quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (1): Mais Platão, Mais Cristo

A conversão do mundo romano a Cristo foi precedida pela sua iniciação no pensamento de Platão. Não é descabido pensar, aliás, que os dois processos, que ganharam escala inacreditável, somaram-se, a partir de quando o judeu Paulo, natural de Tarso e familiarizado à língua e à cultura gregas, fez ressoar a mensagem de Cristo nas sinagogas judaicas espalhadas pelo mundo.
Embora fosse judeu, Paulo escreveu suas epístolas em grego, citou com frequência a tradução do Antigo Testamento nesse idioma e empregou recursos e ideias tipicamente gregos para expressar-se. Isso mostra que a declaração dele, em 2ª aos Coríntios 11:5-6, não foi despropositada: “Porque suponho em nada ter sido inferior a esses tais [lit., aos mais excelentes] apóstolos. E, embora seja falto no falar, não o sou no conhecimento”.
Portanto, o ato do Espírito de Deus de levar o evangelho ao mundo, por meio de Paulo, inseriu-se num contexto mais amplo de difusão da literatura grega, que o preparou e com ele se coordenou. Não temo afirmar que o centro geométrico daquele vasto contexto foi ocupado pela filosofia platônica.
No Novo Testamento, Hebreus é o texto que mais reflete a aproximação do evangelho em relação a essa filosofia e à cultura grega de modo geral. O primeiro ponto de contato, entre eles, é o uso de termos platônicos para explicar a mensagem cristã. Demiurgo (o nome do Deus Criador em Platão) aparece em Hebreus 11:10: “Porque [Abraão] aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador [demiurgo]”. Hipóstase, que significa substância e mais tarde foi empregada para indicar as pessoas da Deidade, está em 1:3 e 11:1. O primeiro desses versos lê: “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser [hipóstase]”. O próprio “resplendor da glória de Deus”, mencionado nesse versículo, é a mesma expressão usada por Fílon de Alexandria para explicar, em termos platônicos, as emanações de criaturas a partir de Deus.
Porém, o uso de ideias, em Hebreus, reflete ainda mais o pensamento grego que o de palavras, o que nos força a passar rapidamente a elas. É o caso das “figuras das cousas que se acham nos céus” (Hb 9:23), referência inequívoca ao mundo das ideias de Platão. Do mesmo modo, a epístola se refere às sombras terrenas de realidades celestes (Hb 10:1) e a uma série de itens do culto de Israel como réplicas de modelos originais no céu, assim como o tabernáculo (Hb 8:2,5; 9:11,22-24) e a Jerusalém celeste (Hb 11:10,16; 12:22; 13:14). De Cristo se diz ter vindo ao mundo como Sumo Sacerdote de “bens já realizados” (Hb 9:11), o que indica que aqueles bens precedem a redenção cumprida na Terra.
Não é diferente com a representação do Universo, em Hebreus, que corresponde manifestamente às dos platônicos e, em particular, às que circulavam em Alexandria. O tabernáculo em que Cristo entrou, após ter realizado a redenção, é uma parte especial do cosmos, não um símbolo de Deus, como muitos pensam, já que é chamado "maior e mais perfeito" (Hb 9:11) que o de Israel no deserto. Maior perfeição não é o mesmo que perfeição absoluta, como a que Deus possui. Como os platônicos distinguiam a matéria extensa e corpórea das realidades espirituais inextensas, o tabernáculo em que Cristo "entrou" não deve ter sido uma realidade espiritual, mas um lugar do espaço. Talvez corresponda à esfera que Orígenes e outros platônicos denominavam fixa (aplané), "em nada sujeita à corrupção, pois não recebeu as causas da corrupção. Na realidade, esse mundo pertence aos santos, aqueles que foram completamente purificados, e não aos ímpios, como o nosso" (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 2º Livro, Cap. 7. p. 143).
Tudo isso se coaduna com a visão de Universo vigente nos círculos platônicos do primeiro século, ao mesmo tempo em que excede a doutrina do Antigo Testamento. O pensamento subjacente é de que o enxerto de ideias gregas no corpus das Escrituras não o deforma, se tivermos o cuidado de demarcar o que cabe a cada um. Ao importar ideias gregas, a Bíblia incorpora e assimila uma literatura, não um modo de vida ou um culto. Aliás, a literatura é tomada pelo método judeu consistente em usar determinadas obras e, ao mesmo tempo, exercer a liberdade de alterá-las.
