quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (3): A Escola de Atenas

No Palácio Apostólico do Vaticano, há um grande afresco com imagens de 57 pessoas num amplo e sofisticado ambiente, em cujo centro se percebe um corre-dor encimado por sucessivos arcos e, ao final, um pórtico. Tanto as paredes do corredor como as do pórtico são esculpidas e ornamentadas com estátuas. No centro do afresco, dois homens conversam, ladeados por 13 outros. Os demais se aglomeram em 11 grupos de interlocutores entretidos em diferentes diálogos e atividades. Só duas pessoas estão relativamente isoladas das outras e, com exceção das que ocupam o centro, tem-se a impressão de que elas estão na parte mais proeminente do afresco.
Pintada por Rafael, no início do século XVI, essa cena intitulada Escola de Atenas é uma alegoria do conhecimento secular. As pessoas nela representadas são sábios ou amigos de sábios de diferentes séculos. Um bom número é de filósofos. No centro, portando cada qual um livro, estão Platão e Aristóteles. O primeiro aponta para cima com o indicador; o outro, com a mão espalmada, mostra o chão.
As figuras talvez mais criativas da História da Filosofia estão na metade do quadro em que se acha Platão, inclusive Sócrates. Do lado de Aristóteles, estão estudiosos do mundo natural e de ciências exatas, a exemplo de Euclides e Ptolomeu. A notável exceção é Plotino, mestre maior do Platonismo Médio, cujas concepções guardam assinalado contraste com as das pessoas próximas dele e de Aristóteles. À primeira vista, Plotino parece cumprir o papel de uma ovelha negra. Porém, ao refletirmos um pouco mais, perguntamos se não terá sido posto ali para indicar que a metade aristotélica do saber não exclui uma forte presença do platonismo, assim como a História das Ideias, como um to-do, tem o seu palco na Academia, o imponente edifício da escola fundada e dirigida por Platão, em que todas as 57 pessoas se encontram.
A ideia central da obra-prima de Rafael, se ela tem uma, é o tanto de continuidade que subsiste na cultura e na filosofia das mais diferentes épocas. Estas devem o que são ao saber de Platão, Aristóteles e dos demais construtores do conhecimento das eras. É o que o quadro sugere. E não deixa de impressionar que o saber teológico, eixo de todos os outros, na época de Rafael, não esteja representado no quadro.
Uma pergunta que merece ser formulada é o que cada pessoa tem a manifestar sobre o quadro. Como ele a afeta? Porém, interessa indagar ainda mais o que teríamos a declarar, se a figura central do quadro (Platão) pudesse ser acusada de um erro significativo. Se o saber depende de Platão do modo como o afresco sugere, que aconteceria se ele nos faltasse? A humanidade pagã in-teira seria devolvida ao inferno, a que a comédia de Dante a consagra?
É desconcertante pensar que, em certo ponto da Idade Antiga, um erro com essas consequências começou a ser atribuído a Platão. E que o responsável pela imputação foi seu maior discípulo, Aristóteles.
Para bem entender o erro, é útil retornarmos à época situada um ou dois séculos antes, quando a Filosofia grega ainda se formava. Nesse tempo, Parmênides de Eleia lançou uma provocação destinada a influir decisivamente na cena que Rafael mais tarde retrataria. No poema intitulado Sobre a natureza, ele escreveu: “Pensar e ser é o mesmo/Pensar é o mesmo/E isso em função do que o pensamento existe/ Porque sem o ser, no qual é expresso/Não encontrarás o pensar”. Seguem-se muitos outros versos, que porém se limitam a reprisar e a extrair consequências dessa afirmação nuclear.
A equivalência entre o ser e o pensar proposta por Parmênides não constitui o erro crasso, que a pressa, a inépcia e o pragmatismo às vezes sugerem. Fundamenta-se, pelo contrário, numa reflexão profunda sobre a natureza do cogitar humano. De fato, para pensar, é preciso inserir o objeto pensado no ser. Desse ponto, qualquer retrocesso, rodeio ou negação do que foi afirmado importa contradição, portanto erro. De modo que o pensar, para Parmênides e sua escola, é um indício, quando não uma evidência de que aquilo que o pensa-mento concebe deve existir, de algum modo e em algum lugar.
