domingo, 16 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (4): Aristóteles Desaparece

No século XIX, o artista alemão Wilhelm von Kaulbach pintou a sua própria Escola de Atenas, não para retratar a Filosofia Antiga, como Rafael na sua obra três séculos anterior, mas para pôr em causa o drama da Reforma Protestante. Refiro-me à tela Era da Reforma, que transmite a mesma ideia de efervescência intelectual palpável em Escola de Atenas. Contudo, no centro da obra de Kaulbach, em vez de Platão e Aristóteles, vemos Martinho Lutero a erguer com as mãos uma Bíblia aberta.
As duas obras de arte desvelam ambientes culturais opostos, em que foram forjadas filosofias também contrastantes: no primeiro, a doutrina de Platão aponta o céu, e a de Aristóteles, para a terra. Nenhuma dessas doutrinas parece ter convencido profundamente Dante, que não vacilou em alojar Aristóteles no topo do círculo infernal reservado aos pagãos, e Platão abaixo dele. "Dura lex, sed lex": lei severa, mas é a lei. Não se pode negar que, com a sua definição literária dos destinos, Dante saltou as mediações convencionais, os rodeios, os circunlóquios, a fim de captar as consequências do pensamento radical de sua época. Tornou-se, assim, o próprio pensamento radical.
Séculos antes dele, Aristóteles tinha sido absorvido no platonismo, por duas razões: porque fora havido como um dos maiores platônicos e porque as peculiaridades da sua filosofia haviam-no tornado difícil de ler. Com efeito, no início da Idade Média, Aristóteles era tido como um filósofo excessivamente técnico, até mesmo obscuro. Por isso, afigurou-se melhor a muitos assimilá-lo ao corpus platônico do que lê-lo ou copiá-lo. Ao que devemos o desaparecimento gradual das suas obras. Cícero chegou a declarar que, no seu tempo, muito poucos filósofos conheciam diretamente Aristóteles. O ocaso da cultura pagã agravou ainda mais essa situação.
Não podemos, porém, esquecer que o primeiro passo do processo de desaparecimento das obras de Aristóteles foi a absorção das suas ideias pela filosofia platônica. Com absorção quero dizer a metabolização das suas doutrinas. Discípulos e admiradores de Aristóteles inseriram as ideias dele no corpus da tradição platônica. E uma vez alojadas ali, elas foram assimiladas como elementos do amplo arcabouço daquela filosofia.
As categorias aristotélicas do ser e a doutrina das causas estão claramente entretecidas com os textos de autores patrísticos como Orígenes de Alexandria. Mas a incorporação de Aristóteles não se limitou àquelas teorias. A doutrina estoica das razões seminais depende da do movimento como passagem da potência ao ato, que foi desenvolvida por Aristóteles. Ela também foi adotada, por pensadores platônicos de Orígenes a Santo Agostinho, com todas as consequências que se podem inferir. E os cânones da Lógica, na Idade Média, como se sabe, permaneceram solidamente aristotélicos, ainda que tenham sido transmitidos por autores como Boécio.
Alguns exemplos de ideias aristotélicas encontradas em Orígenes ajudarão a entender como se deu a assimilação de Aristóteles pelo platonismo. No Tratado sobre os princípios, esse autor afirmou: “Toda outra natureza que é santa [além da de Deus] tem a sua santificação pelo que recebeu do Espírito Santo, ou [foi] por ele inspirada para se santificar, não sendo assim por natureza, mas de modo acidental, pelo que pode perder o que alcançou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 1º Livro, Cap. 3. p. 123). No texto acima, a ideia de acidente como algo oposto à natureza (substância) deriva de Aristóteles.
Noutra passagem, Orígenes registrou: “Nada pode ser visto senão pela sua forma, grandeza e cor, que é o próprio dos corpos. E se [a heresia gnóstica] afirma que Deus é corpo, consequentemente Deus seria feito de matéria, uma vez que todos os corpos são feitos de matéria” (idem. 2º Livro, Cap. 3, p. 149). De novo, a atribuição de forma, grandeza e cor como acidentes aos corpos, assim como a ideia de causa material, detectadas em Orígenes, são aristotélicas.
Escreveu ele ainda: “A bondade é o gênero das virtudes, a justiça e a santidade são as espécies desse gênero” (idem. 2º Livro, Cap. 5, p. 158). Sabemos que o gênero e a espécie são os dois grandes tipos de universais, em Aristóteles. Vemos Orígenes usá-los com maestria, como se tivesse a Metafísica aberta ao escrever. No entanto, ele não cita Aristóteles, nem a Metafísica ou o livro Sobre as categorias, antes os tem por assimilados.
