sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (9): A Dessacralização da Vida

No seu livro sobre as formas elementares da vida religiosa, Émile Durkheim discutiu amplamente o totemismo australiano, que considerou o paradigma da religião primitiva. Porém, antes de ingressar nos detalhes do sistema totêmico, o sociólogo francês dedicou o primeiro capítulo da obra a uma interessante discussão do que é religião, elementar ou não. Ao desenvolver o tema, Durkheim concluiu que “todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem” (DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 19).
Sagrado e profano são categorias mais definidas e estanques do que bem e mal: “A oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum [...] Conforme as religiões, essa oposição foi concebida de maneiras diferentes. Numa, para separar esses dois tipos de coisas, pareceu suficiente localizá-las em regiões distintas do universo físico; noutra, algumas delas são lançadas num meio ideal e transcendente, enquanto o mundo material é entregue às outras em plena propriedade. Mas, se as formas do contraste são variáveis, o fato mesmo do contraste é universal” (idem. p. 22).
Assim, se a religião consiste na delimitação mais ou menos rigorosa do sagrado em relação ao profano, podemos perguntar em qual dos dois territórios se situa a vida social, que constitui o foco do nosso interesse. É a vida social sagrada ou profana? Nos povos grego e romano, não há dúvida de que a ordem social primitiva (familiar) sempre foi situada na esfera sagrada. Vimos, porém, que essa ordem passou por transformações, como o fim da primogenitura e a diminuição do poder do pater. É lícito perguntar se essas transformações reduziram-lhe, de algum modo, o caráter sagrado e se um processo análogo teve lugar na pólis.
Parece que as transformações por que a família e a pólis passaram mitigaram o caráter religioso delas. Exemplos disso podem ser retirados do direito. Moreira Alves mostrou que, nas fases iniciais do direito romano pré-clássico, “o ius civile (constituído apenas de normas costumeiras e de alguns raros preceitos legais aplicáveis aos cidadãos romanos) se desenvolveu, em regra, pela atuação dos jurisconsultos (a princípio, os pontífices; depois, com a laicização da jurisprudência, os juristas leigos)” (ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 13ª ed., 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 69). Assim, num primeiro momento, o direito romano foi controlado pelos pontífices, depois passou para a esfera laica. Com isso, se não perdeu o caráter sagrado, teve-o, no mínimo, abrandado.
A mesma evolução se observa entre os gregos. Roscoe Pound mostrou que, "no primeiro estágio do direito grego, os reis decidiam as causas por inspiração divina. No segundo estágio, o curso costumeiro da decisão se tornou tradicional sob o controle de uma oligarguia. Mais tarde, demandas populares por maior publicidade resultaram na criação de um corpo de leis" (POUND, Roscoe. Philosophy of law. Michigan: Yale University Press, 1982. p. 4). Portanto, também na Grécia, o caráter sagrado do direito foi gradualmente mitigado. 
A dessacralização parcial do direito e outros aspectos da vida social acentuou-se em sociedades cosmopolitas, como a grega, cuja localização geográfica e vocação espiritual permitiram que se desenvolvessem voltadas para o mar e os povos situados além dele. Como o sentido religioso das práticas sociais diversifica-se muito de cultura para cultura, quando os povos cosmopolitas entraram em contato com vários outros, a referência ao sentido religioso das instituições tornou-se um entrave para a convivência semelhante à barreira representada pelos idiomas. Surgiu, assim, para aqueles povos, a necessidade de transferir o significado religioso das suas instituições para o pano de fundo da convivência social.
Poucos povos da Antiguidade foram tão cosmopolitas quanto os judeus, cujas Diásporas, anteriores e posteriores à destruição do Templo em 70 d. C., os puseram em contato com povos muito diversificados. E, apesar de os judeus associarem fortemente a sua existência histórica à religião, o contato com outros povos forçou-os a transferir o caráter sagrado das suas instituições e costumes para a retaguarda do intercâmbio social.
O Livro de Eclesiastes é, às vezes, citado como uma voz dissonante no interior da Bíblia judaica, por referir-se ao mundo natural e social em termos que neutralizam parcialmente sua relação com o sagrado. Todavia, além do dissenso sobre a vida material, não há motivo para sustentarmos a dissonância de Eclesiastes com o restante da Bíblia, já que concordam em todos os outros pontos.
