sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (13): Redução à Matéria

Na Crítica da razão pura, Kant lançou a semente de um novo tipo de materialismo, ao afirmar que “a harmonia que existe no mundo torna evidente o caráter contingente da forma, não da matéria, isto é, da substância do mundo” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: 1993. Vol. 39, Transcendental Logic, Second Division, Book II, Chapter II, Section VI, p. 190).
Nessa passagem com cheiro de materialismo grego, a matéria é considerada a substância do mundo, a realidade última e não contingente, isto é, necessária. Verdade é que Kant nunca extraiu claramente as consequências dessa afirmação, que se duplica aqui e ali na sua obra. Ele parece ter feito questão de manter seu materialismo esboçado e latente, à sombra das extremidades da sua Crítica. Porém, não muito tempo depois, Ludwig Feuerbach deu pleno desenvolvimento a essas implicações da obra de Kant (e a outras da de Hegel), ao propor a primeira argumentação moderna que parece inteiramente plausível, em prol de uma filosofia claramente materialista.
Em A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach resumiu sua tese de que o conceito de Deus se reduz ao do homem nos seguintes termos: “Mostro então que o verdadeiro significado da teologia é a antropologia, que entre os predicados da essência divina e humana [...] também entre o sujeito ou a essência divina e humana não há distinção, são idênticos” (FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. 2ª ed., Campi-nas: Papirus, 1988. p. 30).
O conceito de essência aludido por Feuerbach tem sua origem em Aristóteles, o que fica claro não apenas em razão de o conceito aristotélico ser de uso comum, no século XIX, mas na própria obra de Feuerbach: "Sempre que os predicados [...] expressam a essência do sujeito, não existe distin-ção entre predicado e sujeito, podendo o predicado ser posto no lugar do sujeito, pelo que indico a Analítica de Aristóteles ou ainda a Introdução [Isagoge] de Porfírio" (idem).
Quando Feuerbach afirma que, em alguns predicados, a essência coincide com o sujeito, como explicado na Analítica e na Isagoge, a essência, o sujeito e o predicado são claramente empregados no sentido dos autores daquelas obras, isto é, de Aristóteles e de Porfírio. Por isso, na cons-trução da sua tese sobre a redução do divino ao humano, ele parte de tais conceitos.
Porém, Feuerbach modifica o conceito aristotélico num ponto fundamental ao afirmar que, “na vida lida-mos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade [essência], torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas" (idem. p. 43).
Nessa passagem, a essência não é tomada como conteúdo da definição, como em Aristóteles, mas como sinônimo de gênero. Por isso, os dois conceitos são postos em paralelo na frase “o seu próprio gênero, a sua quididade”, que é a essência.
Como o gênero é o conjunto de características comuns a certo número de seres, com a modificação que rea-liza, Feuerbach passa a pensar a essência muito mais como o gênero do que como a definição. É o que fica claro também na seguinte afirmação: “A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência”. E nesta outra: “O homem é para si ao mesmo tempo Eu e Tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto”.
Notemos que ta afirmação “ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência [...] é para ele objeto” reproduz exatamente a anterior: “somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade, torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas”. Comparando-as, não se torna apenas claro, mas inequívoco que Feuerbach emprega as palavras essência e quididade como sinônimas, mas faz o conceito respectivo equivaler ao de gênero.
Mas o gênero, que é? Quanto a isso, não creio errar quanto penso que os seres humanos são inumeráveis e cada um deles possui características exclusivas e outras comuns à espécie. Estas, quando abstraídas e reunidas, formam o gênero humano, que Feuerbach faz corresponder à essência. Assim, a essência é transfigurada no conteúdo comum a todos os indivíduos.
Dou, pois, a identificação da essência com o gênero como certa. E, com base nela, gostaria de tecer uma avaliação, talvez diferente da que comumente ouvimos, da tese central de A essência do Cristianismo.
