quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (22): O Roubo Ontem e Hoje

                                   “Senhor, dai pão a quem tem fome,
                                   e fome de justiça a quem tem pão”
                                   (oração católica – autor desconhecido)

Lembro de ouvir meus pais dizerem essa oração, antes das refeições familiares, durante a minha infância. E de guardar e de considerar, com a profundidade de que era capaz aos seis ou sete anos, as inspiradas palavras da prece. Com que felicidade o autor anônimo traça o contorno da condição social que nos circunscreve! Quanto, em verdade, essa condição é assinalada pelos flagelos da fome de pão e de justiça!
Fôssemos punidos só pela falta de pão, e o pão sobre a mesa bastaria para dissipar os nossos problemas. Mas, sem fome de pão, teríamos imediatamente justiça? A resposta há de ser não, se o problema da injustiça for maior que o do pão, como em verdade é, a começar porque sentimos fome de pão, quando não o temos, ao passo que da justiça, quando não a possuímos, é comum não sentirmos desejo algum. Assim, o problema da injustiça é ampliado e agravado pela insensibilidade do coração humano para com a justiça. E se transforma, por isso mesmo, no dilema fundamental da existência. 

Não é comum os Dez Mandamentos serem citados como marco na luta dos povos contra a desigualdade. Talvez pudessem ser, já que a proibição do roubo, incluída neles, combate a raiz da desigualdade antiga, que se baseava no saque. Sem o roubo, é de duvidar que a desigualdade tivesse jamais assumido a escala alcançada nas sociedades pré-capitalistas.
Benjamin Constant, o político francês, lembrou que a história da liberdade divide-se em duas etapas, durante as quais a sua compreensão se alterou profundamente. Uma era a liberdade para os antigos; outra é a que os modernos reivindicam sob esse nome. Fustel de Coulanges confirmou essa lição ao afirmar, em sua obra clássica, que os antigos não conheceram a liberdade individual (COULANGES, Fustel. A cidade antiga – estudo sobre o culto, o direito e as instiuições da Grécia e de Roma. São Paulo: Edipro, 1998. p. 191).
Algo semelhante se passa com a igualdade. Nos tempos antigos, esse sobrevalor da justiça concebia-se no interior das classes sociais e não entre os membros delas. Um escravo era igual a outro, e um plebeu, a outro plebeu. Claro que essa igualdade válida no interior das classes se traduzia em desigualdade fora delas e ainda mais entre as sociedades, às quais era imposta por práticas como a pilhagem.
Por isso, não devemos pensar que a interdição do roubo, incluída nos Dez Mandamentos, refira-se a atos menores de subtração ou de desrespeito à propriedade privada. Pelo contrário, o mandamento parece arrancar a própria raiz da desigualdade antiga ao proibir o princípio de todo roubo, maior ou menor, com ênfase no primeiro.
Vale lembrar, aqui, o princípio de interpretação da lei que Jesus ensinou, ao aconselhar: “Não julgueis conforme a aparência, mas segundo a reta justiça” (Jo 7:24). A admoestação quer lembrar-nos que os preceitos divinos têm dois aspectos: a aparência e a justiça interior. A aparência da norma está associada às suas aplicações comezinhas, literais e mecânicas. A reta justiça corresponde ao espírito da legislação. No caso do roubo, a justiça coincide com o interdito definitivo da expropriação repetida. Sob esse ponto de vista, o mandamento não diz simplesmente “não furtarás um pão”, como fez Jean Valijean. Diz antes “não pilharás”, “não rapinarás”, “não tomarás qualquer bem do teu próximo pela força ou pelo engodo”. Nessa sua vertente específica, o oitavo preceito é um golpe assestado na desigualdade.
Não há outro mandamento econômico além da proibição de roubar, no Decálogo, o que não é sem significado. Assim como o respeito reverencial aos pais, implícito nas palavras “Honrarás pai e mãe”, constitui o fundamento da família, a proibição do roubo deve ser considerada a base de todo agrupamento social maior que a família.
Verdade é que o décimo mandamento traz uma proibição, de certo modo, maior e mais importante que a do roubo. Porém, a vedação da cobiça está conectada à do roubo. É o seu antecedente lógico e necessário. Ninguém furta ou rouba, sem cobiçar. Portanto, o décimo mandamento complementa o oitavo, ao tratar da intenção de quem rouba. Proscreve a raiz do roubo, que é o querer roubar. Arranca o desejo de expropriar bens alheios, com raiz, caule e folhas. Vemos as duas partes do grande social reunidas em Miqueias 2:2: “Cobiçam campos, e os arrebatam; e casas, e as tomam”Não devemos ignorar quanto, por esse duplo interdito, o cerco à desigualdade fechou-se sobre o homem antigo.
