quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Apóstolos e Outros Líderes

Em João 13:16, Jesus afirmou: “Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou”. No texto original, “o enviado” é apóstolos, palavra empregada para indicar qualquer emissário ou pessoa comissionada para tratar assuntos com outrem. É comum o apóstolo ser mencionado ao lado do profeta, em outras passagens bíblicas (Ef 2:20; 3:5; 1 Co 12:28-29). A comparação entre eles parece indicar que o primeiro leva às pessoas uma palavra já proclamada anteriormente, enquanto o profeta leva uma palavra nova.
No Novo Testamento, o papel dos primeiros apóstolos é enfatizado não apenas por terem ensinado doutrinas espirituais, mas por se terem tornado depositários das maiores revelações de Deus ao homem, a saber: as que foram dadas por intermédio de Jesus Cristo. A escolha da palavra apóstolos, em vez de profetas (termo muito mais utilizado na época), deve-se ao fato de eles não terem sido o instrumento ou canal primário da revelação que anunciaram, como no caso dos profetas. Pelo contrário, os apóstolos foram enviados do porta-voz primário, pelo qual a revelação veio ao mundo.
Hebreus 1:1-2 esclarecem quem foi esse porta-voz primário de Deus do qual os apóstolos se tornaram enviados: “Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1:1-2). De um lado, estão todos os profetas; de outro, apenas o Filho de Deus. Coube aos apóstolos transmitir e explicar as palavras do Filho Unigênito ao mundo.
Flávio Josefo esclarece que o Antigo Testamento foi constituído por meio dos profetas: “Temos somente vinte e dois livros [os nossos 39 compactados em 22] que compreendem tudo o que se passou [...] até o reinado de Artaxerxes, filho de Xerxes, rei dos persas [...] Escreveu-se também tudo o que se passou desde Artaxerxes até os nossos dias, mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas não se lhes dá o mesmo crédito” (JOSEFO, Flávio. Resposta de Flávio Josefo a Ápio. Livro Primeiro, Cap. 2. In História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1999. p. 712).
De acordo com o historiador, a formação das Escrituras sempre dependeu da sucessão dos profetas, ou seja, da recepção das palavras de antigos servos de Deus por outros posteriores, e da adição de novos oráculos a elas, de modo a compor uma mensagem orgânica. Não é preciso acrescentar que essa mensagem são as Sagradas Escrituras.
Mas se a função dos antigos profetas foi constituir a sucessão pela qual as Escrituras foram compostas, a dos profetas de hoje não pode consistir em romper essa sucessão ou em substituir as Escrituras por novas palavras. Nenhum profeta está proibido de trazer novas palavras de Deus, mas é preciso que o faça em conformidade com as Escrituras: “Se alguém fala, fale de acordo com os oráculos de Deus” (1 Pe 4:11). Portanto, o trabalho do profeta atual consiste em completar a interpretação da Bíblia, muito mais do que em apresentar revelações novas. Da mesma forma, o trabalho do apóstolo é levar as palavras de Cristo às pessoas de hoje.
Em A vida normal da igreja cristã (disponível em www.tochrist.org), Watchman Nee recorda que os apóstolos podem ser agrupados em duas categorias: os que foram constituídos diretamente por Cristo e os que foram designados pelo Espírito Santo. Entre os últimos, contam-se Barnabé e Saulo, como Atos 13:1-2 claramente mostra: “Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres [...] Disse o Espírito Santo [a eles]: Separai-me, agora, a Barnabé e a Saulo, para a obra a que os tenho chamado”.
Nee enfatiza que Barnabé e Saulo foram separados pelos profetas e mestres de Antioquia. Isso é obviamente correto. Porém, gostaria de chamar a atenção para a frase do versículo 2: “Disse o Espírito Santo”. Ela corresponde à expressão “Assim diz o Senhor”, muito comum no Antigo Testamento. Ambas introduzem oráculos proféticos. Portanto, devemos concluir que aquilo que o Espírito Santo disse foi uma palavra profética e que a designação dos apóstolos se deu por meio do ofício deles (profetas) e não pelo dos mestres. Pelo menos é o que me parece expresso na passagem de Atos.
Os versículos citados subordinam o ofício apostólico ao profético não apenas no tocante ao conteúdo (a entrega de uma revelação), mas também quanto à gênese. O apostolado origina-se do ofício profético, com uma peculiaridade: ele tem a função de completar a palavra formada durante a sucessão de profetas. O texto original de Colossenses 1:25 afirma que Paulo se tornou “ministro de acordo com a dispensação da parte de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para completar [plerosai] a palavra de Deus”. Por ter a incumbência de completar a palavra divina, o apóstolo é um tipo especial de profeta, que não traz revelação nova, mas consuma a que já existe.
No Novo Testamento, o preenchimento dos ofícios da igreja ocorre por inspiração de Deus, que elege os apóstolos, presbíteros, diáconos e todos os outros líderes. Porém, a escolha de Deus manifesta-se por meio da intervenção humana. Em Atos 6:3,6, os apóstolos disseram: “Irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço [...] Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. Vê-se que os instrumentos humanos da designação dos primeiros diáconos foram a assembleia de crentes e os apóstolos. Atos 14:23 deve ser interpretado no mesmo sentido.
Importam-nos os princípios, mais do que a forma seguida nessas designações. Todo princípio bíblico constitui-se, quando vários exemplos apontam para o mesmo fato, sem contradições ou oposições. Portanto, o princípio é a densificação de uma revelação, por reafirmações que a tornam aplicável a um grande número de situações. Como a designação de líderes locais sempre ocorre por meio dos titulares de ofícios supralocais, temos aí um princípio. E ao princípio bíblico deve-se obediência, embora não à forma de que se reveste, como a investidura por imposição de mãos.
