sábado, 30 de novembro de 2013

O Dilúvio (3): A Inundação Local

O termo hebraico empregado para designar o Dilúvio (mabbul) só aparece duas vezes na Bíblia. A primeira é nos capítulos 6 a 9 de Gênesis. A segunda é num versículo isolado do Salmo 29, que afirma que “o Senhor se assentou sobre o dilúvio” (Sl 29:10). Muitas outras passagens referem-se a tempestades, mas essas são as únicas em que mabbul aparece. É o caso de perguntarmos o que justifica o uso de termo tão especial: o alcance universal da inundação ou outra característica?
A Bíblia afirma que o Dilúvio foi causado por chuvas torrenciais e pela abertura das fontes do abismo (Gn 7:11). A palavra abismo indica as profundezas da terra ou do mar. A abertura das suas fontes, portanto, pode significar o rompimento da própria terra ou o aumento das águas do mar por uma forte agitação no seu solo.
No século XIX, G. H. Pember adotou a segunda interpretação, ao descrever o Dilúvio nos seguintes termos: “Um rugido aterrorizante vindo do mar anunciou que alguma poderosa convulsão [...] começara nas grandes profundezas. Todas as suas fontes fechadas foram explodindo. Deus removera os limites do oceano, e suas ondas orgulhosas não deveriam mais permanecer, mas elevar-se com tumulto prodigioso e começar a avançar, mais uma vez, em direção à terra seca” (PEMBER. G. H. As eras mais primitivas da terra. São Paulo: Editora dos clássicos, 2002. Tomo 1,p. 217).
Vê-se que Pember referiu-se à abertura das fontes do abismo como um acontecimento no mar, que afetou também a terra. Por isso aludiu ao “rugido aterrorizante vindo do mar”, à “poderosa convulsão nas profundezas” e à remoção dos limites do oceano. Que pode ter sido essa remoção, a não ser uma inundação da terra pelo oceano? Mas, se for esse o caso, o Dilúvio terá sido um tsunami!
A narrativa bíblica é clara, ao afirmar que os eventos catastróficos começaram, no dia em que Noé entrou na arca: “Nesse dia, romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram [...] Nesse mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos” (Gn 7:11,13).
Porém, embora o cataclisma tenha-se iniciado no dia do embarque de Noé, somente após sete dias, as águas inundaram a terra: “[Os animais] entraram para Noé, na arca, de dois em dois, macho e fêmea, como Deus lhe ordenara. E aconteceu que, depois de sete dias vieram sobre a terra as águas do dilúvio (Gn 7:9-10). Esse é um pormenor muito significativo. Sabemos que chuvas torrenciais causam inundações quase instantaneamente. Todavia, não é isso que a Bíblia relata ter ocorrido no Dilúvio. Se a inundação da terra começou sete dias após a abertura das comportas dos céus e das fontes do abismo, é improvável que ela tenha sido causada por chuvas. Mais provável é que tenha sido provocada por um devastador tsunami. E, como esse fenômeno é geralmente relacionado a terremotos, não deve ser descartada a possibilidade também desses últimos.
Somos assim levados a um evento cujo potencial de destruição foi muito superior ao de inundações causadas apenas pelo transbordamento de rios. A conjugação de chuvas torrenciais com um tsunami e um ou mais terremotos explica tão bem o caráter devastador do Dilúvio que não precisamos supor que ele tenha sido universal para entender por que foi chamado mabbul (Grande Dilúvio). A inundação pode ter sido considerada tão peculiar pela violência que o fenômeno triplo assumiu.
Embora preserve uma tradição judaica, sabemos que a história bíblica do Dilúvio sofreu inegável influência de narrativas mesopotâmicas assemelhadas. No acervo constituído pela literatura da Antiga Acádia, vários relatos de inundações semelhantes podem ser encontrados. Porém, a Epopeia de Gilgamesh se refere à inundação por meio do termo abubu, que corresponde a mabbul em acádico. É provável que esse termo tenha chamado a atenção dos autores de Gênesis, que encontraram e percorreram com assombro a epopeia na famosa biblioteca de Assurbanípal. E talvez por isso, o autor sagrado tenha-se referido ao Dilúvio por meio de uma palavra tão rara no vocabulário bíblico quanto mabbul.
Porém, a memória do fenômeno descrito pela palavra mabbul não se encontra apenas em Gênesis. Conservou-se, de maneira clara, também em outras partes das Sagradas Escrituras. Talvez a mais eloquente delas seja 2ª de Pedro 3:5-6, que afirmam que os críticos da mensagem cristã, nos primeiros dois séculos, "deliberadamente esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo afogado em água"
Que afogamento do mundo antigo em água é o mencionado no verso 6, a não ser o causado pelo Dilúvio. A intenção do autor sagrado foi comparar a atitude dos críticos do evangelho, nos primeiros séculos desta era, à dos descrentes do tempo de Noé - as únicas pessoas que a Bíblia afirma terem morrido afogadas em água, em grande número, na Antiguidade. No entanto, as águas que os afogaram são descritas como as mesmas das quais a terra surgiu, no terceiro dia da criação, quando “disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar e apareça a porção seca. E assim se fez” (Gn 1:9).

Essa relação das águas do Dilúvio com as que cobriam a terra quando ela emergiu, em Gênesis 1:9, significa que o Dilúvio só pode ter sido um tsunami, já que a terra não emergiu de chuvas e sim do mar, naquele versículo. Portanto, o Dilúvio não consistiu só em chuvas torrenciais e prolongadas, mas também num devastador tsunami causado por um maremoto. 
O caráter duplo do Dilúvio como uma sequência de fortes chuvas concomitante com a abertura das fontes do abismo foi tomada pelo autor de Gênesis de relatos hebreus antigos e da Epopeia de Gilgamesh. Em tudo, a atitude do escritor sagrado consistiu em recepcionar os fatos contidos naqueles escritos e rejeitar o sentido religioso da narrativa babilônica. E, quando falamos em recepcionar os fatos, o primeiro de todos eles parece ter sido o alcance da inundação da qual Noé escapou.
A Epopeia de Gilgamesh preserva a memória de um Dilúvio amplo. Contudo, ao lermos cuidadosamente o seu texto, percebemos que esse ponto não é enfatizado. O alcance geral só aparece na descrição do resultado da inundação: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62). Além disso, a narrativa de Utnapishtim, no grande épico, começa com a contextualização dos acontecimentos em Shuruppak, que por isso deve ser entendida como o teatro da inundação.
Temos, assim, a alusão a uma catástrofe sem precedentes, como o termo abubu denota, mas não necessariamente a um evento universal. De acordo com a Epopeia de Gilgamesh, o Dilúvio foi geral, pois atingiu todos os seres vivos, porém seu alcance territorial, como o de Gênesis, não é claramente definido.A presunção é de que não se estendeu muito além de Shuruppak.
E o texto bíblico, que diz a respeito do alcance da inundação? Diz, repetidamente, que o Dilúvio atingiu “toda a terra” e que o tudo o que havia “debaixo do céu” pereceu. Porém, essas expressões parecem indicar apenas a terra que os descendentes de Adão habitavam. Se seguirmos os passos dessa descendência, em Gênesis 2 a 9, veremos que ela nunca deixou as vizinhanças do território denominado Éden. Tudo o que o narrador do livro conta passa-se nesse território. De sorte que não há razão para entendermos que “toda a terra” e “debaixo do céu” signifiquem o planeta inteiro.
Jeremias clamou: “Ó terra, terra, terra! Ouve a palavra do Senhor” (Jr 22:29). Nem por isso quis referir-se ao planeta inteiro. Os índios da América não estavam incluídos na exortação do profeta. Do mesmo modo, Zacarias 1:9-11 menciona cavalos que percorrem “toda a terra”, porém não o planeta inteiro. Em ambas as passagens, terra é o contexto geográfico imediato dos profetas: a terra de Israel.
Quando Deus disse a Sofonias “Consumirei todas as cousas sobre a face da terra. Consumirei os homens e os animais, consumirei as aves do céu e os peixes do mar e as ofensas com os perversos; e exterminarei os homens de sobre a face da terra” (Sf 1:23), não anunciou um segundo Dilúvio. Previu uma destruição relevante, mas não de todo o planeta. Do mesmo modo, Gênesis narra o Dilúvio em relação ao território em que os capítulos 2 a 11 se passam.
Nesses capítulos, quando a palavra terra é usada para indicar um lugar diferente daquele em que a narrativa se centra, ela é anexada a outro nome, como Node, para onde Caim se dirigiu (Gn 4:16). Do contrário, é a terra em que a  maior parte dos acontecimentos transcorre, à qual Caim se referiu ao exclamar: “Hoje me lanças da face da terra” (Gn 4:14). Em nenhum versículo de Gênesis 2 a 11, a palavra é usada para indicar o planeta todo.
Desde a apresentação do Jardim do Éden, nos capítulos 2 e 3 de Gênesis, a narrativa bíblica gira em torno da Mesopotâmia. É o que a menção dos rios Tigre e Eufrates, em Gênesis 2:14, claramente indica. A palavra terra é, portanto, utilizada para indicar essa região. E não é diferente, na narrativa do Dilúvio, que se abre com a alusão à multiplicação dos homens. Devemos entender que isso se deu na Mesopotâmia e vizinhanças (Gn 6:1), onde os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens (Gn 6:2), e os gigantes resultantes dessa união também habitaram (Gn 6:4).
Diz a Escritura: “Naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e estas lhes deram filhos, os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os herois dos tempos antigos”. A inserção das palavras “e também depois”, no versículo acima, indica que os nefilins continuaram a existir, após o Dilúvio. Como a palavra designa uma raça diferente dos enaquins, refains e emins (Dt 2:10-11), devemos entender os nefilins como uma estirpe ou descendência específica. Números 13:33 registra a presença deles na Palestina, muito tempo depois depois do Dilúvio, o que indica que a estirpe sobreviveu àquela catástrofe. Portanto, a presença dos nefilins, na Palestina, depois do Dilúvio, é uma primeira prova de que este não foi universal, mas local.
Outra prova pode ser encontrada em Gênesis 4:20-21, que afirma que Jabal e Jubal foram pais dos que habitam em tendas e possuem gado, bem como dos que tocam harpa e flauta. O tempo verbal presente, nesses versículos, indica que Jabal e Jubal foram ancestrais de pessoas que estavam vivas, na época em que Gênesis foi redigido. Do contrário, o escritor do livro não teria feito referência “aos que habitam” em tendas, “aos que tocam” harpa e flauta e “aos que possuem” gado. E, se entendermos que Gênesis 2 a 11 trata continuamente de linhagens, teremos de concluir que os pais dos que habitam em tendas, dos que tocam harpa e flauta e dos que possuem gado não foram precursores sem relação de sangue com eles, mas ancestrais de povos específicos que tinham aqueles costumes. Portanto, assim como os nefilins, os descendentes de Jabal e Jubal também devem ter sobrevivido à catástrofe de Gênesis 6. E só o fizeram porque ela foi local.
Não é diferente com os “filhos de Sete” mencionados em Números 24:17-18, junto com os povos de Moabe e Edom. Como os descendentes de Sete poderiam estar vivos na época a que Números se refere, se o Dilúvio tivesse sido universal? Ou, se os filhos de Sete fossem todos os descendentes de Noé, por que se diz que habitavam num território particular (o de Moabe e Edom)? Na verdade, Números 24:17-18 quer afirmar que, na época de Balaão, os filhos de Sete eram um povo da Palestina, assim como Moabe e Edom.
O livro continua: “Balaão viu  Amaleque [...] Depois viu os quenitas e pronunciou o seu poema. Disse: ‘A tua morada está segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o rochedo’” (Nm 24:20-21). Alguém duvida de que Amaleque e os quenitas são povos específicos? No entanto, os quenitas são tratados como descendentes de Caim. Como é evidente que Caim viveu muito antes do Dilúvio, concluímos que as Escrituras não consideram que a catástrofe do tempo de Noé foi universal e sim local.
