quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (8): Aquino Versus Ockham

A filosofia platônica foi a primeira aplicação sistemática do princípio de Parmênides que relaciona o pensamento ao ser. Talvez por isso, ao descobrirmos os defeitos que ela contém, somos tentados a atribuir a Platão e à Filosofia, em geral, a tendência a transformar pensamentos em coisas ou a substantificá-los.
O pensamento humano se permeou dessa espécie de substantificação. Que fazemos ao sonhar, a não ser acreditar que o que se apresenta no sonho é real? Dir-se-á que, ao acordarmos, deixamos de crer na realidade das coisas sonhadas. Porém,no passado, as pessoas criam nos sonhos, enquanto dormiam e acordadas. Elas acreditavam que a alma realmente via as imagens noturnas ou era avisada pelos deuses sobre elas. Por essa razão, os sonhos foram tantas vezes denominados visões ou designados por palavras com sentido semelhante.
A própria crença em “leis naturais”, numerosas ou raras, severas ou brandas, justas ou menos justas, também é imemorial. Quase sempre, elas foram conce-bidas como inscritas na ordem das coisas. Portanto, como anteriores ao homem, assim como a natureza lhe é anterior. Tal crença não é um exemplo menor da objetivação de ideias (de normas, no caso), que só existem na mente do homem.
Poderia multiplicar os exemplos desse hábito mental, nas mais diferentes áreas do pensamento, mas fatigaria o leitor. Só lembrarei que o efeito de certas drogas no cérebro, as alienações mentais, muitos trans-tornos psíquicos,as experiências fora do corpo (EFC’s), assim como a arte e a religião são profundamente mar-cados pelo hábito da substantificação, quando não se reduzem a ele. Aliás, a relação é tão estreita que somos impelidos a indagar se o hábito em questão não compõe a própria estrutura da alma humana.
No entanto, se a substantificação de ideias é tão difundida e universal, não pode ter sido inventada por Parmênides ou por Platão. Pelo contrário, ela deve ter suas raízes profundamente lançadas nos sonhos e no inconsciente de maneira geral. Desse nível do pensa-mento humano, a substantificação passou à cultura, não sem uma ajuda considerável da religião. Platão apenas produziu a primeira reflexão completa a respeito do há-bito em apreço. E ao fazê-lo, ele também o justificou e inseriu no interior de uma filosofia sofisticada.
Na Idade Média, um intenso debate acendeu-se sobre a natureza das ideias abstratas ou universais. Vimos que o debate levou à formação de correntes opostas, que se tornaram conhecidas como realismo e nominalismo. O lado nominalista da discussão teve em Guilherme de Ockham um de seus maiores representantes. Ockham refutou extensamente e com bons argumentos a posição realista. Porém, a exposição do ponto de vista de Aristóteles a respeito do tema foi realizada do modo mais perfeito por um representante da corrente oposta: São Tomás de Aquino.
O filósofo escolástico mostrou que, embora Aristóteles tenha-se referido aos universais como nomes, estes representam coisas. E o fazem consistente-mente, pois sua gênese está associada a sensações das próprias coisas. De fato, o intelecto não tem papel passivo, durante e após as sensações, mas age de modo a constituir imagens dos objetos com elas.
Do mesmo modo, após constituir as imagens, o intelecto continua ativo, pois passa a elaborar a espécie inteligível, por um processo que Aristóteles chama abstração. Esse processo consiste no despojamento das imagens do que têm de particular, de modo a restar apenas o que lhes é comum. Assim, das imagens de um campo com flores de cheiros, formas e cores vários, o intelecto abstrai a ideia de flor, sem cheiro, sem forma e sem cores determinados.
A espécie inteligível não é ainda a ideia. Ela é obra do intelecto agente, que a forma a partir das sensações e imagens. Para que a ideia surja, é necessário que o intelecto possível intervenha. Desse modo, segundo Tomás, é que passamos do conhecimento individual ao universal.