Na verdade, Eclesiastes não discorda dos outros livros sagrados sequer no tocante à vida cotidiana. O livro somente expõe a visão de seu autor sobre isso em maior detalhe e talvez em maior profundidade: “Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de vaidades. Tudo é vaidade. Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr” (Ec 1:2,4-7).
Se são pura vaidade, a natureza e a vida social não podem ser sagradas. Deus está por trás delas. É até mesmo o seu autor. Ele criou as coisas para funcionarem por meio de ciclos que se repetem: “Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele. O que é já foi, e o que há de ser também já foi; Deus fará renovar-se o que se passou” (Ec 3: 14-15).
Não é diferente na ordem humana: “Então, passei a considerar a sabedoria, e a loucura, e a estultícia. Que fará o homem que seguir ao rei? O mesmo que outros já fizeram” (Ec 2:12). A repetição e a sujeição férrea aos ciclos da existência estão presentes tanto na natureza quanto na vida humana. Podemos considerar que elas decorrem da ordem da criação divina.  
Porém, os judeus nunca conceberam a criação separadamente da queda do homem. A associação dos dois temas está implícita, quando não explícita, no livro de Eclesiastes. Por isso, ele não se limita a apresentar a ordem cíclica da natureza e das gerações humanas: ele também a julga, considera-a vaidade, por causa da queda. Assim, vaidade vem a ser a corrupção da ordem cíclica em consequência da queda. Por ter-se tornado vã, essa ordem deixou de ser sagrada.
“Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7:29). O desvio da retidão à astúcia, assim como a passagem da criação à vaidade, apagaram o caráter sagrado da vida humana. O pecado tornou a ordem do mundo profana. Esse ponto é extremamente importante para entendermos o sentido da vida humana e da sociedade, na tradição judaicocristã. Sem extrairmos os seus corolários não nos tornamos capazes de entender o que é o mundo, nessa tradição.
Vaidade não é um termo evocativo do sagrado. Pelo contrário, o sentido do termo é negativo, embora o mundo vão descenda do que foi criado por Deus. Se considerarmos essas ideias com a seriedade que elas demandam, concluiremos que o impulso inicial da dessacralização dos últimos 200 anos não proveio de forças profanas, mas religiosas. A religião judaicocristã decretou a dessacralização, por meio da doutrina da queda. O decreto só não se cumpriu antes, porque as sociedades em que essa religião vigorou consideraram-se exceções à dessacralização decorrente da queda. Sem negar que o mundo fosse profano, elas julgaram-se a si mesmas sagradas.
Devemos manter em mente, porém, que, embora o sagrado se oponha absolutamente ao profano, a transferência de itens da esfera sagrada para a das coisas profanas, como o cristianismo a representa, está sujeita a limites. Por isso, mesmo na parte da vida humana que foi atingida pela queda, permanecem reflexos da criação de Deus. A cultura pagã é um exemplo disso. Em obras como A cidade de Deus, Santo Agostinho cita Virgílio e Cícero repetidas vezes. Isso não aconteceria, se o teólogo patrístico não reconhecesse, na cultura pagã, reflexos da criação divina que a queda não apagou.
O mesmo se verifica no campo do direito. Agostinho abraça a doutrina eminentemente estoica da lei natural como recta ratio. Não vacila em apresentar essa lei, o tempo todo, como algo eterno e inerente à razão de Deus. Mas afirma também que, ao projetar-se no mundo, a lei eterna se faz temporal (HIPONA, Agostinho de. O livre-arbítrio. I, 6. São Paulo: Paulus, 1995. p. 39).
Essa lei temporal, humana e terrena distingue-se da eterna, que é “aquela em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas” (idem. p. 41). A lei eterna não somente institui a ordem do mundo como a torna justa. E, por ter tão grande abrangência, essa lei é comum aos homens e aos animais.
Vemos que, em vez de renegar o enunciado da lei natural de Ulpiano, recolhido nas Institutas de Justiniano, Agostinho o incorpora. Aceita-o como perfeitamente são. E, se tantos aspectos da ordem terrena são tidos por dessacralizados, por outro lado, o caráter divino daqueles que não o são resulta fortalecido. Daí a intransigência com que Agostinho (e, depois dele, Tomás) rejeita o caráter de lei aos decretos injustos.