As dimensões da arca também favorecem a tese da inundação local. Gênesis afirma que sete casais de cada espécie de animal limpo e de ave e um casal de cada espécie de animal imundo entraram na arca. Está implícito que o alimento necessário para sustentar essa fauna, durante um ano, também foi carregado para dentro do navio. E que uma arca com 136 x 22 x 13 metros não poderia comportar tudo isso, como Orígenes percebeu, no século III. Disse esse autor: “Os números de trezentos côvados de comprimento, cinquenta de largura, trinta de altura não permitem sustentar que a arca abrigou os animais que estão na terra, quatorze de cada espécie pura, quatro de cada espécie impura” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 321).
Mas as evidências do Dilúvio local não acabam. O fato de Ninrode ter edificado cidades, pouco depois da inundação, é outro indício do caráter local. Ninrode foi bisneto de Noé (Gn 10:1,6,8). Não devemos, portanto, supor que se passaram mais do que poucas décadas entre o Dilúvio e o seu nascimento. Se o Dilúvio foi universal, para que Ninrode construiu várias cidades menos de meio século depois de a população do planeta ter sido zerada?
Por fim, há o número de anos da vida de Metusalém. Na Bíblia grega (Septuaginta), essa personagem morreu 14 anos depois do Dilúvio; na hebraica, dois anos depois (Gênesis 5:25-28; 7:11). Quer a Escritura, com isso, afirmar que Metusalém foi o único sobrevivente do Dilúvio, dentre as pessoas que ficaram fora da arca? Não é mais natural entender que, também nesse particular, ela admitiu que o Dilúvio não foi universal?
Temos de concluir que a crença num Dilúvio universal resulta de um erro de interpretação de Gênesis. E que reinterpretar esse texto é preciso, a não ser que queiramos perseverar no erro. Por um lado, a reinterpretação reconcilia o texto bíblico com a ciência contemporânea. Por outro lado, a ciência auxilia a entender o relato das Escrituras.
Descobertas como as de Woolley e Mallowan, a que nos referimos nesta curta série, provam a ocorrência de inundações semelhantes à que a Bíblia narra, imediatamente antes e durante a vida de Noé. Nenhuma delas pode ser identificada com o Dilúvio, já que uma distância de séculos as separa da catástrofe de que Noé escapou, a qual a Bíblia localiza por volta de 2.600 a. C. São, porém, importantes para mostrar que a preocupação com enchentes foi constante, na época e no lugar em que o patriarca viveu.
Pode-se perguntar por que não foram encontrados vestígios da própria inundação de Noé. Basicamente porque as cheias de Woolley e Mallowan resultaram de transbordamentos do Tigre, do Eufrates ou de seus afluentes, enquanto o Dilúvio foi causado, ao que tudo indica, por um tsunami. Mudanças no curso de rios permanecem por muito tempo. Deixam, pois, marcas e aluviões, como os que Woolley e Mallowan descobriram. As águas de um tsunami vêm e vão. Inudam e logo refluem para o mar, deixando marcas superficiais que desaparecem em pouco tempo, mais ou menos como uma espécie que se extingue rapidamente não deixa marca no registro fóssil.
Os céticos querem que acreditemos que o Dilúvio é como a estória do coelhinho. Os fatos e os textos nos mostram que ele é muito mais parecido com a história da Guerra de Troia.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (12): Aquiles e a Tartaruga

Temos visto que o conhecimento pode ser construído de modos muito distintos, com base na certeza e na dúvida, o que sugere que a dúvida é tão decisiva para ele quanto as informações sobre o objeto acumuladas pelos sentidos. Se colocarmos essas informações num prato da balança do conhecimento e a dúvida no outro, será difícil evitar que um estado de equilíbrio se instale entre elas.
Sabemos que pensamos e que os objetos de nossos pensamentos, enquanto existem em nós, não possuem materialidade. São essências e não coisas reais. Uma essência é uma ideia geral. É semelhante ao mapa de uma cidade, que é em tudo distinto dela, contudo a representa. Sabemos que o mapa não é a cidade e que as essências das coisas não são as próprias coisas. Mas sabemos, também, que usamos as essências para classificá-las. Por exemplo, agrupamos todos os seres humanos que conhecemos sob a essência do homem.
O processo de formação de essências, na alma, obedece a vários critérios, mas o de maior importância é a disjunção. O ato de conceber é disjuntivo, pois se dá por separação. Pensar é separar mentalmente um objeto de outros. Assim, ao concebermos a essência de ser humano, procedemos à separação ou distinção dela em relação a todas as outras essências.
Se queremos, pois, entender minimamente o nosso pensar, não temos como deixar de perscrutar o processo pelo qual a disjunção ou separação das essências se dá. Podemos representar esse processo como uma ruptura em cadeia, pois cada disjunção é causa de outras, que por sua vez são causas de ainda outras, ad infinitum. De sorte que o encadeamento total das disjunções nos remete à pergunta sobre a existência ou não de disjunções fundamentais, ou seja, de separações nas quais a cadeia de rupturas cessa.
Pode parecer que o eu resulta de uma disjunção desse tipo. Vimos, no texto sobre a visão, que tanto Agostinho como Descartes afirmaram a certeza que o eu tem de existir. Essa sensação é tão forte que, mesmo quando a questiona, o eu tende a imaginar, no máximo, que ela pode ser parte da sensação que outro ser tem de si. Portanto, até a ideia do eu pode ser usada para criar outra diferente dela. Somente a ideia do ser é tal que não pode gerar outras. Só ela parece ser uma ideia ou essência totalmente irredutível.
O ser é, pois, o ponto de partida de todas as disjunções que a mente realiza. É o ponto inicial do processo de ruptura que gera as ideias e a imagem que possuímos do mundo. De disjunção em disjunção, a mente afasta a tentação de igualar tudo a tudo, de fazer qualquer coisa equivaler a qualquer outra e assim forma uma imagem organizada do mundo.
Porém, conforme a série de disjunções se aprofunda (e é bom lembrar que ela o faz ao infinito), nota-se uma diferença lógica entre duas espécies de separações de ideias. De um lado, há as ideias que supõem objetos fora do eu; de outro, há as que não o supõem. Exemplos das últimas são as disjunções que originam a Geometria, assim como as que distinguem o ponto da linha, bem como as figuras (círculos, quadrados, triângulos etc.) que podem ser formadas com linhas.
Chamamos conceitual o plano no qual os conceitos de ponto, de linha e de outros entes matemáticos se situam e empírico, o plano no qual objetos como cidades existem. As disjunções conceituais não precisam de algo além delas próprias para serem verdadeiras. Um ponto não é uma reta, independentemente de qualquer outro fato ou ideia. Mas a verdade empírica não é assim. Para uma cidade existir, é preciso supor um planeta que sirva de base ou suporte para ela e toda uma série de condições de espaço, de tempo, de ordem física, química e biológica, sem as quais não podem existir cidades.
As disjunções conceituais são mais consistentes do que as empíricas, pois se fundam umas nas outras, ao passo que as ideias empíricas derivam das puras ou abstratas. A ideia de uma cidade A e a de outra cidade B derivam do conceito geral de cidade, que é puro. Esse conceito puro, por sua vez, deriva de outros igualmente abstratos.
Esse é um ponto fundamental da série de disjunções do pensamento, pois introduz uma contradição. A disjunção entre o plano conceitual e o empírico supõe a distinção radical deles. Como pode, então, o empírico ser retratado por meio do conceitual? Como a cidade A e a cidade B podem ser representadas por meio do conceito de cidade? Isso é contraditório com a premissa de que o plano conceitual é distinto do empírico.
Mas não parece que tenhamos outro modo de pensar o empírico, a não ser a partir de ideias abstratas. Esse é o procedimento básico do pensamento do empírico. É o princípio no qual Aristóteles fez repousar todo o conhecimento humano, ao declarar que nada pode estar no intelecto sem ter antes estado nos sentidos. No entanto, é um princípio contraditório. E não podemos escapar à conclusão de que, se o é, o conhecimento do real se funda não só em disjunções, mas também na contradição. Conhecer algo real é contradizer a totalidade do pensamento que antecede e prepara esse conhecimento.
O paradoxo de Aquiles e a tartaruga, proposto por Zenão de Eleia, ilustra o que acabo de mencionar. Nele, o heroi da Guerra de Troia disputa uma famosa corrida com uma tartaruga. Dada a diferença de dotes físicos que os distingue, Aquiles concede à tartaruga uma vantagem inicial: permite-lhe começar a corrida muito à frente dele. Para ganhar a disputa com a tartaruga, portanto, Aquiles terá de fazer uma corrida de recuperação. Em linguagem matemática, isso significa que, a cada intervalo de tempo t, Aquiles terá de reduzir à metade a distância que o separa da tartaruga. A questão que Zenão coloca com o paradoxo é se, em tais condições, Aquiles poderá efetivamente ultrapassar a tartaruga.
A experiência dos sentidos mostra que a ultrapassagem ocorrerá, infalivelmente, se concedermos tempo suficiente a Aquiles. Se a cada intervalo t, ele reduz a distância à metade, haverá um tempo t’ em que o heroi ultrapassará a tartaruga. Porém, a Matemática contradiz esse testemunho. Ela prova que uma ultrapassagem não pode ocorrer por sucessivas reduções da distância à metade. Matematicamente (e do ponto de vista lógico), tal ultrapassagem é impossível.
Zenão perguntou-se qual dos dois testemunhos estava correto: o da Lógica ou o dos sentidos? Optou pela Lógica e concluiu que os sentidos nos enganam o tempo todo. Mas podemos entender o paradoxo de outra maneira. Podemos pensar que se limita a confirmar a contradição consistente em diferenciar o conceitual do empírico e, em seguida, utilizar o conceitual para descrever o empírico. Não há surpresa alguma no fato de obtermos resultados contraditórios por esse processo, se ele todo é essencialmente contraditório. O que o paradoxo faz, pois, é ilustrar a contradição por um exemplo claro e particular. É colocar um holofote sobre ela e torná-la translúcida.
Bertrand Russell propôs que a descrição da disputa de Aquiles com a tartaruga, por meio da Matemática, não está errada. Não quis com isso negar o resultado paradoxal dela. Quis apenas propor que a Matemática trabalha com o conceito de infinito de um modo que ultrapassa os sentidos, sem conflitar com eles. Os números não são só infinitos como entre dois números há infinitos outros (infinitas frações). Não é muito diferente o raciocínio que encontra infinitas retas entre duas linhas quaisquer situadas no mesmo plano. Portanto, seja no campo da Aritmética, seja no da Geometria, a Matemática é uma catedral de infinitos.
Não é diferente no paradoxo, explica Russell. A corrida de Aquiles com o animal é corretamente descrita como infinitas reduções da distância entre eles à metade ou a qualquer outra fração. O que se dá é que a descrição é válida, mas não é perfeita, do ponto de vista dos sentidos. Em algum momento ela falha, o que não invalida tudo o que realizou até então.
A opinião de Russell merece ser apoiada. Na versão acima, o paradoxo propõe sucessivas reduções da distância à metade, mas poderíamos apresentá-lo igualmente bem, afirmando que a distância é reduzida a 1/3, 1/4, 1/5, 1/1.000 ou qualquer outra fração. O essencial, para que o paradoxo se torne aparente, é que a distância é reduzida a frações, não necessariamente à metade. Dessa representação, penso, ninguém pode duvidar, porquanto é claríssima.