A radicalidade do pensamento de Guilherme de Ockham se mostra na negação da necessidade da espécie inteligível para explicar o conhecimento. De um lado, temos os objetos individuais do conhecimento; de outro, as idéias abstratas deles. Não precisamos supor intermediários, como as espécies inteligíveis, para explicar a passagem de uns a outros.
Mas a radicalidade de Ockham alcança o ponto máximo,conforme ele desenvolve a sua noção de universal. Toda uma série de pensadores tinha negado que os universais possuíssem existência objetiva. O que os diferencia de Ockham é o fato de este negar não apenas a existência dos universais, mas também a semelhança dos individuais, assim como a que costumamos identificar entre dois cavalos. Por muito tempo, essa semelhança tinha constituído o fundamento da crença de que os universais possuem algum tipo de objetividade.Com a negação da semelhança dos individuais, a objetividade dos universais pôde ser dispensada e desapareceu.
Assim, o problema dos universais foi resolvido por Ockham. A solução tem consequências revolucionárias. Uma delas é o encerramento das discussões metafísicas, que a Idade Média tinha cultivado em tão alto grau. Não há por que debater com o interesse de antes o que não tem existência individual ou objetividade. A discussão sobre os universais se justificara, enquanto sua objetividade fora admitida. Quando ela foi reduzida a uma concepção do intelecto, a discussão perdeu, se-não o interesse, ao menos a importância anterior.
O mistério do ser manteve a Teologia sob seu controle enquanto se pensou que um número incalculável de proposições sobre Deus podem ser canceladas por considerações a respeito do ser. Quando Ockham mostrou que os entes metafísicos não têm objetividade, viu-se que não podem afetar Deus ou suas obras. Desde então, a Teologia alcançou independência total da Metafísica.
O mesmo sucedeu a vários outros campos do conhecimento, que tinham sido atrelados à Metafísica por razões semelhantes às que levara à dependência da Teologia em relação a ela. Hoje, é comum se pensar que a Física, a Química, a Biologia e todas as outras ciências positivas não podem ser afetadas pela Metafísica. Devemos a essência dessa convicção a Ockham.
Porém, por motivos misteriosos, a conclusão radical de Ockham não foi imediatamente aplicada a um grupo particular de universais: as categorias, que, por muito tempo, continuaram a ser tratadas como dados objetivos. Essa resistência ao nominalismo foi e continua a ser decisiva, pois a História da Filosofia e do conhecimento depende, em grande medida, das decisões relativas a ela. Se a Teologia e as ciências surgiram e foram libertadas da Metafísica, com base na intuição de Ockham sobre os universais, se a intuição estiver errada, o destino dessas disciplinas sofrerá sérias consequências.
O problema é que, apesar de sedutora, a intuição de Ockham não pode ser provada. Ele parece sustentá-la por provas, ao derivá-la do princípio de que tudo o que existe é individual. De fato, se assim é, o universal não existe, e essa há de ser uma verdade absoluta. Mas as coisas não são tão simples. A afirmação de que tudo o que existe é individual é, no mínimo, equívoca, já que a palavra individual indica um modo de ser entre outros. Individual é o que é concentrado, o que está num lugar e não em vários. Mas é possível imaginar entes reais difusos, espalhados ou dispersos por vários lugares. Não é essa a natureza do espaço? Não é, de certo modo, também a do que denominamos tempo?
Podemos até pensar que só o espaço e o tempo individuais existem, mas isso não pode ser provado. O contrário também pode ser verdade. Talvez o espaço seja a soma de espaços menores dotados da mesma natureza dele. E o tempo pode ser a soma de instantes com uma só natureza básica. Não estamos em condições de determinar qual dessas concepções do tempo e do espaço é a verdadeira.
Kant criou um rol de categorias diferente do de Aristóteles e as transferiu do mundo real para o intelecto. Porém, essa é só uma solução possível do problema das categorias. É a solução nominalista, que Kant rea-firmou. No entanto, a solução conhecida como realismo básico mantém tanto atrativo quanto ela.
