quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (artigos reunidos) - Parte I


QUE É FILOSOFIA DO DIREITO?

                        Assim como há seres que pensam e pensadores, há pensadores profissionais e apaixonados. Uma das características da paixão pelo pensamento é jamais se contentar com o que alcançou e, por isso, estender o trabalho reflexivo ao infinito. Não é incomum os que cultivam a paixão pelo pensamento construírem a sua reflexão ao longo de toda a vida e, ainda assim, a deixarem inacabada, porque a obra de reflexão, profunda e às vezes arrebatada, é também interminável.
                        Bem ou mal-sucedido como pensador (não me cabe julgá-lo), tenho consciência de ter sido muito mais um pensador movido pela paixão do que um profissional, embora também tenha feito do pensar minha profissão. Quando iniciei minha reflexão filosófica sobre o direito, no primeiro ano da Faculdade, tal foi o ímpeto do interesse que desenvolvi pela disciplina, tal foi o encanto que provocou em mim, que me senti compelido a dar forma de livro aos meus pensamentos, ainda durante a Graduação. Escrevi, naquela época, O drama do direito[1] e, pouco depois, Filosofia do direito positivo[2].
                        Outros livros seguiram-se a esses. Mas quero aqui retomar, com maior acento, a reflexão desenvolvida nos bancos da Faculdade, inspirada de certa forma pela inesquecível descrição que Bergson forneceu do trabalho filosófico[3]:

         Nos problemas que o filósofo pôs, reconhecemos as questões que se agitavam à sua volta. Nas soluções que lhes forneceu, acreditamos reencontrar, arranjados ou desarranjados, mas quase sempre não modificados, os elementos das filosofias anteriores ou contemporâneas [...] Mas, à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina transfigurar-se. Primeiro, a complicação [das ideias] diminui. Depois, as partes entram umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num único ponto [...] Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. Não podia formular o que tinha no espírito sem se sentir obrigado a corrigir sua formulação e, depois, a corrigir sua correção; assim, de teoria em teoria [...] o que ele fez [...] por meio de desenvolvimentos justapostos a [outros] desenvolvimentos, foi apenas restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original.

                        Bergson traz à luz o que o trabalho reflexivo tem de mais recôndito:o fato de se orientar por uma intuição invariável. Não importa o quanto dure a reflexão filosófica: ela sempre será dirigida pela intuição primordial, por aquele sopro de inspiração que a impulsionou originalmente e que, ao longo dos anos,permanece e tem de permanecer sempre o mesmo. Podemos afirmar que essa intuição é o combustível que faz arder a paixão pelo pensamento.
                        Nada mais verdadeiro. O pensador pode mudar em maior ou menor medida o que pensa ao longo dos anos: a intuição fundamental de que parte não só não se altera como parece ostentar as características de um objeto verdadeiramente imutável.
            E, se pensar é uma tarefa infinita, ao mesmo tempo, é pensar sempre a partir do mesmo ponto. É descrever e tornar a descrever a mesma trajetória básica, com a única diferença de que, conforme avançamos, nos entregamos a incursões cada vez mais profundas e à exploração de um número crescente de vicinais da grande linha reflexiva cujo princípio o sopro da inspiração um dia nos comunicou.
            Por isso, em qualquer reflexão vigorosa e desenvolvida, deve ser possível identificar com clareza o ponto de partida, o ponto no qual, na linguagem de Bergson, a reflexão do filósofo se contrai. Cada qual tem o seu ponto de partida. Por isso também, cada um desenvolve trajetória própria. O impossível, o vedado sob pena de nulidade e irrisão, é não ter ponto de partida e não ter trajetória básica.
            No meu caso, o ponto de partida foi a intuição de que a reflexão jurídica deve reconciliar-se com Deus. Ruy Barbosa concluiu uma famosa oração, cujo original ainda se conserva, com a afirmação mais visceral que analítica, mais confessional que especulativa: “De quanto tenho visto no mundo, o resumo se abrange nestas cinco palavras: não há justiça, onde não haja Deus”[4]. Essas derradeiras linhas do discurso final do grande orador corresponderá à intuição original de Ruy? Quem duvidará e, ainda assim, quem ousará garanti-lo?
                        Posso, porém, garantir que, no meu caso, a inseparabilidade entre Deus e a justiça foi a intuição original que orientou toda a minha reflexão. Escrevi O drama do direito e Filosofia do direito positivo para afirmar que não há direito, nem há justiça sem Deus.
                        Porém, se o ponto de partida do trabalho dos filósofos do direito pode ser fixado de modo tão claro, nem sempre a trajetória básica da sua reflexão mostra-se nítida. Bergson continua a discorrer[5]:

         A primeira manobra do filósofo, quando seu pensamento ainda está pouco seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, consiste em rejeitar certas coisas definitivamente. Mais tarde, poderá variar naquilo que afirma; não variará muito naquilo que nega. E, se varia naquilo que afirma, é porque [...] tendo deixado a curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente, tornouse exterior a si mesmo. Volta para dentro de si quando volta à intuição [original].

                        Na obra de qualquer pensador, podem encontrar-se incursões em direções diversas. Isso é próprio do pensamento e tanto mais da Filosofia. Algumas incursões, como a que Bergson menciona, resultam em extravios. Nesses casos, a solução para o filósofo é retornar à trajetória básica que descrevia, pois ela existe, e ele existe para ela.
                        Quando esses retornos não ocorrem ou demoram para ocorrer, trechos inteiros da reflexão corrompem-se. No limite, o filósofo perdese, erra a vereda interior. Na maior parte das vezes, porém, ele corrige os equívocos que cometeu.
                        Alguns erros da História da Filosofia tornaram-se célebres. Em 1426, Jean Gerson denunciou a “confusão geral das ordens de conhecimentos” que se estabelecera na Europa cristã. Étienne Gilson descreve aquela crise do pensamento medieval[6]:

         Cada uma [dessas ordens] serviase do modo de significação próprio de certa disciplina, feito para determinado objeto, a fim de resolver os problemas colocados por outra disciplina e outro objeto. Ele [Gerson] via os mestres de gramática, cujo objeto é a congruidade do discurso, resolverem seus problemas pelos métodos próprios da lógica, cujo objeto é a verdade ou a falsidade das proporsições, enquanto os mestres de lógica pretendiam resolver por esses mesmos métodos os problemas da metafísica, ciência que não concerne às proposições mas às coisas, e que gramáticos, lógicos e metafísicos acreditavam poder resolver por todos esses métodos ao mesmo tempo os problemas da teologia, como se essa ciência não tivesse seus métodos próprios e seu objeto próprio, que é a palavra de Deus.

                        Desses equívocos resultaram contendas e confusões, em muitas áreas. A própria Reforma constituiu uma reação à tentativa viciosa de produzir Teologia a partir da Filosofia, com esquecimento da fonte própria daquela. Coisas semelhantes se deram, ao mesmo tempo, em outros ramos do saber. Reflexões inteiras se equivocaram, ao se desgarrarem da senda em que se desenvolviam. Esses equívocos generalizados afetaram o pensamento medieval como um todo e, por meio dele, induziram o extravio de incontáveis pensadores do fio de suas intuições originais.
                        De tempos em tempos, essa espécie de equívoco relacionado à natureza de uma reflexão se torna comum. Penso ser esse o caso da nossa época, na qual se tornou frequente desenvolver reflexões sociológicas como se fossem filosóficas ou adotar uma teoria particular para criar filosofias inteiras. Essas empreitadas, embora comuns, estão fadadas ao fracasso. Não podem terminar em contribuições relevantes para a Filosofia, já que resultam de erros na escolha do caminho reflexivo a ser trilhado.
                        Quantos pretendem, à força de evocações, extrair uma filosofia da Sociologia, quando não querem confundir simplesmente uma disciplina com a outra! Como no tempo de Gerson era urgente separar nitidamente as tarefas da Gramática, da Lógica, da Metafísica e da Teologia, estamos numa época em que se tornou necessário debelar o caos das misturas e das reduções para voltar a fazer Filosofia como Filosofia, Direito como Direito e Filosofia do Direito como Filosofia do Direito.
                        Incursões na teoria da linguagem, na Sociologia ou em outra ciência social podem ser realizadas, com proveito, pelos filósofos do direito. Isso é incoercível. Porém, é preciso limitá-las e, principalmente, submetê-las a certas regras. Não é possível permitir que se desenvolvam de modo a transparecer que a Filosofia do Direito é Linguística, epistemologia ou ou Sociologia. O que significa que é preciso retornar sempre à Filosofia e à Filosofia do Direito, como a clareza metodológica exige.
                        Neste compêndio da reflexão filosófica interminável que tenho empreendido sobre o direito, é meu objetivo manter a maior fidelidade possível aos princípios enunciados acima para retornar com frequência à trajetória iniciada em meus escritos dos anos 1980 e 1990. Para isso, deverei ater-me à intuição original daquelas obras, que se exprime na máxima de Ruy Barbosa ligeiramente aditada: não há direito, nem há justiça onde não haja Deus. Portanto, há direito com Deus.
                        Devo ater-me, outrossim, às questões metodológicas, cuja desconsideração induz a mistura indevida de temas e inviabiliza a reflexão ordenada. Essas questões são: de onde partir? E como proceder a partir desse ponto?
                        Na primeira parte desta série, ocupar-me-ei desses tópicos. A pergunta sobre o ponto de partida será respondida com ajuda da filosofia perene. À segunda indagação (como proceder a partir desse ponto?) darei a resposta da ciência moderna, convicto de que a melhor atualização possível de uma antiga filosofia é a adição não de especulações sobre o que pode ser, mas de descobertas sobre o que é.
                        À pergunta gravada no título desta série responderei que a Filosofia Jurídica é a própria Filosofia[7]enquanto se ocupa do direito e dos valores cardeais que ele afirma[8]. Porém, se o tratamento ordenado de uma matéria requer principiarmos do geral e descermos ao particular, a reflexão sobre o direito deve partir de uma concepção definida de Universo, sem a qual ela estará fadada a partir de uma quimera e chegar a outra. Por isso, nesta primeira parte da séirie, discutirei os rudimentos da concepção de mundo e de sociedade de que parto.
                        Bergson forneceu parte importante da moldura em que tenho inserido a tela de minha reflexão especial sobre o direito. Ele, com quem me encontrei, perplexo,  ao assistir às aulas de Goffredo Telles Júnior, há mais de 30 anos. Claro que, daquele a este ponto, bebi de diversas fontes, mas sinto não me ter embriagado com elas, nem me apartado muito de Bergson e de Goffredo. Ao contrário, ainda ouço intrigado as palavras com que o pensador francês iniciava os alunos nos mistérios de sua intuição primordial: “Considero que o ser vivo seja de direito consciente; torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência adormece”[9].
                        Inspiradoras palavras, santa paixão.

