43). Uma característica literária desse trecho de Josué é a equiparação de cada conquista a outra da mesma passagem, em vez da comparação com vitórias anteriores, como as ocorridas em Jericó ou em Ai. Assim, a tomada de Libna é equiparada à de Maquedá, a de Laquis, à de Libna, a de Eglom, à conquista de Laquis, à de Hebrom, à tomada de Eglom, e a de Hebrom, finalmente, à de Debir. Só um ponto, nessas conquistas, é assemelhado ao que ocorreu em Jericó, a saber: o fato de seus reis terem sido mortos.
Isso estabelece um padrão diferente da destruição seguida de incêndio ocorrida em Jericó e Ai. Notem que o verbo utilizado para descrever a primeira dessa nova sequência de vitórias é tomar. “Tomou Josué a Maquedá” (Js 10:28). Tomar implica não destruir. A única exceção é Hazor, que foi destruída logo depois de Debir ser tomada (Js 11:10-11). Mas em Hazor não faltam restos de destruição. Voltemos ao texto citado de Lane Fox e vejamos que ele afirma: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão”.
Assim, das duas datas mais frequentemente atribuídas ao Êxodo e às conquistas, a da História Deuteronomista parece a mais correta. Curioso é que Lane Fox chegou a conclusão diametralmente oposta a essa, mas ele o fez com base numa visão de conjunto, não de detalhe das Escrituras. Quando olhamos para o conjunto e também para o detalhe do texto bíblico e os comparamos com os dados arqueológicos, a data que prevalece é a mais remota, não a mais recente.
Esse é o tempo das conquistas, na História Deuteronomista. No entanto, os críticos estão sempre prontos a abandoná-lo. Pergunto de que adianta essa longa narrativa ter sido escrita com a melhor técnica e o maior rigor possíveis, se não a utilizamos. Adianta tanto quanto alguém ter à disposição uma Medicina avançada e tratar suas doenças com o xamã.
Em 1956, Holywood lançou "Os Dez Mandamentos", com Charlton Heston como Moisés. Lançou há pouco "Noé", com Russell Crowe. Quanta diferença no modo de ver a Bíblia essas obras expressam! A primeira não é só rente à História: revela uma preocupação mais intensa com o sagrado como a Bíblia o apresenta. Se não quer propriamente alterar a concepção do sagrado, se não quer mudar Deus ao mudar Noé entre o início e o fim do filme, a obra de Darren Aronofsky cumpre ao menos o propósito de mostrar os desafios postos à concepção bíblica do divino. O homem sofisticado, de espírito crítico, dirá que Noé erra ao desejar a destruição cabal da humanidade; o indivíduo comum pensará que ele enlouquece. Mas a loucura não é o asilo em que encerramos o que nos ameaça ou, simplesmente, não entendemos? Se Noé está errado, Deus está errado. Está errada a concepção cristã do sagrado. É o que o filme propõe.
Não estará errada a percepção do sagrado na Bíblia que o tempo atual revela?Aliás, essa percepção não escoou dos corações e seu perdeu juntamente com os fatos da história bíblica? Não terminamos vazios da história e do próprio sagrado? Mas o filme promove algo bom: a tolerância. Assistir ao Deus errado enviar o Dilúvio errado revolta, mas só um pouco. Aprendemos e devemos aprender ainda melhor a crer com tolerância, não com violência. A era da violência religiosa passou, para muitas pessoas e em muitos lugares. Isso é irrevogável. Quem lançou mão do arado da aceitação não deve olhar para trás. Do lugar em que está deve caminhar para o mundo e ará-lo com a tolerância.

DEPOIS DE JERICÓ
 
As pessoas que, por motivos religiosos, aceitam os relatos bíblicos como verdadeiros explicam a presença do povo de Israel em Canaã pelas conquistas lideradas por Josué. Foram elas que permitiram a Israel apossar-se da terra que Deus prometera a Abraão, Isaque e Jacó. Porém, em oposição a esse ponto de vista tradicional, os historiadores críticos costumam negar que Israel tenha tomado posse de Canaã pela força. Afirmam, ao contrário, que penetrou ali pacificamente e passou a coabitar com os povos locais.
Essa diferença de posições sobre um ponto fundamental da História dos Judeus coloca-nos um grave dilema. Quem, afinal, está com a razão: os que creem no relato bíblico das conquistas do modo como está redigido ou os que postulam a penetração pacífica, com base em evidências arqueológicas?