Como se esses exemplos não fossem por si eloquentes, Orígenes escreveu, a respeito de Cristo, que “tão bem escolheu amar a justiça que, em consequência da imensidão do seu amor, aderiu a ela de maneira inconvertível e inseparável, de tal modo que [...] o que se encontrava na vontade se transformou em natureza em decorrência de longo hábito”. Novamente, a natureza é citada em sentido aristotélico. E o hábito a que Orígenes se referiu é um dos nomes pelos quais Aristóteles deu à décima categoria do ser.
No século IV, Gregório de Nissa referiu-se à alma como “forma mesma do corpo” (NISSA, Gregório de. A criação do homem. São Paulo: Paulus, 2011. p. 59). Trata-se de mais um ensinamento marcadamente aristotélico. Além disso, afirmou que “cada homem é como um utensílio que a combinação dos vários elementos forma a partir da matéria comum: a sua forma particular é a causa da sua grande diferença em relação aos seus semelhantes” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 220). Matéria, forma e causa, nessa passagem, são utilizadas em sentido aristotélico.
Numa obra à qual não atribuímos a relevância devida, Santo Agostinho mencionou, uma a uma, as categorias de Aristóteles: “Nas coisas criadas e mutáveis, o que não se diz segundo a substância deve dizer-se segundo os acidentes. Tudo pode acontecer com os seres criados, pois sofrem perdas ou diminuem, tanto em relação à dimensão quanto à qualidade. Diga-se o mesmo das relações, como, por exemplo, a relação de amizade, parentesco, emprego, semelhança, igualdade e outras. E há ainda os acidentes de posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro V, Cap. V, p. 196). No último período são enumeradas quatro das 10 categorias (“posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão”). Antes dele, vemos as outras quatro: substância, dimensão ou quantidade, qualidade e relação. Dificilmente acharemos prova mais clara da assimilação da doutrina de Aristóteles por representantes de outras correntes filosóficas.
Fílon afirmou que a existência de Deus é facilmente demonstrada, ao contrário da sua essência, que é muito mais impenetrável. Demonstrou-a, em seguida, mediante os reflexos dos atributos divinos na natureza: "Vendo os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas e de todo o céu, não deverá formar-se com verossimilhança e, antes, com necessidade, a noção do Criador, Pai e Senhor? De fato, nenhuma das obras de arte se produz a si mesma, e esse cosmo implica suma arte e sumo conhecimento, de modo que deve ter sido produzido por um artífice dotado de conhecimento e de perfeição absolutos. Desse modo, formamos a noção da existência de Deus" (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35).
Paulo afirmou coisa parecida, em Romanos. Declarou evidente que Deus existe. Porém, Fílon o precedeu. Paulo não precisou gastar vários capítulos da sua epístola para demonstrar a existência de Deus, exatamente porque o argumento de Fílon, baseado no motor imóvel de Aristóteles, tinha sido amplamente assimilado.
Nem a demonstração de Fílon, nem a alusão de Paulo à existência de Deus tiram sua força argumentativa da evocação de uma vaga semelhança entre as coisas criadas e Deus. Sua eficácia decorre da possibilidade de remontar das coisas criadas às suas causas e destas à Primeira Causa ou Primeiro Motor, que Aristóteles chamara Deus. Essa é a ideia com força demonstrativa, por trás das afirmações de Paulo e de Fílon. Para Aristóteles, demonstrar era dar a causa de algo. Portanto, partindo das coisas criadas, era possível se remontar à Causa Primeira, que é Deus ou o Primeiro Motor. Também essa doutrina aristotélica foi absorvida pelo platonismo.
Vê-se portanto que, embora as obras de Aristóteles tivessem rareado e depois desaparecido, pontos cruciais da sua filosofia foram incorporados à visão de Universo platônica, que vigorou na Antiguidade e no início da Idade Média. Isso não significa que os autores patrísticos tenham compreendido tão claramente o platonismo de Aristóteles. Na maior parte das vezes, isso não aconteceu. Até porque, como veremos, após a morte de Aristóteles, seus herdeiros mais próximos, chamados peripatéticos, voltaram a afirmar o materialismo tradicional dos gregos, o que contribuiu para o obscurecimento da verdadeira orientação do aristotelismo.
Porém, de algum modo, autores patrísticos como Orígenes e Gregório de Nissa tiveram contato direto com textos de Aristóteles. O primeiro escreveu: “Aristóteles, depois de ouvir [Platão] durante vinte anos, dele se afastou, rejeitou a doutrina da imortalidade da alma e tachou de gorjeios as ideias platônicas” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 135). E Gregório referiu-se a Aristóteles como “o filósofo sucessivo [a Platão], o qual indagando habilmente sobre os fenômenos e examinando com cuidado o problema que nesse momento nos interessa [a natureza da alma] nos mostrou que a alma é mortal” (idem. p. 199).
