A figura de Lutero a empunhar a Bíblia descer-rada e de tantas pessoas alheias a ele não é mais apropriada à própria era da Reforma do que ao tempo atual. Lutero bradou: “Sola scriptura!” Mas o livre exame das Escrituras se adiantou tão pouco! No século imediato ao dele, a Filosofia foi liberta do jugo à Teologia, no entanto a última nunca foi solta da prisão das interpretações impostas pela autoridade.
Como um luterano entende a Bíblia hoje? Basicamente do modo como Lutero a interpretou. Como o faz um presbiteriano? Entende-a como Calvino. E um metodista? E um adventista? Eles interpretam a Bíblia como Wesley, William Miller e Ellen White ensinaram. Não pretendo, com isso, afirmar a existência de uma uniformidade total na interpretação da Bíblia, em cada ramo do Protestantismo, mas assinalar o quanto a Teologia Protestante é determinada por mecanismos de poder constituídos com a matéria-prima das interpretações dos estudiosos citados.
Se estar no luteranismo significa entender a Bíblia como Lutero, se estar numa Igreja Presbiteriana implica entendê-la como Calvino e assim por diante, segue-se que a interpretação não é realmente livre. Não há livre exame das Escrituras, nas Igrejas originárias da Reforma, ou há muito pouco, assim como o quadro de Kaulbach sugere na sua mudez eloquente.
O fato de o Protestantismo abrir-se num leque de confissões e Igrejas, cada qual com uma doutrina única, pode ser explicado de várias maneiras. Mas a traição do livre exame há de ser reconhecida para que qualquer explicação funcione. Não existindo, no Protestantismo, o compromisso com o magistério da Igreja de Roma, é natural que surjam interpretações divergentes entre si, no seu bojo. Porém, na medida em que ele não é só uma Reforma impávida e bem-sucedida, mas também uma reprodução das relações medievais de poder, não é menos natural que, em cada Igreja protestante, subsista uma única interpretação das Escrituras.
Isso significa que a Reforma aboliu ao mesmo tempo em que reproduziu o modelo católico romano. Sua obra duradoura está possuída dessa contradição. O filósofo Ernst Troeltsch escreveu, com algum exagero, mas atento ao exato desenvolvimento das Igrejas da Reforma: “Não se pode supor que o protestantismo tenha aberto o caminho para o mundo moderno. Ao contrário, ele parece ser, por princípio, e a despeito de todas as suas novas grandes ideias, um reavivamento e um re-forço do ideal de uma civilização eclesiástica imposta pela autoridade” (TROELTSCH, Ernst. Protestantism and progress. Boston: Beacon Press, 1958. p. 85). É crucial recordar que essa autoridade começa pela interpretação única da Bíblia, no seio de cada Igreja.
Em suma, o Protestantismo foi e continua a ser, na sua vertente ortodoxa tanto quanto nas seitas que se desgarraram das doutrinas aceites, uma espécie de modernidade abortada. É o que Troeltsch nos ensinou, com razão e a despeito de todas as grandes ideias que o movimento protestante trouxe ao mundo. Como lembrou Rubem Alves, no nascedouro da Reforma, esteve um grito de liberdade reprimido por séculos e que foi solto pelos reformadores. Porém, com o tempo, o grito se transformou na indiferença que o quadro de Kaulbach retrata.
Ao menos é assim que o Protestantismo se mostra, sob o ângulo teológico. Mas e do ponto de vista da Filosofia? Como o Protestantismo se revela, sob esse ponto de vista? Parece-me que, do prisma filosófico, ele representa ainda mais a modernização abortada que se tornou no terreno teológico. Para entender por que nada é mais útil do que considerar a figura do seu fundador.
Lutero teve dupla formação. Graduou-se em Filosofia e em Teologia. Numa carta escrita pouco depois de 1500, queixou-se de ser compelido a estudar a primeira “com todas as suas forças”. A confissão não é despropositada, já que o Protestantismo surgiu num tempo e lugar em que o movimento humanista crepitava. Esse movimento consistiu na restauração do interesse pelos clássicos da Antiguidade, tanto na Literatura como na História, na Filosofia e na Teologia (Bíblica e Patrística). Porém, o interesse pelos filósofos antigos, quando as limitações do platonismo e do aristotelismo se tornavam cada vez mais manifestas, não foi um presságio muito alvissareiro nesse campo particular.
Devido ao ambiente da época, a filosofia em que Lutero se formou e que ele aprendeu de modo mais sistemático foi a ockhamista, que havia desenvolvido as mais importantes críticas a Platão até então. Por isso, sob o prisma filosófico, a Reforma nasceu como uma significativa promessa de avanços.
Porém, Lutero levou seu repúdio a Platão tão longe quanto o repúdio a Aristóteles e à Escolástica, o que o transformou num quase inimigo da Filosofia. Ele próprio pergunta: “Que são as universidades? Pelo menos até agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos Macabeus, ginásios de febos e da glória grega, nos quais se leva uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até agora são reputados como os melhores, fossem abolidos juntamente com todos os outros que falam de coisas naturais [...] Sei muito bem o que estou dizendo! Conheço Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário demonstrá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele. Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, embora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades” (LUTERO, Martinho. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 105).
