Séculos após a adoção do princípio de Parmênides pela filosofia platônica e da proliferação de ilusões substancialistas que se seguiu, muitas críticas a esse procedimento tinham aparecido. Porém, todas tinham revelado um caráter parcial e a conseqüente insuficiência de que padeciam para pôr freio à influência platô-nica. Não é possível apresentar conclusão distinta se-quer em relação às críticas que Aristóteles, Aquino e Ockham desenvolveram a Platão.
Como tenho procurado mostrar, o maior reduto de resistência à substantificação iniciada por Platão, na História da Filosofia, foi a filosofia patrística do período de Orígenes a Santo Agostinho. Claro que os segui-dores desses filósofos merecem igual menção, mas os originadores da corrente de resistência foram os filósofos dos séculos III a V.
As promessas revolucionárias da Reforma, cujos reflexos na Filosofia iam ao ponto da abolição de Platão e Aristóteles, não se colocaram à altura daquela resistência, pois não tardaram em se resolver em desilusão. O historiador maior da Reforma, no século XIX, J. H. Merle D'Aubigné, admitiu-o ao declarar que “a história da reforma não é a do protestantismo. Na primeira, tudo traz a marca de uma regeneração da humanidade, de uma transformação religiosa e social que emana de Deus. Na segunda vê-se muitas vezes uma degeneração notável de princípios primitivos” (D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. I, p. 5).
O fato de a Reforma ter influído tão pouco no debate filosófico pode ser considerado um dos sinais da degeneração a que D'Aubigné se referiu. Apenas um século depois dela, Descartes propôs a emancipação da Filosofia em relação à Teologia e ao poder eclesiástico. Seu passo libertário foi a contribuição maior do cartesianismo ao pensamento filosófico. Outras o seguiram. Porém, o objetivo deste capítulo é tratar do filósofo que, na trilha aberta por Descartes, influiu de maneira decisiva no desenvolvimento posterior da Metafísica.
Refiro-me a Baruch Spinoza, cuja obra principal, a Ética, se abre com uma série de definições de termos. Os termos que ali se encontram e as definições que Spinoza lhes empresta nada tinham de estranho aos leitores da época, já que tinham sido herdados da Filosofia Clássica. Sua gênese remonta a Platão e à Metafísica de Aristóteles. No entanto, é significativo que, da definição deles, Spinoza derive consequência de todo nova, com o potencial de lançar o pensamento substancialista em direção diversa daquela em que Parmênides o tinha impulsionado originalmente e na qual o platonismo o confirmara.
A reviravolta substancialista de Spinoza consistiu em unificar o pluralismo aristotélico, que supunha várias substâncias irredutíveis umas às outras. Para fazê-lo, Spinoza desenvolveu um monismo, no qual o conjunto de todas as substâncias perfaz uma única, uni-versal e indivisível, que ele denominou Deus. Não é preciso acrescentar que essa consequência revolucioná-ria do substancialismo aristotélico, essa visão de Deus que teve de Spinoza e que chamarei Nova Metafísica, foi recebida com grande escândalo pela Europa cristã e judaica.
Infelizmente, a dependência das definições de que Spinoza parte, na Ética, em relação a Aristóteles as expõe a críticas como a que Bertrand Russell desenvolveu ao comparar esse filósofo com Aristóteles. Diz Russell que “é difícil decidir por onde começar a descrição da metafísica de Aristóteles, mas talvez o melhor lugar seja a sua crítica da teoria das ideias e sua própria doutrina alternativa dos universais [...] Aristóteles torna evidente que, quando um número de indivíduos [ou coisas] participa de uma qualidade [por exemplo, a cor branca ou azul], isso não pode ser devido à relação com algo da mesma espécie que eles, mas com algo mais ideal [o universal]” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 187-188).
Indivíduos e coisas são chamados substâncias ou formas por Aristóteles; as qualidades que eles possuem chamam-se universais. O problema apontado por Russell, nessa concepção, é que as formas aristotélicas são “substâncias que existem independentemente da matéria [...] Portanto, elas têm para Aristóteles, como as ideias têm para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais” (idem. pp. 192-193). Russell quer dizer que a forma aristotélica, ao mesmo tempo, radica nas coisas e é capaz de existir fora delas.
Essa concepção altamente imaginativa da forma dotada de substancialidade é fatal para o filósofo grego, e veremos que também para Spinoza. Russell conclui: “Não vejo de que maneira Aristóteles poderia ter encontrado uma resposta a esta crítica” (idem. p. 193). Em outras palavras, a crítica parece fatal. Porém, embora isso esteja claro para a maioria dos filósofos, hoje, não se pode afirmar o mesmo da época de Spinoza (século XVII). E continua a não ser assim para a maior parte das pessoas, que adotam as ideias spinozianas com entusiasmo, mas sem compreender totalmente a procedência das críticas que receberam ao longo da História.
A substância spinoziana é a mesma da Metafísica Clássica. Assim como, para Aristóteles, a realidade é composta por indivíduos ou substâncias, para Spinoza, “na natureza, nada há além de substâncias” (SPINOZA, Baruch. Ethics. In Great books of the western world. Vol. 28, First Part, Proposition 6, p. 590). E como naquele filósofo a forma pode existir fora do intelecto, em Spinoza, “nada há fora do intelecto, por meio de que as coisas podem ser distinguidas umas das outras, a não ser as substâncias ou seus atributos” (idem. First Part, Proposition 4, p. 590).
É verdade que a substância spinoziana, diferentemente da de Aristóteles, só existe fora do intelecto. No entanto, Spinoza atribui a capacidade de existir dentro e fora da mente à essência, que é por ele definida como o que o intelecto percebe da substância. Assim, o erro substancialista de Aristóteles é transferido da for-ma à essência.
Desse modo, a dupla existência da forma (para Aristóteles) reproduz-se na essência spinoziana. Ambos os conceitos pairam invisivelmente sobre as coisas e, desse éter, passam a elas. Ambos são, pois, fantasmagóricos.
É verdade que a essência spinoziana radica na substância, que tem consistência real. Porém, a essência também existe fora das coisas, isto é, no intelecto. E nenhuma explicação satisfatória é dada do processo pelo qual ela se desarraiga das coisas e se implanta no intelecto. Tampouco é explicado como a essência duplica-se, sem se alterar, em esferas tão diferentes do real. O que é capaz de flutuar sobre a face das coisas não está imbuído de dons fantasmagóricos?
A substância spinoziana só pode ser compreendida, sob a forma fantasmagórica da essência. Portanto, para afirmar que a natureza é a substância única, é preciso pensá-la também como essência. Esse é o grave problema da filosofia de Spinoza, que se tornou o de um número de cientistas contemporâneos, que adotaram o seu pensamento, a exemplo de Albert Einstein, Stephen Hawking e Antonio Damásio. E é no mínimo espantoso que o filósofo de tão requintada ciência seja um dos que mais claramente incidiram no erro platônico.
Aliás, sofisticações filosóficas à parte, a concepção da natureza como Deus impessoal já revela arraigada tendência de atribuir concretude a uma ideia. Ela está presente na Nova Metafísica de Spinoza e no pensamento dos cientistas que a adotam. Essa concepção vem antes de toda demonstração. É a encarnação de uma ideia autoevidente. Mas isso é lá aceitável a uma ciência que pretende dar a prova de suas afirmações? A uma ciência que se quer tendente à exatidão?
Fato é que, nas mentes de não poucos, nem pouco ilustres cientistas, o Deus de Spinoza se transfigurou na natureza que eles perscrutam, ou esta naquele. Que vem a ser essa incrível mistificação, essa autêntica teofania, a não ser o erro de Platão ressurgido? Se Spinoza se fez tão fundamental à ciência, por influência de Einstein talvez, igualmente fundamentais não se tornaram os problemas do seu pensamento? Fraturas não se abriram no pilar da ciência? Fico a pensar se a frase de Russell sobre a Metafísica não se tornou aplicável a essa ciência: não vejo de que maneira ela pode se salvar dessa crítica parcial. Pode?