DEUS E A JUSTIÇA

                        Uma das obras de Filosofia do Direito que causaram maior impacto nos últimos anos é Justiça – o que é fazer a coisa certa, em que Michael Sandel combate a teoria política liberal. Na edição em português do livro, lemos[10]:

         A teoria política liberal nasceu de uma tentativa de poupar a política e a lei de se emaranharem em controvérsias morais e religiosas. As filosofias de Kant e Rawls são a expressão mais completa e clara dessa pretensão.
            Essa pretensão, no entanto, não pode ser bem-sucedida. Muitas das questões mais ardentemente contestadas de justiça e direitos não podem ser discutidas sem que sejam consideradas controversas questões morais e religiosas.

                        Sandel relata que os Estados Unidos começaram a admitir, claramente, a inusitada orientação política que admite mesclar direito, moral e religião, a partir dos governos de Barack Obama, que declarou, num famoso discurso sobre o papel da religião na política, que[11]

os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King – na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos – não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam levar sua moral pessoal para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaicocristã.

                        Em 1993, publiquei Filosofia do direito positivo, permitam-me dizer, sob essa exata perspectiva. Por tratar de Filosofia, o livro alicerçava na Metafísica a posição favorável à reintrodução da temática moral e religiosa no debate acadêmico. E a proposta que formulava não se restringia ao reconhecimento da importância dos temas morais e religiosos para a Filosofia do Direito, mas também para o direito positivo. 
                        Todavia, um problema tornava difícil a aceitação da proposta naquela época. Refiro-me às críticas, às vezes atrozes e pouco esclarecidas, que tinham sido dirigidas à Metafísica, nos últimos séculos. Por isso, no primeiro texto desta série, procurei apresentar um balanço das maneiras pelas quais ainda é possível justificar a Metafísica, após a revolução científica. Lembro-me de ter identificado dois métodos pelos quais aquela disciplina pode ser justificada sem apequenar o papel da Teodiceia, que cuida da questão de Deus. Pareceu-me, na época, que ou afirmamos uma Metafísica sem Deus, ou, se queremos uma que preserve os valores religiosos, devemos voltar-nos às propostas de Kant e de Kierkegaard[12]:

         O filósofo alemão [Kant] afirmou que “o ser supremo, segundo aquilo que é em si mesmo, é para nós inteiramente impenetrável e até, de modo determinado, impensável; somos assim impedidos [...] de determinar a natureza divina, mediante propriedades, que, no entanto, são sempre tiradas da natureza humana”.
                        Em pleno Iluminismo, Kant pensava o mundo como efeito da ação divina, mas reconhecia que Deus não pode ser conhecido em si mesmo[13]:

A natureza da causa suprema permanece-me desconhecida; comparo somente o seu efeito, que me é conhecido (a ordem do mundo), e a sua conformidade à razão com os efeitos também de mim conhecidos da razão humana e dou, por isso, à causa suprema o nome de razão, sem lhe atribuir como propriedade o que precisamente entendo no homem por esta expressão.

                        A justificação da Metafísica por Kant permanece num pináculo da Filosofia, mesmo após o desenvolvimento da ciência. Em nada se confunde com as justificações do pensamento religioso com base em interpretações literais de crenças que atribuem características humanas a Deus. Daí haver Kant afirmado que Deus é incompreensível à razão e que a tradição religiosa obstinou-se num erro ao concebê-lo com atributos humanos. Por isso, ao atualizar a Metafísica e a Teodiceia com ela, Kant propôs que o inveterado vício antropomórfico fosse corrigido. E, no minuto em que o fez, inseriu-se no número dos pensadores deístas. Essa, em linhas gerais, a justificação da Metafísica por Kant.
                        A outra justificação mencionada em meu livro de 1993 foi a do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, para quem as descobertas da ciência confirmam que Deus se insere no território do incognoscível. “Nenhuma lógica, nenhuma demonstração real, disse Kierkegaard, dão apoio à fé”[14]. Mas, exatamente por Deus não ser conforme a razão, continua Kierkegaard, a revelação sobre ele pode ser aceita, com base na fé, nos termos em que foi entregue pela tradição. Se nenhuma doutrina a respeito de Deus é superior a outra, não há por que modificarmos a que a tradição nos comunicou.
                        Isso é tão mais verdadeiro quanto reconhecemos à tradição sobre Deus o papel de núcleo de toda a cultura ocidental. Um resto de razão, aquele que antecede a loucura, basta para entendermos que uma cultura, em sua enormidade tanto horizontal quanto vertical, é um objeto quase tão incompreensível para o homem quanto Deus. Isso é especialmente veraz para aquilo que constitui o núcleo das diversas culturas.
                        Se Deus é o núcleo da cultura ocidental e das que derivaram dela, como o DNA é o núcleo da célula, devemos ter tanta confiança em extirpá-lo quanto temos em arrancar o DNA das células do nosso corpo. E, se aceitarmos essa ponderação, como fez Kierkegaard, aceitaremos não só a ideia de Deus, portanto o deísmo, mas também a tradição a respeito dele, portanto o teísmo. 
                        Este o balanço que apresentei dos modos como é possível justificar o papel da Metafísica na Filosofia, após o Iluminismo e a Revolução Científica. Após tê-lo exposto, concluí[15]:

Kant pretendeu um meio-termo entre o ateísmo e o antropomorfismo, julgando fugir assim ao dogmatismo, mas temo que o meio-termo desejável não seja esse, e sim aquele entre o ateísmo e o próprio dogmatismo.

                        Declarei que esse “meio-termo (entre o ateísmo e o dogmatismo) é o antropomorfismo”. A posição assim defendida corresponde à que foi[16]

advogada, com certas variações, por Kierkegaard e seus seguidores, que resgataram o teísmo por inteiro, exceto na sua racionalidade antropomórfica [colocando-o] “num dos únicos lugares absolutamente seguros e inatingíveis pelas farpas da ciência: a irracionalidade. 