A verdade sobre esse assunto parece envolver a combinação das posições tradicional e crítica. Por um lado, dispomos de abundantes confirmações das conquistas narradas na Bíblia; por outro, há evidências não menos significativas de que os israelitas penetraram, gradativamente, nos lugares que não puderam conquistar. Georg Föhrer escreveu sobre esse último processo: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (FÖHRER, Georg. História da religião de Israel. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 76).
Föhrer está a sugerir que os israelitas fizeram seu lar nas terras fáceis de ocupar e, nas demais, penetraram lenta e pacificamente. As primeiras eram as regiões montanhosas e remotas; as últimas correspondiam às planícies e pequenas elevações. É importante lembrar que Föhrer admite as conquistas, porém, do relato acima, extraímos que, na sua concepção, elas foram mais exceções do que a regra no processo de ocupação de Canaã.
A questão a ser enfrentada é até que ponto esse entendimento de que as conquistas foram acontecimentos isolados, meros pontos na linha do tempo de Israel, pode ser prestigiado como verdadeiro. A penetração pacífica foi o método precípuo, pelo qual Israel obteve a posse da terra? Esse entendimento não colide com as informações do Livro de Josué, que descreve as conquistas de numerosas cidades e, em seguida, a partilha da Terra de Canaã entre as Doze Tribos? 
A interpretação literal de Josué levou os estudiosos, ao longo dos séculos, a entender que os israelitas não só passaram a morar em Canaã, mas a controlá-la a partir das conquistas narradas na Bíblia. E ela não está errada, já que o controle hebreu é sugerido em Josué. Porém, uma leitura atenta dos livros históricos das Escrituras mostra que o testemunho bíblico não é exatamente esse. Juízes, por exemplo, afirma que os israelitas dominaram somente “as montanhas”, pois não lograram desalojar os cananeus de outros lugares, devido à superioridade militar destes: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro”; “Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro”; “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1: 19; 4:3).
Por muito tempo, os intérpretes literais passaram por cima do verso que diz que Israel “não expulsou os moradores do vale” não, obviamente, por julgarem que contém uma informação falsa, mas um dado menor. Em conjunto e no todo, para aqueles intérpretes, Israel tomou conta de toda a Palestina, na época de Josué.
Porém, não é raro a Bíblia nos transmitir a verdade histórica a respeito de um fato em poucos versículos e reservar o grande número de linhas à apresentação da verdade religiosa, vale dizer, da grandiosidade do poder de Iahweh ao conceder ao seu povo bênçãos que aquela história contém. Nisso verificamos que não há, propriamente, conflito entre a verdade religiosa e a histórica, mas que esta é transmitida num número muito menor de versículos do que aquela.
Por todo o Período dos Juízes, os israelitas não dominaram ou não puderam realizar a fundição do ferro, como 1º de Samuel 13:19-20 atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice.”
Mais uma vez, a inferioridade técnica dos israelitas aos filisteus (e, sem dúvida, também aos cananeus) não é, de maneira alguma, escondida ou dissimulada. Pelo contrário, ela é afirmada abertamente, mas em poucas linhas. E é claro que a inferioridade técnica implicava o poderio militar menor dos israelitas. Se não possuía carros, nem armas de ferro, quando entrou em Canaã, Israel era inferior aos moradores locais, do ponto de vista militar. Por isso, durante muito tempo, não os pôde desalojar pela força. Só na época de Davi isso começou a mudar.
A consciência do limite das conquistas implícita em todos esses versículos não foi conservada somente pelos autores bíblicos. Pelo contrário, ela parece ter sido bastante disseminada entre os hebreus. Só isso explica o limite reaparecer no Livro de Judite, composto no século II a. C. Diz esse texto incluído na Bíblia católica que os israelitas “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16). “Tomaram toda a montanha”, não toda a terra. É o que nos diz o texto, pois a verdade histórica é a posse limitada de Canaã pelos israelitas que ali entraram vindos do Egito.
De algum modo, Föhrer atentou para as curtas, mas cruciais informações bíblicas sobre os limites da ocupação de Canaã por Israel. Werner Keller também, pois escreveu: “Quando penetrou na terra [...] Israel deve ter sido obrigado a contentar-se com as montanhas, pois não pôde derrotar os que habitavam no vale, porque estes tinham muitas carroças falcadas (Juízes 1-19)” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 146-147).  Porém, a maioria dos intérpretes atribuiu àquelas informações um significado menor, no quadro geral das conquistas que, para eles, garantiram aos israelitas a posse imediata de todo o país.
Não são esses, porém, os únicos sinais que o Livro de Josué nos transmite sobre o método de ocupação de Canaã utilizado pelos filhos de Israel. Após a derrota sofrida, na primeira tentativa de conquistar a cidadela de Ai, Josué descobriu que Acã cometera um grave pecado e concluiu que Israel fracassara por esse motivo. Organizou-se, então, a sessão de julgamento do sacrilégio, no Vale de Acor: “Josué e todo Israel com ele tomaram a Acã, filho de Zera, e a prata, e a capa, e a barra de ouro, e a seus filhos, e a suas filhas, e a seus bois, e a seus jumentos, e a suas ovelhas [...] E todo Israel o apedrejou” (Js 7:24-25).
A posse de bois, jumentos e ovelhas por uma família, citada nessa passagem, não pode ter sido possível, durante a peregrinação no deserto, pois nela os israelitas não possuíam casas, apriscos, estábulos e outras instalações apropriadas à posse de pequenos rebanhos. Naquela época, os animais deviam constituir propriedade coletiva. A história de Acã indica, portanto, que a fixação dos israelitas na terra, caracterizada pela posse de rebanhos particulares, começou antes da partilha da terra e de quase todas as conquistas.
Podemos concluir desses versos que a penetração pacífica começou ao mesmo tempo que as conquistas. Talvez os filhos de Israel só tenham utilizado o método da guerra quando a ocupação gradual e pacífica se revelou impossível. Nos lugares não conquistados, ocorreu a coexistência pacífica de israelitas e cananeus, sob a preponderância destes.
Assim, ao terremoto das guerras e das conquistas seguiu-se a normalidade, e ao dilúvio, a bonança. Se as lutas corresponderam à vontade de Deus, a coexistência pacífica não teve outro significado. O homem pego a cortar lenha no sábado foi apedrejado por ordem de Moisés, porém os discípulos surpreendidos a colher espigas no dia santo não o foram. Sob a lei, os adúlteros deviam ser mortos, mas a mulher de João 8 não o foi. Por que não considerar que o fluir do tempo e a mudança do contexto histórico justificaram o abrandamento da lei? E por que não pensar que o reflexo disso, na ocupação da Palestina, foi a passagem das guerras à coexistência com outros povos?
Deus é justo ou amoroso? Sua justiça é arbitrária ou criteriosa? Que é justiça no Antigo Testamento? Acaso é extermínio e morte? Digam o que disserem sobre esse ponto, o que realmente importa é a consciência que os que viveram as conquistas possuíam. Vemos essa consciência ricamente retratada, no episódio de Acã. Por que ele teve de ser morto? Para satisfazer o gosto de Deus por exterminar? Não, mas para evitar o extermínio: “Aos vossos inimigos não podereis resistir enquanto não eliminardes do vosso meio as coisas condenadas” (Js 7:13), isto é, a "capa babilônica, e duzentos ciclos de prata, e uma barra de ouro do peso de cinquenta ciclos" (Js 7:21). Na Antiguidade, a prata e o ouro eram frequentemente usados para forjar ídolos e outros objetos sagrados. A condenação de Acã pode ter ocorrido por esse motivo implícito. De qualquer modo, o episódio retrata a importância de Israel combater os desvios individuais para evitar os coletivos.
que se costuma apresentar, em forma de libelo, como injustiça de Deus, no Antigo Testamento, é de fato a transição da justiça coletiva à justiça exercida exclusivamente sobre o culpado. Se o preferirem, é o transe que essa passagem implica. Nas suas partes cruentas, o Antigo Testamento discorre sobre essa transição e esse transe. Os filhos de Israel tinham experimentado as consequências coletivas do seu erro em Ai. Deus os tinha abandonado ao inimigo. Deviam permitir que as consequências inevitáveis dos seus pecados desabassem sobre todos ou fazê-las recair sobre um só? A resposta que Josué oferece é que eles deviam fazê-la recair sobre um, isto é, sobre o culpado.
É verdade que foram necessários todos os outros livros, entre Josué e João, para que, finalmente, o Deus que é justiça se revelasse também como amor. Para que, no único momento em que a Jesus foi solicitado exercer o papel de juiz, e ele aquiesceu, finalmente se ouvisse: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra”! Esses acréscimos foram necessários, porém a justiça do Deus que é amor já estava, desde o princípio, posta de maneira clara nos termos da fé de Israel.

A PENETRAÇÃO PACÍFICA

Após a queda das cidades de Canaã, seguiu-se a coexistência pacífica dos cananeus das aldeias com os israelitas que fixaram residência nelas e a miscigenação dos dois grupos.
Do ponto de vista cultural, ocorreu então o que geralmente ocorre quando duas culturas materiais confluem: a menos aperfeiçoada (israelita) foi absorvida pela mais desenvolvida (cananeia).
Porém, os israelitas não experimentaram somente as vitórias narradas em Números e Josué, durante a ocupação de Canaã. Eles também provaram do cálice amargo de muitos reveses, que os cananeus lhes infligiram.
Com o passar do tempo e o continuar das refregas com os cananeus nos lugares em que não conviveram pacificamente, as baixas que os filhos de Israel sofreram quase causaram a aniquilação das tribos de Rúben, Simeão e Levi (FÖHRER, Georg. História História da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 76).
Desse modo, no fim do Período das Conquistas, a vantagem numérica dos israelitas frente os cananeus deixara de existir, e a própria população israelita fora drasticamente reduzida.
Esses reveses forçaram os filhos de Israel a se manterem nas regiões altas da Judeia, que eles tinham ocupado pacificamente, como Georg Fohrer explicou: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (idem.).
Com o tempo, o acúmulo de derrotas e a necessidade de convivência pacífica com os cananeus conduziram ao abandono cabal das tentativas de conquista de terras pelos israelitas, que passaram a procurar novos meios de se estabelecer na região.
Entre as táticas de sobrevivência mais adotadas destacou-se a penetração pacífica nos territórios, inclusive urbanos, dos cananeus.
O estudioso alemão Albrecht Alt foi o primeiro propor uma teoria da penetração pacífica, na década de 20 do século passado. De acordo com ele, antes de colonizarem Canaã, os israelitas tinham sido pastores que migravam habitualmente com seus rebanhos entre a orla do deserto e as terras urbanizadas (The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 102).
Um estudo histórico-arqueológico da Universidade de Boston sobre a Idade do Bronze Médio destaca a importância da teoria de Alt: “Albrecht Alt foi um dos primeiros eruditos a notarem a multiplicação de assentamentos na Palestina, durante a Idade do Bronze Médio. Como geógrafo histórico, Alt percebeu que um número muito maior de localidades é mencionado nos Textos de Execração tardios do que nos antigos. Sugeriu que isso se devia à multiplicação dos assentamentos, o que, desde então, foi confirmado por expedições arqueológicas. Hoje sabemos que muitas das cidades bíblicas mais importantes foram fundadas precisamente nessa época” (“Middle Bronze Age, 2200 - 1570 B.C.E.”. “Settlement patterns”. Boston University. Disponível em http://www.bu.edu/anep/MB.html. Acesso em 08/04/17). 
A importância da penetração pacífica leva-nos a avaliar que a partilha da terra narrada em Josué 14 a 19 teve o caráter de uma declaração do direito das tribos a ela. Nem todos os israelitas tomaram posse dos quinhões que lhes couberam na partilha naquele momento. Na verdade, só uma pequena parte deles o fez.
Sinal claro disso é o fato de Calebe ter recebido a sua porção e sido forçado a lutar, em seguida, com os povos que ali habitavam para possuí-la: “Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, Hebrom em herança” (Js 14:13). “Dali expulsou Calebe os três filhos de Enaque: Sesai, Aimã e Talmai, gerados de Enaque. Subiu aos habitantes de Debir [...] Tomou-a, pois, Otniel, filho de Quenaz, irmão de Calebe” (Js 15:14-15,17).
A entrega de Hebrom a Calebe e a necessidade, que ele teve, de a conquistar constituem eloquente exemplo de que a partilha dos capítulos 14 a 19 do livro de Josué não importou a posse efetiva das terras aquinhoadas, mas a declaração do direito divino das tribos sobre elas. A declaração final da seção deve ser entendida sob essa ótica: “Dessa maneira deu o Senhor a Israel toda a terra que jurara dar a seus pais; e a possuíram e habitaram nela” (Js 21:43).
Os hebreus antigos não conheciam a diferença entre posse e propriedade. A declaração de Josué 15 foi a outorga da propriedade, porém não da posse da terra, que se dá pelo exercício do poder físico sobre o bem imóvel.
O próprio livro de Josué arrola uma série de terras outorgadas aos judeus, após a entrada em Canaã, das quais eles não se apossaram: “Esta é a terra ainda não conquistada: todas as regiões dos filisteus e toda a Gesur, desde Sior, que está defronte do Egito, até o termo de Ecrom para o norte, que se considera como dos cananeus [...] Ao sul os aveus, também toda a terra dos cananeus, e Meara, que é dos sidônios, até Afeque, ao termo dos amorreus; e ainda a terra dos gibleus, e todo o Líbano, para o nascente do sol, desde o Líbano até Misrefote-Maim, todos os sidônios” (Js 13:2-6).
O rol de Josué 13 teve a finalidade de encorajar os israelitas a conquistarem tais terras. Mas o fato de o encorajamento ter sido dado não significa que eles a possuíram de imediato.
Porém, isso não significa que os territórios do capítulo 13 de Josué não foram povoados mais tarde pelos israelitas. Os indícios históricos são no sentido de que a maior parte o foi.
A famosa estela de Mesa, rei de Moabe, por exemplo, afirma que “as gentes de Gade [uma das tribos de Israel] tinham habitado no país de Atarot desde sempre” (CAZELLES, Henri. História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 51).
Isso confirma que Gade, de fato, ocupou o território que o Antigo Testamento lhe atribui.
Há evidências de que o mesmo ocorreu com as outras tribos, embora entre muitos percalços.
Em síntese, a ocupação não se deu somente mediante conquistas, mas também por penetração pacífica e outros métodos. O fato de Josué o afirmar não implica contradição alguma, pois a afirmação de que Israel não conquistou muitos territórios que Deus lhe concedeu é feita deliberadamente e em frases abertas.
Pode ser que a tendência a engrandecer os feitos divinos da História de Israel tenha levado os hebreus a sobreporem as conquistas à ocupação gradual nas tradições que transmitiram sobre aqueles feitos. Sinais dessa sobreposição são encontrados em Salmo 44:1-2: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos; nossos pais nos têm contado o que outrora fizeste, em seus dias. Como por tuas próprias mãos desapossaste as nações e os estabeleceste; oprimiste os povos e aos pais deste largueza”.
“Ouvimos com os nossos próprios ouvidos” parece indicar, claramente, uma tradição oral. O mesmo acontece com a referência ao relato dos pais sobre o que teve lugar “em seus dias”.
Essas expressões indicam que a tradição oral das conquistas iniciou-se imediatamente.
A alusão exclusiva às conquistas (e não à penetração gradual), no salmo, parece mostrar como a oralidade contribuiu para a valorização maior de um dos aspectos da história.
Porém, a consciência da extensão limitada das conquistas nunca se perdeu. No livro de Judite, considerado canônico pelos católicos e apócrifo pelos protestantes, há um resumo da História de Israel em que lemos que, após o Êxodo, eles “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16).
Em suma, após a guerra narrada em Josué 6 a 12, a balança do poder, na Palestina, pendeu para o lado dos cananeus, que permaneceram alojados nas melhores terras (as das planícies), ao passo que os israelitas se estabeleceram nas regiões montanhosas.
É o que depreendemos de versos como Juízes 1:19: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale”.
Entre a redação dos relatos de Juízes e a época em que Judite foi escrito, no século II a. C., a consciência de que as conquistas sob Josué e os anciãos se limitaram à região montanhosa central de Canaã permaneceu mais ou menos intacta.
Esse estado de coisas foi determinado pela superioridade dos carros de guerra cananeus: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro [...] Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro [...] Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1:19; 4:3).
Despovoar as montanhas indica expulsar os habitantes delas, o que realmente sucedeu, embora a maior parte da penetração nos pontos elevados do território tenha sido pacífica.
De todo modo, a conquista da região montanhosa central veio a ser o único sucesso de longo prazo dos empreendimentos militares israelitas sob Josué e os anciãos que o sucederam.
Só com o triunfo de Baraque sobre os cananeus, em Taanaque, por volta de 1.357 a. C., a relação de forças começaria a alterar-se a favor dos filhos de Israel. Mesmo assim, levaria séculos para que, sob a liderança de Davi, eles começassem a se impor, em maior escala, aos habitantes locais.