terça-feira, 29 de abril de 2014

Josué em Jericó (1)

Nos séculos XVIII e XIX, desenvolveu-se a abordagem revolucionária que se tornou conhecida como Crítica Histórica e Literária dos textos bíblicos. Há hoje um consenso, entre os especialistas dessa disciplina, de que o Livro de Josué integra uma das primeiras narrativas historiográficas conhecidas: a que principia em Deuteronômio e atravessa Josué, Juízes, 1º e 2º de Samuel e 1º e 2º dos Reis. Por depender amplamente das ideias semeadas no último livro do Pentateuco, essa narrativa se tornou conhecida como História Deuteronomista.
Os estudiosos críticos compararam os livros de Deuteronômio a 2º dos Reis com escritos de outros povos e com as evidências arqueológicas disponíveis sobre o mesmo período. Concluíram que “o Dtr [autor da narrativa] foi ao mesmo tempo um editor, já que editou fielmente documentos e materiais mais antigos, mas também um autor, já que construiu uma complexa visão da história de Israel” (RÖMER, Thomas. A chamada História Deuteronomista – Introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008. p.33). Como autor, o Deuteronomista (Dtr) é “comparável aos historiadores helenistas e romanos, que também usam tradições mais antigas às quais dão um novo arranjo. A atitude de Dtr para com suas tradições é a de um corretor honesto” (idem. p. 32).
Portanto, para a maioria dos críticos, a História Bíblica propriamente dita começa com a obra do Deuteronomista. As narrativas sobre o período anterior pertencem ao território da lenda. As de Deuteronômio em diante pertencem à História. Mas Deuteronômio narra a peregrinação de Israel no deserto: devemos concluir disso que ela é parte do que os críticos reconhecem como inquestionável na narrativa bíblica? Aqui, os problemas da Crítica Histórica e Literária começam a aparecer.
A resposta mais coerente com as premissas da própria Crítica é a que reconhece que, se a narrativa de Deuteronômio a Reis foi composta pelo mesmo autor-editor, com base no mesmo método, a parte incluída em Deuteronômio é tão histórica quanto as demais. Mas, se assim é, temos de admitir um Moisés histórico muito bem definido (o de Deuteronômio) e um Josué histórico idem (o do Livro de Josué), o que está longe de ser pouca coisa para os padrões de uma História tão recuada.
O autor Deuteronomista não esconde a vantagem técnica e material dos cananeus sobre os israelitas, quando os dois povos se defrontaram, a princípio de maneira hostil, depois mais pacificamente. Pelo contrário, ele a admite: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro” (Js 17:16). E de novo: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro” (Jz 1:19) e “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Jz 4:3).
A falta de carros de ferro devia-se à incapacidade dos israelitas de fundir o ferro nesse período, como 1º de Samuel 13:19-20 claramente atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice”. Se no tempo de Saul os israelitas já estabelecidos em Canaã não fundiam o ferro, que dizer durante a peregrinação e as lutas sob a liderança de Josué?
Temos, portanto, dois povos a se confrontarem, um dos quais dominava o ferro, e o outro, não. É possível que os israelitas tenham fabricado instrumentos de bronze, pois passaram próximo de uma jazida desse minério, em Edom (Nm 21:4), durante a peregrinação. O arqueólogo Nelson Glueck provou que “o cobre era extraído [nesse local] em data bem antiga” (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Não podemos esquecer que, por essa época, Moisés foi capaz de forjar uma serpente de bronze (2 Rs 18:4; Nm 21:4). Porém, as armas de bronze dos israelitas eram inferiores às de ferro que os cananeus possuíam, de modo que a vantagem técnica do povo local deve ter-se refletido no campo de batalha e sido responsável por Josué e seus comandados terem conquistado Canaã de modo apenas parcial.
No entanto, apesar dessa vantagem bastante nítida, nas batalhas de Jericó, Gibeão e Hazor e na tomada de outras cidades, ela não garantiu a vitória aos cananeus. As lutas por tais cidades estão narradas nos capítulos 6 a 12 de Josué. Robin Lane Fox escreveu sobre elas: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções [da ocupação nesses lugares]: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão [...] Na Palestina, a passagem da média para a alta Idade do Bronze coincide com a presença conspícua de um certo tipo de cerâmica (a Bicromia Cipriota) nos níveis relevantes dos sítios. Este tipo de cerâmica data do século XVI a. C.” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 209-210).
Notem que Fox alude a “duas interrupções”, não a uma só, o que sugere duas épocas em que várias cidades de Canaã foram destruídas, ao mesmo tempo. Uma dessas épocas corresponde à data do Êxodo e das conquistas preferida pelos historiadores: o século XIII (passagem da “alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro”, no texto de Fox). Porém, a outra coincide com o período em que a Bíblia e Flávio Josefo situam o Êxodo, a saber: o século XVI a. C. Essa é a data do Êxodo que defendi nos textos sobre o Moisés histórico. Vejamos os reflexos dela na conquista de Canaã.
Alfred Läpple relata: “Em Tell-es-Sultan, lugar da antiga Jericó [...] há um montão de ruínas de 21 m. de altura. É atestada já no período neolítico (antes de 4000 a. C.) a existência de uma cidade munida de poderosas torres de defesa, que se estendia sobre uma área de 30 hectares mais ou menos. Sucessivamente foram construídas outras três cidades. A primeira, da época do Bronze Antigo, ficou de pé até 2000 a. C. aproximadamente. A segunda surgiu na época do Bronze Médio, em torno do ano 1700 a. C. e representa, entre todas as ocupações que se sucederam nesta colina, a mais extensa. A terceira cidade construída depois de 1580 a. C. sofreu em seguida uma tremenda destruição” (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. pp. 73-74).
A Crítica considera que a cidade da época do Êxodo não foi qualquer dessas. Foi, pois, uma quinta Jericó. Mas o problema é que não há sinais de destruição dessa quinta cidade, ao passo que a anterior “sofreu uma tremenda destruição”. Claro que, para os críticos, a destruição de Jericó narrada na Bíblia é miraculosa, portanto não ocorreu. Porém, Läpple nos diz que a quarta cidade foi efetivamente destruída. Miraculosa ou não, a sua destruição foi narrada pelo Deuteronomista. Portanto, deve ter ocorrido.
Läpple afirma sobre a destruição da quarta cidade: “Montes de tijolos avermelhados, pedras quebradas, madeira carbonizada e cinzas encontrados por John Garstang atestam um grande incêndio” (idem). Por que considerar que as conquistas se deram no século XIII a. C., se a Jericó dessa época não foi destruída? E por que não considerar que os filhos de Israel entraram em Canaã no século XVI, como a Bíblia e Josefo afirmam, se a Jericó que então existia foi de fato destruída?
Claro que há dúvidas arqueológicas sobre as características da cidade destruída e da própria destruição. Mas as dúvidas não se estendem aos dados básicos de que houve uma Jericó, no século XVI, e ela foi destruída. Arqueólogos da Universidade La Sapienza descobriram que a muralha dessa cidade foi parcialmente derrubada, mas não há nela sinais de saque (Folha de S. Paulo. 19/06/1997. p. 1-16). E não sei por que motivos eles concluíram que isso contraria o relato bíblico. Josué 8:2 esclarece que Jericó não foi saqueada: “Farás a Ai e a seu rei o que fizeste a Jericó e a seu rei; somente que para vós outros saqueareis os seus despojos”. As palavras “somente que para vós outros saqueareis” significam que Ai foi saqueada, e Jericó, não. Portanto, a descoberta dos arqueólogos confirma até o ponto desse pormenor o relato bíblico.
Há mais. Os pesquisadores de La Sapienza declararam que “o local onde surgiu a cidade esteve abandonado entre os anos 1.550 a. C. e 1.000 a. C.” (idem). Robin Lane Fox, de Oxford, confirma essa informação: “Pode ter havido uma aldeia de tamanho razoável em Jericó em torno de 1320 a. C., mas não havia nada que pudesse lembrar uma cidade ou muros intransponíveis. Desde 1.300 a. C., não houve qualquer ocupação humana no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. pp. 210-211). O problema é que, se entraram em Canaã no século XIII, os israelitas devem ter encontrado grande dificuldade para destruir uma cidade que não existia!
Depois de Jericó, caiu a cidade de Ai, que também foi saqueada e destruída (Js 8:27-28). A diferença é que os indícios da destruição não foram encontrados, no local tradicionalmente identificado como Ai. Pode ser que a lacuna se deva às escavações terem sido feitas no lugar errado, já que o sítio de Ai (et-Tell) não esteve ocupado entre 2.210 e o século XI a. C.
Aliás, mesmo antes, "as escavações mostram que houve uma ocupação pré-urbana de Ai desde 3.200 a. C." Essa ocupação pré-urbana era uma aldeia, razão pela qual é mister concluir que "ainda não foram encontradas evidências arqueológicas sobre a própria Ai” (CHAMPLIN, Russel Norman. Dicionário. In O Antigo Testamento interpretado – versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2001. Verbete Ai, p. 3758). Lane Fox também escreveu que “alguns camponeses começaram a construir uma aldeia no local” (FOX, Robin Lane. Ob. cit. p. 211).
Contrariamente a essas evidências, o Deuteronomista nos fala de um local murado, que possuía um rei, repeliu a primeira agressão dos israelitas e só foi derrotada com a intervenção de milhares de guerreiros. É o que se depreende do fato de os habitantes de Ai terem deixado “a cidade aberta” (Js 18:17), da grande derrota dos três mil que subiram contra a ocupação ali existente (Js 7:4-5), das alusões ao rei de Ai (Js 8:1-2, 14) e dos milhares de israelitas que participaram da emboscada bem-sucedida contra a cidade (Js 8:3,12).
Portanto, a Ai descoberta pelos arqueólogos não é a que foi derrotada pelos israelitas. Josué nos informa que esta ficava junto de Bete-Áven, ao oriente de Betel (Js 7:2), enquanto a aldeia descoberta pelos arqueólogos (et-Tell) ficava ao oriente de Betel, mas não junto de Bete-Áven: “Enviando, pois, Josué, de Jericó, alguns homens a Ai, que está junto a Bete-Áven, ao oriente de Betel, falou-lhes”. Por tudo isso, a Ai descoberta pelos arqueólogos, localizada a três quilômetos de Betel (LÄPPLE, Alfred. Ob. cit. p. 75), não pode ser a cidade situada junto de Bete-Áven a que a Bíblia se refere.
Sabemos que Ai, em hebraico, significa ruína. Atentos a isso e às dificuldades envolvidas na localização tradicional, alguns estudiosos propuseram, recentemente, sítios alternativos para Betel e Ai, que permitem a identificação para Beth-Áven. Sua proposta consiste em alterar a localização tradicional de Betel da moderna vila de Beitin para El-Bireh, situada a apenas três quilômetros de distância. Com isso, Beth-Áven passaria a ser Beitin, e Ai, uma fortaleza descoberta, nessa cidade, e datada da Idade do Bronze Média e Alta (www.biblearchaeology.org/post/2008/04/Beth-Aven-A-Scholarly-Conundrum.aspx#Article).
A localização alternativa corresponde, muito melhor, às informações bíblicas, pois não apenas fornece um lugar para Betel e Ai, mas também para Beth-Áven. Com ela, o triângulo entre essas três localidades se fecha. Além disso, ficamos com uma Ai que existiu, exatamente, no período de Josué (entre a Média e a Alta Idade do Bronze). Como o local nunca mais foi reconstruído, temos de concluir que, quando o Livro de Josué foi redigido, ele estava em ruínas. Por isso, era denominado Ai. Seu rei pode ter sido o mesmo de Betel ou outro. 