                        O trecho acima esclarece que a fundamentação desejável da Metafísica não coincide com o dogmatismo, pois dele se afasta tanto quanto do ateísmo. Isso faz claro que a fundamentação que eu buscava, em 1993, não era dogmática.
                        Por outro lado, o meio-termo entre os extremos do ateísmo e do dogmatismo foi claramente identificado com o teísmo. E, para definir que espécie de filosofia teísta propunha, o texto admite que é impossível referir-se a Deus sem utilizar fórmulas antropomórficas. Assim, ao manter-me distante do ateísmo e do dogmatismo, rejeitei juntamente o deísmo de Kant, por ser antiantropomórfico.
                        Kierkegaard reconhecia os problemas do antropomorfismo das religiões ditas superiores, mas o fazia diferentemente de Kant, que repelia todo e qualquer recurso antropomórfico por não satisfazer as exigências da razão. Kierkegaard, por sua parte, percebia a inconformidade do antropomorfismo à razão, mas o aceitava por considera-lo existencialmente imprescindível para o homem. 
                        O antropomorfismo das representações religiosas é, portanto, o ponto em torno do qual se travam as principais disputas sobre o papel de uma Metafísica que ainda reconhece importância à ideia de Deus. A rejeição categórica do antropomorfismo caracteriza a posição de Kant e seus seguidores. A aceitação justificada dele define a doutrina de Kierkegaard.
                        O problema é que a natureza racional do homem exige que a última posição seja complementada de alguma maneira. É que a conta da desrazão de que Kierkegaard debita tanto, não é infinita. A incompreensibilidade é um argumento plausível e de peso, mas não de valor infinito. Por isso, a invocação da fé para fundamentar a Metafísica na irracionalidade não é totalmente satisfatória para um ser racional. As coisas ficam ainda piores quando consideramos que a Metafísica é parte da Filosofia, na qual vigora o primado da razão, não o da fé.
                        Falta, pois, algo (um complemento) para que a fundamentação de Kierkegaard coloque-se em condições de ser aceita. O complemento que propus, em 1993, foi a demonstração de que as doutrinas antropomórficas mais importantes do Cristianismo não foram refutadas pela ciência.
                        Essa conclusão não se estende a todas as doutrinas antropomórficas, sem distinção. Há mitos que atribuem traços humanos a Deus sem qualquer critério racional claro, ao passo que outras tradições religiosas são mais semelhantes à razão. É o caso particular da doutrina cristã da criação do Universo por Deus. Na primeira parte de Filosofia do direito positivo, esforcei-me para demonstrar que essa doutrina de inegável colorido antropomórfico não foi refutada pela ciência.
                        O método pelo qual conduzi a demonstração foi a crítica da causalidade[17]:

No grande complexo que Miguel Reale chamou ontognoseológico, tanto a natureza objetiva quanto a razão humana que a estuda e nela se inclui se organizam segundo o princípio geral da causalidade. Tudo o que é natural é causal; apenas o sobrenatural pode não ser causal [...] A física quântica, a teoria da relatividade e as descobertas da Filosofia da Ciência no século XX desenvolveram uma percuciente crítica do princípio da causalidade, não o refutando, nem exatamente o atacando, mas demonstrando o seu verdadeiro enquadramento na natureza.

                        O exame crítico da massa de relações causais do Universo é capaz de conduzir a conclusões mais ou menos prováveis sobre a intervenção de Deus nela, se as considerarmos à luz dos avanços científicos mais recentes. Por um lado, esse exame demonstra que “a genial intuição de Charles Darwin, unida a um colossal trabalho de compilação de provas em A origem das espécies” não pode ser negada, nem “o gigantesco e habilidoso labor de seus sucessores propondo teorias, coligindo provas, compulsando toda a literatura, pesquisando exaustivamente em laboratório etc.”[18]. Por outro lado, ele permite concluir que a evolução não se deu às cegas e que a instância superior do real dirigiu o processo evolutivo[19].
                        Esse entendimento da evolução foi proposto, pelo próprio Darwin[20]. Poucas décadas depois, o padre e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin deu-lhe importante desenvolvimento à luz das descobertas de sua ciência e da Genética fundada por Mendel.
                        A posição de Chardin não se confunde com a do design inteligente, pois se baseia na noção de tenteio, que é uma espécie de acaso dirigido. Na Evolução Teísta, a ação de Deus incide sobre o acaso, modificando-o sem o eliminar. E, como Deus não elimina o acaso, a evolução se faz compatível com as idas e vindas, os ziguezagues, os avanços e retrocessos, enfim com o desenho não linear de formação das espécies que a ciência descreve. O design, por sua vez, baseia-se num plano racional contrário ao acaso, que se choca com ele e, por isso, limita o seu papel. 
                        Essas as linhas gerais da crítica da causalidade desenvolvida em Filosofia do direito positivo. Se tivesse de abranger no menor número de palavras o resultado dela, diria que o papel de Deus na evolução reforça as tendências naturais do processo, pois em nenhuma estrela errante está escrito que Deus, se existir e tiver intervindo na evolução, terá feito isso contrariamente às leis naturais criadas por ele próprio. 
                        Desse modo, aproximado ou preciso, não importa tanto, a crítica dos fenômenos pode ser utilizada para evitar que a Metafísica repouse na pura irracionalidade, como Kierkegaard sugeriu que fizesse. A crítica tem o potencial de fornecer, e de fato fornece, um complemento à justificação da Metafísica pelo filósofo dinamarquês, com base na demonstração de que as representações religiosas mais importantes do processo natural, como a criação cristã, não foram refutadas pela ciência.
                        Claro que eu poderia ter ingressado diretamente na discussão dos aspectos morais e religiosos das questões jurídicas, sem desenvolver, como fiz, a crítica da causalidade. Porém, pareceu-me que, se tivesse sido assim elaborada, a discussão pareceria privada de um fundamento racional claro. Por isso, entreguei-me a propor aquele fundamento, pela justificação da Metafísica com base na crítica da causalidade.
                        Tenho consciência de não haver buscado, em meu trabalho de 1993, a realização de projeto distinto do que Michael Sandel sugeriu em Justiça. Há ressaltada coincidência de pontos de vista em Filosofia do direito positivo e na obra de Sandel. O que diferencia o tratamento da imbricação de direito, moral e religião que eu desenvolvi daquele de Sandel é a justificação da Metafísica que propus como base para ela. Vimos que Sandel fez a sua proposta repousar na crítica da teoria liberal. Num plano profundo, porém, apoucadas as distinções comezinhas, as duas obras desenvolvem o mesmo projeto jurídico.
                        A reflexão filosófica que elaborei, em 1993, não tinha o propósito de reafirmar a teoria política liberal. Pelo contrário, afastava-se dela. A combinação da doutrina jurídica com temas morais e religiosos é, por si, uma agenda antiliberal. Perde, portanto, tempo e o fio da meada quem tenta encontrar em minhas obras um viés liberal contrário a minhas intuições originais.
                        Bergson lembrou com razão que, “à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina [...] restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original”[21]. É o caso da proposta de combinação de direito, moral e religião que desenvolvi em 1993, a qual pouco tinha de liberal.
                        Decidi-me a escrever esta série para mostrar que a propensão liberal tampouco se desenvolveu mais tarde, de modo contrário às intuições originais de que parti. É o que penso sobre o desenvolvimento de minha reflexão, ressalvado o melhor juízo que outros tentaram.

O PAPAGAIO ALEX E A LIBERDADE

                        Bergson considerava o ser vivo consciente. Pensava, porém, que ele se tornava inconsciente “ali onde a consciência adormece” e que, “mesmo nas regiões nas quais a consciência dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada, progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os signos exteriores da duração que caracteriza a consciência”[22].
                        Não hauri essa lição de Goffredo Telles Júnior, que foi meu primeiro mestre de Filosofia, tanto quanto a retive de Bergson. Não que Goffredo a negasse, mas ele não chegou a generalizar a respeito da consciência, como o filósofo francês.
                        Tanto um como o outro desenvolveram a Filosofia por um método raro. Bergson e Goffredo realizaram incursões significativas em segmentos das ciências naturais do seu tempo. Tornaram-se, assim, filósofos empíricos.
                        Quando um filósofo abraça o método empírico de trabalho, geralmente o faz com finalidades heurísticas, ou seja, para descobrir algo novo e significativo ou, pelo menos, para aplicar as descobertas de outros a um ou mais problemas filosóficos. Quer, o filósofo, com essas descobertas, banhar uma antiga questão filosófica de luz nova.
                        Porém, dentre os filósofos versados em Filosofia e ciência natural, alguns realizam isso com considerável sucesso, outros, nem tanto. Bergson, por exemplo, defendeu toda uma série de teses filosóficas com base em dados científicos. É o caso da presença da consciência em todo ser vivo (panpsiquismo), da ideia de evolução criadora, que ele defendeu no livro de mesmo nome, e da minuciosa crítica da relatividade encontrada em Duração e simultaneidade [23]. Porém, a tese que ele pretendeu assentar por meio de provas empíricas mais abundantes foi a da existência do espírito, que ele tentou provar em Matéria e memória, mediante o estudo do cérebro e, em particular, de uma disfunção conhecida como afasia. 
                        Embora tenha aplaudido, com entusiasmo, a tese central de Matéria e memória, Goffredo, por sua vez, avançou desse resultado para outro, que apresentou em Direito quântico e na Ética [24]:
                       
         É óbvio que a ordem reina no Universo. Ora, a ordem, no Universo material, há de ser, também, uma disposição conveniente de seres. E essa conveniência (como sucede na ordem ética) há de ser estabelecida em razão de fins prefixados. De fato, se tais fins não existissem, nenhuma referência haveria para estabelecer a conveniência dos meios.