A ideia de essência, isto é, do gênero, aparece já nesse título. E não é preciso muito esforço para extrair da leitura da obra que o conteúdo da essência do Cristianismo (Deus e o divino) a que Feuerbach se refere já no seu título é o humano, pois ele afirma expressamente que “entre a essên-cia divina e a humana não há distinção, são idênticas”. Esse é o real sentido da redução da teologia à antropologia operada por Feuerbach.
Para entendermos as consequências desse mo-do de pensar e da crítica à ideia de Deus que Feuerbach formulou com base nele, nada melhor do que retornar um instante ao conceito de essência de Aristóteles. Já afirmei que, nesse autor, a essência corresponde à definição de um objeto. Por isso, pode ser bem entendida como o mínimo que basta para diferenciá-lo de outros objetos. Ou, se quisermos empregar as palavras por meio das quais o próprio Aristóteles exprimia uma definição, ela é a soma do gênero próximo e da diferença específica, o que implica que não é só o gênero, mas também aquilo que o diferencia.
Curiosamente, o que Feuerbah chamou gênero está bem longe de ser o mesmo que o gênero que Aristóteles consideou parte da definição. Vimos que, para Feuerbah, o gênero era a essência ou quididade de um ser. Portanto, o que é comum a todos os indivíduos daquele tipo. Para Aristóteles, muito diferentemente, o gênero incluído na definição não era o do ser definido, mas outro mais vasto, assim como o gênero animal no caso do homem.
A definição, para Aristóteles, é esse gênero vasto reduzido e singularizado por meio da diferença específica. E, embora esta pertença a todos os indivíduos do gênero, não é qualquer característica compartilhada por todos eles, mas uma apta a diferenciar o gênero amplo a tal ponto que o ser definido (o homem, no exemplo dado) não se confunda com qualquer outro.
Assim concebida, a definição aristotélica se diferencia da essência feuerbachiana. Esta é uma universalidade, um conjunto de características comuns a indivíduos de um mesmo tipo e nada mais. O gênero não supõe que as características nele reunidas estejam dispostas em determina-da ordem. A essência aristotélica, ao contrário, o supõe. A essência é a mesma universalidade que enunciamos pela palavra gênero organizada de determinada maneira. No caso do ser humano, é o conjunto de traços comuns aos animais dispostos sob o critério organizador da racionalidade.
É provável que Feuerbach tenha tomado o seu conceito de essência do hegelianismo alemão. Não o encontro em Kant, nem explicitamente em Hegel, mas em Marx e Feuerbach, que foram hegelianos. Marx escreveu: "O Cristianismo é a religião kat exohin, a essência da religião, o homem deificado sob a forma de uma religião particular. Semelhantemente, a democracia é a essência de toda constituição política, o homem socializado sob a forma de uma particular constituição do Estado, a qual se relaciona a outras constituições como o gênero à sua espécie" (MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of right.Part 2, c, d. Disponível em www.marxists.org).   
Marx refere-se ao Cristianismo como o homem deificado. Pensa a religião cristã como fruto da confusão de Deus com o homem, em conformidade com Feuerbach. E prossegue para afirmar que o Cristianismo é a essência da religião, e a democracia, a essência de toda constituição política. A democracia é o homem tornado Estado, como o Cristianismo é o homem tornado Deus. Aquela é a ilusão política; este, a ilusão religiosa. E arremata: a democracia relaciona-se aos outros regimes como o gênero à espécie. Chama, assim, a democracia gênero, e os outros regimes, espécies. Claro que, se a democracia é a essência dos regimes políticos, segue-se que o gênero é a essência, em Marx como em Feuerbach.
Marx toma a essência pelo gênero exatamente e com tanat convicção quanto Feuerbach: "Se as formas da existência social do homem, assim como a família, a sociedade civil, o Estado etc., devem ser consideradas como a atualização, a objetivação da essência humana, então [...] o homem permanece como o conteúdo essencial dessas realidades, e elas como a sua universalidade atualizada, portanto como algo comum a todos os homens" (idem).