Com isso, o que os críticos têm a alegar de substancial em contrário à datação mais antiga das conquistas limita-se à ausência de sinais de destruição no sítio convencional de Ai (et-Tell), seja em Laquis ou Debir. Porém, a relocalização de Ai defendida acima, fornece um local adequado para a primeira daquelas localidades. Quanto a Laquis e Debir, o texto bíblico não afirma que foram destruídas como Jericó. A conquista delas é narrada com a de outros quatro lugares, numa sequência de poucos versículos (Js 10:28-43). Uma característica literária desse trecho de Josué é a equiparação de cada conquista a outra da mesma passagem, em vez da comparação com vitórias anteriores, como as ocorridas em Jericó ou em Ai. Assim, a tomada de Libna é equiparada à de Maquedá, a de Laquis, à de Libna, a de Eglom, à conquista de Laquis, à de Hebrom, à tomada de Eglom, e a de Hebrom, finalmente, à de Debir. Só um ponto, nessas conquistas, é assemelhado ao que ocorreu em Jericó, a saber: o fato de seus reis terem sido mortos.
Isso estabelece um padrão diferente da destruição seguida de incêndio ocorrida em Jericó e Ai. Notem que o verbo utilizado para descrever a primeira dessa nova sequência de vitórias é tomar. “Tomou Josué a Maquedá” (Js 10:28). Tomar implica não destruir. A única exceção é Hazor, que foi destruída logo depois de Debir ser tomada (Js 11:10-11). Mas em Hazor não faltam restos de destruição. Voltemos ao texto citado de Lane Fox e vejamos que ele afirma: “Os arqueólogos encontraram duas grandes interrupções: uma é a passagem da média para a alta Idade do Bronze e a outra da alta Idade do Bronze à baixa Idade do Ferro. No primeiro caso está a destruição de várias cidades muradas, entre as quais Jericó, Hazor e Gibeão”.
Assim, das duas datas mais frequentemente atribuídas ao Êxodo e às conquistas, a da História Deuteronomista parece a mais correta. Curioso é que Lane Fox chegou a conclusão diametralmente oposta a essa, mas ele o fez com base numa visão de conjunto, não de detalhe das Escrituras. Quando olhamos para o conjunto e também para o detalhe do texto bíblico e os comparamos com os dados arqueológicos, a data que prevalece é a mais remota, não a mais recente.
Esse é o tempo das conquistas, na História Deuteronomista. No entanto, os críticos estão sempre prontos a abandoná-lo. Pergunto de que adianta essa longa narrativa ter sido escrita com a melhor técnica e o maior rigor possíveis, se não a utilizamos. Adianta tanto quanto alguém ter à disposição uma Medicina avançada e tratar suas doenças com o xamã.
Em 1956, Holywood lançou "Os Dez Mandamentos", com Charlton Heston como Moisés. Lançou há pouco "Noé", com Russell Crowe. Quanta diferença no modo de ver a Bíblia essas obras expressam! A primeira não é só rente à História: revela uma preocupação mais intensa com o sagrado como a Bíblia o apresenta. Se não quer propriamente alterar a concepção do sagrado, se não quer mudar Deus ao mudar Noé entre o início e o fim do filme, a obra de Darren Aronofsky cumpre ao menos o propósito de mostrar os desafios postos à concepção bíblica do divino. O homem sofisticado, de espírito crítico, dirá que Noé erra ao desejar a destruição cabal da humanidade; o indivíduo comum pensará que ele enlouquece. Mas a loucura não é o asilo em que encerramos o que nos ameaça ou, simplesmente, não entendemos? Se Noé está errado, Deus está errado. Está errada a concepção cristã do sagrado. É o que o filme propõe.
Não estará errada a percepção do sagrado na Bíblia que o tempo atual revela?Aliás, essa percepção não escoou dos corações e seu perdeu juntamente com os fatos da história bíblica? Não terminamos vazios da história e do próprio sagrado? Mas o filme promove algo bom: a tolerância. Assistir ao Deus errado enviar o Dilúvio errado revolta, mas só um pouco. Aprendemos e devemos aprender ainda melhor a crer com tolerância, não com violência. A era da violência religiosa passou, para muitas pessoas e em muitos lugares. Isso é irrevogável. Quem lançou mão do arado da aceitação não deve olhar para trás. Do lugar em que está deve caminhar para o mundo e ará-lo com a tolerância.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A Filosofia Perene (3): Que é Filosofia Cristã?

A Filosofia Cristã é uma seção do discurso filosófico multimilenar. Podemos considerá-la o tratamento específico que pensadores com formação filosófica e teológica desenvolveram sobre o sentido do Universo e da existência humana.
Porém, embora tenha temas diversos, a Filosofia Cristã concentra-se num objeto principal, que sobressai aos demais. Refiro-me ao ser enquanto ser, como ele foi denominado na tradição peripatética e aristotélica. No século XVIII, Emmanuel Kant propôs a realização de um giro copernicano, na Filosofia, consistente em não mais a centrar na questão do ser e em fazê-la gravitar ao redor do conhecer. Essa revolução filosófica só pôde ser propugnada tão tarde, na História, porque, de fato, a Filosofia tinha-se debruçado, até então, de modo preponderante, no ser. Porém, ao propor-se, ela colocou em xeque a Filosofia Cristã, com sua histórica inclinação ao ser.
Na Encíclica Fides et ratio, João Paulo II anali-sou o papel da Filosofia no conhecimento e as suas relações com a fé. Nesse histórico documento, que filtra e apresenta o sentir e o pensar dos católicos ao longo de séculos, percebemos o enorme relevo atribuído pelo Pa-pa o problema do ser. Para João Paulo e a Igreja Católica, “o contributo específico [da Filosofia] é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta” (JOÃO PAULO II. Fides et ratio – sobre as relações entre fé e razão. 7ª ed., São Paulo: Loyola, 1999. p. 6). Porém, na medida em que ela o faz, “é possível reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem” (idem. p. 7).
João Paulo não hesita em afirmar que “esses e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe um conjunto de conhecimentos nos quais é possível ver uma espécie de patrimônio espiritual da humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita” (idem. p. 7). E identifica, a seguir, essa “filosofia implícita” como “os princípios primeiros e universais do ser”, dos quais é possível “deduzir correta e coerentemente conclusões de ordem lógica” (idem). Em outras palavras, para a Igreja, a Filosofia Cristã é uma reflexão sobre o ser e, só secundariamente, sobre outros problemas filosóficos. O ser comanda e deve comandar todo o questionamento filosófico.
Assim concebida, porém, a Filosofia Cristã torna-se incompatível com o giro de Kant, pois não admite o que ele propõe com maior urgência: o deslocamento das reflexões sobre o ser do centro para a periferia do pensamento filosófico. E o que espanta é que essa posição da Igreja não assenta em qualquer espécie de equívoco filosófico demonstrável, nem constitui resistência infundada ao moderno. É, antes e tanto quanto se perceba, uma maneira válida de ver e interpretar toda a Filosofia já dada.
A Filosofia Cristã resiste ao giro copernicano, pois essa reviravolta da reflexão está à raiz do enfraquecimento do saber sobre Deus construído, ao longo de séculos, na tradição filosófica do ser. Ouçamos em que termos João Paulo II o expressa: “A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral” (idem. p. 8).
Essa posição filosófica tem o mérito de uma coragem extrema, pois desafia o núcleo do que se convencionou considerar o corte filosófico entre o pré-moderno e o moderno: precisamente o giro copernicano. Mostra-nos, ademais, que a Filosofia Cristã pode ser interpretada como resistência àquele giro e, enquanto tal, a toda a Filosofia Moderna e Contemporânea.
Mas é preciso ressaltar: nem por ser entendida assim, a Filosofia inspirada na fé deve ser considerada reacionária, pois não resiste a todos os aspectos do moderno e do contemporâneo. Pelo contrário, a Filosofia Cristã critica o giro copernicano por não o reconhecer como o ponto decisivo da Modernidade na Filosofia, muito menos da Modernidade em geral. Trata-o mais como equívoco do que como legítima revolução.
A posição de Heidegger, no panorama da Filosofia Contemporânea, é semelhante à católica, pois também ele afirma a preponderância do ser e, por aí, se alia à resistência ao giro copernicano. Claro que, em muitos outros aspectos, Heidegger e a Filosofia Católica divergem. Porém, no tocante à centralidade do ser, eles se dão as mãos. Pergunto: seria Heidegger reacionário ou antimoderno? Bem, não é essa a avaliação que a maior parte dos filósofos, que o considera integrante legítimo da vanguarda filosófica, no século XX.
Poderíamos afirmar o mesmo de outros filósofos proeminentes, inclusive de céticos como Nietzsche. Mas basta o exemplo de Heidegger para assentar que a rejeição do giro copernicano não torna uma reflexão ultrapassada, nem a relega à condição de relíquia ou antiguidade.
Mas é preciso admitir que, em algum ponto, a Filosofia Católica se complica, no combate à modernidade filosófica. Penso identificar esse ponto não com a crítica à supervalorização da filosofia do conhecimento, mas com a variedade específica de filosofia do ser que a Igreja professa. Essa filosofia ainda é a de São Tomás que, inexcedível na sua época, apresenta limitações que a mantêm em descompasso com o conhecimento atual.
Em que pesem os méritos substanciais de Tomás como filósofo, ele não representa a maturidade da reflexão sobre o ser. O século em que viveu, o décimo-terceiro, foi um dos mais convulsionados da História da Filosofia. Foi o século em que as águas do pensamento se bifurcaram numa corrente ligada à Metafísica clássica e outra a ciência emergente.
Um dos maiores estudiosos desse período da Filosofia, Étienne Gilson, cita Duhem, que datou “de 1277 o início da ciência moderna (Études sur Léonard de Vinci, t. II, pp. 411-412)”. E acrescenta que, “em outro texto, o mesmo historiador propõe outra data mais tardia: ‘Se se quiser separar, com uma linha precisa, o reinado da Ciência antiga do reinado da Ciência moderna,seria preciso traçá-la, acreditamos, no instante em que João Buridano concebeu essa teoria [do impetus], no instante em que cessou-se de ver os astros como movidos por seres divinos, em que se admitiu que os movimentos celestes e os movimentos sublunares dependiam de uma mesma mecânica’ (Op. cit., t. III, p. XI)” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.p. 604).
No ano 1277, citado por Duhem e Gilson, passou-se, de fato, a condenação de uma longa série de proposições filosóficas e teológicas, por Étienne Tempier, com o objetivo de conter o movimento averroísta e o avanço de teologias (como a de São Tomás) calcadas em Aristóteles.
Os principais adversários de tomistas e aristotélicos, naquela época (os franciscanos), seguiam as pisadas de Boaventura, que ensinou que não precisamos de conceitos muito abstratos para chegar a Deus, já que a compreensão do mundo, como ele é, nos leva a ele. Os franciscanos inclinavam-se à doutrina agostiniana do conhecimento como iluminação de Deus e, com base nela, eles resistiam ao averroísmo e ao tomismo. Tornaram-se, assim, o grande celeiro medieval de pensadores empiristas aos quais Duhem se refere como fundadores da ciência moderna e que, desde cedo, ofereceram uma alternativa viável ao tomismo.