                        O resultado novo a que Goffredo chegou e que ele anunciou, em textos como o acima da Ética , foi o de que o Universo é dotado de uma ordem geral que se impõe por estruturas e comportamentos repetitivos, nos vários níveis da natureza. Se essas estruturas e comportamentos não existissem, os subsistemas cósmicos seriam estanques, não se comunicariam, como se comunicam, e o Universo seria um caos.
                        Em Liberdade e direito, resumi essa tese nos seguintes termos[25]:

         Estruturas estereotipadas [pelas quais os subsistemas cósmicos se comunicam] são, por exemplo, as disposições de seres ao redor de outros seres, que se verificam tanto no nível infraatômico, com [nuvens de] elétrons movimentando-se em torno do núcleo dos átomos, quanto no nível sidéreo, com os planetas gravitando ao redor das estrelas e as galáxias ao redor de outras galáxias. São também estereotipadas as ordenações de elementos químicos em função do carbono e a ocorrência do mesmo maquinário geral nas células dos mais diferentes seres vivos.
            [...] A própria liberdade é vista por Goffredo sob este prisma. Interessante é que, embora diga que a liberdade se manifesta em níveis tão diferentes quanto o infraatômico e o humano, nosso pensador se refere a uma única e só liberdade.

                        Ao debruçar-me sobre a obra de Goffredo, no livro citado, concluí que ele afirmou que a finalidade está presente em tudo, porém a consciência e a liberdade não. Nesse ponto, ele diferencia o seu pensamento do de Bergson. É o que encontramos na seguinte passagem de A folha dobrada [26]:

                     Vejo a mesma lei de finalidade regendo, indiscriminadamente, o movimento dos elétrons nos átomos, e o curso dos sois nos espaços siderais; as reações de afinidade e de repulsa na matéria bruta e o curso da seiva no vegetal; as contrações da ameba numa primeira manifestação da vida e a inspiração do poeta como canto do próprio espírito. É sempre a mesma lei decretando a ordem em todos os domínios. Por que não havemos de acreditar que essa é a lei da ordem universal?

                        Porém[27],

embora reconheça a universalidade do princípio da finalidade, Goffredo não chega a afirmar a universalidade da liberdade, nem no Direito quântico, nem na Ética, nem n’A folha dobrada. Pelo contrário, a liberdade é restrita pelo nosso escritor a determinados níveis ou movimentos específicos na natureza, assim como o movimento dos corpúsculos quânticos e os processos fisiológicos no interior da célula viva. [Para Goffredo] somente estes movimentos seriam livres.

                        O objetivo central de Liberdade e direito é mostrar que a generalização a que a obra de Goffredo tende, mas não realiza (a generalização da consciência e da liberdade), pode ser realizada com segurança. A liberdade pode ser pensada como uma faculdade de autodeterminação teleológica, que se desenvolve onde haja teleologia. E Goffredo afirma, em alto e bom som, que a teleologia está presente em toda parte[28]:

A liberdade sempre foi considerada uma exceção no concerto cósmico [...] Porém, ela deve ser considerada a regra. Todos os seres moventes são livres, porque todos se comportam teleologicamente. Não há movimento, senão teleológico. Do mesmo modo, não há movimento, a não ser livre.

                        Como defender essa tese, a que cheguei com base nos dados empíricos apresentados em Liberdade e direito, contra o argumento de que a pedra se move, ao ser arremessada, mas nem por isso é livre? O que quis afirmar, naquele livro, foi exatamente a distinção entre mover-se e ser movido. Não postulei e jamais pensei que o que é movido, a exemplo da pedra arremessada, é livre, mas que tudo o que se move ou que tem em si a causa de seu movimento é livre.
                        Como adotei o método reflexivo de Goffredo e Bergson, esforcei-me para coligir e citar dados científicos que demonstrassem que o que se move o faz teleologicamente, portanto com consciência dos fins a alcançar. Reuni, pois, a conclusão de Goffredo sobre a finalidade à de Bergson a propósito da consciência, a fim de extrair a minha própria noção de liberdade.
                        Não retornarei, aqui, às evidências apresentadas naquela obra. Limitar-me-ei a citar  pesquisas posteriores a ela que confirmam a tese de que a liberdade encontra-se em toda a natureza.
                        Começarei pelas descobertas do cientista Daniel Chamovitz, que publicou um artigo no qual demonstra que os vegetais são capazes de cheirar e ter outras sensações típicas do que denominamos conhecimento. De acordo com ele[29],

se colocarmos uma fruta madura e outra verde no mesmo saco, a verde amadurecerá mais rápido [do que o faria fora do saco]. Isso se dá porque a madura libera um feromônio responsável pelo amadurecimento. A fruta verde cheira-o e então amadurece. Esse fenômeno acontece tanto nas nossas cozinhas quanto na natureza. Outro exemplo de planta que cheira é o dos parasitas que não realizam fotossíntese e dependem de outras plantas. Esses parasitas encontram seus hospedeiros pelo cheiro.

                        A consciência dos animais também foi demonstrada por Irene Pepperberg, professora de cognição animal em Harvard cujas pesquisas com o seu papagaio Alex[30] tornaram-se célebres. Alex aprendeu não só a repetir palavras, como os papagaios em geral fazem, mas a usá-las por iniciativa própria, isto é, conscientemente. Aprendeu, por exemplo, a construir frases com mais de 100 palavras em inglês.
                        Em 2013, o neurocientista americano Christoph Koch também publicou um artigo, que expande a nossa compreensão da consciência. Koch relata sua experiência de convivência com o Dalai Lama e as pesquisas que realizou sobre o que Sua Santidade lhe disse[31]:

Este ano, notei como ele [o Dalai Lama] falava frequentemente da necessidade de reduzirmos o sofrimento de todos os seres vivos e não apenas de todas as pessoas. Minhas leituras de filosofia levaram-me ao panpsiquismo, visão segundo a qual a mente (psyche) está presente em tudo (pan). O panpsiquismo é uma das mais antigas doutrinas filosóficas. Foi lançado pelos gregos, na época clássica, em particular por Tales de Mileto e Platão. O filósofo Baruc Spinoza e o gênio matemático e universal Gottfried Wilhelm Leibniz, que lançou as bases do Iluminismo, defenderam o panpsiquismo tanto quanto Arthur Schopenhauer, o pai da Psicologia Americana William James e o paleontólogo jesuíta Teilhard de Chardin.

                        Koch citou os principais argumentos que os adversários do panpsiquismo costumam levantar contra ele[32]:

            Um é o problema dos agregados. O filósofo John Searle, da Universidade da Califórnia, Berkeley, o expressou da seguinte maneira recentemente: “A consciência não se pode espalhar no universo como uma fina camada de geleia. Tem de existir um ponto em que a minha consciência termina e a sua começa”. De fato, se a consciência está em toda parte, por que ela não anima o iPhone, a Internet ou os Estados Unidos da América? Além disso, o panpsiquismo não explica por que um cérebro, que é consciente, quando posto no liquidificador e reduzido a pasta, deixa de o ser.

                        Koch refuta essas objeções com relativa facilidade, mediante as pesquisas de outro neurocientista, Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin Madison, que mostrou que

num cérebro em que alguns neurônios estão em atividade e outros inertes, é possível computar com precisão a extensão da rede formada por eles. Desse cálculo, a teoria [de Tononi] deriva um número &PHgr (pronunciado fi) [...]  Pense em fi como a sinergia do sistema. Quanto mais integrado um sistema, mais sinergia tem e mais consciente é.

                          Koch propõe uma abrangência menor para a consciência e a liberdade do que sugeri em Liberdade e direito. Porém, o fundamental em sua obra é ter demonstrado que esses fenômenos são muito mais disseminados do que, durante séculos, a ciência e a Filosofia admitiram e nos levaram a admitir. Por ciência e Filosofia, entenda-se aqui o mainstream dessas disciplinas.
                        Se ancorarmos a liberdade no conceito de consciência baseado em fi, como Koch pretende, teremos um grau de extensão muito grande para os dois fenômenos, porém não a ponto de abranger todo movimento. Por outro lado, se a fizermos depender mais da finalidade que da consciência, como sugeri em meu livro, os fenômenos terão alcance maior. Vejamos como essa última possibilidade pode ser discutida e, quiçá, defendida.
                        Além do senso comum, o óbice principal à concepção alargada de fim que Aristóteles e Goffredo defenderam é a filosofia kantiana, que entende a finalidade como um conceito subjetivo, pelo qual o entendimento se refere ao mundo. Como conceito, a finalidade é desprovida de realidade. Nada há, no mundo, que corresponda a ela. A consequência radical desse pressuposto (a finalidade) outro pressuposto (a liberdade). Assim, na doutrina de Kant, o movimento de um animal é considerado livre com base em pressupostos nunca comprovados.
                        Neste ponto, é importante lembrar que filósofos com propensão matemática, como Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, propuseram uma arguta refutação da concepção de conhecimento de Kant e dos neokantianos. A refutação baseia-se na crítica dos conceitos kantianos de espaço e de tempo. Russell expôs o seu pensamento sobre essas formas da sensibilidade nos seguintes termos[33]:

Muitas vezes [os kantianos] dizem que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal

                        Russell desconfia profundamente da tese kantiana de que o espaço e o tempo são subjetivos. Para ele, essas formas da sensibilidade, como Kant as denominou, ou categorias, como as chamou Aristóteles, correspondem a estruturas reais do mundo. É fundamental sublinhar que a correspondência não se dá em pontos acessórios ou secundários, mas na estrutura, que é a mesma no conceito e no mundo.
                        Russell explicou a correspondência entre o objeto e a percepção em linguagem matemática[34]:

Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisa que é obscuramente significada pela palavra estrutura.
  