Esse fortalecimento do teor divino do direito, Alceu Amoroso Lima o denomina “espiritualização do direito natural dos juristas estoicos pelos teólogos e juristas cristãos (LIMA, Alceu Amoroso de. Introdução ao direito moderno. 3ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1978. p. 81). Não é possível negar que o cristianismo tenha levado a cabo um processo com essas características. Parte importante da vida humana foi por ele dessacralizada. Porém, o que permaneceu no território do sagrado foi ainda mais fortemente relacionado a Deus.
Podemos propor que, assim como Platão e Aristóteles refinaram o trato dos filósofos antigos com o direito e a justiça, pensadores cristãos medievais fizeram o mesmo com o pensamento que receberam da Antiguidade. Graciano e Tomás de Aquino são geralmente citados como os principais responsáveis por essa realização. Porém, a perfeição do direito natural cristão, sob o ponto de vista filosófico, só foi alcançada a partir de Tomás.
Uma diferença de perfeição é percebida, inclusive, entre as sínteses do direito cristão por Graciano e Tomás. Por exemplo, o primeiro estendeu o direito natural apenas à espécie humana, com o que se apartou do ensinamento das Institutas. Tomás, por sua vez, nas pegadas de Santo Agostinho, abraçou o direito pagão e o conciliou com o cristianismo. Assim, ele nos ofereceu uma síntese do pensamento cristão mais fiel tanto às melhores fontes filosóficas como às fontes romanas.
O fortalecimento do conteúdo divino da lei natural é tão bem percebido no pensamento jurídico de Tomás quanto no de Agostinho. Porém, vemos explicitar-se naquele uma tendência que não é tão manifesta no santo de Hipona. Refiro-me à vinculação que em São Tomás chega a ser rígida do direito natural à razão. Diz-nos o santo: “A força de uma lei depende da extensão da sua justiça. Ora, nos assuntos humanos, uma coisa é considerada justa por ser concorde com a regra da razão” (AQUINO, Tomás de. Suma teológica. I, XCV, 2. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica. Vol. 18, pp. 227-228).
Agostinho não nega essa proposição, mas não a sugere de modo tão explícito e isento de nuanças. Para Tomás, justo é o racional. Ele não deixa a mínima margem para entendermos mal o que quer transmitir com essa identificação: “À lei das nações [jus gentium] pertence tudo aquilo que é derivado da lei da natureza como conclusões a partir de premissas. Por exemplo, compras e vendas justas” (idem. I, XCV, 4. p. 229).
Conclusões que se seguem a premissas são produtos lógicos. Assim, o caráter divino do direito é não só fortalecido como esclarecido. Podemos concordar ou não com o esclarecimento fornecido por Tomás, assim como podemos abraçar ou não a sua doutrina, mas ninguém negará que uma dúvida de tipo kelseniano sobre o conteúdo da justiça torna-se impossível, ante os termos límpidos com que Tomás coloca a sua doutrina do direito.
Roscoe Pound lembra que os filósofos gregos relacionaram a justiça à preservação do status quo social. E observa com propriedade que, quando o apóstolo Paulo recomenda a aceitação dos deveres de classe por escravos e senhores e dos papeis domésticos pelas mulheres, maridos e filhos, não faz mais que refletir o grau de helenização a que o pensamento judeu da Diáspora (e também o palestinense) fora sujeito (POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 5). Isso reduz muito o campo de divergências possíveis sobre a moral e o direito natural. E, ao reduzi-lo, mostra que a dúvida kelseniana é apenas kelseniana. Ela deixa de fazer sentido quando estendida à Antiguidade ou à Idade Média, já que, nesses períodos, a ligação da ordem social com a justiça era aceita universalmente. E, se o era, o direito natural resultava muito mais claro e inquestionável. Podemos afirmar que, quando São Tomás deu a esse direito expressão racional tão nítida quanto a que demonstramos, sua claridade atingiu o grau máximo.
Em suma, sob o cristianismo, a dessacralização da vida social sempre existiu, mas foi mantida sob limites impostos pelo caráter sagrado não só da sociedade cristã como dos povos cultos não cristãos, como os gregos e os romanos. Só quando deixou de se ver como particularmente vocacionado para a santidade, o Ocidente pôde levar às últimas consequências a dessacralização afirmada nos textos bíblicos. Isso se deu a partir do momento em que o Iluminismo conferiu à razão a autonomia necessária para questionar e revisar preconceitos religiosos.