Olhemos de perto a explanação de Aristóteles sobre as categorias. Ele abriu o livro que as toma por tema com a classificação dos nomes ou expressões. E em seguida, timbrou: “As expressões não compostas significam substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, situação, ação e paixão. Para transmitir sucintamente o que pretendo com essas palavras, exemplos de substância são homem e cavalo, de quantidade são dois cúbitos ou três cúbitos, de qualidade são branco e gramatical. Dobro, metade e maior pertencem à categoria da relação; ‘no mercado’, ‘no Liceu’ à de lugar; ontem e ‘no ano passado’ indicam tem-po. Deitado e sentado sugerem posição; derramado e armado, situação; lançar e cauterizar, ação; e ‘ser lançado’ e ‘ser cauterizado’, paixões” (On categories. In Great boboks of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. Cap. 4. pp. 5-6).
Do modo como não se estendeu sobre as categorias de tempo, lugar e situação, porque seus alunos as compreendiam, Aristóteles se limitou a afirmar que as categorias são espécies de nomes, sem esclarecer a relação entre estes e as coisas. A razão desse seu procedi-mento foi a existência de uma compreensão cultural prévia daquela relação, que Aristóteles simplesmente adotou.
Na abertura do livro das categorias, ele assentou ainda que “as formas de expressão podem ser simples ou compostas [...] Já as próprias coisas” etc. (idem. Cap. 2, p. 5). Nesse modo de dizer, as expressões (palavras) e as coisas estão claramente contrapostas. Que se pode extrair disso? A contraposição não sugere uma relação entre os termos contrapostos, isto é, que as pa-lavras remetem às coisas? Do contrário, por que aproximar os dois conceitos, por que os contrapor? E se as categorias são nomes, elas não nos remetem também a coisas?
Aristóteles respondeu essas perguntas afirmativamente. Por isso, não pôde deixar de incorrer no vício da substantificação. Ele entendeu a relação entre as categorias e o mundo no sentido comum e não as protegeu contra os vícios desse tipo de pensamento, antes as substantificou.
Em Aristóteles, as categorias são, sim palavras, mas palavras que exprimem o modo de ser das coisas. Palavras que projetam ideias nas coisas. Tintas empregadas para colorir o mundo um tanto à maneira humana. As seguintes passagens tornam isso extremamente claro: “O termo homem é predicado do homem individual, mas não está presente em sujeito algum” (idem. p. 7). Como “estar presente num sujeito não significa encontrar-se nele como as partes se encontram no todo, mas ser incapaz de existir à parte dele” (idem. Cap. 2. p. 5), segue-se que o termo homem é capaz de existir à parte de todo e qualquer sujeito. Ou não se segue? Ou não é essa uma escancarada forma de substantificação?
Aristóteles introduziu correções substanciais no platonismo. O mesmo se pode afirmar de Tomás de Aquino, em relação às filosofias medievais. No quadro dessas duas séries de filosofias inspiradas em Platão, o conhecimento do universal foi desconectado das sensações e considerado uma participação direta nas ideias. Aristóteles e Aquino o religaram à experiência sensível e descreveram não mais como participação, mas como abstração de dados daquela experiência. O problema que restou foi o peso considerável da substantificação implícita nas categorias do ser.
Não há dúvida de que o nominalismo livrou-nos desse peso. Mas não é demasiado afirmar que a filoso-fia de Ockham não é a única solução para o problema da substantificação pelas categorias. Ao suavizar o caráter objetivo das categorias, o realismo básico as pensa como difusas, porém dotadas de objetividade. É o que basta para evitar o erro da substantificação.
Da decisão do nominalismo ou do realismo bá-sico dependem concepções teológicas e científicas mui-to diversas. Dependendo da decisão que tomarmos, nesse terreno, as concepções resultantes da Teologia, das ciências e do mundo serão muito diversas. A diferença entre as visões concorrentes, porém, poderá ser definida com precisão como o teor metafísico de cada uma.