                        Nessa obra, Russell demonstra sua confiança na superioridade da linguagem matemática em relação à comum, cujas descrições da percepção sensorial ele classifica como obscuras. Se as teorias do conhecimento derivadas de Kant puderem ser refutadas do modo proposto por ele, a finalidade e os outros conceitos por meio dos quais pensamos o mundo deverão corresponder a dados estruturais dele.
                        Em outras palavras, se Russell estiver certo, a finalidade não será um conceito criado arbitrariamente pelo entendimento: um pressuposto que um hábito inveterado faz repousar noutro pressuposto. Será, ao mesmo tempo, um dado do mundo real. E, se um dado real, ou negaremos que os fins sejam determinados pelos seres que se movem ou restará considera-los livres.
                        Um experimento físico ajuda a entender que o comportamento das micropartículas observa esse padrão muito proximamente. Uma fonte emite um feixe de luz, que se divide ao incidir num espelho semiprateado M1. Da divisão resultam dois feixes que são, a seguir, refletidos por espelhos comuns A e B e se reencontram num ponto P, em que está posicionado outro espelho semiprateado M2. O experimento demonstra que o cruzamento dos raios luminosos em P, após a reflexão nos espelhos comuns, produz uma interferência. Amit Goswami explica[35]

As duas ondas criadas pelo feixe que se divide em M1 são [...] forçadas por M2 a interferir construtivamente em um dos lados de P (onde, se colocarmos um contador de fótons, o contador produz uma série de cliques) e, destrutivamente, no outro lado (onde o contador nenhum clique produz). Note que [...] temos que concordar que cada fóton se divide em Me viaja pelas rotas A e B. Não fosse assim, de que maneira poderia haver interferência?

                        Esses fatos indicam que os fótons que já ultrapassaram P, quando o espelho M2 é posicionado, comportam-se coordenadamente com as partículas situadas no espelho. Assim, o conjunto formados pelos fótons no espelho e além dele adotam o mesmo padrão de comportamento, independentemente da posição em que estão. 
                        O ponto do experimento que importa à nossa discussão é que a coordenação entre os fótons situados no espelho e além é instantânea. Tão-logo M2 é posicionado, as partículas entram em coordenação. Não há necessidade de tempo para que isso aconteça, o que indica que os fótons não trocam sinais convencionais. 
                        A conclusão de que os fótons não trocam sinais baseia-se na premissa estabelecida por Einstein de que qualquer sinal leva tempo para viajar no espaço. Como a interação envolve emissão de sinais, que levam tempo para se deslocar, é forçoso concluir que a interação dos fótons do experimento ocorre instantaneamente. Em suma, o experimento demonstra que o comportamento de micropartículas não é determinado por qualquer espécie de interação com objetos externos, mas apenas por elas próprias. Exatamente o que o princípio da finalidade afirma. 
                        A evidência fornecida por esse experimento não tem o apelo imediato de fatos como os que se referem à consciência das plantas e às proezas do papagaio Alex, mas é a mais significativa devido à abrangência. Se tudo é feito de micropartículas como os fótons, e a causa do movimento delas é tão radicalmente interna, proveniente delas e de nenhuma outra parte, não é razoável considera-lo um indício de que o alcance do pansiquismo é maior, muito maior do que os próprios reinos animal e vegetal?
                       O resultado do experimento dos fótons converge, espantosamente, com antigas especulações da Metafísica Cristã. Ao longo da História, a Igreja incorporou à sua doutrina uma metafísica na qual a finalidade tem lugar de destaque. Na Encíclica Laudato si, publicada recentemente, o Papa Francisco declarou que “o Criador [...] está presente no íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar à legítima autonomia das realidades terrenas"[36].
                        A declaração, para mim espantosa, está inserida no capítulo do texto papal dedicado à teologia da criação, o que torna claro o alcance universal da "autonomia das realidades terrenas" a que ele se refere. Minha concepção da liberdade não se afasta, antes converge, nesse ponto particular, com a visão católica do mundo.
                        Isso mostra que o perguntar e responder filosófico sobre a liberdade não nos remete somente à questão sobre a natureza. Por ele somos introduzidos também na questão sobre a estrutura fundamental do mundo. O conhecimento daquela estrutura não nos permite só saciar uma curiosidade. Torna, ao mesmo tempo, possível o discurso e a linguagem, cujas categorias fundamentais aludem a ela. No fundo, a indagação sobre a estrutura da natureza é a própria pergunta sobre a possibilidade da linguagem e, por ela, da convivência humana. Sem o patrimônio comum das categorias e outros conceitos fundamentais, não seríamos capazes de nos comunicar e viver em sociedade. Seríamos ainda humanos?

A HIPÓTESE DE DARWIN

                        A Teoria da Evolução sempre constituiu uma preocupação superior, um motivo de máxima atenção para mim. Em 2008, após quase três décadas de reflexão sobre o tema, publiquei A hipótese de Darwin, onde expus as principais cogitações e os resultados centrais de minha perquirição sobre o tema. Lembro-me de, na Introdução àquela obra, ter-me referido a interpretação de Gilles Lipovetsky, segundo o qual os acontecimentos revolucionários do século XX levaram “a modernidade aos seus mais extremos limites”[37].
                        Com essa afirmação, quis mostrar que as transformações do último século não se puseram em colisão com o espírito da Modernidade, mas levaram as aspirações dela às últimas consequências. Nas palavras do meu livro de 2008[38]:

De fato, se alguma mudança radical ocorreu na maneira de os homens verem o mundo e construírem o seu destino nos últimos séculos, ela se localizou na passagem à modernidade, não no advento de uma pósmodernidade. A modernidade é uma tentativa de construção de sociedades voltadas à afirmação do indivíduo, em relativa harmonia com forças externas ao mundo dos homens (forças divinas), não um projeto antirreligioso ou uma experiência de desencantamento.
O projeto dessa construção nunca foi executado por meio de uma ruptura total com a tradição das épocas anteriores. Pelo contrário, o quilate revolucionário do movimento moderno deve ser aferido pelo grau de composição entre o individualismo atual e os valores herdados do passado. A modernidade, no fundo, é uma combinação, uma composição desses dois elementos, o seu caráter revolucionário sendo medido pela maior ou menor concentração das práticas novas em relação às antigas. 
            [...] Esse tipo de irrupção do antigo no novo é uma característica inalienável do movimento histórico, que não posso deixar de apontar novamente, ao lembrar uma lição que pode parecer óbvia, mas nem sempre é respeitada pelos autores modernos: aquela segundo a qual a atualidade não é feita pela superação total do passado. Pelo contrário, o desafio específico de cada época é inserir os fios das novidades históricas no tecido que a sua geração recebe dos antepassados. Não é diferente na época em que vivemos.
            Quer-me parecer que a existência e a intervenção de Deus no mundo constitui a ideia mais fundamental, dentre todas as que a modernidade herdou do passado. Ao realizar o balanço das transformações em marcha na época atual, devemos principiar pela observação de que, assim como a idéia de Deus não foi rejeitada na fase inicial da modernidade, ela não precisa ser rejeitada na fase atual de desenvolvimento avançado dos ideais modernos. É o que pretendo mostrar neste livro.
            Se a Idade Moderna se caracteriza pela afirmação do indivíduo humano, a inalienável importância cultural de Deus impõe a necessidade de uma harmonização do individualismo moderno e contemporâneo com elementos das mundivisões transcendentes recebidas do passado. O indivíduo humano deve ser protegido absolutamente, porém não se deve perder de vista que essa proteção se baseia, também, em valores religiosos tradicionais.
               Por menor que possa parecer a influência do deísmo ou do teísmo nos meios universitários de hoje, o entretecimento deles com o individualismo moderno é constantemente tramado em todas as outras instâncias culturais. Numa tomada de visão bem ampla, a cultura hipermoderna é teísta. Tão teísta que a generalização das combinações de ideias teológicas com criações culturais modernas torna enigmática a resistência a intervenções sobrenaturais adotada nos meios universitários. Por que razões um único setor da cultura haveria de se opor ao fundamento das construções em marcha em todos os outros setores? A pergunta não tem resposta óbvia.