A apresentação do pensamento de Aristóteles por Orígenes e Gregório sugere que eles conheciam o livro De anima, em que aquele filósofo afirmou que a alma nasce e desaparece com o corpo. Porém, indica a ignorância do diálogo Eudemo, em que o Estagirita defendeu a imortalidade da alma, o que confirma que os livros desse autor passaram a ser pouco reproduzidos.
O desaparecimento gradual das obras de Aristóteles não pode ser confundido com a crítica das suas ideias, ocorrida a partir do século XIII, já que não permitiu, como ela, a avaliação desfavorável e a própria rejeição do conteúdo do filósofo grego. Foi, porém, um processo importante, pois atrasou a compreensão de Aristóteles como um pensador não platônico.
No século XII, quando se deu o resgate dos textos de Aristóteles, do interior da cultura islâmica, que os descobrira e estudara extensamente, eles foram não só relidos, mas reinterpretados. Dessa reinterpretação, adveio o que em Filosofia se denomina Segunda Escolástica, que tomou o Estagirita como autêntica alternativa ao platonismo.
A principal controvérsia que a Segunda Escolástica desenvolveu foi a dos universais. Por tal conceito, entende-se toda ideia que pode ser predicada de vários seres, em oposição às que se aplicam a um único. Os modos de ser (em tal lugar, em tal época, em pé, sentado) e as qualidades (preto, branco, liso, áspero) dos objetos são universais, pois podem ser predicados de várias pessoas e coisas (que estão em determinados lugares em determinadas épocas, que estão em pé, sentadas, são pretas, brancas, lisas ou ásperas). O cerne da questão dos universais, o problema nuclear que suscitam, consiste em determinar se existem só no intelecto ou também no mundo real.
Sobre esse ponto, duas correntes de pensamento se organizaram: a realista, que teve em Tomás de Aquino seu maior expoente, considerava que os universais correspondem a características do mundo real. Portanto que algo é amarelo, porque a cor amarela está de fato nele. Os nominalistas, por outro lado, consideravam os universais meros nomes desprovidos de substancialidade. Para eles, a afirmação de que algo é amarelo implica que a nossa mente assim organiza o que vê e entende. Para além desse uso funcional dos universais, nada há que se possa afirmar com certeza uma propriedade abstrata das coisas.
Fiel a esse princípio interpretativo, um nominalista como Guilherme de Ockham negava que as categorias correspondessem a coisas reais. Como todo conceito, elas não eram mais do que nomes que nos permitem fazer referência ao real. Ockham lembrava que Aristóteles e Boécio tinham entendido as categorias nesse sentido. Nas suas palavras, "Boécio pretende, em diversas passagens de seu Comentário às categorias, que o Filósofo [Aristóteles] trata naquele livro de palavras faladas e, assim, consequentemente, chama substâncias primeiras e segundas as próprias palavras" (OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: PUC-RS/USF, 1999. Vol. III, item 42, p. 235).
Esse deslocamento das categorias para o interior do intelecto não anula, por certo, a sua racionalidade, mas drena a racionalidade que os gregos reconheciam no mundo. Já não podemos supor que a divisão estrita do ser em categorias, proposta por Aristóteles, seja uma propriedade do mundo. É como se o ser e a sua racionalidade fossem deslocados para o intelecto, e o real fosse despojado de tudo o que diz respeito ao ser e às categorias. É, enfim, como se a Metafísica se tornasse uma esfera privativa da mente.
A consequência mais radical do deslocamento das categorias ao interior do intelecto e ao plano da comunicação humana (flatus vocis) é o deslocamento da ordem que preside o cosmos para a mente e para o ar. A ideia de um cosmo ordenado foi, assim, desafiada pela primeira vez.
Ao ver enfermar a racionalidade do mundo, ao entregá-la à dúvida, Ockham a substitui por outro poder, que tudo sustenta: a vontade. Não a vontade do homem, mas a de Deus. Por essa vontade, não por imposições racionais, tudo veio a existir e se conserva até hoje. Se Deus tivesse querido outra coisa, outro mundo, outros fatos, os acontecimentos de todos os tempos também teriam sido outros.
Cedo se percebeu que essa reinterpretação de Aristóteles coloca em xeque toda a Filosofia Clássica. Em O nome da rosa, de Umberto Eco, outro Guilherme, um frade ockhamista do século XIV, treme ao pensar nas consequências dessa revolucionária ideia.