Aristóteles denominou opinião (doxa) o conhecimento de tudo o que não constitui a essência universal de uma coisa, em oposição ao conhecimento científico (epistéme), que desvenda exatamente essa essência. A cor, o tamanho e o modo de ser de uma coisa são objetos de opinião, que é inerentemente incerta, seja porque o sujeito se pode enganar, seja porque os objetos se podem alterar (mudar de cor, de tamanho, de posição etc.). Já a ciência, não se sujeita a erro.
O alcance da concepção de conhecimento formada a partir dessa distinção é revelado de maneira precisa, por Karl Popper, na seguinte passagem: “[Aristóteles] via como alvo derradeiro de qualquer indagação a compilação de uma enciclopédia que contivesse as definições de todas as essências, isto é, seus nomes juntamente com suas fórmulas definidoras” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 18), pois “só podemos conhecer [cientificamente] uma coisa conhecendo-lhe a essência” (idem. p. 17).
Por esse motivo, o conhecimento de essências permaneceu o ideal da ciência por muitos séculos, até que Emmanuel Kant mostrou que o universal não revela a essência das coisas. Essa conclusão ele a extraiu, em parte, da segmentação do conhecimento numa espécie a priori e outra a posteriori. Diz-se a priori o conhecimento que possuímos antes de observar objetos e que inserimos neles ao observá-los. A posteriori, por sua vez, é o conhecimento que os objetos fazem nascer no nosso intelecto, durante a observação empírica, e que interpretamos como autênticas características deles.
O conhecimento do universal é incapaz de nos revelar a essência, porque, ao observar os objetos, inserimos neles certos conteúdos provenientes do conhecimento a priori, constituindo-os ao mesmo tempo em que os observamos. Kant descreveu meticulosamente como essa constituição se dá. Podemos resumi-la na afirmação de que a essência das coisas não se dá a descobrir, pois a sua constituição por meio do instrumental a priori predomina e impede a formação de uma consciência sobre o que as coisas são em si mesmas.
Essa descoberta abalou, de maneira perene, a confiança na existência de um conhecimento certo e necessário do mundo, como o preconizado por Aristóteles. O acordo dos filósofos posteriores a Kant, que até hoje vigora, é no sentido de que um conhecimento com tais características é impossível, já que não somos capazes de separar os atributos objetivos das coisas do que inserimos nelas.
A essa predominância do elemento a priori, na cognição, e à consequente centralidade do sujeito, na Filosofia, Kant denominou revolução copernicana. A alusão a Copérnico tem sentido metafórico, mas a metáfora é eloquente, pois indica que a gravitação do objeto ao redor do sujeito tem um papel tão fundamental na Filosofia quanto a revolução dos astros na Física.
Vale a pena recordar o que o próprio Kant assentou sobre esse giro copernicano: “Até agora, admitia-se que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos [...] Mas faça-se a prova consistente em ver se não seríamos mais afortunados nos problemas da metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento” (KANT, Emmanuel. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, pp. 876-877).
Com essa nova fundamentação do saber humano, Kant dá por aniquilada a doutrina platônica, segundo a qual vimos ao mundo com concepções latentes sobre as essências das coisas. No diálogo Fédon, essa doutrina é exposta por Sócrates nos seguintes termos: “Se, olhando para um objeto, alguém observa que ele almeja ser de uma maneira [determinada pela ideia a que corresponde], porém não chega a realizar plenamente essa sua tendência, pode-se concluir que a pessoa, que tira essa conclusão, já tinha um conhecimento prévio do padrão, a que o objeto tende [...] E se adquirimos esse conhecimento antes de termos nascido, ou seja, se já nascemos fazendo uso desse conhecimento, então conhecemos [...] não apenas a igualdade, mas a beleza, bondade, justiça, santidade e tudo o mais, em que imprimimos, como selo distintivo, o nome de essência” (PLATÃO. Phaedo. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 6, p. 229).
Por que Kant considera essa doutrina aniquilada, morta e sepultada? Porque ele percebe, com nitidez, o erro do essencialismo em que está baseada. E por percebê-lo, ele não se dedica a destruí-la segunda vez, mas a demolir o que restou do mesmo erro, na filosofia de Aristóteles. Para este, o conhecimento dos fatos se estabelece por meio de premissas (afirmações ou negações que provam uma conclusão). Um fato é considerado verdadeiro, se corresponde às premissas de que deriva. Se nos dedicarmos a conferir a verdade dessas premissas, teremos de nos reportar a ainda outras premissas e assim sucessivamente, o que torna o conhecimento um retorno infinito a premissas cada vez mais remotas.
Como essa espécie de retorno é impossível, Aristóteles coloca no início do vasto sistema da ciência certas premissas básicas, cujo conhecimento se obtém pela observação direta dos objetos e não pelo retorno a premissas anteriores. Assim, ele encerra o conhecimento humano nos limites do mundo material, sem precisar de um mundo das ideias para fundamentá-lo. Não é preciso lembrar que essa explicação do conhecimento foi capaz de atravessar o tempo, como se verifica pela sua presença no ensinamento da Lógica em todos os séculos.
A realização maior de Kant consistiu em demolir a fundamentação aristotélica e não somente isso, mas em colocar em seu lugar uma outra, que denominou Lógica Transcendental. De acordo com Kant, essa nova Lógica se distingue pela consciência de que conhecer é usar as formas a priori da sensibilidade e do entendimento, a fim de moldar os objetos. E se moldamos o que conhecemos, nenhuma apreensão imediata é possível das essências objetivas das coisas. Claro que tampouco vimos ao mundo com um conhecimento latente daquelas essências.