                        O fundamental e o característico tanto da Modernidade quanto da Pós-Modernidade é a superação e confirmação simultâneas de ideias religiosas, não a simples eliminação delas. Se por um lado questiona e elimina um número de ideias religiosas, por outro a Modernidade confirma doutrinas religiosas fundamentais. Esse é o método específico pelo qual a Modernidade se constroi.
                        Nos nossos tempos, vemos instituições e ideais tão antigos quanto a família, a religião, a autoridade paterna, e valores como a benevolência e a feminidade serem transformados de mil maneiras, sem jamais deixarem de existir e de se revigorar. Somos autorizados por esses fatos a propor a abolição de ideias tradicionais como Deus? Não me parece que seja o caso.
                        É possível citar fatos do nosso tempo, que exemplificam a hibridação de elementos antigos e atuais na contemporaneidade. Um deles é a influência da religião na política norteamericana. Outro é a pressão exercida pelo movimento criacionista, que se desenvolveu nos Estados Unidos, onde também assumiu formas novas, como o design inteligente. Nomes como os de Henri Morris, Duane Gish e Michael Behe estão associados às principais etapas desse movimento. No Brasil, figuras como os ex-Governadores Anthony e Rosinha Garotinho e a ex-Ministra e candidata presidencial Marina Silva professaram adesão ao movimento; na Holanda, há poucos anos, a Ministra Maria van der Hoeven defendeu o ensino do design nas escolas. Enfim, o movimento está em ascensão, no mundo todo. Entre os muçulmanos, há um grande grupo antievolucionista liderado por Adnam Otkar. A Torah Science Foundation judaica tem a mesma finalidade. Trata-se de um estado de espírito extremamente relevante, que cresceu a partir do epicentro das sociedades desenvolvidas e se espalhou por todo o mundo civilizado.
                        A esquerda rançosa insiste em empacotar isso e o mais que não compreende ou de que discorda num só volume ao qual não hesita em assentar o rótulo conveniente de conservadorismo. Pode de fato existir algo nefasto nesse conservadorismo.
                        Quero esclarecer que me identifico com muitas ideias denominadas progressistas. Na verdade, identifico-me com tantas delas e tenho tal anelo pelo triunfo de concepções progressistas do mundo que escrevo para encontrar um caminho que permita transformar o hiperurânio cosmo progressista num mundo factível e histórico.
                        Nesse ponto é que a ideia de conservação se imiscui. Se for despojada do ranço contrário à “revolução permanente” da esquerda, que acaba no giro de 360 graus, a ideia de conservação, em vez de impedir, poderá ser útil à implantação de uma revolução cultural orientada por ideias progressistas, uma vez que está animada de algo essencial à viabilidade de qualquer transformação histórica.
                        A incapacidade de dialogar com o passado na intensidade exigida pelo processo histórico inviabiliza qualquer revolução. Nietzsche anunciou a falência, o estado de putrefação do fundamento teológico-metafísico da cultura ocidental por meio de uma expressão morte de Deus[39], que se fez abjeta a muitas pessoas.
                        Creio não me equivocar quando considero que Deus, na filosofia da morte de Deus, não é apenas um ser real ou hipotético, mas o amplo fundamento filosófico e teológico de toda a cultura ocidental. Deus é a base das crenças, valores e do próprio funcionamento das instituições cristãs e seculares ocidentais. Nietzsche anunciou o esgotamento definitivo do modelo civilizatório calcado nessa ampla base filosófica e teológica.
                        O que me levou a investigar em profundidade a Teoria da Evolução foi a percepção de que o dogma da criação especial encontra-se no cerne da base filosófico-teológica da cultura ocidental abalada pelo movimento da morte de Deus. Do ponto de vista filosófico, a novidade máxima da visão monoteísta do mundo não é o Deus supremo. É a criação do mundo por Deus, vale dizer, não um processo criador qualquer, mas um especial, vale dizer, um ato originador intencional e movido por um poder que não conhece limites.
                        Embora a revolta contra Deus (quero dizer contra o mundo erguido sobre essa palavra) não tenha cessado de se desenvolver durante séculos, enquanto a ideia da criação especial não foi abalada, nas décadas que se seguiram à publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, a concepção teológico-metafísica à base do mundo ocidental manteve a sua hegemonia. A obra de Darwin deu os motivos para que o terremoto final se desencadeasse.
                        Curioso é que o terremoto ocorreu contra a vontade do autor da teoria que o desencadeou. Darwin nunca propôs a remoção total da ideia de criação especial herdada da tradição judaicocristã. Ele não via “qualquer bom motivo para os pontos de vista apresentados neste volume [A origem das espécies] chocarem os sentimentos religiosos de alguém”[40]. Mais do que isso, Darwin pode ser apontado como precursor da doutrina da Evolução Teísta, ao propor que a primeira ou as primeiras formas de vida foram criadas por Deus, tendo a evolução se desenvolvido a partir daí.
            No século de Laplace, Darwin não encontrou fundamento científico para afirmar que a matéria viva se autoorganizou a partir da matéria inanimada. Ao contrário de Laplace que, indagado por Napoleão onde ficava Deus em seu sistema, respondeu "Não preciso dessa hipótese", Darwin sempre demonstrou precisar da hipótese teísta. Ele até mesmo a inseriu na Teoria da Evolução. Não se pode negar que A origem das espécies admite que a evolução se seguiu a um ato ou a uns poucos atos de criação especial de formas de vida por Deus. Nas palavras do próprio Darwin[41]:

Há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir.

            Em outra passagem de sua mais famosa obra, Darwin defendeu os pontos de vista dos homens de ciência que admitiam a criação especial de uma ou de umas poucas formas de vida, opondo-os às ideias dos cientistas que defendiam a criação especial de todas as espécies. Ao expor o embate entre esses dois grupos de cientistas, Darwin especificou o que pretendia dizer com as poucas formas de vida, a partir das quais a evolução teria ocorrido. Mostrou que alguns cientistas afirmavam a criação especial de quase todas as espécies sem responder uma série de indagações fundamentais como[42]:

A cada ato de criação foi produzido um único ou muitos indivíduos? O número infinito de tipos de animais e de plantas que já existiram foi criado em forma de ovos e sementes ou em forma adulta? Os mamíferos foram criados com as marcas enganosas da amamentação materna? Sem dúvida, algumas dessas perguntas não podem ser respondidas pelos que acreditam no aparecimento ou criação de umas poucas ou de uma única forma de vida. Alguns autores sustentam que é tão fácil crer na criação de um milhão como de um único ser. Mas o axioma filosófico da menor ação, enunciado por Maupércio convida à adesão à última tese.

            Por isso o mestre da demonstração científica concluiu[43]:

Não posso colocar em dúvida que a teoria da descendência com modificação compreende todos os membros de uma mesma grande classe ou reino. Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior.

                        Esse texto sugere que as quatro ou cinco formas primígenas de animais foram criadas por Deus, assim como poucas outras formas de plantas. Essa parece ter sido a posição pessoal de Darwin sobre a origem dos ancestrais remotos dos seres vivos. Não há grande divergência, se existir alguma, entre a posição que defendo sobre a evolução e a que Darwin expôs em sua clássica obra.
                        Não foi sem razão que Darwin exigiu para si o título de teísta: “Quando medito dessa maneira, sinto-me atraído a observar a Primeira Causa como tendo uma mente inteligente em algum grau análoga a essa dos homens; e mereço ser chamado Teísta”[44].
                        Embora aceitasse a designação de agnóstico recém cunhada por Thomas Huxley[45], Darwin considerava esse termo em sentido diferente do que ele assumiu mais tarde. Tomava-o, com toda probabilidade, num sentido compatível com a admissão de algum grau de intervenção divina na história natural. No mínimo, podemos admitir que o agnosticismo de Darwin era especial o bastante para comportar alguns atos de intervenção transcendente.
                        Quanta diferença em relação ao pensamento pandirecional que alguns denominam pós-moderno! Darwin move-se em quatro ou até em oito direções. É o que um ser humano pode fazer sem se perder: mover-se para o norte, para o sul, para o leste, para o oeste ou ainda para o nordeste, o sudeste, o sudoeste ou o noroeste, com ajuda de uma boa bússola.
                        A renúncia a mover-se em todas as direções é fundamental para o homem. Infelizmente, os pós-modernos, pós-capitalistas, pós-teológicos, pós-jurídicos, enfim os pós-tudo querem revolucionar tudo ao mesmo tempo, o que implica mover-se em todas as direções: terminam por descrever o giro de 360 graus que caracteriza o seu pensamento.
                        Lembro essas coisas com o objetivo de tornar nítidas as linhas mestras da propedêutica filosófica em que tenho balizado o meu pensamento. Não tenho a intenção de provar qualquer coisa sobre criação ou evolução, Deus ou o ateísmo, em espaço tão mínimo quanto o deste artigo. Publiquei A hipótese de Darwin e outros livros exatamente para fornecer tal demonstração, nos limites da minha capacidade.
                        A demonstração parte da hipótese da criação afirmada por Darwin ao desenvolver cientificamente a Teoria da Evolução. Não só parte como é a demonstração daquela hipótese. Deixa claro, com isso, que Darwin é, ao mesmo tempo, patrono da criação e da evolução ou, como Teilhard de Chardin ensinou, da Evolução Teísta.
                        É preciso não recebermos o preço da pós-modernidade em notas de três dólares. Pós-modernidade nunca foi, não é e não poderá ser, no futuro, um mundo sem Deus ou sem Teologia. Por isso é melhor receber o preço da pós-modernidade em notas de um dólar. Dará trabalho conta-las, mas a opção envolve vantagem tão fundamental que não é necessário alardeá-la.