Generalizando um pouco mais, o preenchimento dos ofícios bíblicos obedece a dois princípios: Deus sempre escolhe as pessoas que o irão exercer por meio da intervenção humana, e esta consiste em manifestações da comunidade ou de líderes. Quando os ofícios a serem preenchidos são locais, os líderes que realizam a designação são apóstolos. Quando os ofícios são supralocais, a designação ora é feita por outros líderes supralocais, como Níger, Lúcio e Manaém no caso de Atos 13:1-2, ora se realiza sem intervenção de pessoa alguma. Porém, em ambos os casos, a escolha ou a aceitação dos líderes pelas igrejas é indispensável para que a designação se complete.
Nas passagens do Novo Testamento que mostram a designação de um líder supralocal por outro, como Saulo e Barnabé por Níger, Lúcio e Manaém, ou Timóteo por Paulo, o ato pode criar um vínculo permanente de subordinação entre o designado e quem o designa. É o que Watchman Nee mostra, com muitos exemplos, no controvertido livro Autoridade e submissão (São Paulo: Árvore da Vida, 1991) e também em Autoridade espiritual (São Paulo: Vida, 1987). Embora as afirmações dessas obras sejam, aqui e ali, moderadas por frases complementares com sentido levemente contrário, o significado geral dos textos é de que os ofícios bíblicos conferem autoridade a quem os exerce, o que importa a necessidade de submissão dos demais a eles. Por esse motivo, embora diferencie a submissão da obediência, é certo que Nee amplia excessivamente o alcance da autoridade delegada.
Darei alguns exemplos dessa hipertrofia. Ninguém duvidará de que as palavras dos profetas interessam a todos os cristãos do mundo e que, por isso, eles são líderes supralocais. O mesmo se aplica aos evangelistas e aos mestres, além dos apóstolos. Na época do Novo Testamento, a função de mestre pressupunha discípulos, como hoje a de professor pressupõe alunos. No entanto, o Novo Testamento retira todo destaque da relação discípulo-mestre, no interior da igreja. Ele quase não menciona discípulos de mestres cristãos. Tiago chega a dissuadir os crentes da ideia de se tornarem mestres (Tg 3:1). É como se a ordem do atual Testamento desse realização integral àquele verso de Isaías: "Todos os teus filhos serão ensinados do Senhor" (Is 54:13). Numa tradução mais literal, o texto afirma que todos "serão discípulos de Iahweh".
Não se acende uma lâmpada em praça pública, ao meio-dia. Depois de Jesus ter ensinado, o brilho da sua doutrina ofusca o de todos os outros mestres. Por isso, a relação discípulo-mestre continua a existir, mas é enfraquecida na igreja. Cabe, pois, a pergunta: onde se encontra a radical autoridade do mestre cristão no quadro do Novo Testamento? Se a doutrina da autoridade delegada de Nee está certa, o mestre deve ter ampla ascendência sobre seus discípulos. Estes devem submeter-se a ele, de modo absoluto. No entanto, os mestres citados no Novo Testamento não concentram muita autoridade, pelo contrário. E se um ofício bíblico não comporta radicalização de autoridade, os outros tampouco o podem fazer.
Sabemos que, além de mestre, Jesus também foi apóstolo, profeta, evangelista e pastor. Diante do seu desempenho dessas funções, onde vai parar o nosso? Pensemos a fundo nessa pergunta e esvaziemo-nos de toda pretensão desmedida, risível. No Novo Testamento, os líderes supralocais designados por outros devem submissão e obediência voluntárias, não obrigatórias, a eles. Une-os algo semelhante a um voto, a uma deliberação que se toma livremente, mas que se pode também não tomar.
Nesse sentido, Lucas afirma que ele e seus companheiros foram para Assôs, “onde devíamos receber a Paulo, porque assim nos fora determinado” (At 20:13), e o autor da Epístola a Tito declara: “deixei-te em Creta para que pusesses em ordem as cousas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi” (Tt 1:5). Paulo ordenava essas coisas, pois os seus cooperadores submetiam-se voluntariamente a ele.
Assim era com os líderes designados por outros líderes. Porém, na maioria das vezes, as dignidades supralocais, como apóstolos e profetas, sequer eram designadas por outras pessoas. Os Doze foram escolhidos por Cristo e por mais ninguém. Paulo “não consultou carne e sangue”, quando aprouve a Deus revelar seu Filho nele (Gl 1:16). Quanto aos demais apóstolos, profetas, evangelistas e mestres, simplesmente não há informação, no Novo Testamento, de que tenham sido designados por intervenção humana. Não podemos presumir que o foram, apenas para fechar o arcabouço de um sistema de autoridade que nos interesse ou favoreça igrejas e ministérios já implantados.
A igreja é, sem dúvida, um exército, mas um exército de voluntários. Nela, há apóstolos e profetas até o dia de hoje, por uma bastante razão: porque necessitamos deles, e Deus não deixa essa necessidade desatendida. Não importa se os denominamos apóstolos e profetas ou missionários e pregadores. Se a igreja não possuísse pessoas como essas, de que outro modo os cristãos seriam ajudados, quando as pessoas ao seu redor não lhes pudessem estender a mão ou os membros da sua comunidade local não lhes comunicasem ajuda? Deixaria Deus essas necessidades sem suprimento? Penso que não. Porém, nada disso importa a investidura de autoridade radical em alguém.
“Não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está no céu. Nem sereis chamados guias, porque um só é vosso Guia, o Cristo. Mas o maior dentre vós será vosso servo” (Mt 23:8-11). A consequência dessas palavras não falha: “quem a si mesmo se exaltar, será humilhado; e quem a si mesmo se humilhar será exaltado” (Mt 23:12).