Lutero levou a sua polêmica contra a Filosofia ainda mais longe do que a passagem citada deixa entrever, pois generalizou seu juízo negativo sobre aquela disciplina. É o que verificamos na seguinte passagem das suas notas sobre a Epístola aos Romanos: "Devo ao Senhor esta obediência de ladrar contra a filosofia e de aconselhar os homens a olhar para a Sagrada Escritura [...] para que acabem rapidamente com esses estudos e para que tenham como única preocupação a de não estabelecê-los e defendê-los, mas, sim, a de tratá-los como nós, quando aprendemos habilidades inúteis com o fim de destruí-las e aprendemos erros com o fim de refutá-los cabalmente [...] Por conseguinte, o apóstolo está certo quando, em Cl 3 [2:8], fala contra a filosofia, dizendo: 'Cuidado, para que ninguém vos engane por meio da filosofia e de falácias vazias, conforme a tradição dos homens'. É óbvio que, se o apóstolo quisesse dar a entender que alguma filosofia é útil e boa, ele não a teria condenado de modo tão cabal" (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero - Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, pp. 303-304).
No entanto, em muitas outras passagens das suas obras Lutero lançou mão de partes da Filosofia, a fim de realizar suas demonstrações teológicas. Na realidade, ele nunca quis condenar toda a Filosofia. Lutero foi um homem da sua época. Como tal, condenou a Antiguidade Pagã, o que Dante já tinha feito na sua Comédia. As passagens transcritas acima são a Divina comédia de Lutero ou da Reforma. Com ela, Lutero quis alertar contra os perigos de um retorno excessivo aos antigos. Mas é preciso lembrar que ele foi monge agostiniano e não renegou Santo Agostinho, antes ou depois de a Reforma explodir e se estabelecer. Sabemos o que Agostinho representa na História da Filosofia e o que representou para Lutero.
Em seus livros, Lutero poupa Agostinho das críticas que dirige à Filosofia. Não só Agostinho, aliás. Outros filósofos que ele poupa da maior parte das suas condenações são Ockham e Gabriel Biel, por intermédio de quem Lutero teve contato com o nominalismo. Sem mencionar seu contemporâneo Melanchton, o orgulho de Lutero, que ele chama "adversário de Satanás e dos escolásticos". A profunda admiração de Lutero pelo humanista Melanchton é impensável sem concessão igualmente profunda à Antiguidade Clássica. Portanto, as invectivas do reformador foram muito mais direcionadas à Filosofia e à razão sem a graça salvadora de Cristo do que a toda e qualquer forma delas. Para Lutero, a Filosofia e a razão eram vãs, sem a fé em Cristo. Contudo, por meio da fé, elas podiam ser redimidas, como todo o restante da atividade humana.
Considerando a formação de Lutero, seu exacerbado antiaristotelismo e as invectivas que lançou em face da “porca razão” não têm o sentido de um repúdio ilimitado. Tivesse Lutero repudiado de modo total a razão e teríamos de esquecê-lo, já que a negação, culta ou bronca, da razão (pois há as duas espécies) é a putrefação filosófica por definição, o achaque mais essencial à natureza humana. Contudo, por trás do repúdio à razão, o que se nota não é a desrazão, mas a silhueta do ockhamismo em que Lutero procurou e encontrou substrato para, ao mesmo tempo, aferrar-se à vontade de Deus e considerar falso o racionalismo estribado no homem – entenda-se na soberba humana.
Pode-se questionar se, no seu repúdio à Filosofia e à razão, Lutero não correu o risco de “lançar fora a criança com a água do banho”. De banir a razão juntamente com os erros dela. Parece-me que correu, mas, a julgar pela declaração mais importante que fez, em toda a sua existência, quando a Dieta de Worms o instou a retratar-se dos erros que o Papa tinha apontado em seus livros, Lutero não chegou a tal ponto. Naquela ocasião solene, ele declarou: “Sereníssimo imperador! Ilustres príncipes, graciosos senhores! [...] Se não for convencido com testemunhos da Escritura, ou por evidentes razões, se não me persuadirem pelas próprias passagens que citei, e se não tornarem assim a minha consciência cativa da palavra de Deus, não posso e não quero retratar coisa alguma” (D’AUBIGNÉ, J. H. MERLE. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. II, p. 243).
Em muitas passagens de suas obras, Lutero reafirmou essa posição de alcance vastíssimo, por ter sido firmada no momento decisivo da sua existência. Uma das mais claras encontramo-la no segundo livro do reformador sobre a Santa Ceira, em que ele se bateu Com Zuínglio e Ecolampádio pelo respeito às regras fundamentais da Lógica: "Eu não sabia que Ecolampádio é um lógico ou dialético tão miseravelmente pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de Cristo - Confissão. In Obras selecionadas São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303).