A GRANDE ALIANÇA

                        A unidade da História da Filosofia recebe forte testemunho do fato de que os filósofos, geralmente, definem o conteúdo do seu pensamento por identificação, ao mesmo tempo, com escolas da Antiguidade e da atualidade. Não é usual pensadores identificarem-se só com escolas antigas ou só com recentes, talvez porque têm a intuição comum da continuidade que há entre elas. 
                        Mas, para essa continuidade ser verdadeira e não ilusória, é preciso mostrar, um pouco melhor, em que consiste a unidade de escolas filosóficos cujo entrechoque na História é evidente. Penso que essa unidade é, antes de tudo, explicada pelo fato de as correntes de pensamento e seus representantes agruparem-se em dois campos principais, com base na afinidade entre eles.
                        Embora se afastem reciprocamente em tantos assuntos, as escolas também têm pontos de contato, em razão dos quais se aproximam. Ao se aproximarem, elas dão origem tanto a concepções de mundo quanto a famílias de concepções ou metavisões filosóficas. As metavisões principais da História da Filosofia são a materialista e a metafísica.
                        Por razões culturais, os primeiros filósofos, conhecidos como pré-socráticos, foram materialistas. Coube a Platão e Aristóteles desafiar o materialismo em que a cultura grega se movia, ao promoverem a primeira reação vigorosa às mundivisões pré-socráticas. E o método pelo qual eles levaram a cabo essa reação foi o da Metafísica. Fica, assim, claro que a oposição entre essas duas metavisões data dos próprios primórdios da Filosofia.
                        Curioso é que a oposição não desapareceu com a morte de Platão e Aristóteles. Prosseguiu, ao contrário, ao menos até a difusão do Cristianismo no mundo romano se completar. Porém, no período de Aristóteles ao Cristianismo, a metavisão dominante entre os filósofos continuou a ser o materialismo. E, em que pese o sucesso do Cristianismo ter feito as doutrinas materialistas recuarem, da Idade Média ao início da Modernidade, do século XVIII em diante, observamos o retorno vigoroso da metavisão mais antiga, tanto no campo da ciência quanto no da Filosofia.
                        O agrupamento das doutrinas filosóficas a que me refiro, num território materialista e outro metafísico, é extremamente nítido, do século VI a. C. ao V d. C. Por causa dele, tão tarde quanto no século IV, a trajetória de Santo Agostinho do academicismo ao maniqueísmo e deste ao neoplatonismo, até fixar-se no pensamento patrístico, só se compreende à luz da atração que o materialismo exerceu sobre aquele pensador cristão. E tão nítida quanto a oposição entre materialismo e metafísica, nos dez primeiros séculos, continua a ser a que se restabeleceu na Filosofia, a partir do século XVIII.
                        Mas, se o agrupamento das doutrinas, por treze séculos, deus e com base na polarização, em que outro período de treze séculos, a visão metafísica reinou de modo tão inconteste. Do início do século V ao início do XVIII, os espíritos continuaram a divergir no que tange às visões de mundo, no entanto observamos forte convergência no tocante às metavisões. Nesse período, onde quer que a Filosofia tenha sido cultivada, os filósofos se apresentaram como metafísicos. E, até em terras onde o Cristianismo não prevaleceu, como entre judeus e muçulmanos, a Metafísica não deixou de constituir o fundamento de toda a reflexão filosófica. 
                        Não precisamos olhar para esse período intermediário, em que a tensão entre Metafísica e materialismo se dissipou, como se um houvesse suprimido o outro. É preferível afirmar que, ao longo da Idade Média, o materialismo tornou-se prático, que ele se refugiou na aplicação das artes do Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). De fato, por serem vistos como artes e terem fins práticos, esses conhecimentos permaneceram autônomos em relação à Filosofia governada pela Metafísica. Serviram para orientar o trato do homem medieval com a matéria e mostrar que, ao contrário do que se tornou habitual afirmar hoje em dia, ele não apequenou a dimensão material ao ampliar a espiritual.
                        Numa metade da História da Filosofia, portanto, as escolas se agrupam, nitidamente, nos territórios materialista e metafísico. Na outra metade, a Metafísica parece suprimir o materialismo, não sem que ele continue a constituir, de certa maneira, a face oculta dela. De sorte que, opostos ou conjugados, ocultos ou manifestos, os dois constituem as metavisões principais, vale dizer, as visões de visões de mundo filosóficas. Por isso também, ao transitarmos entre as doutrinas filosóficas, só enxergamos as cores da paisagem na medida em que mantemos consciência dos espectros materialista e metafísico que a dominam.
                        A História da Filosofia não pode ser bem compreendida, sem essa consciência. Tampouco a Filosofia pode ser posta em prática sem ela. Contudo, as metavisões também são visões do mundo. Remetem-nos e devem-nos remeter ao que é como algo real. Filosofar é refletir sobre o mundo como ele é. Daí a necessidade de perguntarmos o que a realidade de fato é e, no caso da Filosofia do Direito, o que a realidade social é.
                        Não pode ser considerado absurdo a Filosofia do Direito construir-se sobre uma reflexão a respeito da sociedade. Pelo contrário, é imperativo que seja assim. Todavia, no plano da visão social, sentimos a necessidade de utilizar categorias de análise diferentes das que usamos para pensar a natureza. Mas que categorias devemos utilizar e na análise de quais dados havemos de emprega-las?
                        Essas questões podem ser examinadas, com particular proveito, à luz das estatísticas divulgadas por Thomas Piketty no seu livro de 2013 intitulado O capital no século XXI. A obra se abre com a feliz asserção de que, “para trazer à tona a questão distributiva, é preciso começar reunindo a base de dados históricos mais completa possível”[46].
                        A obra de Piketty tem sido aclamada por fazer exatamente isso. Por reunir, pela primeira vez, dados suficientes para uma análise ampla da desigualdade, nos últimos 200 anos. Esses dados permitiram a Piketty tentar uma reavaliação tão ampla do capital, no século XXI, que houve quem a comparasse à de O capital, de Karl Marx. É como se o autor francês tivesse fornecido uma atualização completa do balanço do capitalismo proposto por Marx no século XIX.
                        O próprio Piketty refere-se a Marx como um marco da análise do capital. Não poderia ser de outro modo. Mas surpreende que, ao tratar de um tema cuja análise Marx esgotou na sua época, Piketty cometa deslizes conceituais sérios sobre o economista alemão. É o que ocorre na página 223 da edição brasileira da sua obra, em que ele se refere ao conceito de taxa de lucro, em Marx, como sinônimo de taxa de rendimento do capital[47], sinonímia negada, na página 58, quando Piketty declara que a taxa de remuneração[48]

mensura aquilo que ele [o capital] rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, alugueis, dividendos, juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Tratase, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de taxa de lucro.