Não precisamos sair do livro de Hebreus para encontrar tal método exemplificado. Sem maiores explicações, o texto desloca o incensário do Santo Lugar, onde o Antigo Testamento o localiza (Êx 30:6), ao Santo dos Santos, para onde também transporta o maná. É o que temos em 9:3-4: “Por trás do segundo véu se encontrava o tabernáculo que se chama o Santo dos Santos, ao qual pertencia um altar de ouro para o incenso, e a arca da aliança totalmente coberta de ouro, na qual estava uma urna de ouro contendo o maná”. Em contraste com essas afirmativas, em Êxodo 16:33-34, o maná foi depositado num vaso, quando o tabernáculo sequer existia. E em Êxodo 39:32-43;40:1-15, quando ele passou a existir, os objetos pertencentes a ele foram enumerados duas vezes, sem qualquer alusão ao maná. De sorte que Hebreus modifica a tradição de Êxodo. E, ao culto do deserto, acrescenta ainda bodes, água, lã, escarlate e hissopo (Hb 9:19), que Êxodo desconhece completamente.
Era costume judeu usar o texto bíblico com alto grau de liberdade. O autor da Epístola aos Hebreus adere a essa prática. Nada mais, nada menos que isso. Pelo mesmo método, foram construídos os nomes dos magos que se opuseram a Moisés na corte de Faraó (2 Tm 3:8). Será que, se alteravam a Bíblia dessa maneira, ao citá-la, os judeus hesitavam em tocar em Platão, ao usá-lo, tantas vezes quantas fossem necessárias?
Sob essa concepção e esse modo de ver, o autor inspirado pode não ter pensado que as ideias platônicas existissem literalmente no céu. O método hebreu de utilização de textos facultava-lhe adotar o núcleo da doutrina platônica e transformar outros pontos. Creio que foi o que ele realizou com a doutrina das ideias, ao redigir Hebreus: aceitou que elas não têm corpo, extensão ou figura e que tudo quanto lhes ocorre não tem duração, exatamente como fez Platão. Mas concluiu, diferentemente dele, que não existem num céu espacial, mas no intelecto. E que a nota comum entre elas e as coisas materiais (suas definições concordantes) aplica-se a ambas. Por esse motivo último, às ideias no interior do intelecto podem ou não corresponder objetos espirituais no céu. O culto dos céus a que Hebreus e Apocalipse se referem é um exemplo de ideia realizada nas esferas mais elevadas do real. Mas não há prova de que às outras ideias suceda o mesmo, até porque seria estranho um judeu pensar que as ideias de coisas negativas e o próprio pecado se realizassem nos mundos celestes.
Devemos atentar para o que essa minuciosa combinação de elementos gregos e cristãos indica. Penso que aponta, em primeiro lugar, a grande abertura de mente, que os cristãos primitivos mantinham para com o mundo ao seu redor. Para eles, “não amar o mundo” limitava-se a não se deixar seduzir pela “concupiscência da carne e dos olhos e pela soberba da vida” (1 Jo 2:15-16). Não impedia, portanto, amar o que Deus criou e o que o homem criou com ajuda divina.
Em segundo lugar, o Novo Testamento sugere que o processo de combinação e fusão da fé cristã com o pensamento grego não permaneceu no estágio indicado em Hebreus. A Carta de Clemente aos Coríntios, escrita por volta de 95 d. C. e considerada um dos mais importantes marcos literários cristãos, está tão imbuída de ideias gregas quanto Hebreus. Se pensarmos que esta foi escrita 30 anos antes da outra, teremos uma noção precisa da força, do alcance e da persistência que o processo de fusão assumiu em tão pouco tempo. E não ficaremos a pensar, um tanto confusamente, que tudo não passou de algo secundário, no quadro do primeiro século.
Por fim, a soma do evangelho a uma filosofia otimista como a platônica lembra-nos que, apesar do sucesso civilizatório alcançado, o mundo romano estava mergulhado em nuvens de pessimismo e em funda desesperança. Para libertá-lo delas, de alguma forma, foi útil somar Platão a Cristo.
Por tudo isso, a história real da pregação do evangelho ao mundo parece ter sido muito distinta da versão ingênua e purista, segundo a qual os apóstolos levaram ideias da mente divina ao mundo romano, diretamente e sem qualquer mediação cultural. Esse purismo flagela a igreja até hoje.
“Que tem Jerusalém com Atenas?”, perguntou Tertuliano com eloquência forense, no século II. A pergunta atravessou o tempo. Reverberou em todo obstáculo sólido. Ditou discussões e sentidos sucessivamente emprestados à fé cristã. Porém, se a História oferece resposta a ela, parece ser um sardônico “Tanto!” Entre Jerusalém e Atenas, as eras de fato viram se constituir o volumoso e inquebrável vínculo da verdade. Os caminhos que partem de Jerusalém são muitos e muito caminhados, assim como os que saem de Atenas. Mas somente pelas veredas que ligam as duas cidades passam todos os homens, com as suas misérias e grandezas.