Vejamos o que pode ser dito do contraargumento mais óbvio a essa interpretação do Decálogo. Sempre haverá quem considere arbitrário o entendimento do oitavo mandamento que venho de expor . Para tais pessoas, a proibição de roubar é genérica, como a de matar. Portanto, não enfoca uma espécie particular de subtração, como o saque. A resposta à objeção é simples: consiste em admiti-la. De fato, a proibição é genérica. Mas é possível interpretá-la à luz do princípio ensinado por Jesus, que nos manda separar, no mandamento, aparência e justiça. Para Jesus, não faz sentido pagar o dízimo do endro e do cominho e não praticar a justiça e a misericórdia (Mt 23:23), coar o mosquito e deixar passar o camelo (Mt 23:24). Aplicado ao oitavo mandamento, esse princípio significa que uma coisa é subtrair um pão, para saciar a fome, própria ou de outrem, outra é subtrair, por cobiça, um bem de valor módico e ainda outra é saquear e pilhar.
Não muito após os Dez Mandamentos, lemos no texto bíblico: “Se alguém furtar boi ou ovelha, e o abater ou vender, por um boi pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha” (Êx 22:1). Na quantidade da devolução, nota-se o grau da transgressão. Em seguida, outra hipótese é figurada: “se alguém fizer pastar o seu animal num campo ou numa vinha, e o largar para comer em campo de outrem, pagará com o melhor do seu próprio campo e o melhor da sua própria vinha” (Êx 22:5). Essas palavras mostram que os grandes princípios da lei, como "não roubarás", desdobram-se em diferentes proibições, que devem ser concebidas com base na reta justiça, o que equivale a dizer à luz das intenções e situações variáveis da vida.
A inclusão de um preceito no Decálogo tem como consequência primeira a elevação dele ao status de transgressão capital. Porém, a reta justiça exige que apenas as formas graves de violação sejam, de fato, consideradas crimes capitais. Transgressões menores não hão de ser tomadas da mesma maneira, nem hão de receber o mesmo tratamento.
Isso é particularmente claro no caso da proibição de roubar. Em Isaías 5:8, lemos: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra”. O texto não se refere aos que ajuntam casa a casa com o fruto do seu trabalho ou por outro motivo justo. Refere-se aos que tomam a propriedade alheia por meio da força, como faz também Miqueias, no verso anteriormente citado. Esse é o comportamento que o Decálogo elevou a transgressão capital. É o comportamento que causa e, portanto, explica toda a desigualdade antiga.
Por que a Doutrina Social da Igreja abomina essa conduta? Porque o ódio a ela está contido numa Tradição cristã imemorial. Gregório Magno escreveu que “a natureza fez nascer iguais todos os homens, mas, variando o grau dos seus méritos, a culpa pospõe alguns aos outros” (MAGNO, Gregório. Regra pastoral. São Paulo: Paulus, 2010. p. 75). Rousseau não criou essa lição, nem foi ela inventada quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU foi proclamada. O autor desse grande princípio, pelo que sei, é Gregório, e ele está inserido no inventário dos bens que o pensamento cristão trouxe ao mundo.
A citação de Gregório é somente um exemplo. Poderíamos mencionar Basílio de Cesareia e João Crisóstomo, que transmitiram lições tão importantes e célebres quanto a de Gregório sobre a desigualdade antiga. Esses autores rejeitaram em uníssono a igualdade limitada ao interior de uma classe. Quiseram substituí-la por outra universal, que eu chamaria moderna, se não tivesse sido enunciada, no século VI, por Gregório, e não estivesse implicada no próprio Decálogo.
Vemos que, por muito tempo, o cristianismo foi o lugar geométrico em que a consciência da igualdade moderna se desenvolveu. A partir do século XIX, porém, um feliz movimento difundiu-a para a sociedade secular. Refiro-me ao socialismo, que em alguns casos se somou ao cristianismo, mas em outros o substituiu como o o centro da resistência e da luta contra a desigualdade. O esforço de reflexão desta série tem o propósito de mostrar que a substituição foi indevida e que é perfeitamente possível que as duas vertentes da resistência convivam.
Nem as desigualdades que o socialismo denunciou, nem as que o cristianismo combate são as que vigoram no interior das classes sociais, mas as que se estabelecem entre elas. Esse é motivo bastante para afirmarmos que as correntes cristã e socialista estão envolvidas na mesma luta. Tão certamente quanto não há duas igualdades modernas por que lutar, as correntes cristã e socialista sempre travaram a mesma luta por ela. Podem, porém, travá-la unidas ou em litígio.
Claro que o cristianismo tem uma finalidade maior que o combate às desigualdades temporais. Porém, esse combate será parte da sua vocação, enquanto houver injustiça na Terra. De sorte que, em princípio e no plano social, cristianismo e socialismo são uma só coisa: a luta pela igualdade e o mais forte não pronunciado à injustiça.
Há, porém, um ponto em que as mentalidades se turvam e tudo se complica. Refiro-me ao ponto em que os postulados econômicos da luta pela igualdade são colocados na mesa. Aqui as dificuldades avultam, não porque as intenções das pessoas se alterem, mas porque a configuração social da injustiça deixa de ser discernida.
Tornou-se comum a esquerda responsabilizar o capitalismo pela desigualdade moderna. Um de seus autores escreve com boas razões: “A fonte de inspiração, para os socialistas, continua a ser a mesma do começo: a revolta contra as desigualdades necessariamente geradas pelo capitalismo [...] O capitalismo é injusto e os espíritos bem formados devem combater a injustiça. Os ideais do socialismo, em princípio, são superiores à aceitação pragmática da desigualdade institucionalizada” (KONDER, Leandro. História das idéias socialistas no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 94).
Se retirarmos dessa citação as alusões à necessária injustiça do regime capitalista, teremos coberto boa parte do caminho que separa o socialismo da igualdade cristã. Parte considerável da divergência entre a doutrina social cristã e o socialismo está na responsabilização do capitalismo pela desigualdade. E o motivo da divergência não está situado tanto no plano dos princípios quanto nos postulados secundários de um e de outro.
Não que o cristianismo tenha qualquer compromisso com o regime capitalista. Seu aparecimento antecede tanto a ascensão do capitalismo à condição de regime dominante que não pode ter relação com ela. Ainda mais relação necessária. Porém, isso é verdade tanto do ponto de vista da afirmação como da negação. O cristianismo está livre para defender ou se opor ao capitalismo, conforme ele se revele mais ou menos justo. Sua relação com esse regime deve, pois, depender dos fatos. E são os fatos que retiram apoio à conclusão socialista de que o capital e não as formas modernas do roubo é o responsável pelas desigualdades.
Que nos dizem os fatos sobre os reais motivos da desigualdade? Pensemos nos mais recentes deles. Nos Estados Unidos, há muito, o Condado de McDowell tem sido um emblema da desigualdade. O índice de pobreza, ali, era de 50%, em 1960, caiu consistentemente até atingir 23,5%, em 1980, e voltou a subir para 38% em 1990 (The New York Times. Em colaboração com Folha de S. Paulo. 06/05/14. pp. 1 e 3).
O socialismo responsabiliza classicamente o capital por fatos como esse. Mas é possível pensar que as coisas não são tão simples quanto a explicação pelo capital pressupõe. Desde que as sociedades modernas fecharam o cerco sobre o roubo, outras formas de expropriação o substituíram. A exploração do trabalho é uma delas, porém, como o roubo, ela também deixou de ser universal. Em McDowell, 47% da renda da população provém de programas do Governo. É, pois, possível que o aumento da curva da desigualdade, naquele condado, reflita flutuações dos programas sociais e não a exploração do trabalho pelo capital.
Em O capital, o velho Marx mostrou que o método da acumulação primitiva foi a pilhagem. Talvez não soubesse que ministrava uma antiga lição cristã. Por isso também, ao lermos Marx com lentes cristãs, as dúvidas que nos assaltam não incidem na relação entre capital e roubo, mas no postulado marxiano de que a expropriação mudou de face, isto é, que a injustiça da acumulação primitiva foi substituída pela da mais-valia. Com essa afirmativa, Marx postula que o assalto à propriedade, antes ocasional, universalizou-se. Esse é o ponto mais duvidoso da doutrina dele. Um ponto ao qual pretendo retornar nesta série.
Talvez as coisas não tenham se transfigurado tanto quanto Marx supôs. Talvez a desigualdade não tenha perdido a sua relação com o dolo do coração humano e passado a radicar na mecânica da produção. Esta é importante, importantíssima, mas não a ponto de tudo explicar. O lado de dentro das relações humanas, o lado do coração, onde se aloja o dolo, talvez ainda explique parte importante da desigualdade. As coisas não perdem o lado de dentro tão facilmente. A desigualdade não perdeu o seu. Apenas ocorre que o lado de dentro dela não é mais tão grosseiro quanto a rapina, mas tão sutil quanto a micropolítica.
Desconfio de que, em algum plano da micropolítica ou em todos os planos dela, o discurso tem sido manipulado para justificar a expropriação. A luta pelo dinheiro e a matéria, antes travada por exércitos, tornou-se verbal. A violência simbólica tomou o lugar da física, no interior das famílias e das empresas. O resultado, porém, desse fato é o mesmo de antes: a expropriação. Pelo discurso, o mais forte apropria-se da posição, do lugar e dos bens do mais fraco.
Estranho mundo este em que os postulados sociais de uma religião a aproximam tanto de uma doutrina laica! Estranho mundo este em que, ao mesmo tempo, a doutrina religiosa e a social se dissociam ao concordarem. No terreno social, o cristianismo é, em grande medida, uma forma de socialismo. Foi o que a Teologia da Libertação logo percebeu.
Mas ela se perdeu, com parte da esquerda, ao aceitar demasiadas premissas econômicas. Faltou-lhe lembrar da navalha de Ockham. Faltou-lhe usar a navalha para cortar o excesso de premissas e postulados. Do lado de cá da doutrina cristã, esse erro teve a aparência inegável de uma concessão indevida à tentação de ser mais marxista do que cristão. Erro a ser de novo evitado.