                        Se a taxa de remuneração é o que o capital rende (“mensura aquilo que ele rende”), convenhamos que não pode deixar de ser a taxa de rendimento do capital, aludida na página 223 como sinônimo de taxa de lucro. O problema é que, na página 58, Piketty sustenta que a taxa de rendimento ou de remuneração é um conceito mais amplo que a taxa de lucro, o que implica confusão conceitual.
                        Esses não são os únicos trechos em que Piketty tropeça, ao utilizar conceitos de Marx. Ele se refere à “taxa de exploração, que mede para Marx a parcela da produção de que o capitalista se apropria”[49]. Ocorre que, em Marx, a taxa de exploração não é isso. Ela é-um sinônimo da taxa de mais-valia ou razão entre a mais-valia e o capital variável (parte do capital despendida em salários). Em outras palavras, ao se referir ao conceito marxiano de taxa de exploração, Piketty põe corretamente a mais-valia no numerador da fração, mas erra ao inserir a produção no denominador.
                        É difícil entender como, de uma apropriação equivocada de conceitos de Marx, possa resultar a análise superior do capital que tantos encontram na obra de Piketty. Principalmente, se a teorização de Marx a respeito do tema for, de algum modo, vital para a teoria econômica. Por isso, é desde logo duvidoso e suspeito que Piketty tenha superado, realmente, Marx.
                        O que o economista francês demonstra, em seu livro, é a persistência histórica de um tipo de desigualdade que podemos denominar proporcional. A condição da classe trabalhadora não é retratada, diretamente, na grande maioria dos dados do livro que exprimem aquela desigualdade. Até porque os dados mostram uma desigualdade sempre brutal, ao passo que a condição dos trabalhadores, nos países capitalistas centrais, melhorou a olhos vistos, nas últimas décadas. Isso leva a concluir, desde logo, que a desigualdade retratada pela maior parte dos dados da obra de Piketty, aquela a que ele se refere e denuncia o tempo todo, é uma desigualdade proporcional, que não exclui o bem-estar simultâneo de todas as classes.
                        Além disso, em muitos trechos de sua obra, Piketty afirma que a única desigualdade reduzida foi a das classes inferiores em relação à classe média. No entanto, na página 219 da sua obra, surge a informação surpreendente de que houve “queda da participação do capital” na renda nacional “de 3540% nos anos 18001810 para 2530% nos anos 20002010, assim como alta correspondente da participação do trabalho, de 6065% para 7075%”. Esse dado mostra que a desigualdade se reduziu também na comparação das classes inferiores com as superiores.
                        A redução da desigualdade em benefício dos desfavorecidos é a variedade mais importante desse fenômeno, posto que inverte a tendência de empobrecimento da classe média, que Marx considerou uma consequência irreversível da Revolução Industrial. De fato, para Marx, a mecanização da produção ocorrida no século XIX levaria, inevitavelmente, à redução da participação dos salários na renda e ao caos social.
                        Essa previsão alarmante é refutada pelos dados de Piketty, que mostram que o contrário se deu, entre o início da Revolução Industrial e o presente. Os dados só não explicam, muito claramente, por que algo tão surpreendente teve lugar.
                        Digo que não o explicam porque, como já informei, para Piketty, a redução da desigualdade, entre 1914 e 1945, verificou-se apenas entre as classes inferiores e média. Se uma diminuição de maior alcance se deu em período mais longo (1810 a 2010), os mecanismos que a produziram devem ter sido distintos dos que promoveram a igualdade na primeira metade do século passado. Do contrário, a redução de maior alcance teria beneficiado apenas a classe média, como ocorreu com a outra, o que não ocorreu. Retornarei a esse assunto na última parte deste trabalho. 
                        Marx pode (a meu ver deve) ser considerado o maior materialista da História, por haver clara e extensamente revolucionado a metavisão pré-socrática. Porém, é irônico que ele não o fez aumentando, mas diminuindo o alcance do materialismo ao ponto de torná-lo um método de interpretação da História e não do Universo inteiro. Principalmente os escritos de maturidade de Marx mostram que o seu método permite entender os modos de produção da História e as sociedades que ajudaram a plasmar. Porém, ao abordar o capitalismo, Marx alimentou o seu método com premissas equivocadas. Supôs, por exemplo, que, na etapa industrial, esse modo de produção levaria à acumulação cada vez maior do capital e à participação cada vez menor dos salários na renda. Os dados que Piketty divulgou em seu livro provam que o contrário disso ocorreu. 
                        Mesmo assim, não podemos julgar o método de Marx com base em informações que ele não possuía e que só recentemente foram produzidas. E, se considerarmos que o capitalismo pode produzir os resultados que Marx previu tanto quanto outros contrários, chegaremos a conclusões totalmente novas pelo método do materialismo histórico. Essas conclusões não incluirão mais o colapso necessário do regime e sim a possibilidade de ele continuar a existir por tempo indeterminado.
                        O embate de concepções materialistas e metafísicas marca o cenário geral da História da Filosofia. Entre os materialismos, nenhum alcançou o valor em realizações do de Marx. Talvez por isso, ele reúna as condições necessárias para compor a síntese possível das duas grandes orientações filosóficas. Talvez ele mereça tornar-se uma das sete artes de um novo tempo, em que a oposição de Metafísica e materialismo, espírito e matéria, dará lugar à acomodação recíproca deles. A julgar pela exaltação dos espíritos, a aliança das metavisões é improvável. Contudo, isso torna a sua perspectiva tanto maior.
                        De todo modo, afirmar uma metafísica nunca será o mesmo que resolver os problemas centrais da Filosofia. Do mesmo modo, estabelecer um materialismo nunca o será. Precisamos de uma síntese superior das metavisões. Síntese que eu chamaria grande aliança.
                        Mas uma síntese de opostos não conserva a unidade e, por aí, não se viabiliza, enquanto não define um deles como dominante. Materialismo e metafísica, matéria e espírito: um elemento de cada par deve dominar o outro para que a síntese deles se torne viável. Essa foi a intuição original que inspirou meu trabalho reflexivo.
                        Bergson esclareceu que, em seus começos, a obra de reflexão firma-se mais pelo que o pensador rejeita do que pelo que afirma. Nunca rejeitei totalmente o materialismo: este é um dado sem o qual não há entrada possível em minhas obras. Em meus textos mais radicais de juventude, jamais deixei de propor um compromisso. Daí meus esforços, às vezes imensos, para estudar a ciência na qual o materialismo se ancorava e compreender-lhe as razões. Porém, não deixei um fio de dúvida quanto à prioridade que atribuía aos postulados de uma e de outra corrente da História. Escrevi meus primeiros livros para estabelecer esse ponto e apenas ele.
                        Enquanto os escrevia e firmava o meu ponto, sentia formar-se em mim a consciência de ter renunciado a escrever um capítulo, qualquer que ele fosse, da História do Pensamento. E, quanto mais isso sucedia, mais avultava em mim a consciência de escrever, isto sim, um capítulo de minha história: o primeiro e mais nebuloso, é verdade, mas de todos o mais fundamental.

A SOCIEDADE E O SAGRADO

                        Não são muitas as doutrinas sociais hoje em voga que dialogam com a fé. Dentre as que o fazem, merece destaque a Doutrina Social da Igreja, constituída a partir da Encíclica Rerum novarum
                        Embora a Igreja Católica não seja a única a cuidar de questões sociais, a qualidade intrínseca da sua doutrina a autoriza em maior medida que a maioria das outras. De sorte que se torna natural para o estudioso tomá-la como ponto de partida do exame das doutrinas sociais baseadas no Cristianismo.
                        A Doutrina Social da Igreja tem tanto antecedentes quanto continuadores eminentes. A Teologia da Libertação enquadra-se no último caso. Porém, outros autores têm construído uma contribuição tão relevante e conexa à temática social católica quanto a daquela corrente. Gianni Vattimo, no âmbito da Filosofia, René Girard e Giorgio Agamben, na Antropologia e na Filosofia, são bons exemplos. Se recuarmos apenas um pouco, teremos em Jean Guitton e Henri Bergson representantes da mesma tendência, entre tantos outros, é claro.
                        Os mais remotos antecedentes da Doutrina Social da Igreja são os próprios autores bíblicos. No Livro da Sabedoria, por exemplo, incluído no cânon católico, mas não no protestante, encontramos a seguinte dissertação sobre a causa da miséria material:

Os ímpios dizem entre si, em seus falsos raciocínios: Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu [...] Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil. Inebriemo-nos com o melhor vinho e com perfume, não deixemos passar a flor da primavera, coroemo-nos com botões de rosas, antes que feneçam; nenhum prado ficará sem provar da nossa orgia, deixemos em toda parte sinais de alegria, pois esta é a nossa parte e nossa porção! (Sb 2:12, 6:10).

                        E arremata:

Oprimamos o justo pobre, não poupemos a viúva nem respeitemos as velhas cãs do ancião. Que nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco, com certeza, é inútil (Sb 2:11).
           
                        A relevância desse texto consiste em dissipar a névoa por meio da qual os cristãos às vezes atribuem a miséria ao pecado, sem maiores especificações. Explicações como essas têm pouco de satisfatórias. Em Sabedoria, deparamos uma fundamentação diversa: a opressão do “justo pobre”, da viúva e do ancião é atribuída a um modo bem definido de pensar e de ver o mundo. Diz o poeta que os ímpios praticam a iniquidade e se escusam por ser a vida breve e triste.
                        A afirmativa tinha forte razão de ser, num povo carente de bens e de liberdade como Israel. Naquele povo, a impiedade não era sem justificativa. Ao abater o justo, ao pô-lo por terra, o ímpio não apenas o tirava de cena. