Uma característica persistente da Filosofia, em todas as épocas, é o esforço de superação do senso comum e das escolas de pensamento consagradas com o selo da autoridade. Desde o seu aparecimento, em forma definida e autônoma, nas colônias gregas da Ásia Menor, no século VI a. C., o labor filosófico, quase sempre, exerceu-se nessa direção.
Mas como a revolta contra realidades estabelecidas não costuma ocorrer sem que elas antes tenham alcançado suficiente desenvolvimento, a da Filosofia contra o conhecimento convencional e o senso comum pressupôs o prolongado insucesso dos últimos. Como Aristóteles lembra, entre os gregos, a Filosofia só surgiu, quando as classes abastadas obtiveram liberação de tempo suficiente para desenvolverem discussões públicas a respeito do mundo, o que veio a ser fundamental para erodir as concepções tradicionais mencionadas. Nesse duplo debate de mitos e opiniões, é que a Filosofia plasmou-se e definiu a sua identidade.
A História mostra, contudo, que a propensão à crítica do pensamento não se manifestou apenas na origem da Filosofia, mas também nas suas demais etapas de desenvolvimento. Sempre mais acentuadamente em relação ao senso comum do que às visões de mundo tradicionais. Sem esquecer que a expressão senso comum é, ela própria, aqui empregada no sentido de uma particular visão de mundo compartilhada pela maioria das pessoas de uma cultura. Admito, aliás, tantos sensos comuns quantas foram ou são as culturas e, nesse sentido, emprego a expressão.
Portanto, a Filosofia sempre foi utilizada para refutar, confrontar e desconstruir as visões de mundo fundamentais, compartilhadas pelas pessoas de cada época e de cada cultura, e, ao mesmo tempo, para afirmar, confirmar, promover, comprovar e desenvolver outras visões de mundo. Talvez isso em menor escala do que aquilo. Veremos aos poucos como esse duplo mister foi exercido pelo saber filosófico.
Sabemos que, nos cinco primeiros séculos da era cristã, numerosos indivíduos transitaram de uma escola filosófica a outra, um número ainda maior passou de uma a outra escola teológica, como do gnosticismo ao cristianismo, do arianismo à ortodoxia ou do sabelianismo, do nestorianismo e do donatismo à fé católica (claro que também vice-versa), e um contingente maior que todos os anteriores se converteu da mitologia pagã ao cristianismo. No entanto, essas mudanças não bastaram para garantir que a maior parte das pessoas que trocaram de doutrina filosófica ou teológica abandonasse o emprego do senso comum nas grandes questões do conhecimento. O que desde logo permite suspeitar de que é mais fácil as pessoas mudarem de filiação doutrinária do que abandonarem o senso comum.
Essa dificuldade particular contribuiu para que a Filosofia se firmasse como o mais excelente método de questionamento e refutação das concepções do senso comum, até o surgimento da ciência moderna. Desde as suas origens pré-socráticas, o saber filosófico arrebatou essa primazia à teologia inspirada nos poemas de Hesíodo e Homero. E não a perdeu, sequer no período em que foi visto como ancilla theologiae. É verdade que, nesse período, a Filosofia foi subjugada pela Teologia, porém se manteve rebelde para com o senso comum.
Mesmo quando a ciência lhe tomou a primazia no tocante à síntese de teorias explicativas do mundo, a Filosofia conservou a dianteira na capacidade de questionar, desconstruir e desafiar conhecimentos. Por menos que se use admiti-lo, a ciência natural é um saber muito mais dogmático que o filosófico. Como os pensadores convocados a se debruçar sobre elas mostraram, as ciências da natureza partem de princípios e regras relativamente indesafiáveis, portanto dogmáticos. Esses princípios são, comumente, identificados com os paradigmas científicos descritos por Thomas Kuhn. Verdade é que eles podem perder vigência e ser substituídos. Porém, enquanto a mantêm, devem ser obedecidos e em regra o são. Pouca dúvida subsiste de que tal obediência é da essência do saber natural.
À Filosofia sempre competiu questionar de maneira muito mais livre e aberta. Sempre lhe coube perguntar, muito mais que propor respostas normativas. De sorte que, se as mais relevantes espécies de saber científico desenvolvidas na História puderem encontrar-se num ponto, e esse ponto puder ser identificado com a corrigibilidade, maior ou menor, dos respectivos saberes, a Filosofia merecerá ser considerada mais científica que a ciência natural, já que, à exceção de algumas partes da Metafísica, o grau em que pode ser corrigida é quase sempre maior que o daquele saber. Por isso, para quem de fato os compreende, os magistérios das duas formas de conhecimento não são antagônicos, mas complementares.
No entanto, a vocação da Filosofia para o questionamento nunca bastou como aval de seu sucesso. A verdade parece estar na conclusão de que a Filosofia perdeu e ganhou batalhas, no conflito milenar que sustentou contra as intrusões do saber ordinário. Um dos maiores de seus reveses foi o estímulo que ofereceu ao hábito de substantificar ideias. Explicarei em detalhes esse hábito, ao longo deste romance, porém, desde já, é possível adiantar a noção nuclear de que o vício da substantificação consiste em transformar ideias em coisas e de projetá-las no mundo exterior, como se possuíssem existência própria e fossem independentes do sujeito que as pensa. Encontro esse vício enraizado no senso comum, mas reconheço, por outro lado, que, raramente o esforço filosófico foi suficiente para eliminá-lo.
Raramente não é o mesmo que nunca. Nessa constatação estão depositadas as mais fundamentadas esperanças do espírito humano de superar os vícios inveterados do senso comum. Pois se a Filosofia, apesar de suas precariedades e falhas, não nos auxiliar a fazê-lo, dificilmente a ciência o fará sozinha.
O que indica, preliminarmente, que a Filosofia não é destituída de certa unidade, que se manifesta não apenas na organização da sua doutrina pelos pensadores, mas também no entrechoque deles. Certas linhas de pensamento percorrem de alto a baixo as reflexões filosóficas, inclusive contenciosas, em todos os tempos. Uma delas é a crítica do senso comum. Outra é a reflexão sobre os vícios desse conhecimento, entre os quais se destaca a substantificação das ideias. Por essa razão, parece-me possível falar da Filosofia como um romance, como pretendo nesta série de textos, em que tentarei mostrar o percurso da substantificação das ideias e as correções filosóficas dela, na História.
Consideradas as características distintivas dos três grandes saberes que a humanidade forjou – a Teologia, a Filosofia e a ciência – parece inevitável que, se for realmente um bem, a libertação do senso comum (nas questões profundas do conhecimento) deva ocorrer mediante o concurso da Filosofia. Isso porque a Teologia e a ciência procedem por meio de dogmas, que reduzem o seu potencial de questionamento. Se temos uma chance de escapar dos condicionamentos viciosos do saber ordinário, portanto, ela está consideravelmente nas mãos de uma cognição com potencial elevado de questionamento, como a Filosofia, do que de saberes dogmáticos, como a ciência e a Teologia.
Formulemos, então, a pergunta crucial sobre o modo como a superação do senso comum é possível: em que ponto da Filosofia, o questionamento dos vícios remanescentes das visões mais vulgarizadas do mundo deve principiar? Para abordar tal pergunta, é útil retornar aos brilhantes alvores da nossa disciplina: a Platão e Aristóteles, que, com maior precisão que os seus predecessores, demonstraram a existência de um modo intuitivo e outro científico de conectar ideias. O primeiro desses métodos funda-se nos hábitos de pensamento pelos quais o homem, que não despende esforço para se apropriar do conhecimento acumulado pelas gerações, pensa e resolve problemas da vida. Não raro, essa espécie de intuição é penetrada pelo imperativo do menor esforço. O outro método baseia-se em princípios e regras longamente filtrados por filósofos que realizaram tal esforço, os quais permitem não apenas pensar, mas também questionar e empregar o senso crítico. O ponto de partida de toda superação do senso comum haverá de ser, portanto, essa distinção e a adesão persistente ao segundo procedimento.
Alguém perguntará se é possível desenvolver o saber filosófico sem princípios e regras e, se a formulação destes não dará origem a novos dogmas? De certo modo, sim. Porém, os princípios e regras do saber filosófico são, em geral, mais simples e fundamentais que os da Teologia e os da ciência. Por isso, seu potencial de erro é, de algum modo, mais reduzido.
Refiro-me às leis da Lógica e da Metafísica. Exemplo da primeira são as regras do raciocínio dedutivo enunciadas por Aristóteles. Um pensador tão recente e especializado no tema quanto Kant afirmou dessas leis que, apesar de sua antiguidade, pouco podem ser melhoradas, o que se deve, precisamente, à sua simplicidade e caráter fundamental. As leis metafísicas, por sua vez, foram descritas e exemplificadas pelo próprio Kant, que as enunciou em obras como Prolegômenos à Metafísica do futuro, Princípios metafísicos das ciências da natureza, Metafísica dos costumes e na Crítica da razão pura.
Devemos, porém, traçar um limite para a atuação crítica da Filosofia. A História nos mostra que essa disciplina não nos legou muitas descobertas sobre a realidade. Nesse ponto específico, a vocação filosófica é muito mais negativa do que positiva. A Filosofia serve a destruição mais do que a construção de pontos de vista sobre o real. E tanto uma como a outra vocação, ela as exerce mais como linguagem do que como ciência.Na verdade, a Filosofia pode ser vista como uma linguagem geral, uma metalinguagem a que as linguagens especiais se referem ou, ao menos, podem referir-se.
A Filosofia já foi, justa e injustamente, vilipendiada (não mais do que a Teologia, é verdade). O difícil é os seus detratores exclusivistas brindarem-nos com um método mais adequado à crítica do senso comum. O difícil é encontrarem um lugar que, embora chamado inferno por alguns, seja mais céu do que ela, no tocante à execução dessa tarefa. De modo que, se temos dificuldades para evitar as armadilhas do senso comum, no precário céu da nossa Filosofia, é-nos ao menos possível caminhar nessa direção.Não são poucos os detratores da Filosofia que dizem correr ou voar, mas vivem nos subterrâneos do exclusivismo, que insistem em nos apresentar como augustos paraísos.