Sem recuar em face do cunho antiintuitivo e incomum dessa concepção de Parmênides, Platão foi o primeiro a lhe dar desenvolvimento integral. Mas, em vez de embrenhar-se nas sendas labirínticas que Parmênides e outros trilharam, ao tentarem explicar por que tantas ideias não existem, com cativante simplicidade, Platão afirmou que elas não estão aqui, pois estão em outra parte. E a essa outra parte ele chamou mundo das ideias, pois os conteúdos inobserváveis do pensamento são puras ideias.
Hoje está claro que Platão e Parmênides incorreram num grave erro. Não se pode negar a distinção entre um objeto material e a ideia usada para designá-lo. As ideias se formam após termos experimentado sensações de vários seres. Assim, por exemplo, a ideia de homem surge após o intelecto abstrair as características peculiares dos indivíduos humanos e se ater aos traços comuns a eles.
Não é difícil perceber que, por resultarem do despojamento dos indivíduos e coisas de tantas características, as ideias que emergem ao final do processo não se confundem com eles. Isso é muito bem estabelecido e reconhecido. O erro de Parmênides e Platão consistiu em não terem admitido as consequências dessa distinção relativamente a uma ideia em particular: a de existência. Eles não reconheceram que a existência é uma ideia que, como as outras, deve distinguir-se da realidade que serve para indicar, isto é, da existência real. Talvez levados por esse engano, embora reconheces-sem a diferença estrutural entre as idéias das coisas e as próprias coisas, aqueles pensadores atribuíram existência real às ideias.
O platonismo pode ser visto como o vasto desenvolvimento de uma solução dos problemas suscitados pela escola de Parmênides. E as filosofias que se seguiram a Platão podem ser expostas da mesma maneira, já que são elos na sequência de avanços e retrocessos em relação a Parmênides. Vezes sem fim, as escolas lutaram entre si, criticaram-se, resolveram diferentemente os problemas que propuseram. Mas elas propuseram os mesmos problemas fundamentais, e isso é curial. Aristóteles, por exemplo, criticou a localização das ideias num mundo à parte. E sobre o princípio diverso a que chegou por esse meio, viu-se florescer uma visão de Universo nova, eminentemente empírica, terrena.
Por isso, temos Platão a apontar para o céu, e Aristóteles, para o chão, na obra de Rafael. Mas é possível perguntar se, por trás de diferenças tão mani-festas, um princípio unificador não percorre os erros tanto quanto as grandes verdades que as escolas platô-nicas e aristotélicas afirmaram.
A tendência a aceitar em profundidade cada vez maior a mão apontada para baixo, na História, abalou a Cristandade. Mas não tanto quanto a crítica a Aristóteles, que se desenvolveu mais tarde. Não porque Aristóteles fosse tão distinto de Platão quanto as mãos para baixo de um e para cima de outro podem sugerir, mas porque, por muito tempo, ele foi visto como o próprio Platão: o derradeiro, mais denso e mais extenso Platão, embora também, para alguns. Por ver Aristóteles dessa maneira, Santo Agostinho pôde escrever que ele “e Platão estavam tão perfeitamente de acordo entre si que só aos ignorantes e desatentos podiam parecer discordar” (AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. p. 144).
Convicção tão claramente expressa, por um dos mais admirados filósofos da Antiguidade, Santo Agostinho, não era, porém, apenas dele. A oposição entre Platão e Aristóteles, que nos é recomendada, às vezes com tanta ênfase, nos cursos de Filosofia atuais, não foi sempre admitida. Nos alvores das duas doutrinas, quando as gerações imediatas àqueles filósofos viram for-mar-se as respectivas escolas, as exposições de platônicos e peripatéticos não raro valorizaram as diferenças entre Platão e Aristóteles. Porém, com o tempo, a ênfase nas diferenças cedeu lugar à valorização das con-vergências entre eles. Cícero o afirma com todas as letras, no De legibus, que a antiga Academia (primeiras gerações de filósofos platônicos) dividia-se num ramo integrado por Euspesipo, Xenócrates e Polemon, entre outros, e outro composto por “aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, que concordavam com os primeiros na doutrina, mas diferiam no método” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. Livro I. Disponível em www.oll.libertyfund.org).