Entre dois números, inclusive entre frações como as que o paradoxo supõe,  podem ser situados infinitos outros. É o que a Matemática Moderna provou da maneira mais lapidar. Porém, os antigos já conhecessem os números infinitos. Agostinho, por exemplo, escreveu que "a razão ensina a possibilidade da divisão infinitesimal dos mais minúsculos dos corpos, mas quando se chegar às coisas mais diminutas e sutis entre as de que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues e ínfimas, embora a razão não deixe de continuar a fazer sempre a divisão" (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro XI, Cap. 10, p. 362).
Digamos que o espaço que separa Aquiles da tartaruga, no início da sua corrida, seja um corpo agostiniano, que pode ser sujeito a divisão infinitesimal. Não é esse precisamente o problema colocado por Zenão? Há divergência entre essa descrição e a de Russell? Certamente, mas não uma diferença que impedisse Agostinho de captar a natureza do paradoxo. Mas, embora a compreendesse, Agostinho entrevê um desnível entre o tratamento que a razão  lhe dispensa e o que a imaginação desenvolve. Ao tratar das "coisas mais diminutas e sutis entre as que nos lembramos ter visto, já não temos possibilidade de imaginar partículas mais tênues". Esse é o parecer da imaginação. O da razão é a divisão infinita do espaço. Nesse duplo movimento da inteligência consiste o paradoxo.
O que Agostinho denominou imaginação é o que nós costumamos chamar senso comum. Para o homem comum, Aquiles não percorre uma distância infinita para ultrapassar a tartaruga. Logo, o modelo descritivo da divisão infinita deixa de aplicar-se ao problema, a partir de certo limite, o que não significa que ele seja equivocado. Nenhum filósofo antigo ou medieval com boa formação tiraria essa conclusão. Contudo, o desnível entre o modelo da divisão infinita e a corrida real o intrigava.
Com os recursos de uma Matemática muito mais desenvolvida, Russell pôde explicar o problema de modo mais satisfatório. A principal diferença entre a explicação fornecida por ele e a concepção da divisão infinitesimal de Santo Agostinho é o fato de Russell não pressupor o desnível entre a divisão racional das distâncias e a corrida real. Isso porque o próprio Russell mostrou, nos Principia mathematica (escrito em parceria com Alfred North Whitehead) e em Introdução à Filosofia Matemática, que a Matemática se funda em definições, que consistem na atribuição de uma ideia abstrata a casos particulares. Concebida dessa maneira, portanto, uma divisão infinita só pode ser o gênero a que casos particulares, inclusive o de intermináveis divisões de uma distância real em frações, correspondem.
"Acontece frequentemente numa série que haja um número infinito de termos intermediários entre dois que podem ser selecionados, por mais próximos que estes estejam entre si", diz Russell e dá como exemplo exatamente frações, entre as quais há outras - por exemplo, a média aritmética das duas" (Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 57). Mas isso não pode contradizer o fracionamento sucessivo de uma distância real. Pelo contrário, continua o matemático e filósofo, "séries desse tipo são de importância vital para a compreensão da continuidade, do espaço, tempo e movimento" (idem. p. 58).
Descartes reconheceu não ser "possível a divisão de de um corpo em partes tão pequenas que cada parte dessas não possa tornar a se dividir em outras ainda menores" (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. São Paulo: Folha de S. Paulo/Levoir, 2010. p. 86). Concordou, portanto, com Russell ou Russell com ele em que a divisão dos corpos estende-se ao infinitesimal. Porém, acrescentou que a divisibilidade dos corpos é indefinida e não infinita (como Russell admite), a fim de sublinhar a incapacidade do intelecto de discernir seus limites (idem). Essa incapacidade, esse limite indefinido para uns, infinito para outros é o que o paradoxo de Zenão enfoca.
Miseráveis que somos: não é fácil encontrar representações, no conhecimento, de que não seja possível duvidar! A Matemática não é exceção alguma. Reduzir uma distância a qualquer fração é um procedimento conceitual. Não há nele equívoco algum, porém sabemos que, no fundo ignoto de nossas representações, o conceitual se separa do real e deixa de corresponder-lhe. E, por não lhe corresponder, o que desaba não é só a explicação comum da corrida, mas a Física inteira: a de Newton, a de Einstein e a Quântica. Que Física não se baseia na representação do movimento entre dois pontos como uma redução da distância a frações dela própria? Que Física não se estrutura a partir dessa premissa?
Mas, se essa dúvida que ameaça a Física há de ser resolvida, pois nenhuma interrogação deve ser permanente, em que haveremos de dissolvê-la, senão na fé a que Russell aludiu? Na fé em que, embora a representação matemática (e com ela a Física) seja contraditória com o real, eles convergem num plano mais fundamental?
Cremos o tempo todo (e a ciência também o faz) que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último. O fato de a descrição matemática divergir, em algum ponto, do testemunho prestado pelos sentidos é um corolário da contradição entre eles. Mas a divergência não invalida o conhecimento humano do mundo. O que o pode invalidar é a detecção de uma grave irregularidade no interior do conhecimento. É perceber, por exemplo, que criamos contradições o tempo todo. Mas a contradição fundamental que apresentei não é dessa espécie. Ela não introduz outras. Além disso, é em si mesma estável. Não se altera. Concebemos todo objeto empírico, por meio da contradição fundamental mencionada e, sem ela, nada conheceríamos. De modo que ela gera conhecimento, não o impede.
Qual é, pois, o significado lógico da contradição mencionada? Que consequência ela tem para o princípio geral que proíbe contradições no conhecimento? Sabemos que esse princípio proíbe afirmar A e não A ao mesmo tempo. E não é isso que a contradição detectada realiza? Ela não afirma a disjunção entre o conceitual (A) e o empírico (não A) e utiliza, em seguida, o conceitual (A) para pensar o empírico (não A)?
Sem dúvida, mas o princípio da não contradição só vale absolutamente para o ser. Aplicado a qualquer outro conceito, ele permanece sujeito a dúvidas e deve ser entendido dialeticamente. Isso significa que o princípio não deve ser considerado imune a flexibilizações, refutações e negações. Porém, como o conhecimento é uma atividade regular e não errática, é preciso que as flexibilizações, refutações e negações não sejam arbitrárias, mas se subordinem a regras lógicas.
Que regras são essas? Vimos que não podem ser regras de aplicação de categorias, pois tanto as categorias aristotélicas como as kantianas são diretrizes absolutas de pensamento. Onde a dúvida reina, não há lugar para regras absolutas. Portanto, o conhecimento empírico não é regido por regras categoriais e sim dialéticas, porque flexíveis e válidas apenas em condições preestabelecidas.
Não convém especificar um conjunto fechado dessas regras, como Aristóteles e Kant fizeram ao enumerar as categorias, pois essa é uma tarefa impossível. Não há um conjunto fechado de regras não categoriais do pensamento, pois elas podem dar lugar a outras regras, se as condições para a sua aplicação faltarem.
Podemos, porém, mencionar algumas regras dialéticas para fins meramente exemplificativos. É dialética a regra que manda o intelecto distinguir entre o eu e as essências que ele concebe. Também o é a diretriz que manda construir essências por separação (disjunção). E é dialética a norma que proíbe a contradição no processo de formação de uma disjunção, porém não entre as disjunções. O conhecimento humano, como de fato é e não como o dogmatizamos, parece desenvolver-se por regras tais como essas.
Percebemos que, em tudo, a dúvida pode ser reavivada, quando aparece morta. Não há conhecimento absoluto, exceto o do ser. E, das espécies fundamentais de conhecimentos, a mais incerta é a dos sentidos, pois é a única que não existe a não ser por meio da contradição. Conhecer empiricamente é, de fato, contradizer o conhecimento.
E é claro que essa contradição importa uma grave dúvida. O que não significa que não conhecemos, mas que só conhecemos por meio da suspensão de tal dúvida por meio da fé. Em matéria de testemunho dos sentidos, conhecer é crer. Materialismo é fé. Não estamos longe da conclusão de Platão de que o conhecimento dos sentidos é doxa (opinião), nunca epistème (ciência). Apenas chegamos a esse resultado por um caminho distinto do que Platão elegeu. Ele afirmou a realidade indesafiável das ideias; a nós coube o quinhão da dúvida.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Dilúvio (2): O Noé Babilônico

Incontáveis narrativas de dilúvios foram descobertas, em diferentes povos. Já se sugeriu que esses textos são ecos de acontecimentos globais, como os degelos que se seguiram às glaciações e que produziram inundações simultâneas em vários lugares do mundo. No meio fundamentalista cristão, chega-se a sugerir, até mesmo, que são evidências do Dilúvio universal narrado em Gênesis.
Porém, essas interpretações têm forte teor imaginativo. A menos que alguém demonstre que a memória de inundações se depositou no inconsciente coletivo de múltiplos povos e inspirou pessoas a comporem narrativas assemelhadas, o que é pouco verossímil, não se pode identificar nelas um eco de qualquer evento universal. Se fossem lembranças dos grandes degelos, por que as centenas de relatos diluvianos não recordam os gelos que os precederam? Por que falam de inundações, mas não de geleiras? Ou, se são testemunhos de uma inundação de âmbito universal, como se explicam as diferenças profusas entre as histórias? O fato parece ser que nem a teoria que liga os textos diluvianos às glaciações, nem a que os associa à inundação narrada na Bíblia tem bom fundamento.
No entanto, se tomarmos os achados arqueológicos de Leonard Woolley, Max Mallowan e outros como evidências de dilúvios regionais ocorridos por volta da época de Noé, será possível relacioná-los senão com todas, ao menos com algumas histórias diluvianas provindas dos mesmos lugares. Três dessas histórias destacam-se como mais provavelmente relacionadas a inundações do Antigo Oriente: o relato sumeriano do Dilúvio, a Epopeia de Gilgamesh e o Dilúvio do poema indiano Mahabharata. Vale a pena examiná-los para verificar se guardam ou não relação com os achados de Woolley.
Comecemos pelo texto sumeriano. Escrito por volta de 1.600 a. C., ele se inicia com a menção de oito reis, que governaram cidades mesopotâmicas antes da inundação (BRIEND, Jacques. “Relato sumério do dilúvio”. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 77). Após indicar os nomes desses soberanos, o prisma em que o relato se encontra completa: “Então o dilúvio ocorreu” (idem. “Os reis antediluvianos”. pp. 55-56). A inundação narrada pelos sumérios atingiu toda a humanidade. Só o heroi Ziusudra e outros sábios sobreviveram numa grande embarcação.
A mais célebre versão extrabíblica de um dilúvio não é, porém, a sumeriana, mas a babilônica contida no décimo-primeiro livro da Epopeia de Gilgamesh, datada de 1.750 a. C. Esse épico narra as aventuras de Utnapshitim, que sobreviveu num navio a um Dilúvio que sepultou todos os homens da sua época. Assim como o relato sumério, a Epopeia atribui alcance geral à enchente: “O Dilúvio cessou/ Eu olhava o tempo: reinava o silêncio/ e todos os seres vivos tinham-se transformado em barro” (Epopeia de Gilgamesh, 130. In A criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2005. p. 62).
Mas as semelhanças entre a epopeia babilônica e Gênesis vão muito além desse ponto. As dimensões do navio de Utnapshitim, o Noé babilônico, são comparáveis às da arca bíblica: “Eu tracei os contornos/ sua superfície [área] era de um campo [3.600 m2]/ suas paredes de 10 perchas [60 metros] de altura cada uma” (idem, 55). O uso do betume na construção do navio recorda igualmente Gênesis: “Derramei 3 vezes 3.600 medidas de betume refinado no forno/ 3 vezes 3.600 medidas de betume cru dentro” (idem, 65). O atraque numa montanha, ao final do Dilúvio é outro ponto de semelhança: “O mar se acalmou/ calou-se o vento mau/ o Dilúvio cessou / [...] A embarcação acostou no monte Nicir” (idem, 140). Utnapshitim enviou uma pomba e um corvo para verificar se as águas tinham baixado, antes de sair do navio: “Fiz sair uma pomba e soltei-a/ a pomba se foi e voltou/ não encontrando onde pousar, voltou/ Fiz sair um corvo e soltei-o/ o corvo se foi e/ vendo o refluxo das águas/ comeu, patinhou, crocitou, e não voltou” (idem. 150). O herói babilônico ofereceu sacrifícios aos deuses, por haver sido salvo: “Ofereci um sacrifício/ fiz uma oferta/ expandida sobre o piso da montanha/ ergui sete e sete vasos de libação/ a seus pés coloquei cana, cedro e mirta” (idem, 155). Os deuses agradaram-se do sacrifício: “Os deuses sentiram o odor/ os deuses sentiram o bom odor/ os deuses, à semelhança de moscas, reuniram-se em torno do sacrificador” (idem. 155, 160).
Tanta semelhança com o texto bíblico não pode ser devida ao acaso. Tampouco há razões de ordem sobrenatural que a justifique. Para explicá-la é preciso supor a dependência de um dos textos em relação ao outro, ou seja, que um dos autores baseou-se na obra do outro para redigir a sua. Ou Gênesis 6 a 9 dependem da epopeia babilônica, ou há dependência no sentido contrário. Como a autoria mosaica de Gênesis não pode ser exagerada e há fortes indícios de composição desse livro bíblico no século VI a. C., é mais provável que o autor da narrativa bíblica tenha utilizado a epopeia.
No século VI a. C., os judeus estavam cativos em Babilônia. Portanto, é possível que tenham encontrado a famosa epopeia, num arquivo real de Babilônia, e tido a mais funda impressão da história de Utnapshitim. 
Ao entrar em contato com a epopeia, na Mesopotâmia, portanto, o editor do Livro de Gênesis deve tê-la reinterpretado em termos monoteístas, não só por influência da história indiana do Dilúvio, mas dos próprios hebreus que tinham levado tradições judaicas à Índia. Se isso tiver ocorrido, a reinterpretação monoteísta da Epopeia de Gilgamesh não terá sido inventada a partir do nada ou da imaginação de alguém, mas de uma versão monoteísta preexistente sobre o Dilúvio.Por que o autor bíblico não contou, simplesmente, essa versão? Por que preferiu mesclá-la com dados do texto babilônico? Provavelmente porque considerou que os fatos da Epopeia de Gilgamesh eram históricos. Nessa condição, eles não conflitavam com os que os antigos judeus tinham preservado sobre a grande inundação. De modo que não havia por que excluir os fatos da epopeia do texto bíblico, mas apenas eliminar seu sentido politeísta.
Após as escavações realizadas na década de 1920, de que falamos no texto anterior, “Sir Max Mallowan, cavando em Nimrud (Calah), propôs uma revisão da teoria de Woolley. Ele queria atribuir o dilúvio bíblico a um nível diferente de depósito aluvial em outros lugares da Mesopotâmia. Ao passo que o dilúvio de Woolley [fora] fixado por volta de 3500 a. C., na maneira convencional de datação arqueológica, o professor Mallowan propôs a data de 2900 a. C. à camada que deu origem às histórias na Mesopotâmia, e depois na Bíblia” (www.dialogue.adventist.org/articles/09. Acesso em 27/12/2008).
Um dado a ser destacado é que o nível de inundações mais antigo descoberto por Mallowan está em Shuruppak, epicentro da Epopeia de Gilgamesh e última cidade antediluviana, no relato sumério da inundação, após a menção da qual aparece a assertiva: “Então o dilúvio ocorreu”. O ano 2.900 a. C., que assinala a época em que Shuruppak foi inundada, está situado no meio da vida de Noé. Portanto, se não foi exatamente o Dilúvio bíblico, a destruição de Shuruppak pertenceu ao contexto daquele patriarca.
Em suma, não me parece que tenhamos de explicar o Dilúvio bíblico pela teoria das glaciações, como fazem diversos biblistas contemporâneos. As descobertas de Woolley e Mallowan, associadas aos relatos sumério e babilônico do Dilúvio, formam um quadro mais aceitável da catástrofe bíblica que o que emerge daquela teoria. Não precisamos considerar que os textos mesopotâmicos e Gênesis narrem, necessariamente, uma só inundação ou que Noé e Utnapishtim tenham sido uma só pessoa. Porém, a influência dos primeiros sobre o último é inegável. A conclusão mais fundamental a que se pode chegar, a partir dessas análises, é a de que, sejam as inundações dos diversos textos uma só ou várias, elas provavelmente ocorreram.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (10): A Aposta de Pascal

Pascal entendeu como poucos que a condição do homem define-se pelo conhecimento: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante” (PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Edipro, 1996. p. 154). Por isso, a sua função é pensar. Mas, feliz ou infelizmente para ele, o conhecimento que alcança quase sempre é tão rico em pequenas coisas quanto nulo em maiores, a exemplo da ordem que rege o Universo. O homem sabe tão mal o que mais lhe importa: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar” (idem. p. 12).
A ignorância a que Pascal se refere não é total, pois o homem tem certo conhecimento das coisas. É, porém, o produto das dúvidas sobre o que ele conhece. Se essas dúvidas não forem suspensas por meio da fé, o resultado será a ignorância profunda agravada pela expectativa da morte, a que Pascal se refere. E se contorce de espanto ante a frivolidade com que o homem reage ao seu imenso desconhecimento: “O mesmo homem que passa dias e tantas noites cheio de cólera e de desespero por ter perdido um cargo, ou por alguma ofensa imaginária à sua honra, sabe também que vai perder tudo com a morte, sem que por isso se inquiete ou se comova” (idem. p. 13).
Pascal desenvolve esse arrazoado, a partir da dúvida sobre a mortalidade da alma. Em momento nenhum, ele a dá como certa, mas acrescenta que não é preciso ter certeza da imortalidade para temer as consequências dela. Se admitir a sobrevivência da alma à morte e o encontro futuro com Deus como meras possibilidades, o homem terá motivos de sobra para considerar insensata a busca desenfreada de bens temporais, pois não lhe garante a felicidade futura e pode roubá-la dele.
A dúvida é o que basta para o homem levar a sério Deus e a fé cristã. Não é preciso alcançar, desde logo, a fé para que esse resultado se produza. Pascal continua: “Deus é ou não é. Mas, para que lado pendereis? A razão nada pode determinar aí [...] Mas é preciso apostar: isso não é voluntário; sois obrigados a isso” (idem. pp. 18-19). Por que somos obrigados a apostar se Deus existe? Porque, ao menos de um ponto de vista racional, a questão é importante demais para ser evitada para sempre ou abandonada na cova do esquecimento.
Essas lições de Pascal tornaram-se clássicas. Considero oportuno recordá-las não só a propósito da existência de Deus, mas de toda dúvida remexida constantemente na História e jamais resolvida. Chamo esse tipo de dúvida axial. Axis em latim significa eixo. Dúvida axial é, pois, a que não incide em qualquer tema, mas sobre o próprio eixo dos questionamentos humanos.
Houve um tempo em que o ser humano resolvia todas as suas dúvidas axiais, por meio da fé. Mas esse tempo parece ter definitivamente passado. Em lugar da resolução da dúvida pela fé, surgiram duas novas atitudes: a descrença e a dúvida permanente. A primeira cumpre função semelhante à da fé, qual seja a de resolver a indefinição introduzida pela dúvida. Enquanto a fé dissolve a incerteza numa afirmação, a descrença o faz numa negação. Assim, tanto a fé como a descrença servem para eliminar ou enfraquecer estados de indefinição cognitiva.
A dúvida permanente, por sua vez, é distinta tanto da fé como da descrença. Sua principal característica é não resolver de maneira alguma a indefinição introduzida pela dúvida. É não a afastar seja por afirmações, seja por negações, mas simplesmente a arrastar no tempo.
Porém, os modos alternativos de tratamento da dúvida apresentam problemas lógicos. O da descrença consiste em tanto ela como a fé terem o objetivo de substituir a prova de um fato. Quando não temos prova de algo, cremos que é real ou que não o é. O problema é que a prova de que algo é real é muito mais fácil de produzir do que a prova de que é irreal. Por exemplo: é mais fácil provar que há cisnes negros do que demonstrar que não há. Basta achar um cisne negro para mostrar que existem, mas é preciso vasculhar o Universo todo para afirmar com razão que não existem.
Essa diferença estrutural entre a prova de que algo é real e a de que não o é reflete-se nas atitudes de fé e de descrença. Como é mais fácil provar a existência de algo, a fé é geralmente mais justificada do que a descrença. Ou, para dizer o mesmo de outra maneira, é mais provável que a fé esteja certa e a descrença errada, já que a fé importa a existência, e a descrença, a inexistência de algo. Claro que esse princípio não se aplica quando a existência do objeto é por alguma razão impossível. Mas as dúvidas fundamentais têm por característica não permitirem ao sujeito decidir se a existência ou a inexistência entre as quais ele vacila podem ser descartadas como impossíveis. Sei que a esse tipo de dúvida a fé oferece resposta mais coerente do que a descrença.
Voltemo-nos, pois, para a dúvida permanente. Se a descrença tem o problema inerente da improbabilidade maior, a dúvida que não se resolve jamais é distinta. Seu mal é outro. É destruir o caráter dialético do conhecimento, ao manter a dúvida e eliminar a fé. Essa destruição desfigura o próprio conhecimento, que é por natureza dialético. O princípio da aposta de Pascal supõe exatamente isso. Ele considera que é preciso apostar, pois a mente humana funciona dessa maneira. Ela resolve dúvidas por meio de fés, e questiona fés por meio de dúvidas. Difícil é romper essa dialética.
A dúvida perpétua é contrária à natureza do conhecimento. Todo conhecimento é prático. Existe em razão de um fim. O engenheiro usa o cálculo para construir, o advogado cita a lei para requerer, e o filósofo usa o questionamento para entender como o real é ou deixa de ser. Todo conhecimento tem alguma utilidade. Consideramos o nada absurdo, antes de tudo, por servir para nada.
A dúvida tem também suas funções, como visto. Serve para enfraquecer os erros, confirmar e aprimorar as verdades. Porém, esses ganhos que a dúvida proporciona só se verificam até certo ponto. Tudo o que é humano requer medida. Torna-se mau quando se faz extremo, absurdo, quando se absolutiza. A dúvida não é exceção. Ao se perpetuar, ela perde todo sentido. Deixa de ser útil seja para enfraquecer erros, seja para confirmar ou aprimorar verdades. Isso é o que em Lógica se chama reductio ad absurdum: algo que começa como verdade e se torna absurdo pelo exagero. A dúvida é lógica enquanto comedida; torna-se absurda quando exagerada. E o faz por perder toda utilidade.
Por isso, o velho critério da aposta de Pascal oferece melhor solução para as aporias do pensamento do que a descrença ou a dúvida permanente são capazes de fazer. E o princípio da aposta ainda pode ser ampliado. Podemos aplicá-lo não só à existência de Deus, como fez Pascal, mas a todas as dúvidas permanentes, já que para nada serve duvidar para sempre. Se o conhecimento é dialético, se envolve dúvida e fé, mais cedo ou mais tarde, é preciso resolver as dúvidas por algum tipo de fé.
Mesmo assim, o marasmo em que a vida humana transcorre leva as pessoas a deixarem intocadas suas dúvidas axiais. Tornemos a Pascal: “Não sei quem me pôs no mundo nem o que é o mundo, nem mesmo o que sou [...] Tudo o que sei é que devo morrer breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”. Nossas dúvidas fundamentais são insolúveis e, porque o são, tendemos a adiar, indefinidamente, a assunção de posição a respeito delas. Mergulhamos em tal estado de torpor a respeito de nossas dúvidas que nos acomodamos a elas e assim as perpetuamos.
O princípio da aposta combate exatamente isso. Reconhece que é lícito ao homem ter dúvidas, até mesmo dúvidas axiais. Porém, não lhe é conveniente duvidar para sempre. Todo homem precisa apostar, assumir atitude de fé quanto às dúvidas axiais. É em última análise o que significa ser uma alma. Se alma é o princípio da atividade e não da passividade, ser uma alma é produzir aquela parte da existência que cabe unicamente ao ser vivo. É não se arrastar na sombra da passividade.
Uma das dúvidas axiais da Filosofia é a que se estabelece a respeito da imagem que temos do mundo. Vemos o céu sobre nós, os astros que nele brilham, o ar que nos envolve por todos os lados, a terra e a água intercaladas nos espaços inferiores. E vemos cada qual dessas estruturas enxameada por um número incalculável de seres pequenos em comparação com elas, com os quais interagimos e dos quais falamos uns aos outros o tempo todo.
O giro de Kant foi chamado copernicano, porque negou que essa imagem seja determinada pelos objetos. Para Kant, o sujeito e não o objeto é quem determina o conteúdo da sua imagem do mundo. Daí a imagem ser incerta ou, para usar a palavra fundamental desta série, duvidosa. Se o mundo, com as estruturas e os seres que mencionamos, realmente existem, é algo que não podemos comprovar. Por isso, Pascal afirmou desolado: “Não sei o que é o mundo”...
Kant chamou copernicana a revolução consistente em instalar o conhecimento no centro da Filosofia, por meio da dúvida sobre o real. Mas é o caso de perguntarmos quem foi o verdadeiro Copérnico. O próprio Kant ou algum outro? Vários séculos antes de Kant, os filósofos que se tornaram conhecidos como acadêmicos mostraram que as dúvidas básicas não podem ser resolvidas. E o mais impressionante é que eles o afirmaram pelos motivos mais fundamentais que poderiam ser invocados. Na sua obra sobre esses filósofos, Agostinho diferenciou duas Academias. Os integrantes da primeira já afirmavam a impossibilidade de se conhecer a verdade. Porém, foram os representantes da última que calcaram essa impossibilidade no princípio mais acertado:
“A dissidência que deu origem à nova Academia não se dirigia tanto contra a doutrina antiga [dos primeiros acadêmicos] como contra os estoicos. Nem se pode considerá-la como dissidência, porque se tratava apenas de refutar e discutir uma nova opinião introduzida por Zenão [de Cítio, fundador do estoicismo]. Pois não foi sem razão que se pensou que a doutrina do não conhecimento da verdade, ainda que não fosse objeto de controvérsias, não era estranha aos antigos Acadêmicos [...] Todavia eles não introduziram nas escolas a discussão dessa questão nem pesquisaram especificamente se era ou não possível conhecer a verdade. Este foi o novo problema bruscamente lançado por Zenão, afirmando que só se podia conhecer aquilo que de tal modo é verdadeiro que se distingue do falso por marcas de dessemelhança, e que o sábio não devia opinar. Tendo ouvido isso, Arcesilau [fundador da segunda Academia] negou que o homem pode encontrar algo do gênero” (HIPONA, Agostinho de. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. pp. 82-83).
As “marcas de dessemelhança” mencionadas por Agostinho eram impressões dos objetos na alma. No texto sobre a visão, vimos que os antigos atomistas consideravam que os objetos emitem eflúvios que se imprimem como marcas no sujeito do conhecimento. Os estoicos adotaram uma concepção semelhante a essa e denominaram apresentação a impressão do objeto no sujeito. Mais do que isso, Zenão fez da apresentação o critério da verdade. Verdadeiro é o que é conforme a apresentação. Porém, Arcesilau e sua escola negaram a possibilidade de o homem conhecer essa apresentação.
Isso mostra que os acadêmicos não só duvidaram da possibilidade de se conhecer a verdade em geral como duvidaram especificamente da possibilidade de se extrair qualquer conhecimento dos sentidos. Essa é a dúvida fundamental, que Kant afirmou impedir que o conhecimento revele o real ao sujeito. Por causa dela, ele propôs que o conhecimento deve girar em torno do sujeito e ser descrito em função dele, o que constituiu sem dúvida um giro, mas um giro tipicamente acadêmico. Ou será que Kant não pode de modo algum ser visto como um continuador do trabalho daqueles filósofos, como um restaurador da dúvida acadêmica?
Giro copernicano, giro acadêmico. Dúvida acadêmica: essa é a dúvida que, tenho afirmado, não deve ser perpetuada. O homem tende a perpetuá-la, é verdade. E o kantismo é a defesa filosófica dessa atitude, seu coroamento com o grau da ciência. Mas isso tudo se faz bagatela, quando assumimos um ponto de vista dialético. A dúvida permanente não favorece o homem. Quando não o entorpece, corroi-o infalivelmente. Corroi o seu coração como um ácido. E nada lhe acrescenta em compensação, pois a dúvida permanente não tem função.
Tomo a aposta de Pascal como metáfora. A fé é “como uma aposta”. Mas, por ser como, não é uma aposta. E não o é por não ser um jogo. Crer não é jogar: é viver, e é conhecer. Ou não nos devemos curvar à evidência de que o nosso conhecimento é, em tão grande medida, fé?
Nesse sentido, a exortação de Pascal ressoa: apostar é preciso! E, na aposta em Deus, as alternativas são peculiarmente relevantes: “Se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis”. Pode haver algo mais razoável a fazer que apostar desse modo? “Apostai, pois, que Deus é, sem hesitar” (PASCAL, Blaise. Ob. cit. p. 19).
“A vida é um lance de dados", afirmaram os romanos. Dizem os cristãos que é questão de fé. Lançando, pois, dados metafóricos ou crendo a fé real, tenhamos funda esperança, como o semeador. Lembremos que a terra em que ele arroja a semente é emblema do seu coração. E que a planta que cresce na terra é a esperança que aquece o coração. Agricultura é psicologia: não há lavoura, sem esperança.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (11): A Visão

No período inicial da Filosofia, foram propostas duas teorias sobre a visão. Uma delas, a mais antiga, foi adotada pelos primeiros filósofos e é essencialmente física. A outra é de cunho metafísico, surgiu com Platão e foi aperfeiçoada por seu discípulo Aristóteles. A primeira teoria explica o ato de ver como resultado do encontro físico do objeto ou de algo desprendido dele com aquele que vê. Um de seus defensores, Epicuro, escreveu: 
“Há impressões semelhantes à figura dos corpos sólidos, que por sua sutileza superam consideravelmente as coisas que aparecem aos nossos sentidos” (EPICURO. Epístola a Heródotos. In LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2ª ed. Brasília: UnB, 2008. p. 293). As impressões a que Epicuro se refere são eflúvios que se desprendem das coisas. Ele assim as denomina, porque preservam a figura dos corpos de que emanam, portanto são semelhantes a eles:
“As emanações conservam a mesma disposição e a mesma sequência dos átomos dos corpos sólidos, dos quais provêm; damos a essas impressões o nome de imagens. E seu movimento no vazio, desde que nada impeça e nada oponha resistência, leva-as a percorrerem qualquer distância imaginável num lapso de tempo inconcebivelmente breve” (idem).
Para Epicuro, tudo o que existe é um corpo ou vazio. Os corpos são feitos de átomos dispostos em determinada ordem. As impressões ou imagens, que se desprendem deles, são feitas de átomos, que conservam a mesma sequência e a mesma ordem que tinham nos corpos. É por isso que elas se chamam imagens: porque reproduzem a organização exata dos corpos, como o reflexo de uma pessoa no espelho.
Porém, para entendermos essa teoria, precisamos não só ter ciência do seu conteúdo, mas também das dúvidas cuja operação ela suspende ou mantém. Ao desenvolver a sua física, Epicuro separou nitidamente o que se passa na terra do que transcorre nos céus. Desenvolveu, assim, uma doutrina dos céus e a ensinou à parte da física terrena.
O traço que mais distingue a doutrina dos céus da física terrena de Epicuro é o caráter incerto desta. Por isso, ao enfrentar problemas de movimento celeste, Epicuro formula várias explicações, às quais reconhece idêntica força elucidativa. Por exemplo, “o surgir e o pôr do sol, da lua e dos outros astros podem verificar-se por acendimento e apagamento [...] Tais fenômenos podem também ser produzidos por aparição sobre a terra e novamente por ocultação” (idem. p. 304).  Do mesmo modo, “é possível que a lua tenha luz própria, mas também é possível que a receba do sol” e “os eclipses do sol e da lua podem dever-se à extinção de sua luz, como observamos que acontece também nos fenômenos terrestres, mas podem ainda dever-se à interposição de outros corpos” (idem. p. 305).
A física da terra, na qual se insere a teoria da visão de Epicuro, não se constroi por esse método da possibilidade. Pelo contrário, o filósofo a extrai por necessidade de um número de premissas. A primeira é a de que os sentidos constituem a fonte de toda verdade. Como os sentidos nos mostram que o real é feito de corpos e de vazio, devemos admitir esses dois elementos. E, como eles nos revelam que os corpos são compostos, ou admitimos a divisão infinita deles em partes cada vez menores, ou sustamos o pensamento em entidades que não podem ser divididas (os átomos).
Assim, movendo-se de premissas às suas consequências, Epicuro descreve o mundo sublunar por um método de certezas que se impõem sobre possibilidades concorrentes. Não que as certezas que ele encadeia em sistema estivessem a salvo de todo questionamento possível. Não estavam, mas Epicuro suspende as dúvidas que podem ser formuladas a propósito delas. A partir desse ponto, as verdades lógicas dos corpos, do vazio, dos átomos e dos outros elementos do seu sistema passam a valer como crenças.
Quando nos debruçamos sobre o livro de Aristóteles acerca da alma, verificamos que propõe uma explicação muito distinta do funcionamento dos sentidos. Se a teoria de Epicuro e as pré-socráticas eram essencialmente físicas, por se basearem no contato direto do conhecido com o conhecedor, a de Aristóteles deve ser chamada metafísica, pois abstrai em grande parte esse contato e se põe como passagem do conhecimento potencial ao conhecimento em ato. Diz esse filósofo:
“Tudo o que possui o poder de sensação é em potência o que o objeto percebido é em ato. Assim, no começo do processo de percepção, os dois fatores em interação [o sujeito e o objeto] são dessemelhantes, porém, ao final, o que recebe a ação do objeto é assimilado a ele e se torna idêntico em qualidade ao objeto” (ARISTÓTELES. On the soul. I, 5, 418a. In Great books of the western world2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol 7. p. 648). Essa é a essência do ato de percepção para Aristóteles: uma assimilação, que só ocorre quando o órgão sensorial é em potência o que o objeto é em ato. Dada essa condição, quando o objeto age sobre o sujeito, a potência transforma-se em ato, isto é, não no ato do próprio objeto, mas em algo idêntico a ele.
Esse algo idêntico é a forma do objeto. “Na alma”, explica Aristóteles, “a faculdade [...] da sensação é potencialmente os objetos sensíveis. Portanto, ela deve ser ou as próprias coisas, ou as suas formas. A primeira alternativa é claramente impossível: não é a pedra que se faz presente na alma [quando o sujeito a vê], mas a sua forma” (idem. III, 8, 431b. p. 664). Por forma, não devemos entender a figura visível, mas a essência do objeto, aquilo que nele permanece estável, enquanto continua a existir.
Perguntemos, então, que dúvidas as teorias de Epicuro e Aristóteles suspendem. Epicuro afirma que o ser é constituído por átomos e por vazio. Mas isso introduz um problema considerável: se o ser é formado por átomos, ele também é explicado por esses átomos, suas formas e movimentos. E se é de algum modo explicado, o ser já não é obscuro, o que viola o que temos visto a respeito dele até aqui.
Mais do que isso, se é constituído por átomos que são ejetados dos objetos e vistos ao atingirem o sujeito, segue-se que o ser também pode ser visto. E, se o pode, concluímos de novo que não é obscuro. Mas isso é, no mínimo, duvidoso. O universal é visível? Sabemos que não. E o ser não constitui o conceito de maior universalidade? Como pode, pois, ser visto? Epicuro deixa de considerar esses problemas, após estabelecer que tudo que existe é formado de corpos e de vazio.
Aristóteles suspende dúvidas diferentes das de Epicuro, ao explicar a visão. Suspende, por exemplo, as que podem ser propostas sobre os conceitos de potência e ato. Afirma que o órgão sensorial é a visão em potência, e o ato é a forma do objeto visto, que nasce na alma durante a visão. Mas, se a forma é destituída de matéria, como pode surgir na matéria de que o aparato sensorial é feito? Aristóteles supera essa impossibilidade por um passe de mágica, que faz o ato (a forma) surgir de uma potência (a matéria sensível) que por definição o exclui.
Assim, nem o ser das coisas pode ser visto com elas, como sugeriu Epicuro, nem a visão é a percepção da forma, como declarou Aristóteles. Devemos avançar para outras teorias, se quisermos entender em que consiste o ato de ver. Mas, como a teoria de Aristóteles vigorou, com modificações, por tempo extremamente longo, só vemos um número significativo de pensadores adotarem outra teoria, a partir da revolução kantiana.
O problema é que a teoria da sensação de Kant não é bem aceita pelos cientistas dedicados ao estudo da luz e da visão. Filósofos e cientistas vivem um desacordo às vezes dissimulado, mas muito real sobre esse ponto. E, se nos satisfazemos com a refutação das teorias antigas, a indefinição do debate contemporâneo nos deixa sem uma opção claramente aceita sobre a visão.
Que pensar sobre esse quadro indefinido? Um ponto de partida válido, na busca de uma solução, é considerar que as posições possíveis continuam as mesmas: ou a visão é um fenômeno físico, ou é algo metafísico. No texto anterior, vimos que qualquer fenômeno pode ser pensado, com Teilhard de Chardin, como dotado de um lado de Fora (seu aspecto físico) e outro de Dentro (o aspecto metafísico). Assim proposta, a interpretação metafísica continua a ser uma possibilidade.
Os primeiros filósofos cristãos estiveram na encruzilhada a que me refiro, pois as posições de Epicuro e Aristóteles já haviam sido defendidas antes deles. É útil, portanto, verificarmos que avaliação eles fizeram das alternativas em jogo. Ao fazermos isso, somos surpreendidos com a constatação de que duas das maiores autoridades patrísticas em Filosofia, Santo Agostinho e Boécio, adotaram o ponto de vista físico de preferência ao metafísico. Porém, adotaram-no na versão modificada que lhe deram os filósofos neoplatônicos.
A partir da sua conversão, pelo menos, Santo Agostinho passou a afirmar a teoria neoplatônica da visão. Em A grandeza da alma, lemos: “A visão se projeta para fora e por meio dos olhos se arremessa para longe, atingindo todos os lados para poder perscrutar o que vemos. O resultado é que enxergo melhor onde está o que enxergo do que de onde saí [unde erumpit]” (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. São Paulo: Paulus, 2008. p. 308).
A projeção da visão para fora, a que a passagem se refere, é uma variação da teoria pré-socrática dos eflúvios criada na tradição platônica. Não nega que as coisas emitam partículas tênues e invisíveis, mas admite que os olhos também são coisas e, portanto, emitem seus próprios eflúvios. A visão resulta do encontro desses eflúvios, mas principalmente do modo como se processam os que emanam dos olhos.
Em outros lugares, Agostinho chama raios o eflúvio que emana dos olhos: “A vastidão do oceano se apresenta incomparável; mas, por maior que seja, é preciso que antes os raios de nossos olhos atravessem o ar que está sobre ele, e, depois, tudo o que está além e, então, finalmente, nossos olhos chegarão ao sol que vemos” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 164). E, para que não haja dúvida sobre a materialidade desse processo, nosso autor esclarece: “Este é certamente um raio de luz corpórea, que se projeta de nossos olhos e que atinge com tamanha rapidez o que está colocado tão distante a ponto de não se poder avaliar ou comparar [sua velocidade com outra]” (idem).
Boécio abraça a mesma teoria: “A circularidade de um corpo esférico não é encontrada do mesmo modo pela vista e pelo tato. O olho, estando distante, percebe-o de uma só vez, graças aos raios que emite” (BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). Vemos que, em vez de usarem a metafísica para explicar a visão, Agostinho e Boécio usaram a teoria física.
Curioso é que eles aliaram sua explicação física ao conhecimento da forma dos objetos. O primeiro escreveu: “A alma produz pelo espírito semelhanças das coisas corporais, ou contempla as apresentadas anteriormente [durante a sensação]. Se ela produz essas semelhanças, são somente imaginações; mas se ela contempla as apresentadas antes, são visões” (HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. p. 470). As “semelhanças das coisas corporais” a que Agostinho alude são formas.
Boécio tampouco se afasta da concepção platônica: “Os sentidos percebem [um objeto] do ponto de vista da matéria que lhe serve de suporte, enquanto a imaginação avalia apenas a forma, abstraindo a matéria” (BOÉCIO, Severino. Op. cit. loc. cit.). Nessa passagem como na anterior, imaginação é o conhecimento que se segue à percepção. Vimos que Aristóteles tinha localizado nesta a forma despojada de matéria. Agostinho e Boécio transferiram-na para um momento posterior à percepção. Não confundiram, portanto, a criação da forma abstrata com a visão, que explicaram pela teoria física.
É admirável que, apesar de terem sido platônicos, Agostinho e Boécio adotaram uma teoria física e não metafísica da visão. De algum modo, essa teoria pareceu-lhes mais próxima da visão de Universo cristã, já que a explicação alternativa estava associada ao materialismo que o cristianismo combatia.
O exemplo deles pode ser seguido de certa maneira ainda hoje, já que a teoria que descreve a visão como processo físico, embora antiquíssima, foi confirmada por descobertas científicas fundamentais. Examinemo-las sucintamente.
Por muito tempo, pensou-se no espaço como vácuo ou vazio absoluto. Essa ideia foi utilizada, inclusive, na própria Física newtoniana. Porém, Einstein mostrou que o espaço não é vazio:
“Einstein esforçou-se para explicar por que seu tipo de espaço é tão diferente do de Euclides e do de Newton [...] Espaço vazio não tem significado prático: espaço não pode existir separadamente daquilo que enche o espaço, e a geometria do espaço é determinada pela matéria que ele contém” (CALDER, Nigel. O universo de Einstein. 2ª ed., Brasília: UnB, 1994. p. 63).
Mas, se não é vazio, que é o espaço? A Física contemporânea ensina que ele é um campo, pois é formado de energia em maior ou menor concentração. Fritjof Capra esclarece: “Na teoria quântica dos campos, todas as interações são representadas com a troca de partículas virtuais. Quanto mais forte a interação, isto é, quanto mais forte a força resultante entre as partículas, mais frequentemente ocorrerá a troca de partículas virtuais [...] As partículas virtuais podem passar a existir espontaneamente e desaparecer novamente neste último, sem que esteja presente qualquer outra partícula que interaja fortemente” (CAPRA, Fritjof. O tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1983. pp. 166-168).
O espaço existe não só entre os corpos, mas também no interior destes. Todo corpo, por mais maciço que possa parecer, é quase inteiramente vazio, o que quer dizer ocupado por campos energéticos. A impressão de solidez que temos ao observá-lo decorre do movimento velocíssimo dos átomos que o compõem. E a energia dos campos, no interior dos objetos, também faz surgir partículas virtuais a todo instante. Essa é a primeira descoberta crucial para a compreensão do ato de ver.
Outra descoberta da ciência recente com potencial de afetar nossa compreensão da visão é a do poder que tem a luz de mover objetos. Embora os fótons, que compõem a energia luminosa, sejam desprovidos de massa, fenômenos como o efeito fotoelétrico demonstram que a luz é capaz de deslocar objetos. Nesse efeito, elétrons são liberados da superfície de um corpo pela incidência da luz (RYDER, J. D. “Photoelectric effect”. Grolier Multimedia Encyclopaedia. EUA: Grolier, 1996). Algumas modalidades do fenômeno fotoelétrico são produzidas, inclusive, por luz de baixa frequência (idem. “Photochemistry”).
O efeito fotoquímico, considerado uma variação do fotoelétrico, é responsável pela tendência dos objetos coloridos a desbotar, quando expostos à luz. Mário Schenberg explica que “esse desbotamento implica a destruição de moléculas de pigmento [do objeto] por parte da luz” (SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. 5ª ed., São Paulo: Landy, 2001. p. 105).
Porém, a movimentação de objetos pela luz não se manifesta só no efeito fotoelétrico e suas variações. O ozônio também “é produzido na atmosfera pela interação de luz ultravioleta do Sol e oxigênio normal. A luz decompõe o oxigênio em átomos individuais, e estes, por sua vez, reagem com o oxigênio para formar ozônio” (WARD, Peter D.  e BROWNLEE, Donald. Sós no universo. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 275).
Quando combinadas, as descobertas acima permitem entender melhor o que ocorre durante a visão. A primeira confirma que os objetos materiais emitem energia o tempo todo. A segunda prova que a luz é capaz de extrair essa energia da esfera dos objetos e conduzi-la através do espaço. Não é preciso acrescentar que tudo isso é perfeitamente compatível com a teoria física da visão.
Que acontece quando a luz carregada com energia dos objetos chega ao olho de um observador? Hoje se sabe que o olho transforma a luz numa corrente elétrica que é conduzida pelo nervo ótico até o cérebro. Sabe-se também que, a despeito do comprimento de onda e da frequência sempre variável da luz que chega, a corrente transmitida pelo nervo é sempre igual. Domenico Ravalico o afirma: “O sinal transmitido ao longo do nervo ótico não varia em amplitude, mas permanece constante; é modulado na frequência com base em determinado código”. Só por isso, explica o autor, a intensidade da luz recebida não queima o nervo ótico, deixando-nos cegos (RAVALICO, Domenico. A criação não é um mito. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1977. pp. 194-195).
Mas, se os impulsos que percorrem o nervo ótico são todos iguais, por que a mensagem que conduzem é interpretada como objetos tão diferentes quanto os que compõem o mundo ao nosso redor? Por que não é interpretado sempre da mesma maneira? Os físicos, geralmente, afirmar que as variações devem-se ao fato de as ondas elétricas chegarem a diferentes regiões do cérebro, que as interpretam diferentemente. Mas essas leituras diversas distorcem a uniformidade dos impulsos elétricos. Deformam, portanto, o real, em vez de representá-lo. 
A teoria física livra-nos dessa tremenda dificuldade, ao mostrar que os impulsos são interpretados como objetos, porque contêm energia extraída deles pela luz ambiente. O cérebro é como a tela de um aparelho ultracomplexo, aonde essa energia chega e pode finalmente ser vista. Somente nele, ocorre o ato psicológico de ver, a física se faz psicologia ou, como diziam os antigos, a alma vê, já que é ela que vê. É?

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O Dilúvio (1): Verdade e Ficção

Em 1929, o cientista inglês Leonard Woolley comunicou ao mundo a descoberta de evidências do Dilúvio bíblico, durante uma campanha de escavações na Mesopotâmia. As evidências foram detalhadas por ele, no livro Ur e o Dilúvio, publicado dois anos depois. Após a descrição delas, segue-se a reafirmação de que “a descoberta demonstra a realidade histórica do dilúvio ao qual se referem as narrações suméricas e hebraicas, embora nada provasse, evidentemente, quanto aos detalhes de uma ou de ambas as narrações. Foi uma catástrofe local, não universal, limitada ao baixo vale do Tigre e do Eufrates, que se abateu sobre uma região de aproximadamente 600 km de comprimento e 150 de largura: mas para seus habitantes, aquilo era o mundo inteiro!” (WOOLLEY, Leonard. Ur e o Dilúvio. Leipzig, 1931).
Saudada, a princípio, como verdadeira evidência do Dilúvio, a descoberta de Woolley foi pouco a pouco reinterpretada. O historiador Robin Lane Fox reconhece que ela "permanece, com justiça, num pináculo da arqueologia, mas suas interpretações nos recomendam cautela”. Porém, “de 1929 para cá, o Dilúvio de Woolley foi se encolhendo e se tornando cada vez mais local e não espalhado por uma área de 100 mil quilômetros quadrados". O encolhimento deveu-se à descoberta de que as inundações em diferentes pontos dessa enorme área ocorreram em épocas distintas. Por isso, Fox conclui que "não há razão para se atribuir as origens dos relatos mesopotâmicos e hebraicos sobre o Dilúvio a alguma enchente determinada; é provável que a ficção hebraica se tenha desenvolvido a partir de lendas mesopotâmicas. São relatos ficcionais, e não históricos” (FOX, Robin Lane. Bíblia – verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 202-203).
Por essas declarações se percebe quão controverso o Dilúvio bíblico permanece. Não há consenso algum sobre a sua relação com determinado acontecimento histórico. E a falta desse consenso é interpretada, por historiadores e arqueólogos, como sinal de que o acontecimento bíblico é uma ficção.
Porém, embora Woolley tenha interpretado incorretamente a sua descoberta como evidência do próprio Dilúvio, parece-me ainda possível associá-la ao contexto do Dilúvio bíblico. Isso porque a Bíblia insere o Dilúvio num contexto mais amplo, que começa com a união dos filhos de Deus com as filhas dos homens em Gênesis 6:2.
O fato de essa união vir logo após a menção dos 500 anos de Noé, em Gênesis 5:32, tem levado os intérpretes a entender que ela se deu muito tempo após o nascimento do construtor da arca. Porém, a verdade não parece ser essa, pois cada novo relato, em Gênesis 1 a 11, é introduzido por um recuo narrativo. O relato da criação, no capítulo 1, termina com o descanso divino do sétimo dia, quando o homem já existia. Porém, os versos seguintes, em vez de continuar a história a partir desse ponto, retornam ao período em que o homem ainda não existia para narrar a criação de Adão de outra perspectiva (Gn 2:4).
Esse mesmo tipo de recuo ocorre cada vez que o narrador sagrado muda de história, nos capítulos 1 a 11. Por exemplo, o capítulo 4 se encerra com a lista dos descendentes de Caim; e o capítulo que se segue não prossegue a partir desse ponto, mas retrocede (pela segunda vez) ao dia em que Deus criou o homem. Do mesmo modo, o capítulo 10 termina com a difusão das nações pela Terra, e o 11 retorna à construção da Torre de Babel ocorrida antes.
Não é diferente com a história do Dilúvio, encontrada em Gênesis 6 a 9. O capítulo 5 termina com a menção dos 500 anos de Noé e a geração dos seus filhos Sem, Cão e Jafé. Porém, em vez de continuar desse ponto, o capítulo 6 retorna ao período em que os homens começaram a se multiplicar sobre a terra. Não é essa a época de Sem, Cão e Jafé, mas dos primeiros descendentes de Adão que tiveram “filhos e filhas”, logo após o nascimento de Enos.
O recuo a esse tempo remoto tem grande importância, pois nos permite fixar a época em que a história do Dilúvio realmente começa. Ela não principia quando Deus prediz a inundação a Noé, mas nos primórdios da humanidade, quando os homens começaram a se multiplicar na terra, e os filhos de Deus desposaram as filhas dos homens. Nas palavras de Gênesis: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram” (Gn 6:1-2).
Essa união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens é o marco inicial da história de Noé, pois o relato bíblico mostra que Deus se indignou contra ela e decidiu reduzir a vida do homem para 120 anos: “Então disse o Senhor: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3).
A limitação da vida do homem a 120 anos é uma das declarações mais obscuras dos 11 primeiros capítulos de Gênesis. Os estudiosos perguntam se ela indica que a extensão da vida humana foi reduzida para 120 anos ou se, em 120 anos, a humanidade seria dizimada pelo Dilúvio, como o versículo 7 menciona: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.
Contra a primeira interpretação milita o fato de a vida dos patriarcas de Gênesis só atingir extensão inferior a 120 anos no último capítulo: “José habitou no Egito, ele e a casa de seu pai; e viveu cento e dez anos” (Gn 50:22). Todas as personagens bíblicas cuja morte é datada, antes de José, viveram mais que 120 anos. Geralmente, centenas de anos mais. Portanto, mais de dois milênios transcorreram até que uma personagem bíblica cumprisse o dito de Deus em Gênesis 6:3.
Por outro lado, os 120 anos foram claramente estabelecidos por causa da união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:2-3), ao passo que o Dilúvio foi consequência da multiplicação da violência na terra (Gn 6:5-7). A Bíblia parece ensinar-nos que a essas causas diferentes corresponderam consequências também distintas.
Diante dessas dificuldades interpretativas, só nos resta apegar-nos ao sentido claro do verso em que lemos: “Os seus dias serão cento e vinte anos” (Gn 6:3). Em Gênesis, sempre que a palavra “dias” é seguida por “anos”, como em 6:3, a intenção é designar a duração de uma vida. Em 5:5, lemos “Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos”. Seguem-se declarações semelhantes sobre todos os outros patriarcas. Mais tarde, de Abraão, Isaque e Jacó, é dito: “Foram os dias da vida de Abraão cento e setenta e cinco anos” (Gn 25:7), “Foram os dias de Isaque cento e oitenta anos” (Gn 35:28) e de novo: “Perguntou Faraó a Jacó: Quantos são os dias dos anos da tua vida? Jacó lhe respondeu: Os dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos” (Gn 47:8-9).
Em todos esses versículos, a palavra dias seguida de um número de anos indica a extensão de uma vida. Esse é o sentido do termo também em Gênesis 6:3. Cento e vinte anos são, ali, a vida de um indivíduo humano. A intenção de Deus ao fixar esse limite foi garantir que o seu espírito [em hebraico, ruach, sopro de vida] não permanecesse por tempo maior no homem, “pois este é carnal” (Gn 6:3). A luta do espírito contra a carne já se delineava e devia ser limitada para que o ser humano não sucumbisse a ela.
Claro que isso implica que as centenas de anos dos patriarcas de Gênesis 5 e 11 não são literais. Não são idades de indivíduos, mas de clãs, famílias ou povos. Enfim, de coletividades. Não me é possível tratar desse ponto, aqui, mas remeto os interessados aos textos “A idade de Adão” e “E Matusalém?”, publicados em lobaomorais.blogspot.com.br nos dias 29/11/12 e 13/02/13.
A história do Dilúvio é antecedida pela união ilícita dos filhos de Deus com as filhas dos homens (Gn 6:1-3), porque o descontentamento de Deus com a humanidade teve início nessa época. E, se começou tão cedo, pode-se concluir que o julgamento divino das pessoas envolvidas naqueles erros principiou na mesma época. É possível que as grandes cheias dos rios Tigre e do Eufrates tenham sido interpretadas como tais julgamentos, pelos homens da Antiguidade.
As cheias mesopotâmicas mais antigas conhecidas são exatamente as que Woolley, a princípio, associou ao Dilúvio. Elas se deram entre 4.000 e 3.000 a. C. Como a Bíblia situa o nascimento de Noé, por volta de 3.200 a. C., é possível entender que aquelas inundações ocorreram durante a sua vida e podem ter constituído o antecedente necessário para que o patriarca construísse a arca muito antes do Dilúvio desabar sobre a terra. Se tiver sido assim, Noé não construiu seu navio, sem ter presenciado qualquer inundação semelhante à que Deus lhe anunciou, mas tendo visto, vivido ou recebido notícia de várias delas.
Embora o Dilúvio não se confunda com qualquer das inundações ocorridas entre 4.000 a 3.000 a. C., ele se insere no contexto delas. Uma sequência de grandes catástrofes ocorreu na época e no lugar em que Noé e os outros patriarcas de Gênesis 4 e 5 provavelmente habitaram.
Para nos certificarmos disso, é útil recordar que o território do Éden ficava “na banda do oriente”, como lemos em Gênesis 2:8. Do ponto de vista do narrador, oriente é o oriente da Terra Santa, pois nenhuma outra coordenada de espaço é dada antes, no texto. Sem outro referencial de espaço, devemos adotar a posição em que o narrador e os destinatários do texto se situavam, isto é, a da Palestina. Como Gênesis 3:23-24 afirma que Deus expulsou o homem do paraíso, “a fim de lavrar a terra de que fora tomado, [...] e colocou querubins ao oriente do jardim do Éden [...] para guardar o caminho da árvore da vida”, devemos concluir que, ao deixar o horto, Adão rumou para o leste. Caim, por sua vez, ao se retirar da presença do Senhor, foi para a “terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Se o jardim que Deus plantou ficava no Éden, pois se diz que era “um jardim no Éden” (Gn 2:8), ao ser expulso do jardim, Adão não saiu propriamente daquele território. Caim foi o primeiro a fazê-lo, pois foi morar em Node, não ao oriente do jardim, mas “ao oriente do Éden” (Gn 4:16).
Vários acontecimentos são, assim, localizados, sucessivamente, no leste: o Éden ficava ao leste da Terra Santa, Adão foi para o leste, ao sair do jardim do Éden, e Caim foi para o leste não só do jardim, mas do próprio Éden, ao sair da presença de Deus. Isso nos aproxima muito da Mesopotâmia e nos induz a entender que os fatos de Gênesis 4 a 9 transcorreram naquela região.
E se tanto Adão como Caim e os descendentes deles viveram na Mesopotâmia e vizinhanças, não há equívoco algum em associarmos a Noé as inundações descobertas por Woolley, naquela região, as quais ocorreram entre 3.200 e 2.900 a. C. Trata-se de acontecimentos arqueologicamente comprovados e situados tanto no lugar como na época em que Noé viveu. Chega a ser improvável que tanta coincidência de tempo, lugar e tema não se deva a uma relação real.
Pergunto-me se esses dados não sugerem outra reviravolta, na interpretação das descobertas de Woolley. Se não indicam que o Dilúvio não é ficção, mas verdade, ainda que os detalhes narrativos de Gênesis tenham sido dourados para pôr em destaque a fidelidade de Noé a Deus e, portanto, inspirar a fé.
Na Idade Média, os pedaços da cruz de Cristo vendidos no mundo davam para construir muitas arcas, e os pedaços da arca bastavam para uma cidade. Semelhantemente, ainda há quem procure os restos da arca no Monte Ararate. De tempos em tempos, não coram em anunciar inclusive que a acharam. Mais de uma arca foi localizada ali, nos últimos anos. Mas isso não quer dizer que não haja pesquisa série sobre o grande acontecimento ou que se trate de pura lenda. Penso que o cerne dessa pesquisa, no campo da Arqueologia, encontra-se nas descobertas de Woolley e seus sucessores. Mas há evidências igualmente relevantes em outros campos. No próximo texto, trataremos dos registros literários da devastadora inundação que sacudiu o antigo mundo mesopotâmico.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Filosofia Perene (9): Conhecimento Dialético

A philosophia perennis relaciona-se intimamente com a mística, portanto também com a fé. Ao mesmo tempo, não é uma religião, mas um saber, o que a põe em coordenação com a razão. E essa dupla relação da filosofia faz ver que ela pressupõe não só a compatibilidade da razão com a fé, mas a aliança entre elas. Encontro o ponto de partida de tal aliança na concepção de que o conhecimento está associado à fé e à dúvida.
Essa concepção é dialética, pois se baseia na tensão, mais do que na ausência de contradição, entre os três elementos fundamentais. O conhecimento nutre-se o tempo todo da dúvida, que se mantém em tensão e equilíbrio com a fé. No entanto, a História da Filosofia mostra, paradoxalmente, que o conhecimento desenvolveu-se com parca consciência da dialética à base dele. As ciências antigas e contemporâneas sempre buscaram obsessivamente a exatidão e a certeza. Por isso, sempre se construíram sobre o que, em cada época, pareceu realizar o ideal de um conhecimento certo.
A Filosofia, por sua vez, desenvolveu-se como reflexão paralela às ciências. Na Antiguidade e na Idade Média, o Trivium e o Quadrivium desempenharam o papel de ciências oficiais. A Filosofia não estava incluída neles. Não era uma arte ou ciência particular, como a Gramática, a Lógica, a Retórica, a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia. Como ciência de todas as ciências, a Filosofia se dedicava a refletir sobre os fundamentos dos outros saberes.
Não foi diferente, a partir de quando o rol de ciências do Trivium e do Quadrivium começou a ser desafiado e modificado. O coroamento desse processo se deu com o aparecimento da Física e dos outros saberes modernos sobre a natureza. Mesmo então, a Filosofia continuou a exercer seu papel de reflexão sobre os fundamentos das ciências, com a única diferença de que por ciências já não se entendia mais o Trivium e o Quadrivium, mas as modernas ciências naturais e, mais tarde, também as sociais.
Assim, as etapas de desenvolvimento da Filosofia coincidem, aproximadamente, com as das antigas e modernas ciências. Como a História das Ciências divide-se no longo período do Trivium e do Quadrivium e no reinado das ciências naturais e sociais, a Filosofia se desenvolveu numa etapa centrada na descrição do ser e numa outra voltada à descrição do saber. Entre as épocas da História das Ciências, situa-se a revolução que conduziu ao aparecimento das ciências naturais. Entre as da História da Filosofia, encontra-se o giro copernicano de Kant.
As categorias do ser de Aristóteles constituíram o aparato conceitual da Filosofia e das outras ciências, durante a primeira etapa. As categorias kantianas desempenharam o mesmo papel, no segundo período. Contudo, uma diferença distingue os dois períodos, no tocante às categorias. Na Antiguidade e na Idade Média, reinou substancial concordância entre a Filosofia e as ciências a respeito delas. Tanto a primeira como as últimas aceitavam o mesmo rol de categorias e as entendiam aproximadamente da mesma maneira. Hoje, as categorias de Kant são adotadas apenas nominalmente, nas ciências da natureza, pois os cientistas referem-se a elas, mas não lhes atribuem o sentido subjetivo que Kant lhes emprestou.
Esse dissenso entre a Filosofia e a ciência, no tocante às categorias, tem passado despercebido, mas pode ser interpretado como uma falha geológica, no território do conhecimento moderno, pois decorre de uma crise do conhecimento baseado na certeza das categorias. A crise representa uma rara oportunidade para o conhecimento não categorial e mais consciente do papel da dúvida. Não uma oportunidade para a introdução do ceticismo, já que a dúvida a que me refiro tem por função estimular a investigação, reduzir o espaço do desconhecido e colocar-se em equilíbrio com a fé, não generalizar a incerteza. Nesse sentido, a dúvida é a porta de entrada da fé no conhecimento.
Lição crucial do conhecimento dialético é, pois, a admissão da fé não apenas no campo da religião, mas também no do conhecimento. Isso se aplica com especial propriedade à fé considerada mais nobre: a que se dirige a Deus e ao divino. Se a questão sobre a sua origem e destino é a mais difícil para o homem, as dúvidas que ela suscita apresentam-se como as mais indissolúveis. E, se a fé é uma resposta à incerteza, não é de estranhar que às dúvidas mais persistentes correspondam respostas de fé mais elevadas. Não é de estranhar que, ao caminhar na senda das dúvidas, o espírito erga-se ao cume da cordilheira da fé, ou seja, à fé em Deus.
Procuramos, porém, a base mais sólida dentre todas as que o conhecimento pode propiciar, para verificarmos se a fé, porventura, pode assentar-se nela. Encontramos tal base no ser, cujos atributos coincidem com os de Deus. O ser é real, eterno, obscuro e absolutamente verdadeiro. Além disso, ele tem dois aspectos, pois a existência do efêmero exige a de um ser quase tão universal quanto aquele, porém não eterno. Esse outro ser, que chamei derivado, procede do primeiro. Foi posto, criado, por ele. Portanto, o ser originário é, também, Criador.
A ideia de criação é, assim, consequência do ser. Se o mundo e suas mudanças existem, temos de admitir um ser derivado ao lado do eterno, de tal modo que a derivação de um a partir do outro seja entendida como criação. Assim, a criação surge como consequência de duas premissas: a verdade absoluta do ser e a verdade relativa do mundo.
Essa verdade mista decorrente, ao mesmo tempo, do ser e do mundo não é dotada de pouca força, já que a união de uma verdade infinitamente forte com outra também fortíssima, mas não absoluta, produz uma verdade infinitamente forte. Poderíamos compará-la a uma área infinita numa das suas dimensões e extremamente longa na outra. Tal área não é só imensa, mas verdadeiramente infinita, pois a multiplicação de um infinito por um finito resulta num número infinito. Por isso, afirmamos que a força da verdade da criação é infinita.
Como a verdade do ser, a da criação é mais robusta que a do eu de Descartes. Na postagem anterior, mostrei que o eu pensa e existe, embora nenhuma dessas ideias decorra da outra. Com a mesma prontidão, admito que o mundo fora do eu é real, não porque não possamos duvidar dele, mas porque a dúvida a respeito do mundo é quimérica. No entanto, a verdade da criação é superior à do eu e à do mundo, pois estes resultam apenas da experiência (interior e exterior) do sujeito, ao passo que a criação decorre também de uma ideia absolutamente certa: a ideia do ser.
A verdade da criação do ser derivado é absoluta, porque decorrente do próprio ser. Sua força excede a das verdades do eu e do mundo. Quando falamos da criação do Universo por Deus, tratamos de algo absolutamente certo. Os detalhes da criação (o modo como ocorreu, sua duração, os efeitos que produziu etc.) estão sujeitos a dúvida, pois constituem verdades relativas. Porém, a ideia de criação, como a do ser, é uma verdade absoluta e absolutamente certa.
Claro que essa conclusão pode estar errada, não porque algum erro transpareça nela, mas porque seu autor é humano. Mas, até o equívoco ser demonstrado, precisamos considerá-la firme, pois a força infinita dela combinada com a pequena força do elemento humano resulta, igualmente,infinita. Considerarei, pois, a criação a melhor de todas as bases sobre as quais é possível desenvolver o conhecimento do transcendente e a tomarei como ponto de partida da filosofia perene, na presente série. Filosofia essa que é sempre mais busca do que ensino, pergunta do que afirmação, começo do que conclusão.
O conhecimento da criação é diferente de outros, pois está ligado de modo direto ao ser. Por isso, quando o saber categorial revela-se duvidoso, como ocorreu após o descompasso entre as ciências e a doutrina kantiana das categorias, torna-se necessário buscar não outro rol de categorias, como fez o próprio Kant ao reconhecer a insuficiência das aristotélicas, mas um conhecimento não categorial, um conhecimento baseado na dúvida e que tenha dela uma consciência muito maior. Esse conhecimento pode ser denominado dialético e implica forte afirmação da fé.
De fato, ao reconhecer o papel da dúvida, o conhecimento dialético não conduz, nem convida ao ceticismo e sim à fé. Na instância da dúvida fundamental, ele conduz até mesmo a Deus. E se o ser é a única verdade absoluta, a fé produzida dialeticamente enraíza-se antes de tudo nele e no seu corolário que é a criação.
O conhecimento dialético é um conhecimento do ser e da criação. Nessas duas noções se fundam suas verdades e suas fés. E, como o ser é uma ideia obscura, enquanto a criação não o é, o conhecimento dialético tende a fundar-se ainda mais na criação que no próprio ser. Ele é um inquérito sobre a criação, não uma construção de dogmas, posto que o dogma não é dialético.
Vejo o conhecimento dessa maneira. Talvez por isso, tenha dedicado parte tão fundamental de meus esforços para interpretar a criação. Meu livro A hipótese de Darwin trata desse tema. Gênesis também. O inquérito dos macacos e Evidências da criação igualmente. Em todos esses textos, desenvolvo o meu longo perguntar a respeito da criação. E o mais importante é que, ao fazê-lo, sinto trabalhar o tempo todo não num conhecimento antigo e tradicional, mas na consolidação do alicerce de um novo conhecimento.
O fato de se tratar do alicerce justifica a atenção que dispenso à criação. Ela é tão longamente investigada por ser o alicerce do conhecimento humano. O intelecto tende a recorrer a um ser todo-poderoso para responder suas dúvidas mais portentosas. E, se o faz, ele tende a reconhecer, ao mesmo tempo, a sua incapacidade de conhecer o que esse ser é em si. Tende, portanto, a se concentrar não no conhecimento direto de Deus, mas das suas obras.
No início da década de 1990, a importância da criação para o conhecimento estava consolidada para mim. Ao publicar Filosofia do direito positivo, adotei a atitude defendida por Teilhard de Chardin em O fenômeno humano, segundo a qual "a ciência deve, sim, restringir-se a estudar o que Kant chama fenômenos, mas ela deve estudar integralmente esses fenômenos" (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 20). O fenômeno, sim, mas todo o fenômeno: com esse lema, resumi a perspectiva do livro então publicado, que se baseava "no Dentro e no Fora das coisas", como Chardin os denominava (CHARDIN, Teilhard. O fenômeno humano. 9ª ed., São Paulo: Cultrix, 2009. p. 20). Todo fenômeno tem um lado de Dentro e um lado de Fora. Descrevê-lo é descrever suas duas faces. Por isso enfatizei tanto a Metafísica dos Fenômenos, naquela obra. Queria com ela me referir ao lado de Dentro das coisas, isto é, ao ser.
Com essa perspectiva, no mesmo livro, passei a investigar a criação do Universo por Deus e a mostrar como ela podia perfeitamente constituir o núcleo de uma visão religiosa, mas não alienada da realidade. Tateava, na época, em busca de uma philosophia universalis, de uma visão aplicável, ao mesmo tempo, ao cosmos e à sociedade. Por isso, após definir o que considerei as melhores bases para tal visão, chamei juscriacionismo a aplicação dela ao Direito, por nenhuma outra razão a não ser o fato de me basear na criação de Deus.
Dirão que delirava e deliro. Responderei que duvidava e ainda duvido. Mais do que isso: direi que o que tenho afirmado até aqui não decorre do meu duvidar, mas do duvidar considerado em si mesmo, do duvidar comum a todos os homens. Esse duvidar fundamental ensina-nos a fé, ensina-nos Deus e ensina-nos que Deus criou. Volto-me a ele, nestes artigos, como o aluno se volta ao mestre. Pergunto-lhe sobre Deus, como Jacó perguntou ao Anjo após ter lutado com ele a noite toda: “Como te chamas?” E, como ouviu por resposta a questão “Por que perguntas pelo meu nome?”, ouço a Dúvida sussurrar-me: “Por que não perguntas ao negro dos céus e ao verde dos campos? Por que não te diriges à criação?”