As sociedades cristãs só desenvolveram o processo de dessacralização hoje em marcha, porque a sua base religiosa as inclinava a isso. Os povos muçulmanos e orientais não passaram pelo processo, ao mesmo tempo ou do mesmo modo que o Ocidente, por lhes faltar tal base. Porém, os latinoamericanos, como cristãos, o experimentaram.
Não sugiram que os muçulmanos conhecem a doutrina da queda, pois, no Alcorão, ela se encontra em forma profundamente mitigada. Deus disse a Adão: “Ó Adão, habita o Paraíso com tua esposa e desfrutai dele com a abundância que vos aprouver; porém, não vos aproximeis desta árvore, porque vos contareis entre os iníquos. Todavia, Satã os seduziu, fazendo com que saíssem do estado (de felicidade) em que se encontravam. Então dissemos: Descei! Sereis inimigos uns dos outros, e, na terra, tereis residência e gozo transitórios. Adão aprendeu de seu Senhor algumas palavras (como preces) e Ele o perdoou” (Alcorão , II, 35-37).
Na religião muçulmana, o pecado do Paraíso foi perdoado a Adão imediatamente. Não teve as consequências que lhe são associadas na tradição judaicocristã. Por isso, Adão é tão positivo quanto Jesus, como vemos na passagem que considera “o exemplo de Jesus, ante Deus, idêntico ao de Adão, a quem Ele criou da terra” (Alcorão, III, 59). 
Qual a posição da Reforma Protestante, nesse quadro? Com propriedade, Alceu Amoroso Lima considera a teologia protestante emanada da revisitação da doutrina do pecado natural por seus maiores representantes: "Na concepção católica do Direito, representava a liberdade humana um papel essencial pois 'a justiça é um estado de equilíbrio entre a vontade divina e o livre arbítrio do homem' (Apud LAGARDE, G. de. Rechercehs sur l’esprit politique de la Réforme. p. 151-157). O pecado destruiu no homem apenas a harmonia e a hierarquia de suas faculdades, mas 'não diminuiu a própria natureza' (Apud AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Parte II, Cap. II, Quest. 85, Art. 2). Ora, na concepção protestante, ao contrário, o pecado reduziu a própria natureza humana, destruindo-lhe completamente a integridade. O pecado original, segundo Lutero, Calvino ou Zwingle, foi uma depravação que viciou radicalmente a natureza humana. Sendo assim, não poderá esta desempenhar nenhum papel importante na ordem moral".
A meu ver, a análise de Amoroso Lima é exata até o último período. De fato, a Reforma é inseparável do aprofundamento da doutrina do pecado original à luz do Novo Testamento e da interpretação que Santo Agostinho lhe dá. De fato, para Lutero, Calvino e Zuínglio, o pecado viciou a natureza humana, o que inclui todas as faculdades do homem sem qualquer exceção. Mas disso não decorre que a natureza e a razão humanas tenham-se tornado irrelevantes na ordem moral.
O Protestantismo traça uma linha divisória no plano vertical do Universo. No imenso território que se estende dessa linha mediana para baixo, a razão continua a reger soberana. Do mesmo modo, nesse território, o livre arbítrio segue a existir e a operar legitimamente:
"O julgamento a respeito da restituição deve ser o seguinte: se o devedor é pobre e não pode devolver, e o outro não é indigente, deves dar livre curso à lei do amor e perdoar o devedor. Pois, conforme a lei do amor, também o outro está obrigado a perdoar e ainda a restituir mais, se for necessário. Se, porém, o devedor não é pobre, obriga-o a devolver o quanto puder, seja o total, a metade, a terça ou a quarta parte, deixando-lhe, não obstante, o suficiente para a moradia, alimentação e vestuário para ele próprio, sua mulher e filhos [...] Pois a natureza ensina o mesmo que também ensina o amor: que devo fazer o que quero que me façam. Por isso não posso explorar a ninguém dessa maneira, ainda que tenha todo o direito, pois eu não gostaria de ser explorado dessa maneira [...] Se, porém, não observares a lei do amor e da natureza, jamais agirás de maneira que agrades a Deus, mesmo que tenhas devorado todas as obras jurídicas e todos os juristas; pelo contrário, esses apenas te confundirão tanto mais quanto mais refletes sobre eles. Uma sentença verdadeiramente boa não pode ser tirada de livros; deve provir de uma reflexão livre, como se não existisse livro algum. Essas sentenças livres emanam do amor e do direito natural, do que toda a razão está cheia" ( LUTERO, Martinho. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. In Martinho Lutero – obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1996. Vol. 6. p. 113).