Uma das figuras mais enigmáticas da Hitória da Filosofia Antiga, Amônio Sacas, que não deixou obra escrita, mas foi mestre de Orígenes e Plotino, entre outros, parece ter sido um dos principais responsáveis pela difusão da interpretação de Aristóteles defendida por Cícero, como atestou Hiérocles, no século V: 
“Amônio introduziu o princípio que serve de regra comum para todas as opiniões comuns de Plotino, de Orígenes, de Porfírio, de Jâmblico e de Plutarco, ou seja, o de que a verdade sobre a natureza das coisas está inteiramente contida na doutrina purificada de Platão. Antes dele, os platônicos e os peripatéticos exageravam as oposições entre os dois sistemas, e essas discussões perduraram até Amônio, o Teodidata” (BERGSON, Henri. Cursos sobre a Filosofia Grega. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 5).
O testemunho de Hiérocles foi preservado por Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX e figura central da História da Igreja. Dá conta de que a convergência entre Platão e Aristóteles, pouco valorizada por seus primeiros discípulos, tornou-se a “regra comum para todas as opiniões comuns” desde Amônio Sacas. Não espanta Santo Agostinho integrar o cortejo dos que pensavam da maneira a princípio ensinada por Sacas. 
A dependência parcial de Aristóteles para com Platão não é absolutamente desconhecida dos pensadores que se dedicaram a esse período da História das Ideias. Karl Popper, por exemplo, escreveu que "o pensamento aristotélico é inteiramente dominado pelo de Platão. Um pouco recalcitrantemente, seguiu ele seu grande mestre, tão de perto como o permitia seu temperamento, não só em suas perspectivas políticas gerais, mas em todos os demais pontos" (POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. 3ª ed., São Paulo: EDUSP, 1987. Tomo 2, p. 8).
Provavelmente, o Platão e o Aristóteles que Rafael representou em seu afresco ainda eram os filósofos convergentes. Rafael retratou exatamente a força dessa convergência, que as eras tinham admitido e que tinha moldado as eras. E é claro que Platão ser refutado, nesse contexto, era algo grave, porém as bases da sua filo-sofia poderiam ser salvaguardadas enquanto Aristóteles permanecesse íntegro. O mesmo não sucederia, porém, se Aristóteles se desintegrasse. Se isso ocorresse, Platão ruiria com ele, e a segunda navegação chegaria ao fim.
Foi o que sucedeu. Exemplo cabal é dado pelas categorias do ser de Aristóteles. Os gregos, em geral, consideravam o ser sinônimo de realidade. Nesse contexto não apenas filosófico, mas cultural, as dez categorias (substância, relação, quantidade, qualidade, quando, onde, ação, paixão, ter e jazer) foram vistas como modos pelos quais o real se organiza. O mundo não está em desordem. Ele é estruturado, e os mecanismos que fundam sua estrutura são as categorias. Para ser ainda mais claro, tudo o que existe é uma substância, mantém relações com outros seres, existe em deter-minadas quantidade, apresenta qualidades etc. Portanto, existe segundo as categorias, que não se encontram só no intelecto, mas também fora dele, como Aristóteles afirmou expressamente em seu livro Sobre as categorias.
Fica, pois, claro que, se não somos capazes de pensar alguma coisa sem recorrer a conceitos como os de tempo (quando), espaço (onde), ação, relação, quantidade e qualidade, por outro lado, a transferência desses conceitos da mente ao mundo, sua substantificação, tem por consequência a fetichização das coisas. Não sabemos pensar sem categorias como as aristotélicas. Mas elas foram impregnadas do encanto substancialista dos antigos gregos. A ponto de terem tornado a cultura um balé das ideias à realidade e desta de volta às ideias ou vice-versa.
O erro de Platão não revela suas consequências mais drásticas ao ser detectado nele, mas em Aristóteles. A ordem do céu rompe-se com maior estrondo, quando se manifesta como ordem da terra. O empirista Aristóteles tinha sido o canal de ligação do platonismo etéreo com as mais diversas áreas do saber terreno e da vida humana. Sua mão voltada para baixo gerara uma ampla visão da natureza, do pensamento científico e do comum, tanto quanto uma ordem social plástica, mas que perpetuava o antigo e reproduzia o poder. Pouco restava ao mundo fora dessa visão.
Por isso, o desmoronamento de Aristóteles, na parte final da Idade Média, foi sentido como o maior de todos os terremotos intelectuais até então. Duas forças, uma antiga, outra nova, uma de cunho sagrado, outra secular, a exegese bíblica e a ciência moderna, foram responsáveis pelos abalos e trabalharam para substituir, pouco a pouco, as ideias desmoronadas.