A essência aqui mencionada não é a aristotélica. Não são os atributos animais organizados sob critério racional. É antes o gênero, o agregado puro e simples daqueles atributos. A única diferença é que, segundo a filosofia de Hegel (seguida neste passo por Marx), esse agregado assume as formas concretas da família, da sociedade civil e do Esta-do, que são a essência humana objetivada. 
Isso basta como indicação de que o hegelianismo foi responsável por modificar o significado clássico da essência, e que o novo conceito surgido naquele momento foi utilizado por vários filósofos. Basta também para mostrar que, ao invocar Aristóteles e Porfírio, Feuerbach usou o conceito modificado como se correspondesse ao original.
Mas a verdade é que o novo conceito é muito diferente do antigo. A essência genérica mencionada por Feuerbach e Marx não é o mesmo que a essência como definição de um objeto. É, antes, o contrário dela. É a definição desagregada, a definição cujos elementos se desprenderam do eixo organizador e se dispuseram sob outra ordem.
O problema é que a noção de essência genérica encontrada na tradição hegeliana rompe com o conceito sedimentado de essência de quase todo o restante da tradição filosófica, o que causa um grave problema de comunicação e de compreensão.
As consequências dessa ruptura não foram pequenas. Por meio dela, Feuerbach construiu a sua tese de que a essência de Deus é igual à do homem e, por isso, Deus é uma invenção humana. A sugestão tem fascínio. Brilha como uma descoberta da razão pura, mas não o é, pois nada nos diz sobre a confusão da definição de Deus com a definição do homem, que é toda uma outra coisa.
Apenas se admitirmos o giro filosófico tentado pelos hegelianos, a crítica de Feuerbach faz sentido. Só nesse universo conceitual, a essência de Deus confunde-se com a do homem e, ainda assim, de maneira vaga e não claramente comprovada. Se nos movermos em outro universo (aquele fundado pela Analítica de Aristóteles), chegaremos a conclusão muito distinta. Penso que esse outro universo conceitual é muito superior ao de Hegel, que se desmancha em inconsistências. 
Ao acusar o Cristianismo de tomar a essência de Deus como se fosse a do homem, Feuerbach acusou-o de substantificar a essência humana sob a forma de Deus. Se a acusação fosse procedente, o Cristianismo seria a mais vasta e grosseira de todas as substantificações de ideias já realiza-das. Mas Feuerbach tomou a essência como o gênero. Afirmou que Deus é o que os indivíduos humanos têm em comum. Se isso fazia sentido no universo hegeliano, por certo não faz sentido naquele fundado em Lógica mais rigorosa. 
Os indivíduos humanos têm em comum seus erros. Deus é perfeito. Eles têm em comum um poder mínimo, quimérico. Deus é todo-poderoso. Os homens têm em comum a mortalidade; Deus é imortal. Claro que, por levar a consequências como essas, a crítica de Feuerbach não parece realmente se sustentar.
Em cada um dos capítulos de A essência do Cristianismo, um ou outro aspecto do Deus cristão é referido ao gênero humano. Página após página, a sôfrega racionalidade humana, a não menos sôfrega moralidade dos homens, a encarnação, o sofrimento, a relação mãe-filho, a relação pai-filho, os fenômenos naturais e tantas outras coisas humanas são convertidas em experiências de Deus, sem provar coisa alguma sobre a confusão (ou não) das definições de Deus e do homem.              
Apesar dessas deficiências, a crítica de Feuerbach foi saudada como grande conquista do saber humano. Em alemão, o nome Feuerbach significa riacho de fogo. Troçando, Marx afirmou que não é possível ingressar no pensamento crítico, sem passar pelo riacho de fogo da filosofia de Feuerbach. Ao que tudo indica, ele quis, com isso, se referir precisamente à crítica do conceito de Deus por aquele filósofo. Mas a que parte o riacho realmente nos leva? Para muitos, leva à consciência crítica de que, ao adorar a Deus, o homem adora a si mesmo e, ao falar de Deus, fala de si. Para outros, porém, leva somente a um feixe de tolices.