Esse texto de Lutero desfaz todos os equívocos sobre a posição da Reforma em relação às faculdades humanas, inclusive a razão, da qual emana o direito natural. De fato, a razão está corrompida, mas não completamente. Por estar corrompida, tornou-se imprestável para conhecer as coisas de Deus, mas continua apta a reger as coisas do homem. É verdade que Lutero reduz o poder da razão àquele mínimo, que se mantém ativo em todos os homens e ao qual eles podem ou não se conformar: esse é o motivo de ele afirmar que a razão opera independentemente dos livros. É preciso percorrer a obra dele mais amplamente para entender que livros, aqui, não são todos os livros, mas a maioria deles, pois Lutero sempre ressalva um corpus literário, na Filosofia e nas artes, que permanece útil e recomendável, não certamente à compreensão das coisas celestiais, mas das terrenas.
Exemplo lapidar de aplicação prática do direito natural como Lutero o concebia é dado na seguinte passagem: "Um nobre [Lutero refere-se a Carlos, o Negro, duque da Borgonha de 1467 a 1477] prendeu seu inimigo. Veio então a mulher do prisioneiro para libertá-lo. O nobre prometeu libertar o marido caso ela se deitasse com ele. A mulher era honesta; não obstante queria libertar o marido. Ela foi falar com o marido e lhe perguntou se o deveria fazer para conseguir sua liberdade. O homem queria a liberdade e salvar sua vida, e deu permissão à mulher. Depois de haver mantido relações com a mulher, nobre mandou decapitar o marido e entregou-o morto à mulher. Ela denunciou tudo ao duque Carlos. Este citou o nobre e ordenou-lhe casar-se com a mulher. Quando terminaram as bodas, mandou decapitar o homem e pôs a mulher sobre seus bens [...] Vê, semelhante sentença nenhum papa, nenhum jurista e nenhum livro lhe poderia ter dado; pelo contrário, ela surgiu da livre razão, superior a todos os livros" (idem. p. 113-114).


 Não é preciso acrescentar que, com a Reforma, a dessacralização social chega ao apogeu. Por sair do fundo da natureza racional do homem, as máximas do direito natural nada têm de sagrada: tudo possuem de humano. Chego a pensar que essa lição básica não se altera, conforme passamos de Lutero a Melanchton ou deste a Calvino.
Nem é contraditório o judaísmo e o cristianismo favorecerem a dessacralização social, se toda religião, como Durkheim mostrou, constitui um regime de coisas sagradas e profanas. Nenhuma divisão do sagrado e do profano é mais religiosa que outra. Nenhuma tem mais direitos que outra. A divisão judaicocristã que alarga o território profano, por meio da queda, é tão legítima quanto a de qualquer outra religião. Sua única diferença consiste em favorecer a dessacralização da vida social verificada nos povos ocidentais e latinoamericanos.
Assim, se os gregos e os romanos formaram do direito a ideia de algo divino, em conformidade com a sua religião, a dessacralização do direito, nos povos ocidentais e latinoamericanos não teve relação menor com a religião cristã. Na verdade, a relação foi tão intensa quanto no caso dos gregos e dos romanos, o que sugere que o ritmo e os limites do processo de dessacralização não dependem só de fatores mundanos, como é usual pensar, mas também da sua relação com a religião.
Embora de modos opostos, a religião determinou o sentido do direito na Grécia, em Roma e entre nós. Na Antiguidade, por influência dela, o direito foi assimilado ao divino. Nos últimos 200 anos, por causa da mesma influência, ele foi dessacralizado. Cabe à Filosofia do Direito ocupar-se dos dois processos, explicá-los e interpretá-los, por estranhos que possam parecer à mentalidade contemporânea.
Se o objeto da Filosofia do Direito é a ideia essencial de direito, podemos identificar dois grandes modos de conceber essa ideia. O primeiro vigorou na Antiguidade; o outro, na Modernidade. Um consistiu em divinizá-la; o outro, em dessacralizá-la. A relação que uma e outra ideia de direito mantêm com a religião põe em relevo o mistério que cerca a Filosofia. Se as disciplinas jurídicas particulares dedicam-se à norma e sua utilidade, à Filosofia resta indagar o mistério do direito.