Para podermos julgar o giro copernicano de Kant, precisamos entender um pouco melhor o processo que ele põe no lugar do conhecimento latente das coisas (próprio da filosofia platônica) e da apreensão imediata das suas essências (afirmada por Aristóteles), a começar pela distinção entre noumeno e fenômeno. Para Kant, noumeno é a coisa em si, o objeto como se encontra no mundo e não como o constituímos por meio do conhecimento. Já o fenômeno, é aquilo que conhecemos do objeto ou, para nos expressarmos com maior precisão, aquilo em que o constituímos. Para Kant, a única certeza possível sobre os objetos fora de nós é de que existem. O que eles são, sua essência e o restante do seu conteúdo, permanecem envoltos em total mistério.
Isso é radicalmente distinto da doutrina platônica das ideias e da apreensão imediata das essências, a que Aristóteles se referiu. Mas ainda assim, podemos ter do mundo um conhecimento fenomênico, moldado a priori, muito rico em conteúdo e passível de aplicações tão prodigiosas quanto as da tecnologia moderna. Podemos também viver, pensar e agir no mundo, por meio do conhecimento.
Não há dúvida de que a indeterminação das coisas, a indisponibilidade do seu conteúdo ao conhecimento, torna a filosofia de Kant uma “dessubstantificação” oposta à substantificação platônica. Não há substância sem conteúdo. Se nenhum conhecimento é possível do conteúdo das coisas, tampouco é possível substantificar algo. Por isso, o pensamento de Kant pode ser considerado o mais potente antídoto contra a substantificação antiga, que concebe as ideias como entes objetivos. E se uma nova espécie de vício se torna possível, baseado no uso impróprio da categoria subjetiva da substância, ele trata de aniquilá-la por meio dos enunciados da Lógica Transcendental com que nos brinda.
Mas tão potente é o antídoto kantiano e tão forte seu efeito entorpecente que deixa o eu inteiramente desacompanhado de outras substâncias, como um náufrago a flutuar no oceano incógnito. Deve-se perguntar se essa é a face da verdade final, a sorrir para o homem que se despojou da ilusão e enfrentou inimigos portentosos para alcançá-la. Se esse é o fundamento filosófico mais adequado à ciência esplêndida do nosso tempo. Se o for, aquela verdade e aquele fundamento serão inteiramente inaceitáveis ao homem, por contrariarem a natureza da sua alma. O homem não quer perecer, como é o destino do náufrago. Tampouco o ensinarão a fazê-lo. E se nada se pode saber do mundo, os seres que habitam o eu (suas ideias e sensações) não são seus pares, seus iguais ou seus companheiros, pois não compartilham sua natureza. O eu é real; as ideias e sensações que estão nele são meros espectros a flutuar sobre o oceano vazio. Assim, o giro kantiano se transforma em pesadelo.
Não admira que o homem nunca se tenha convencido de que sua condição seja a de tal náufrago. Tampouco surpreende que semelhante filosofia nunca tenha sido proposta antes de Kant e que ele próprio, com todo o seu senso lógico, a tenha escamoteado atrás de objetos com um único atributo certo: a existência. Esse atributo solitário sempre foi uma inconsistência, no vasto conjunto do pensamento kantiano, pois não se escora em necessidade lógica alguma. Nenhuma premissa o impõe, sequer o sugere ou chora suplicante. A existência das coisas é um deus ex machina, um heroi que o pensador faz baixar, no palco da sua filosofia, para realizar o que nenhuma personagem anterior pôde.
O giro copernicano é a negação total do vício da substantificação. Mas pasmem: a negação revela-se exagerada, soluciona demais, ministra uma dose fatal do remédio que avia para combater o grande vício. Se uma conclusão me ocorre sobre tudo isso, é a de que a consistência absoluta nem sempre produz bom saber, pois este, em última instância, é fé, e a fé se alimenta da inconsistência e de toda lacuna atroz no conhecimento.
Quero dizer que, se é preciso extrair das premissas acima que as coisas podem ser ou não ser como os sentidos as representam, entre essas duas hipóteses, a decisão cabe à fé. Não decorre de qualquer das premissas. É preciso aceitar que é antes um salto que se dá com o coração trêmulo.
Se o homem comum nunca foi capaz de se guiar por razão tão robusta quanto a dos filósofos, não é natural que tenha formulado a questão da existência das coisas, por comparação com fantasmas e outros objetos de sua imaginação? E que tenha respondido sempre por fé a questão assim formulada? E que a evolução da espécie tenha-se encarregado de generalizar sua resposta? Por que deveríamos supor, contra tudo isso, que o conhecimento se estruturou por um método crítico, que só grandes mentes podem operar?
O método pelo qual o conhecimento humano se estruturou e estrutura até hoje é o utilizado pelo homem comum. É o método da espécie, não o dos filósofos e cientistas. Kant dá a impressão de perder a pista desse método, em certo momento, e de fundar o conhecimento em procedimentos que só os muito doutos podem realizar.
Se não anulam a eficácia do giro kantiano, as considerações acima inserem alguns problemas na sua estrutura. Não há dúvida de que, ao lermos Kant, colocamo-nos perante um dos maiores gênios filosóficos da História. Mas esse gênio tão incomum tornou a sua obra também incomum. E o caráter incomum dela, sua inusitada estranheza, acaba por limitar o poder explicativo da Lógica Transcendental. De fato, se o conhecimento é uma realização da espécie humana, há de no mínimo ser tida por estranha a gravitação consistente em manter o sujeito no centro e fantasmas à sua volta.