Pode ser, pois, demonstrado que a filosofia tomista, adotada entusiasticamente pela Igreja Católica, surgiu na bifurcação entre o pensamento metafísico e o científico. E a verdade é que, desde o início, ela não se situou muito bem, no tocante à bifurcação, pois forjou sua identidade em oposição ao empirismo. Assim, mesmo após a correção dos excessos metafísicos, a filosofia do ser restante, na tradição católica, nas palavras de João Paulo II, “assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência”, mas “move-se apenas com a luz do intelecto” (JOÃO PAULO II. Ob. cit. p. 11).
Assentar na percepção, no sistema tomista, é se conformar à máxima aristotélica segundo a qual nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Não é muito mais do que isso e é muito menos do que se exige para colocar o pensamento em razoável conformidade com o empirismo radical que a ciência moderna introduz. Nesse sentido, como João Paulo bem o expressa, é que a Filosofia Católica não se move pelos sentidos, mas pelo intelecto e somente por ele. Ela é, de fato, em larga medida, independente dos sentidos.
Na independência dos sentidos, reside a fragilidade da filosofia do ser da Igreja Católica. Os próprios exemplos de “filosofia implícita” citados pelo Papa (a não contradição, a finalidade, a causalidade e a pessoa humana) são, para ele, universais, naturais, portanto imutáveis. Essa a posição católica. Podemos questionar, seriamente, se existem, de fato, conceitos imutáveis ou revestidos de validade universal.
A História, tanto da Filosofia como das Ideias, é pródiga em invalidações de conceitos que um dia foram considerados independentes da experiência. Não é diferente com a não contradição e os outros princípios mencionados por João Paulo. Se a Filosofia deve ser considerada uma disciplina crítica, como penso ser o cso, cabe-lhe mais criticar aqueles conceitos e contribuir para a sua invalidação do que para criar a ilusão de que permanecem válidos independentemente da experiência que ocorre no tempo e no espaço.
Em outras palavras, o problema da Filosofia Católica e das correntes filosóficas cristãs influenciadas por ela não é assumir posição metafísica, mas não desenvolver a crítica metafísica. Após o surgimento da ciência moderna, é impossível à Filosofia proceder à revelia dela. Claro que o método da Filosofia não é o daquela ciência, mas, para exercerem o papel que lhes é reservado, as proposições filosóficas hão de ser desafiáveis por dados científicos e não independentes deles.
Em suma, a Filosofia Cristã continua a ser relevante, hoje como no passado, mas penso que deve evitar o pressuposto de que “a história do pensamento mostra que certos conceitos básicos mantêm, por meio da evolução e da variedade das culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposições que os exprimem” (idem. p. 72). Chego a pensar que a missão da Filosofia Cristã consiste, ao contrário, em dirigir sua crítica aos conceitos básicos mencionados por João Paulo e demonstrar que eles podem ser invalidados, em certas condições.
 Assim, a Filosofia Cristã continua a ser uma preparação para a fé. Continua a ser, igualmente, uma filosofia do ser. Conquanto a abertura ao empírico abra-a a tantos desenvolvimentos possíveis que o caminho adiante da Filosofia Cristã chega a ser imprevisível, por outro lado, não pode esse ramo do pensar filosófico deixar de ser o que a História o tornou, entenda-se uma filosofia do ser.
De todo modo, a preparação de tal filosofia realiza-se fora da fé. Ela não consiste em criar certezas, mas em dissolvê-las por meio da razão. Com efeito, se a fé é certeza, a preparação para ela deve estar fora dessa certeza. Deve, pois, consistir na num tratamento da dúvida. Há dúvidas que são vizinhas da certeza: identificá-las é a missão da Filosofia Cristã ou perene.
Claro que, como o homem não é capaz de conduzir suas obras à perfeição, a Filosofia tampouco tem o objetivo de dissolver todas as certezas. Como já sinalizei, seu escopo é muito mais seletivo. Consiste em identificar as exatas certezas que convém dissolver para em seu lugar implantar a dúvida e, pela dúvida, propor a fé.
Há talvez, aqui, uma inversão do papel histórico da Filosofia Cristã, mas uma inversão relativa. Embora cristalizada em certezas, pela atuação das igrejas, a reflexão dos filósofos cristãos nunca deixou de introduzir abundantes dúvidas. Esse foi sempre o seu papel principal. Procurarei separá-lo do trabalho de cristalização da reflexão em dogmas, realizado pelas igrejas, com a Católica à frente, e continuá-lo pela explicitação de minhas próprias dúvidas, para que se exerça com força máxima.
Porém assim esclarecida, a missão da Filosofia só se cumpre, passando em revista a História do Pensamento sob uma nova perspectiva, a saber: a da dúvida. Essa é a perspectiva que mais faz jus ao trabalho filosófico como a História o apresenta. Registre-se que ele é perfeitamente apto a preparar os espíritos para a fé, se esta nasce e se alimenta da dúvida, como penso que o faz.
Não é, pois, de estranhar que a apresentação da Filosofia Cristã neste livro percorra, de início, as escolas filosóficas, não com o objetivo de apresentá-las inteiramente, mas de apresentar as dúvidas que podem ser formuladas sobre as doutrinas centrais delas. Só a esse preço, a philosophia perennis se torna capaz de exercer o seu magistério.
Claro que, para exercer tal tarefa, a Filosofia deve dialogar com as ciências positivas e utilizar os dados delas. Do contrário, sua validade permanecerá confinada no território metafísico. Porém, ao fazê-lo, ela deve saber incorporar aqueles dados à sua reflexão específica a respeito do ser.
Esse parece ser o melhor caminho de desenvolvimento para a Filosofia Cristã, no tempo atual. E o é por não ser um caminho necessário. Para abrir caminho à fé, pela razão, não é preciso recorrer à certeza. Basta estabelecer bem a dúvida. Basta revisitar, revisar e, se possível, desintegrar conceitos. Principalmente os que fundamentam os quadros amplos do real que pintamos ao andar pelo mundo.
Principalmente os que fundamentam os quadros mais amplos que pintamos ao andar pelo mundo, quase sem perceber que os pintamos para desintegrá-los, como seres formados na contradição e não apenas na lógica.Vinícius e seu parceiro Toquinho escreveram sobre o Dilúvio, logo após terem dito “Herodes natural”: “Escute, amigo/ Se foi pra desfazer/ Por que é que fez?” A pergunta ressoa em todos os corações. E o faz tanto mais quanto vamos pela vida a pintar e a destruir, a destruir e a pintar nossos mundos filosóficos.

A Filosofia Perene (1): Que é Filosofia?

A Filosofia existe há dezenas de séculos, mas, até hoje, os filósofos se perguntam a que ela se presta. É um fato chocante, pois não se reproduz com qualquer outro saber humano. E, talvez por vislumbrarem isso, quando as belas-letras voltaram à cena, durante o Renascimento, espíritos jocosos afirmaram que a “Filosofia é uma ciência tal que o mundo, com ou sem a qual, continua tal e qual”. Nenhuma definição (de um estado de espírito, é claro) poderia ser mais lapidar.
Mas, longe de desmoralizar a Filosofia, a repetição da pergunta sobre a sua finalidade realça a inusitada importância dessa disciplina. Comparemos um instante nossa disciplina com a dos biólogos. Estes perguntam, frequentemente, o que é a vida e, com idêntica frequência, confessam não o saber. A verdade nua é que a ciência da Biologia gira em torno dessa pergunta sem resposta. Nem por isso a consideramos uma ciência vã. Pelo contrário, a repetição da pergunta sobre o seu objeto realça que a vida é algo tão profundo que uma ciência inteira se faz necessária para formular a pergunta a respeito dela e respondê-la só de modo parcial.
A situação da Filosofia é, porém, ainda mais dramática, já que os filósofos não se perguntam só sobre o objeto da sua ciência, mas sobre a própria ciência. Assemelham-se, assim, ao aluno que estuda a lição e não só não a aprende como sequer desconfia o que seja estudar. Convenhamos que esse tipo corre mais risco de vir a ser considerado um asno que aquele que não aprende a lição, mas compreende, ao menos, o que é estudá-la.
Precisamos lembrar, porém, que a Filosofia não deve ser tão antiga, nem possuir uma História de mais de 25 séculos à toa. Algo estudado, por grandes mentes, durante 25 séculos, não há de ser considerado mero perfume acadêmico. De sorte que a perplexidade que a Filosofia nos causa pode ser mais devida ao mistério que a envolve do que à sua inutilidade.
Entre outras coisas, a Filosofia é misteriosa por ser um saber negativo. É comum esperarmos que um conhecimento sirva para alguma coisa ou, como se usa dizer, para “fazer alguma coisa”. Não há outro remédio que reconhecer que os que criticam a Filosofia por não nos ajudar a fazer coisa alguma estão certos, pois ela nos ensina não a fazer, mas a desfazer coisas. Ao menos, é a desempenhar essa função que a observamos no corpo da História.
A Filosofia é um saber bastante determinado, com objeto e partes bem estabelecidos e uma História luminosa. Mas, ainda assim, é um saber que serve para desfazer coisas, ou melhor, ideias. Especialmente para desfazer ideias que se impuseram ao longo de tanto tempo que se fizeram convencionais. Em outras palavras, a Filosofia serve para criticar o senso comum.
Ao menos desde Dionísio, o Areopagita, falamos e ouvimos falar de teologia negativa. A expressão só se justifica se tomarmos a teologia no sentido estrito de um conhecimento da essência de Deus. Estamos em amplo acordo sobre a incompreensibilidade de Deus. Nunca encontrei meio teólogo que discordasse dessa assertiva. Sabemos também que, se a essência de Deus é incompreensível, só podemos conhecer o que ela não é, jamais o que é. Essa é a afirmativa básica da teologia negativa.
No entanto, se não tem o que dizer sobre Deus, é absurdo a teologia aventurar-se a estabelecer o que ele não é, já que isso envolve uma contradição. Se pudermos entender o que Deus não é, não ficará implícito que ele é todo o resto ou parte do resto? Deus não resultará parcialmente determinado por essa via? E a teologia negativa não desaguará na negativa de si mesma? Essas dúvidas enfraquecem as propostas, de outro modo atraentes, da teologia negativa.
Chegamos, assim, a um paradoxo e dos mais profundos: a teologia é um conhecimento que divisa, de um lado, com a incompreensibilidade de Deus e, de outro, com a incompreensibilidade da teologia negativa. Só lhe resta, portanto, um caminho para existir: espremer-se o melhor que puder entre esses limites e reconhecer que, se não nos fala da essência divina, ela nos diz, necessariamente, das obras de Deus. Retornamos, assim, ao que Deus é ou aos reflexos do seu ser sobre o ser do mundo. Retornamos à teologia positiva e penso que nela devemos permanecer.
Porém, algo muito distinto se passa com a Filosofia. Ela é um saber negativo, por nos mostrar muito mais o que não sabemos do que o que o efetivamente conhecemos. Filosofia é o perguntar que serve para erodir e rebaixar as montanhas do saber humano. Na medida em que o faz, ela prepara o caminho para as ciências assertivas, assim naturais como sociais.
Pode ser útil dar exemplos históricos do uso negativo da Filosofia. A Lógica e a Metafísica, como da Filosofia, trabalham intensamente com categorias, isto é, com conceitos que fundam todos os outros conceitos. Exemplos de categoria são a substância, a quantidade, a qualidade, o tempo, o espaço, entre outras. Se olharmos para a História da Filosofia como um contínuo, perceberemos que o que umas escolas sustentam anula o que as outras afirmam sobre as categorias. Ficamos, assim, sem a certeza mínima sobre o que tais conceitos realmente podem significar.