Essas considerações convergem com a opinião de Troeltsch mencionada no início. Se tivermos de situar a Reforma em alguma das divisões (sempre relativas) da História, será melhor inseri-la na Idade Média do que na Modernidade. Mas é preciso apresentar uma ressalva ao fazê-lo. Por tudo o que a antecedeu, pelo que foi e também pelo que a sucedeu, a Reforma do século XVI foi genuinamente revolucionária. Seu problema é que a revolução que ela procurou implantar nunca se completou. Porém, isso não invalida o que o movimento tinha de vanguardista.
Quando olhamos para o quadro filosófico que a preparou e a opção de Lutero e outros reformadores por ideias ockhamistas, o caráter da Reforma faz-se ainda mais nítido. Lutero não só se declarou ockhamista como esclareceu ter absorvido totalmente os ensinamentos dessa corrente, como lemos na sua Resposta aos mestres de Lovaina e Colônia: “Por que iria eu resistir também a minha seita, a saber à occamista ou à dos modernos, que tenho assimilado totalmente” (LUTERO, Martinho. Resposta de Lutero à condenação doutrinal feita pelos mestres de Lovaina e Colônia. In Obras Selecionadas. 2ª ed., São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2000. p. 95).
É instrutivo, portanto, lembrar o que Gilson ministrou sobre essa seita: "O ockhamismo [aqui incluído o de Gabriel Biel, com o qual Lutero teve contato], não era uma simples reforma, mas uma revolução. As doutrinas precedentes se contradisseram mutuamente sobre a interpretação de certos princípios que lhes eram comuns; em vez de se somar a elas como um novo en-saio da mesma ordem, o ockhamismo nega todas elas, arruinando o realismo em que repousavam" (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 885).
A um leitor apressado pode ocorrer que Ockham foi, sim, revolucionário, mas ele não foi Lutero, nem os outros reformadores. Portanto, Lutero e a Reforma não foram realmente revolucionários. Esse juízo é equivocado. Os mais importantes precursores da Reforma, como Wyclif, Huss e Jerônimo de Praga, não só são citados entre os realistas como entre os mais extremistas deles. Eram todos teólogos platônicos. Lutero e seus seguidores não. A questão importante aqui não é o grau de ockhamismo deles, mas o fato de estarem, filosoficamente, mais próximos de Ockham do que de Platão. Mais próximos da revolução ockhamista que de seus próprios precursores teológicos. Isso contribui para ressaltar o conteúdo revolucionário da Reforma.
Ao colocar as evidentes razões ao lado das Escrituras, às quais dedicou a sua existência e em que depositou toda a sua fé, Lutero mostrou claramente o juízo que tinha a respeito do entendimento iluminado pela fé. Mostrou que sua obra foi, ao mesmo tempo, uma demanda pelas Escrituras e por uma razão evidente, não obscura como a que as filosofias do seu tempo ofereciam em tão grande medida. Não há como não dar ouvidos a essa justa demanda. Os amantes da verdade, em seus sempre múltiplos sentidos, não andam em busca de repúdios totais. Não recusam, pois, a luz da Filosofia, mas demandam luz clara, não impenetrável. Querem a verdade, mas verdade inteligível. Infelizmente, a Antiguidade e a Ida-de Média tinham visto nascer filosofias impenetráveis. A Metafísica do tempo de Lutero tornara-se, em grande parte, isso.
Nesse contexto, a dupla revolta do reformador contra o cativeiro papal e o aristotélico chega a constituir a sua contribuição central ao campo sobre o qual me debruço. Aliás, ao focarmos o pensamento de Lutero com a precisão necessária, percebemos que a sua investida contra o senso comum da época deu-se mais no terreno da Filosofia Social que no da Metafísica.
Pela sua importância como contestador de um arranjo social construído sobre a autoridade, é que Lutero deve ser lembrado na História da Filosofia. A crítica veemente, mas ilustrada que ele desenvolveu da razão é mais um apelo que a Idade Média dirigiu à docta ignorantia. No entanto e ao mesmo tempo, é uma recordação dos limites a que o intelecto humano está sujeito. Limite que não se aplica somente ao que podemos conhecer de Deus, mas também da natureza.
Há nessa posição uma sabedoria herdada dos antigos mosteiros que, ao recolherem o escólio da Gré-cia, o tornaram secundário à Bíblia. Assim procederam Orígenes e Santo Agostinho, mas também os primeiros monges do deserto. Assim também procedeu Lutero, embora com gume crítico peculiar.
A quase rusticidade das descrições bíblicas da natureza (com exceção do que encontramos em textos, como Gênesis 1 e 2), sobre a qual Lutero se colocou, pode parecer uma base suspeita, mas não deixa de cons-tituir um refúgio contra certos erros filosóficos. Refúgio que, aliado à demanda de Worms por razões evidentes e às contribuições para o pensamento social, garantem ao solitário Lutero um papel no romance da filosofia.