Não há nisso qualquer autoaniquilação da Filosofia. O saber filosófico não é autofágico, pois não foram os filósofos que inventaram as categorias. Mas eles demonstraram tão bem as impropriedades no uso desses conceitos que terminamos sem eles. Não sem os filósofos, por sorte, mas sem as categorias.
É absolutamente normal e benéfico a Filosofia ser assim usada para desconstruir o saber humano. Ao fazê-lo, ela mostra, mais do que todas as outras disciplinas, que o saber tem limites essenciais e não apenas acidentais. Essa é a função primordial da Filosofia, até porque é difícil achar outra na massa de reflexões que a História nos apresente sob o nome de filosofia.
Quero dizer que, ao contrário de outras ciências, como a Física e a Biologia, que tantas contribuições ofereceram para o conhecimento humano, a Filosofia só faz o conhecimento avançar, positivamente, ao expor, de uma nova maneira, o que antes já se conhecia. No Organon, por exemplo, Aristóteles mostra como o conhecimento comum se processa. Alguém duvida de que os que o liam e o leem com avidez já o sabiam?
A oposição das escolas é apontada como o movimento geral mais nítido da História da Filosofia. E é bom que se lembre que as escolas se oporem nem sempre significa anularem-se, mas quase sempre se traduz em uma enfraquecer a outra. Em uma escola mostrar mil dúvidas que a posição da outra envolve. Maimônides é fundamental por ter aquilatado isso com tanta acuidade que nos legou o Guia dos perplexos (Maimonides, Moses. The guide for the perplexed. 2nd. edition, New York: Dover, 1956) como roteiro para todos os que reconhecem as dúvidas insolúveis a que essa disciplina conduz.
Mas a oposição das escolas não é o único motivo para negarmos que a Filosofia contribua, positivamente, para o conhecimento humano. O motivo maior é o fato de nossa disciplina ser muito mais destrutiva do que assertiva, muito mais crítica do que demonstrativa. É, enfim, o fato de ela servir tão bem para desfazer as ideias mais arraigadas que se albergam no interior das culturas e as regem, a saber: as que constituem o senso comum de cada época.
A crítica do senso comum é, portanto, o escopo da Filosofia. Ela se dá, primordialmente, pela revisão e superação das categorias que fundamentam esse acervo básico de pontos de vista e concepções. Por isso, a Filosofia não sintetiza categorias: critica-as. Não as sintetiza, primeiramente, porque sua finalidade não é positiva, mas negativa. É claro que não vou ao ponto de propor que os filósofos, enquanto tais, nunca descobrem algo ou mostram algo novo. Eles até o fazem, mas não o demonstram. Demonstram, somente, e bem, aquilo que criticam.
Essa vocação, a meu ver tão nítida, ilumina com matiz tão especial o tempo presente, no qual se percebe não só a ausência de uma escola triunfante no campo da Filosofia, mas também nos territórios da Teologia, da Psicologia, da Antropologia, da Política e da Economia. Por que não há vencedores claros, no embate das doutrinas? Uma das razões talvez seja a existência da Filosofia, que realizou e continua a realizar seu trabalho com proficiência suficiente para não o permitir. Ela se hipertrofiou a tal ponto e gerou um arsenal tão imenso, ao longo dos séculos, que ele é comumente usado para destruir o que se apresenta como triunfante na História das Ideias.
Porém, esse trabalho de limpeza do terreno, que caracteriza a Filosofia, não é um fim em si mesmo. O terreno não é limpo por ela e por outros saberes para permanecer vazio. E utilizá-lo é, no caso, erguer novas doutrinas, após a remoção do entulho. Portanto, o trabalho filosófico pede o complemento de um saber positivo que erga, no terreno descontaminado, o templo de um novo conhecimento.
Que saber é esse e que templo há de construir? Não há perguntas mais cruciais do que essas a que a razão humana possa elevar-se. Se o trabalho crítico (que não cabe apenas à Filosofia, mas lhe cabe principalmente) tem sido bem-sucedido, o feliz resultado deve encorajar-nos a buscar o saber que sobreviveu a ele.
Não é esse um saber simplesmente técnico, embora a técnica e sua cria moderna, a tecnologia, sejam uma consequência normal dele. O saber sobrevivente à tarefa negativa da Filosofia, em todas as suas etapas, é antes de tudo uma visão de mundo. A visão que o homem sempre buscou, que ele construiu e viu desabar não uma ou duas vezes, mas vezes mil. Porém, ainda assim, uma visão de mundo, pois o espírito humano tem vocação, e vocação verdadeira não se perde para o fracasso.
Não restam muitos bons candidatos a constituir a visão de mundo remanescente à crítica das disciplinas negativas. As ciências naturais têm sido bem-sucedidas. As sociais também, ainda que apenas para quem tem olhos para ver. Claro que há mil correções a serem feitas numas e noutras, mas o que justifica o crédito concedido às ciências é exatamente essa corrigibilidade.
Num dos lados do terreno que a crítica limpou, estão, pois, as ciências. Do outro lado (entrego-me ao apedrejamento), temos a Teologia. Não qualquer teologia, pois a maior parte dos sistemas propostos sob esse nome foi refutada. Temos, porém, o que, na História da Teologia, se denomina compreensão pela fé.
Com essa expressão, não me refiro tanto à fé que segue a compreensão (Intelligo ut credam), mas à compreensão que se segue à fé (Credo ut intelligam). A diferença entre as duas não é desprezível. A primeira faz parte da fé cristã, mas a grandeza do cristianismo, no campo do conhecimento, deve-se à outra. Quando nos limitamos ao Intelligo ut credam, terminamos com Deus, sim, mas com um Deus pequeno, com um Deus do tamanho do nosso intelecto. Só pelo Credo ut intelligam, chegamos a um Deus grande, ao Deus que se revelou e revela na fé, ao Deus que se deu a conhecer e não foi jamais descoberto.
Concordo com os que, ao longo da História, viram na Filosofia não um caminho em si mesma, mas um método de preparação do caminho em si mesmo, isto é, do caminho que existe independentemente dela. A Filosofia é uma preparação do caminho por Deus, pois, exercida negativamente com a persistência devida, coloca-nos na encruzilhada de dois ou três caminhos, um dos quais leva a Deus. Esse é o caminho da fé.
Reafirmo, portanto, que a Filosofia prepara para a fé. Isso é consabido. O que nem sempre se disse, de maneira clara, é que ela só exerce esse magistério em-quanto saber negativo, enquanto crítica ou, como prefiro dizê-lo, enquanto disciplina da dúvida.
O erro dos erros filosóficos não consiste em afirmar esta ou aquela doutrina sobre o real. Consiste antes em afirmar, terminantemente, seja o que for. Não é tarefa da Filosofia afirmar dessa maneira. Quando o faz, ela não leva à fé genuína, à fé que é livre, que cativou e cativa o espírito em todas as épocas. Leva tão simplesmente ao dogma.
Fui e sou criticado, às vezes, por “discordar de tudo”. Não é bem isso que faço. Mas estou pronto a admitir o quanto discordo daquilo de que discordo. E, para ajudar no trabalho de delimitação desse quantum (pois nada melhor do que delimitá-lo para entender que não é infinito, nem sequer sistemático), dou à luz o presente percurso entre os pontos fundamentais das escolas filosóficas. Nele passo de ponto em ponto, de doutrina central a doutrina central, não com o escopo de expô-las ou afirmá-las, mas de as criticar. Ou, se quiserem que se trate de expor, de expor livremente as minhas dúvidas a respeito delas.
A dúvida é, pois, a justa medida da Filosofia Cristã. Ir além dela, a fim de afirmar certezas, é errar grosseiramente na medida. É supor que o convencimento se constroi pela demonstração, quando ele só começa, de fato, por meio do abalo. E é claro que, sem o primeiro passo na senda do conhecimento, todos os outros se tornam impossíveis. De forma que ir além da dúvida é, propriamente, o pecado original da Filosofia Cristã, do qual só é possível a alguém libertar-se por meio da fé que supõe a dúvida.
Claro que há mil coisas subentendidas na confissão do meu Credo ut intelligam. Uma delas é que, se a dúvida prepara para a fé, esta não é jamais fé em Deus em si mesmo, mas nas maravilhas da sua criação, isto é, nas suas obras. Em si mesmo, Deus permanece incompreensível, mas apenas relativamente, já que a incompreensibilidade absoluta de um ser individual é o mesmo que a compreensibilidade por exclusão. Por isso, a incompreensibilidade relativa de Deus implica a compreensibilidade das suas obras. Esse é, portanto, o único conhecimento possível de Deus, a saber: o que se sujeita aos limites do que somos e do que o mundo é.
Isso pode soar louco, mas me compadeço dos que o pensam, já que a loucura se evola, perde-se para as nuvens, quando bebemos do cálice em que se leem as palavras que os séculos sussurram como uma prece: Credo ut intelligam.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Transfiguração do Lucro

A produção de qualquer mercadoria inicia-se com a realização de um duplo investimento: em salários, para remunerar a força de trabalho empregada para produzi-la, e em meios de produção (energia, matéria-prima, máquinas etc.). A parcela do investimento despendida em salários chama-se capital variável. A outra é denominada capital constante ou fixo.
Os nomes atribuídos às duas partes orgânicas do investimento não são casuais. O capital que remunera os trabalhadores é chamado variável, porque o seu montante se altera durante o processo de criação da mercadoria. O outro se chama constante, porque a sua quantidade não sofre variação alguma. Essa é uma pedra fundamental da teoria econômica lançada pela Escola Clássica.
Poucos compreendem quanto o materialismo histórico depende dessa fundamentação do processo produtivo. Ela é a pedra fundamental da filosofia da História de Marx e, em particular, da sua explicação do capitalismo. Só Marx e as escolas que o seguiram tiraram todas as consequências da afirmativa de que o capital investido em salários é variável, porque se expande durante a produção, e essa expansão constitui a mais-valia.
A atribuição da mais-valia ao trabalhador, pedra de toque do sistema de Marx, justifica-se porque a mudança de forma dos elementos (a energia e a matéria-prima) que faz surgir o produto deve-se à atuação do trabalhador. Se, no fim do processo de fabricação, a mercadoria é vendida por valor maior que a soma de tudo o que se gastou, é porque esse plus, mais-valia ou sobrevalor, está associado à forma final do produto, ausente no início daquele processo. E, quem lhe atribui essa forma não é o dono do capital, nem os fornecedores dos insumos usados para produzir, mas unicamente os trabalhadores.
Marx distingue-se por ter demonstrado a validade dessa explicação elementar da mais-valia em todas as etapas do capitalismo, a despeito da complexidade interna de cada uma. Ao longo dessas etapas, o processo produtivo complica-se pelo emprego crescente de conhecimento e tecnologia, porém a mais-valia continua a ser gerada pelo trabalhador e, portanto, a lhe pertencer. Essa é a particularidade da compreensão do capitalismo por Marx. É também o ponto em que ele rompe com a Escola Clássica.
Muitos consideram que a ideia de que o capital investido em salários é variável, por gerar mais-valia, é adequada a uma época em que a produção se caracteriza pela pequena complexidade. A partir de quando a industrialização altera os métodos de produção, a diferença entre o custo e o produto deixa de ser atribuível com tanta simplicidade ao trabalhador, pois outros sujeitos, assim como o criador da tecnologia e o produtor do conhecimento, se tornaram decisivos para a transformação dos elementos no produto final. Sem a tecnologia corporificada na máquina, para citar um exemplo, o trabalhador não é capaz de produzir tão rapidamente quanto produz. Por isso, a mudança que faz surgir o produto a partir de seus elementos deixa de ser atribuível exclusivamente a ele.
A teoria econômica de Marx envolve a demonstração de que a atribuição da mais-valia ao trabalhador se mantém, nas condições do capitalismo avançado. Por isso, a mudança pela qual essa atribuição é negada, nas condições específicas da industrialização, constitui um erro com graves consequências sociais. Para Marx, a observação de que o trabalhador, o produtor do conhecimento e o das máquinas contribuem, ao mesmo tempo, para a transfiguração que faz surgir a mercadoria não é simplesmente verdadeira, já que, em termos econômicos, o trabalhador continua a ser o responsável exclusivo por ela.
Para chegar a essa conclusão, Marx se vale da distinção entre trabalho vivo e morto. O primeiro é o que entra na relação material de causa e efeito que faz surgir a mercadoria. O que leva à mudança de forma dos elementos é sempre uma energia presente ou “viva”. Nunca uma energia despendida no passado e, por isso, “morta”. O trabalho de produzir as máquinas e outros materiais usados na produção, por se incorporar a eles, não tem, como o trabalho vivo, a virtualidade inerente de transformar os elementos no produto final. Por isso, a mudança de forma dos elementos, na etapa industrial do capitalismo, deve ser atribuída aos trabalhadores que despendem o trabalho vivo e somente a eles.
Essa maneira de ver o processo de produção sob o primado da energia presente é negada, nas sociedades concretas, sempre que o lucro é considerado um acréscimo ao capital constante, já que isso rompe o princípio da preservação da quantidade dos investimentos em meios de produção. Insistir nessa ruptura é negar o que acontece, efetivamente, durante a transformação dos elementos. E a consequência social desse erro é a espoliação do trabalhador: uma grave injustiça.
Não se pode negar que a análise da produção industrial por Marx é consequência de um materialismo filosófico muito mais profundo do que se suspeita. Marx pensava o mundo inflexivelmente em termos de causa e efeito materiais. Assim como, numa relação causal, o efeito segue-se à causa direta e é atribuído exclusivamente a ela, a mais-valia se segue ao dispêndio de trabalho vivo e só a ele é atribuível.
O problema é que essa é uma interpretação reducionista. Reduz relações humanas à causalidade e a noção de causa ao antecedente físico imediato do efeito. Ignora todos os antecedentes que vêm antes do trabalho físico de produção, assim como o trabalho de produzir as máquinas e o conhecimento incorporado a softwares e outros materiais utilizados na produção. E, por esse método, atribui o efeito (a mercadoria) à causa material imediata.
Outra limitação da interpretação de Marx consiste em entender o processo produtivo exclusivamente em termos do passado. Se adicionarmos o futuro à análise, a mais-valia não precisará ser explicada em termos dos gastos efetuados com capital variável, máquinas e outros meios de produção. Poderá ser vista como a antecipação do valor necessário para iniciar, imediatamente, outro ciclo de produção.
Para entendermos melhor esse ponto, basta admitir que o lucro pode ou não ser acrescido ao preço das mercadorias produzidas. Se não o for, a mercadoria será vendida pelo custo de produção, e o valor da venda será idêntico ao investimento realizado no início do ciclo de produção. Isso se repetirá à exaustão, em todos os ciclos produtivos, sem que à produção se acresça um só centavo.
Porém, em tal contexto, o empresário não terá interesse em reiniciar a produção a não ser o de prover as suas necessidades de subsistência. Adiará, portanto, o início do ciclo produtivo seguinte até que a necessidade bata à sua porta. Isso mostra que a cobrança do lucro tem a função indiscutível de antecipar o início dos ciclos de produção, o que se traduz em aumentar o volume da produção no tempo. Não podemos ignorar que o significado do lucro, assim concebido, se extrai também do futuro e não só do passado e do presente.
O lucro é semelhante ao imposto que o Estado arrecada. Assim como o Governo não troca o que já fez ou fará imediatamente pelo imposto, o lucro não é cobrado em troca de um bem passado ou presente, mas do investimento que iniciará um novo ciclo produtivo. De sorte que tanto um como o outro têm clara orientação ao futuro, do qual retiram o que há de mais fundamental no seu significado.
Em Marx, o imposto é uma participação compulsória do Estado na mais-valia. Por isso, absorve a natureza desta. Como a mais-valia é o efeito de um trabalho presente (o trabalho vivo), o imposto é esse efeito apropriado pelo Estado.
Apontamos, porém, novamente, que essa é uma concepção preterista da produção. Numa concepção mais ampla, o imposto e o lucro são parcelas pagas por atos futuros: no caso do Estado, por todos os atos que a lei lhe atribui; no do empresário, pelo ato de início de um novo ciclo produtivo. Por isso, ao cobrar o imposto, o Estado não é obrigado a apresentar uma contrapartida semelhante à mercadoria que o vendedor dá em troca do preço. E, ao cobrar o lucro, o empresário não tem de praticar um ato ou oferecer um bem que lhe corresponda em troca.
Isso implica que o lucro não é cobrado só em função do que se fez ou se faz, mas também do que se fará. E que se fará com ele? Como temos visto, o lucro será usado para iniciar um novo ciclo de produção, antes que os imperativos de subsistência obriguem o empresário a isso. De forma que, tudo considerado, a produção com base no lucro é o que explica o crescimento da economia.
Há injustiça nessa concepção do lucro? Há nela autorização para a expropriação dos trabalhadores? De modo nenhum. Há apenas avaliação do processo produtivo em função do passado, do presente e também do futuro. Há, ao mesmo tempo, uma visão ampla o bastante desse processo para abranger relações não incluídas no rol estreito das que levam à criação física da mercadoria.
Vemos, assim, que a mais-valia e o lucro, que é a sua forma mais importante, não implicam a expropriação dos trabalhadores do que lhes pertence de direito. Talvez tenha sido esse o caráter deles, quando a produção era bastante simples para que a mais-valia derivasse, direta e inequivocamente, do capital variável. Mas o processo de geração da mais-valia alterou-se, com a alteração das condições em que a produção como um todo se desenrola.
No Manifesto comunista, Marx e Engels mostraram que a História é marcada pela exploração. Cada modo de produção distingue-se por uma técnica ou método produtivo que implica a exploração. Sem esta, nenhuma técnica produtiva é capaz de se pôr historicamente, vale dizer, de se tornar dominante a ponto de engendrar um modo de produção.
Os métodos de exploração típicos do capitalismo, para Marx e Engels, são a manutenção dos salários em torno do mínimo indispensável à sobrevivência do trabalhador e a subtração sistemática da mais-valia. Vimos em textos anteriores que o fordismo iniciou um processo de descolamento dos salários do mínimo vital que continuou e continua, até hoje, nas economias que o adotaram. Assim, o primeiro mecanismo de exploração foi amplamente superado.
Se a mais-valia puder ser considerada não um meio de expropriação do que foi produzido pelo trabalhador, no passado, mas de financiar o aumento da produção e o desenvolvimento das forças produtivas, no futuro, não restará método algum pelo qual a exploração se exerça de maneira contínua no capitalismo. Chegaremos à conclusão de que uma ampla regeneração do regime produtivo se pôs em andamento, do ponto de vista da sua relação com a justiça social, e que uma regeneração ainda mais evidente se verificou no processo de formação do lucro. Chegaremos à transfiguração do lucro num meio lícito e justo de produção do crescimento econômico.
Nos manuscritos não publicados em vida por Marx, há um trecho em que ele analisa o caso imaginado por Adam Smith de duas empresas que empregam o mesmo número de trabalhadores, pagam-lhes o mesmo salário, porém investem valores inteiramente díspares em meios de produção (MARX, Karl. Teorias da mais-valia - História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. pp. 69-70). O exemplo antecipa a situação paradigmática que a Revolução Industrial haveria de introduzir. É, por isso, particularmente elucidativo.
Ao enfrentá-lo, Marx admite que a empresa que investe mais em meios de produção tem um custo maior e, como o lucro é geralmente calculado sobre o custo da produção, a mais-valia que aufere é também maior. Mas, como era de esperar, ele não extrai desses dados que o lucro deriva, ao mesmo tempo, do capital constante e do variável. Fazê-lo seria negar todas as suas premissas. Seria negar que o pertencimento do lucro ao trabalhador não depende das valorações do mercado, mas de uma relação causal concebida em termos rigorosamente materiais. Mas será mesmo possível conceber a sociedade como um feixe de relações causais amputadas de todo vínculo com o que vem antes da produção física da mercadoria?
Minha admiração pelo materialismo histórico é grande, mas não o bastante para me submeter ao seu criador nesse ponto. Vou com ele até onde sua visão aguda desentranha os mistérios da realidade social. Não o acompanho nas direções a que ele é arrastado por Feuerbach, mentor do materialismo abstrato. Não o sigo enquanto cultiva o hábito de cravar o cinzel e eliminar os sentidos que transcendem a produção física da mercadoria.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Crise na Ucrânia (2)

Nunca o mapa cultural coincidiu tanto com o resultado de uma eleição. Em 2010, ao serem abertas, as urnas da Ucrânia mostraram que o candidato Viktor Yanukovich vencera em todas as províncias de maioria russa, e Yulia Timoshenko, em todas as de maioria ucraniana. Como a Ucrânia não tinha só quatro ou cinco províncias (oblasts), mas 24, a perfeita coincidência das urnas com a situação cultural do país confirmou a importância dos temas relacionados à identidade, na História europeia recente. Porém, em fevereiro de 2014, Yanukovich se tornou o primeiro governante europeu, em anos, a ser derrubado por um movimento popular. E um movimento voltado não à aproximação da Rússia, mas da União Europeia.
A revolução de fevereiro tem sido interpretada como consequência política da divisão cultural na Ucrânia. Mas ela também tem claras motivações econômicas, já que a posição pró-Rússia implica a preservação de relações históricas entre as duas repúblicas tanto quanto uma guinada na direção do capitalismo russo. Por outro lado, a posição pró-União Europeia importa o alinhamento da Ucrânia com o Ocidente e as variações do capitalismo ali implantadas. Assim, numa visão de conjunto, se os conflitos não exprimem a passagem de um modo de produção a outro, expressam por certo a luta pela adoção de um ou de outro modelo produtivo.
Essas motivações econômicas estão longe de ser imaginárias. Decorrem do contexto das lutas em andamento na Ucrânia. Embora dono de uma agricultura pujante e de setores industriais desenvolvidos, a segunda república mais poderosa da antiga União Soviética ainda tem um alto percentual da população (35%) situado abaixo da linha da pobreza. E a tendência do alinhamento com a Rússia é concentrá-la progressivamente nas regiões de língua ucraniana, às quais a ajuda econômica russa chega em menor volume. O histórico de dependência da Ucrânia em relação ao gás russo também a sujeita ao risco de cortes na taxa de crescimento, por embargos no fornecimento ou pelo encarecimento daquela fonte energética. O peso dessa exploração se expressa na dívida externa ucraniana, hoje próxima de US$ 100 bilhões.
Boa parte dessa dívida vem do comércio de gás natural. É, portanto, um problema antigo, mas que jamais foi tão grave, uma vez que, com a queda do regime pró-Rússia, o líder Vladimir Putin cobrou de uma vez US$ 2,2 bilhões em dívidas relativas à venda de gás natural à Ucrânia. E, não satisfeito, ainda ameaçou cortar o fornecimento de gás ao país.
Tudo isso mostra que a crise da Ucrânia está longe de se originar apenas de questões culturais. Quando Yanukovich decidiu não assinar o acordo de associação com a União Europeia, em 2013, não estavam em jogo somente línguas, costumes e tradições, mas o problema do gás natural e a orientação econômica do país ao Ocidente ou à Rússia. Podemos afirmar que estava em jogo tudo o que, direta ou indiretamente, mas de maneira efetiva, influiu na decisão recente do país de retornar ao capitalismo.
Na Ucrânia, essa decisão é exposta de maneira exemplar. Antiga república soviética, ela não se manteve unida à Rússia, quando o arcabouço político gerido pelo Kremlin desmoronou. Todos sabem que a quebra política que então ocorreu teve relação com a anterior quebra econômica da União Soviética. Portanto, com a opção que o país realizara pelo socialismo de Estado, O que raramente se recorda é que o retorno da Ucrânia ao capitalismo envolve uma série de problemas cuja solução não pode ser encaminhada pela aplicação de um só modelo econômico no leste e no oeste. Em outras palavras, o mapa atual da Ucrânia pode não corresponder às exigências do retorno das duas regiões ao capitalismo, uma vez que o leste não quer (e talvez não possa) abrir mão dos benefícios que lhe proporciona a Rússia, enquanto o oeste precisa contar com a ajuda da União Europeia, inclusive, para combater a pobreza galopante.
Ontem como hoje, a motivação econômica básica do povo ucraniano é a busca da prosperidade. Porém, em outras épocas, essa busca materializou-se na transição de um modo de produção a outro. Nos séculos XIX e XX, por exemplo, a implantação do socialismo era uma obsessão tanto para os que desejavam promovê-lo quanto para os que queriam evitá-lo. Hoje, a busca da prosperidade não está tão atrelada à escolha do modo de produção quanto da modalidade dele. Já não se trata de passar do capitalismo ao socialismo, mas de buscar a variação mais adequada daquele.
No entanto, a História não mudou de natureza, a não ser em países, como a Noruega e os Estados Unidos, nos quais a luta de classes se reduziu drasticamente. Não é esse o caso da Ucrânia ou da Rússia. Assim como estava atrasado em relação à Europa Ocidental e aos Estados Unidos, no século XIX, o desenvolvimento desses países continua defasado hoje. Por isso, a crise que os envolve não deixa de ser a luta das classes ucranianas oprimidas pelo estamento no poder na Rússia. Não é uma luta de classes típica, por não opor camadas situadas no mesmo país ou nas mesmas empresas, mas é uma luta de classes travada sobre os muros da divisão política e das identidades culturais.
As populações de idioma ucraniano lutam contra a opressão do Kremlin que, para exercer-se, necessita cooptar as populações de língua russa e tem tido amplo sucesso nisso. Porém, ao desenvolverem essa luta, elas não desejam, como os revolucionários do século XIX, substituir o capitalismo pelo socialismo, mas uma modalidade de capitalismo por outra. Querem implantar um modelo de capitalismo inspirado em nações da União Europeia, portanto mais aberto e dinâmico que aquele que a Rússia tem para oferecer.
Por mais que seja um país abastado, do ponto de vista natural, a Rússia sofre com suas limitações econômicas. Seu desenvolvimento passado deu-se com base na exploração de classe, o que não a favorece. Além disso, a população russa, que ocupa o maior território do mundo, tem diminuído há bastante tempo e é, hoje, de aproximadamente 140 milhões. Não é esse o sinal de uma economia em expansão ou para ser imitada. E, para complicar, parcela cada vez menor da população russa terá de sustentar o crescimento do país no futuro, devido ao envelhecimento geral da população. Embora outras economias enfrentem ou estejam fadadas a enfrentar tal problema, num futuro próximo, ele é mais grave na Rússia.
Esses fatos têm levado os ucranianos ocidentais a perceber as desvantagens da união com a Rússia e a se opor a ela. Por outro lado, grupos pró-Rússia do leste têm adotado posição oposta. E, com o triunfo do movimento de aproximação do Ocidente, os grupos favoráveis ao Kremlin organizaram forte reação para desmembrar a Ucrânia em diversos países ou reuni-la à Rússia.
O ideal de ocidentalização não é exclusividade do movimento que derrubou Yanukovich. É compartilhado por vários grupos e populações da antiga Cortina de Ferro. Como no século XIX o ideal revolucionário da Europa era substituir o capitalismo decadente pelo socialismo, a aspiração mais comum, nos países da Europa Oriental de hoje é adotar um modelo produtivo de feitio claramente ocidental. E, como a troca do modo de produção é um processo de natureza econômica, a substituição de uma variante dele também o é. O problema é que não é simples, para as duas metades do país, renunciarem aos benefícios que qualquer um dos países-líderes dos modelos variantes oferece. Portanto, o  que o tempo atual revela não é o declínio dos condicionamentos econômicos em favor dos políticos, mas a prioridade da escolha da espécie ou modelo de capitalismo em relação ao modo de produção.
No auge da crise introduzida pela industrialização, Marx escreveu que “os povos entre os quais [a produção capitalista] teve o seu maior avanço na Europa e na América aspiram tão somente romper suas correntes e trocar a produção capitalista pela produção cooperativa e a propriedade capitalista por uma forma superior do tipo arcaico de propriedade, isto é, pela propriedade comunista” (MARX, Karl. Carta a Vera Zasulitch. In MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 104). Esse era o anseio típico do século XIX, com seus problemas não menos típicos. O anseio de hoje é outro. É encontrar a variedade mais eficiente de produção capitalista, que não é a mesma em todas as situações, mas varia extremamente com elas.
No século XIX, a Ucrânia e a Polônia afastaram-se da Rússia ao superarem a produção comunal. De acordo com Engels, “na Europa ocidental, incluindo a Polônia e a Pequena Rússia [nome da Ucrânia no século XIX], a propriedade comunal converteu-se, em certo estágio do desenvolvimento social, em amarra, em entrave da produção rural, sendo gradativamente posta de lado” (ENGELS, Friedrich. Literatura de refugiados – artigo V. In ob. cit. p. 50).
Desde essa época, o desenvolvimento da Ucrânia divergiu do da Rússia. E não faltaram motivos para isso, já que as populações polonesas (abundantes na Ucrânia ocidental) e as de língua ucraniana sofriam forte opressão do czar (idem. pp. 34-35). A dissolução da comuna, na Pequena Rússia, a que Engels se referiu, foi fruto dessa opressão. E, apesar da reversão forçada ao coletivismo, no período soviético, quando a URSS desmoronou, a Ucrânia pôde retomar a privatização da agricultura e a trajetória econômica anterior.
É verdade que não o fez sem grandes dificuldades e que o principal entrave ao desenvolvimento do país continuou a ser a opressão russa. A revolução de fevereiro de 2014 foi só o último capítulo dessa luta. Sua diferença específica foi orientar-se à transição de um modelo de produção dependente da Rússia a outro de inspiração ocidental.
A transição sempre foi e continua a ser difícil, como os fatos recentes demonstram. A primeira dificuldade consiste em selecionar, dentre as variações do capitalismo que o Ocidente oferece, a mais adequada ao país. Além do modelo em metamorfose na Inglaterra, Alemanha e França, a Ucrânia tem diante dos olhos e considera, que sabe, aderir ao capitalismo escandinavo. Porém, no fundo, a versão escandinava do capitalismo é a mesma dos países europeus ocidentais e até mesmo dos mediterrâneos. O ideal de um capitalismo celta muito mais igualitário tem menos substância do que cores e formas. Pode ter sido bem-sucedido em países menos povoados, mas é improvável que o sucesso se repita nos mais povoados. Por isso, o oeste da Ucrânia deverá assimilar o modelo da União Europeia. A questão é o que ocorrerá, no médio prazo, no leste.
Chegamos, assim, à mais incômoda de quantas questões a reflexão social nos coloca, a saber: a questão do futuro. Por mais que se incline ao erro ao prever o futuro, o pensamento social não pode evitar debruçar-se sobre ele, já que o presente está grávido do porvir. O caso da Ucrânia coloca-nos o mesmo problema.
Não sabemos o que ocorrerá, no curto prazo, no mais ocidental dos países de população russa. Sabemos, porém, que as tendências econômicas dirigem o médio e o longo prazos muito mais do que determinam o futuro próximo. E não há como evitar a conclusão de que, nessa perspectiva mais ampla, a Ucrânia e os países influenciados pelo seu exemplo buscarão libertar-se da exploração e da luta extremada de classes, sem perceberem, é claro, que à medida em que o fazem, redimem-se e redimem ao mesmo tempo a História.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A Crise na Ucrânia (1)

A situação do mundo é quase sempre abordada, do ponto de vista dos países centrais, principalmente dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, o que pode viciar a análise, já que os países periféricos desempenham papel histórico muito relevante, não apenas em razão do seu número, mas também porque, de tempos em tempos, novas potências emergem da periferia para o centro do sistema internacional. Neste e no próximo texto, tratarei das crises deflagradas, recentemente, na Ucrânia, sob o ponto de vista da sua relação com a economia do país.
Para entendermos a relação entre a economia e a crise ucranianas, a primeira pergunta a ser feita é sobre o tipo de formação econômica que se desenvolveu naquele país. Precisamos identificar, a seguir, quais as direções prováveis de mudança do regime econômico e sua relação com a crise.
Nunca é demais lembrar que esse método de análise se justifica pela limitação epistemológica que expus em textos anteriores: se não formos capazes de identificar um subsistema que responda pela maior parte das transformações numa sociedade, não teremos método científico algum para tratar dos dados históricos, já que um método exige, antes de tudo, um princípio de orientação a priori. E, sem um método, não teremos como chegar a uma teoria da história. Esse é um problema formidável demais para ser desprezado ou desconsiderado. Portanto, melhor é dispensarmos a ele a atenção devida.
Para os menos informados, pode parecer estranho que Marx tenha oferecido a maior contribuição teórica para a identificação do principal subsistema responsável pelas transformações históricas de longo prazo. No entanto, foi exatamente ele quem ofereceu essa contribuição, ao nos legar a maior e mais vasta demonstração de que o subsistema da produção, chamado modo de produção, é aquele do qual emanam as mais profundas e duradouras mudanças na configuração das sociedades.
Mas o reconhecimento desse mérito de Marx não é suficiente para fazer de alguém um marxista. É que, além de pensador social, Marx foi também filósofo e, como tal, nos deixou um pensamento mais vasto que a sua teoria da História. Ser marxista é adotar as principais bases dessa filosofia. Nesse terreno mais amplo e somente nele, é que a adesão a Marx ganha nitidez e se consuma.
Concordo extensamente com a teoria da História de Marx, mas não me considero marxista por não convergir com outros pontos básicos da filosofia desse autor, assim como o materialismo em sentido amplo e a dialética hegeliana. No próprio terreno da História, tendo a valorizar mais o método (baseado no modo de produção) do que as conclusões a que Marx chegou pela aplicação dele. Isso porque, quando se faz ciência e teoria, a História adquire uma inflexão inevitável sobre o futuro. E as análises e conclusões de Marx sobre o futuro da Europa estão sujeitas a dúvidas tanto quanto a merecidas críticas.
Por isso, ao lançarmos mão do instrumental de análise de Marx e Engels, devemos tomar cuidado para utilizar mais o seu método do que as conclusões prospectivas a que chegou, ou seja, a sua visão de futuro. Isso é particularmente verdadeiro no que tange aos países com amplos contingentes populacionais russos, como a Ucrânia.
Na primeira parte de sua obra central (O capital), Marx expôs a formação do modo de produção capitalista, na Inglaterra e na Europa Ocidental, mais amplamente considerada. E, devido à influência maior desse livro, somos às vezes levados a considerar que Marx não tratou do desenvolvimento social de outras regiões do mundo, como os Estados Unidos e a Rússia. Mas não foi esse o caso. Embora tenha apresentado as suas ideias sobre esses outros países em textos esparsos e mais concisos, Marx tratou efetivamente deles. Vejamos, em poucas linhas, o que ele escreveu a respeito da Rússia, com a qual a Ucrânia atual tem a mais estreita relação.
Na carta que endereçou ao editor de uma revista russa que havia publicado o artigo “Karl Marx diante do tribunal do sr. Jukovski”, nosso autor prestou um esclarecimento importante: “Para poder julgar com conhecimento de causa o desenvolvimento econômico da Rússia contemporânea, aprendi a língua russa e depois estudei durante longos anos as publicações oficiais referentes a esse tema, entre outras” (MARX, Karl. “Carta à redação da Otchestvenye Zapiski". In MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Lutas de classe na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 66). Portanto, apesar de não ter escrito tanto sobre a Rússia quanto sobre a Inglaterra, por exemplo, Marx estudou-a bastante detidamente.
Ele identificou, na Rússia, condições econômicas muito distintas das existentes nas nações ocidentais da sua época. Descreveu-a não como um país capitalista, mas pré-capitalista e agrário. Achou-a, portanto, sujeita a um modo de produção semifeudal. E, em razão das especificidades do modo de produção russo, Marx pensou que ele estava em condições de evoluir tanto para um modo de produção capitalista como para um socialista.
Como ele chegou a essa conclusão? Para entendê-lo, é preciso, antes, nivelar nossa informação com a de Marx. Ele sabia que, em tempos primitivos, a organização social de todos os países da Europa se baseara numa instituição conhecida como comuna agrícola, na qual a propriedade da terra, dos instrumentos de trabalho e, às vezes, também do produto dos campos era coletiva. Porém, essa instituição recuara ao ponto do desaparecimento quase total, a não ser num lugar: exatamente a Rússia.
“A Rússia é o único país europeu”, escreveu Marx, “em que a comuna agrícola se manteve em nível nacional até os dias atuais” (MARX, Karl. Carta a Vera Ivanovna Zasulitch. Primeiro esboço. In Lutas de classe na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 94). Na visão dele, isso tornava a Rússia um caso único, no tocante à possível evolução para o socialismo, pois a extensão da organização comunista a inclinava nessa direção.
Porém, a comuna russa estava ameaçada de desintegração. Ela estava “extenuada pela carga fiscal que pesa sobre ela”, em razão da qual tinha-se tornado “matéria inerte passível de ser facilmente explorada pelo comércio, pela propriedade fundiária e pela usura. Essa opressão vinda de fora desencadeou no seio da própria comuna o conflito de sua decomposição. Mas isso não é tudo. À custa dos camponeses, o Estado deu forte impulso aos ramos do sistema capitalista ocidental [...] mais apropriados para facilitar o roubo de seus frutos pelos intermediários improdutivos [...] A menos que seja rompido por uma potente reação, esse concurso de influências destrutivas naturalmente deverá levar a comuna rural à morte” (idem. p. 97).
O modo de produção russo, uma variação específica do feudalismo, enfrentava, portanto, um estertor correspondente ao do capitalismo ocidental. Se esse regime agonizava, na Inglaterra e em outros países, na Rússia, a comuna é que estava em vias de desaparecer. Em ambos os casos, Marx enxergava oportunidades sem paralelo para a passagem à organização socialista, embora por razões diferentes. Na Rússia, porque os remanescentes do comunismo tradicional favoreciam tal transição. Na Inglaterra, porque a técnica capitalista havia concentrado os trabalhadores nas fábricas e forçado-os à cooperação.
Vejamos o caso russo, que nos interessa de perto neste artigo. “De um lado", escreveu Marx, "a propriedade comum da terra permite transformar de modo direto e gradual a agricultura parceleira e individualista em agricultura coletiva, sendo que os camponeses russos já a praticam em pradarias indivisas [...] De outro lado, a contemporaneidade da produção ocidental, que domina o mercado mundial, permite à Rússia incorporar à comuna todas as conquistas positivas produzidas pelo sistema capitalista sem passar por seus forcados caudinos [alusão à cidade de Caudium, em cujas proximidades os sanitas infligiram humilhante derrota a um exército romano, em 321 a. C.]” (idem. p. 94).
A principal diferença que Marx enxergava entre a tendência ocidental e a russa à organização socialista era o caráter muito mais fatal da primeira do que da última. “A produção capitalista [ocidental]”, anotou ele em O capital, “engendra a sua própria negação com a mesma fatalidade que conduz as metamorfoses da natureza” (idem. p. 67), pois “a propriedade capitalista, baseada de fato num modo de produção coletivo, só pode transformar-se em propriedade social” (idem). A Rússia, porém, tinha dois caminhos prováveis à sua frente: o capitalismo e o socialismo. “Ou o elemento da propriedade privada implicado [na comuna] prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre o primeiro. Essas duas soluções são a priori possíveis, mas para que ocorra uma ou outra é preciso, evidentemente, que haja ambientes históricos completamente díspares” (idem. p. 93).
Se o caráter certo da previsão para o Ocidente e incerto da que fez sobre a Rússia já chama bastante atenção, um ponto ainda mais saliente é o fato de Marx sujeitar as possibilidades históricas a um conjunto tão limitado de modos de produção. Do feudalismo ele reconhece que a Rússia podia passar ao capitalismo ou ao socialismo. E do capitalismo as nações ocidentais só podiam transitar em direção ao socialismo. Pensava sempre, portanto, em função desses poucos modos de produção, além dos quais a História só oferecia a alternativa do regime escravagista.
Por que tão poucas possibilidades produtivas de alcance geral? A História não é eminentemente imprevisível e diversificada? Sem dúvida. Porém, para Marx, a sua diversidade se contém num exíguo número de modos de produção esgarçados por variações sem conta, que ele classifica como primárias, secundárias, terciárias etc. Assim, por exemplo, “a história da decadência das comunidades primitivas [ou seja, do modo de produção primitivo] ainda está por ser escrita, e seria um erro colocar todas elas no mesmo patamar; assim como nas formações geológicas, há nessas formações históricas toda uma série de tipos primários, secundários, terciários etc.” (idem. p. 101).
No pequeno número dos modos de produção possíveis, encerra-se um grande mistério. Talvez o maior de toda a história econômica. Só destruindo esse rol tão estreito, é possível demonstrar o erro cabal das predições de Marx sobre os caminhos de desenvolvimento possíveis a partir do capitalismo ocidental e do feudalismo periférico (russo, mas também de outras regiões, a América Latina à frente).
Mas não é fácil alguém demonstrar que, em vez de quatro, os grandes modos de produção históricos são vinte ou trinta. Portanto, se o capitalismo ocidental estava à beira do abismo, no último quartel do século XIX, e se a comuna agrária podia dissolver-se ou ser revigorada, na Rússia, que Marx devia prever? Devia prever o retorno dos ingleses ao feudalismo, ou o da Rússia, ao escravagismo? Os ingleses trocariam a produção industrial pelo cultivo dos campos com base em instituições feudais? Os russos emulariam os avanços tecnológicos do Ocidente pelo retorno à produção baseada em mão-de-obra escrava? Se hipóteses como essas deviam ser descartadas por serem absurdas, Marx não errou tão grosseiramente quanto se afirma ao propor que os ingleses estavam às portas do socialismo, e os russos, equidistantes do socialismo e do capitalismo. As alternativas a essas transformações eram poucas e a maioria, improvável demais.
Devemos, porém, acautelar-nos. Os países da Cortina de Ferro se tornaram socialistas, por métodos muito diferentes dos que Marx previu. Neles, a comuna não tinha a importância que possuía na Rússia, quando o socialismo se instaurou. Portanto, o processo histórico dos outros países que se fizeram socialistas foi diferente do da Rússia.
Mas o que mais contrariou as predições de Marx não foi a salvação do capitalismo industrial ou a implantação do socialismo em países sem antecedentes comunistas claros ou vigorosos. Foi, antes, o fragoroso desmoronamento do socialismo não só soviético, mas também de outras cepas, a partir de 1991. Se a tendência ao socialismo era tão arraigada, como tantos países puderam reverter, ao mesmo tempo, ao capitalismo? E, se a construção do socialismo devia ocorrer por transformação gradual de uma estrutura social de outro tipo, porém análoga, por que a reversão ao capitalismo foi abrupta e simultânea em países tão diferentes? Não basta explicar a coincidência ocorrida por causas políticas.
O fato é que, por ter vivido no século XIX, Marx não teve a menor condição de antever desmanche tão rápido do socialismo. Mas, nos termos em que ele colocou o problema, devemos entender o socialismo do século XX em relação muito mais estreita com o de molde primitivo do que normalmente se pensa. Marx só teve tanta confiança no advento do socialismo, porque, para ele, esse modo de produção nada mais era que uma variação superior do comunismo primitivo. O socialismo devia vir, porque já existira. Porque o que teve tantas razões para existir devia necessariamente retornar.
Mas por que, interpretado dessa maneira, o socialismo terminou tão abruptamente? Provavelmente porque, embora análogo ao modo de produção primitivo, ele estava pouco arraigado nas condições econômicas dos tempos modernos. Marx superestimou o enraizamento do socialismo nas condições da sociedade atual, ao prever um soerguimento tão iminente e inevitável daquele modo de produção.
Esse é um problema recorrente do marxismo. Se Marx estava certo, então estava errado. Se os grandes modos de produção são tão poucos, o capitalismo ocidental e o regime semifeudal da Rússia deviam dar lugar ao socialismo. A História confirmou essas predições ao menos em parte. Mas, se o comunismo desapareceu há tanto tempo, embora uma conspiração de fatores tenha tornado o seu retorno provável, por que ele deveria consolidar-se a ponto de se tornar o regime do futuro como fora o do passado? Marx estava certo em tantos pontos, mas exatamente por isso estava errado ao esbanjar confiança no triunfo universal do socialismo.
Que isso tem a ver com a crise na Ucrânia? Pode parecer que pouco, mas é a introdução necessária à compreensão do contexto econômico daquele país, ao qual pretendo retornar no artigo seguinte.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Livre Exame de Romanos (27): A Virtude Primeira

Se Romanos 12:1 não tivesse sido escrito, jamais um cristão atual faria as declarações que ali se encontram, pois a mentalidade que levou Paulo a escrever aquele verso não existe mais. Quando queremos falar de consagração, referimo-nos à entrega da alma, não do corpo, como Paulo escreveu. E temos enorme dificuldade para entender o que pode significar um culto prestado com a razão.
Paulo, porém, referiu-se à consagração do corpo e ao culto mais racional. Essas declarações dizem algo muito importante sobre a antropologia da época. Para Paulo, o homem era uma alma, que possuía um corpo. Cabia, portanto, à alma governar o corpo e não o contrário. Por isso, era ela que apresentava o corpo como sacrifício a Deus.
As afirmações do apóstolo confirmam o que temos visto diversas vezes neste comentário: que a alma ou a mente, se preferirem, é a parte principal do homem e o centro da salvação de Deus. Por ser a parte principal e o centro, a mente é simbolizada pela mulher do capítulo 7, cujo primeiro marido morre, o que lhe permite casar-se com outro (Cristo).
A superioridade da mente ao corpo é uma lição tão simples quanto esquecida. Porém, é o que permite à alma consagrar o corpo a Deus. Encontramos essa lição repetida por toda parte no Novo Testamento. Às vezes, ela é afirmada de modo implícito, como em João 1:12, que estabelece que a regeneração não consiste em nascer do sangue, nem da vontade da carne ou da vontade do homem. O sangue, como elemento corpóreo, opõe-se à vontade, que é o elemento psíquico, porque o corpo é distinto da alma. Do mesmo modo, em Romanos, por meio do culto racional, a alma deixa de ser guiada pela carne e passa a guiá-la. Apresenta-a como sacrifício vivo e agradável a Deus.
Essas são as ideias com as quais Paulo abre a longa seção a respeito da conduta dos que creem em Cristo. Ele as utiliza, pois pensa que o cumprimento da lei se obtém pela liderança da mente sobre o corpo. Fazer a coisa certa é agir racionalmente. E agir racionalmente é o mesmo que a mente governar o corpo.
As palavras de Paulo supõem o dualismo mente-corpo? Sem dúvida. E a cultura atual: nega esse dualismo? Nega-o, mas em parte. A alma continua a ser uma categoria do pensamento contemporâneo e, como tal, continua a se opor ao corpo. Não há como concebê-la, a não ser nessa oposição.
Romanos 12:1 reafirma, sinteticamente, o lugar reservado à razão em tudo o que é humano. Tanto o ser como o dever-ser do homem são racionais. O homem é guiado pela razão, queira-o ou não. Esse é o seu ser, a sua natureza. Mas ele também deve ser guiado por ela: esse é o seu dever-ser. A racionalidade é, portanto, um fato e um mandamento para o homem. Como fato, ela tem sua origem na criação; como mandamento, sua fonte é a lei.
Poderiam indagar se a fé não é uma experiência da afetividade. Se Deus e a experiência de Deus não se situam no sentimento. Situam-se. É o que significa a declaração “Com o coração se crê para justiça” (10:10). O coração significa, aí, o mesmo que em Deuteronômio 6:5: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”. Quem duvida de que o coração, nesse último verso, se distingue da razão fria? O coração é, portanto, a razão enquanto sente. Por isso, ao citar Deuteronômio 6:5, Jesus acrescentou a cláusula: “e de todo o teu entendimento” (Mc 12: 30; Lc 10:27).
A cláusula não pode ter sido inserida por um copista descuidado. “Shema, Israel [Ouve, Israel], o Senhor teu Deus é o único Deus. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” é um verso fundamental demais para ter sido citado de maneira errada por simples falta de cuidado. Errar ao citá-lo é como errar ao santificar outro nome em vez do nome de Deus. Portanto, ao inserir a cláusula “de todo o teu entendimento”, em vez de deturpar o versículo, Jesus entregou-nos a chave interpretativa dele. Tanto o coração como a alma e as forças têm no entendimento sua fonte primordial, porque o ser e o dever-se do homem são a sua razão.
O coração é o entendimento aquecido pela palavra de Deus. Está, pois, longe do pensamento bíblico ele excluir a mente. Se o coração excluísse a mente, a afetividade do ser humano seria idêntica à do animal, o que é absurdo. Mas ele não a exclui, antes tem nela o seu ponto culminante, a sua máxima realização.
Paulo nos lembra que o fato de a fé pertencer à esfera da afetividade e do sentimento não significa que ela seja irracional. Como o Antigo e o Novo Testamentos o apresentam, o sentimento não litiga com a razão. O mandamento não diz só “de todo o teu coração”. Nem diz apenas “de todo o teu entendimento”, como se devêssemos optar por um ou por outro. Diz “de todo o teu coração e de todo o teu entendimento”, a fim de que conciliássemos os dois.
A primeira de todas as virtudes, no Novo Testamento, é a fé. Mas não a fé irracional, a fé dirigida a qualquer coisa, mas a fé dirigida à verdade. Agostinho ensinou que "crer é aceitar como verdadeiro o que se diz e a aceitação é certamente um ato da vontade" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2009. p. 81). A fé que Paulo nos apresenta não é a fé num erro. É a fé na verdade, e a verdade, a menos que queiramos alterar o seu DNA, permanece uma categoria racional.
Se a fé fosse um sentimento irracional, toda fé seria igualmente justificável, pois o sentimento não é admitido ou rejeitado em função de outra coisa a não ser de si mesmo ou de outro sentimento. Não se pode afirmar que um sentimento irracional seja certo ou errado. Ele é apenas irracional. Portanto, não temos como o censurar nessa base. De modo que, se devemos criticar a crença em mulas sem cabeça ou coisas semelhantes, é porque devemos exigir que a fé se mantenha ligada à razão.
Credo quia absurdum (creio porque é absurdo)? Essa confissão resume a História da Religião, confunde-se com ela, porque nenhum ato lógico esteve sujeito a menor controle, até hoje, do que a fé. Mas o fato de a fé ter sido, historicamente, tão associada ao absurdo não exclui, por si só, que ela tenha estrutura racional. Assim como os pecados humanos, os absurdos da fé são redimidos no cristianismo, que não oferece somente o perdão dos pecados, mas a libertação de absurdos e superstições. A verdade não agrilhoa: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8:32).
Porque a fé no absurdo tem correção, porque há redenção para ela, é preciso não entregar o ato de crer ao descontrole da irracionalidade. Crer não pode ser crer em esquisitices, em irracionalidades consumadas, em coisas incompatíveis com a vida como ela se apresenta. É preciso examinar seriamente se a fé é incorrigivelmente absurda, como hoje se alega, ou não. Se concluirmos que não o é, precisaremos erguer a voz e apontar, com coragem, a estrutura lógica do ato de crer. Precisaremos explicar que crer no absurdo é perder-se ao crer, porém crer no que não é absurdo equivale a encontrar-se.
Aristóteles divide as virtudes em intelectuais (a exemplo da verdade) e morais (assim como a bondade e a paciência). Paulo, por sua vez, declara que os gregos retêm a verdade na injustiça (1:18). Por se opor à verdade, essa não é uma injustiça comportamental, mas intelectual. Há, pois, justiça intelectual e comportamental, como Paulo reafirma em 1ª aos Coríntios 13:6, ao declarar que o amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. De novo nesse versículo, a injustiça que se opõe à verdade não é comportamental, mas intelectual.
Crer não é saber: quem discordará dessa proposição? Mas, se não o é, a fé implica a dúvida. Implica que aquilo em que se crê pode ser ou não ser. E não implica uma terceira possibilidade além dessas. Por isso, a fé é a manifestação do princípio lógico conhecido como tertium non datur (terceiro excluído) no território da transcendência. Crer é crer que Deus é ou não é. Não há terceira possibilidade. Mas há um problema nisso: nunca se propôs que o terceiro excluído fosse qualquer outra coisa, além de um princípio lógico. E, se ele o é, então a fé é lógica, na exata medida em que Deus é ou não é.
Crer é aceitar algo tão tremendo quanto “Deus ser ou não ser”. Infelizmente, alguns nada veem de tremendo nesse dado. Para eles, Deus ser ou não ser é o óbvio, em toda a sua extensão. Mas como é difícil viver em conformidade com o óbvio! Se Deus é ou não é, por que vivemos tão despreocupados com a eternidade, nas nossas sociedades complexas e abastadas? Pascal afirmou: a alma é mortal ou imortal. E recriminou os que vivem como se só existisse a primeira possibilidade. Se os mortos não ressuscitam, disse-nos Paulo, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1 Co 15:32). Mas, se eles ressuscitam, prestemos bastante atenção, porque amanhã viveremos.
Essa é a primeira virtude: a fé na verdade transcendente, que não conhecemos a não ser minimamente. Dela nasce outra fé, dirigida à verdade imanente, que conhecemos muito melhor. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, Deus, que só pode ser conhecido pela fé, exorta as pessoas a falarem a verdade umas às outras. Daí a instituição do juramento. Ao se pronunciar, em momentos decisivos, o homem devia fazê-lo sob juramento. Devia jurar, a fim de que a verdade fosse estabelecida. E, para que não se pense que a natureza humana é suficientemente descrita pela propensão à mentira, sem referência às meias verdades que são tão humanas quanto comuns, naquele tempo eram necessárias duas testemunhas juramentadas para que uma só verdade se constituísse.
Em Neemias, encontramos um exemplo notável da extensão do valor da verdade, no Antigo Testamento. Confrontado por uma súcia de opositores inescrupulosos, ardilosos, mentirosos e fraudulentos, enfim com a pior de todas as raças, formada por Sambalá, Tobias, Gesém e outros, Neemias não agiu de modo inescrupuloso, ardiloso, mentiroso ou fraudulento, a fim de se defender. Recebeu uma carta de dois de  seus arquirrivais para que comparecesse a um encontro em Cefirim, no vale de Ono. A carta omitia a verdadeira intenção dos opositores, que era fazer mal a Neemias (Nm 6:2).
Quatro vezes os inimigos de Neemias mandaram-lhe cartas com esse falso convite. Quatro mentiras, uma a mais que as tentações do deserto. A todas, Neemias opôs uma só verdade. Disse que não ia ao encontro, por estar ocupado com uma grande obra (a reconstrução dos muros). 
Na quinta vez, Sambalá escreveu-lhe que os judeus tramavam rebelar-se e constituir Neemias seu rei. Não era possível acusação mais grave, nem mais inverídica. Que replicou-lhe o líder judeu? Mentiu, para enganar seu adversário? Não, mas usou de sinceridade. Disse-lhe simplesmente: “Não aconteceu nada de semelhante ao que afirmas”. E levou a sinceridade ao ponto da acusação: “Tudo não passa de uma invenção do teu coração” (Nm 6:8).
A atitude de Neemias faz lembrar o conselho “Não vos canseis de fazer o bem” (2 Ts 3:13). Cansar-se do bem, desfalecer na adesão aos valores é, para alguns, um problema maior que o gosto pelo desvalor. Os judeus que tinham voltado para Jerusalém viviam em grande pobreza. Tinham de realizar uma obra inversamente proporcional aos seus parcos recursos. E, como se não bastassem essas dificuldades, os homens mais poderosos da província se uniram para se opor a eles e ainda usaram de falsidade para com Neemias. Que o líder dos judeus opôs a esse prodígio de orquestração e falsidade? Simplesmente a realidade. É até onde deve ir a adesão de um homem à verdade.
Este é, porém, um tempo frívolo, uma era de indiferença quanto à verdade suprema. Que dizer das demais... Quem não respeita a maior de todas as verdades, por que motivo, no céu ou na terra, respeitaria as menores? Quem foi Jesus?, pergunta uma vasta literatura. A resposta que oferecem é: “Que importa, se eu não preciso dele?” “Deus criou o Universo ou tudo se fez sem ele?”, indagam os livros. Os que ouvem replicam: “Que importância tem isso?” Claro: a verdade já não importa. Há muito deixou de importar. É o que se diz e se ouve, em boa parte do Ocidente.
Dá calafrio pensar no que significam as palavras, as demonstrações e as juras que essas pessoas fazem sobre fatos mais corriqueiros. Gela pensar no que significam os seus convites para um simples encontro....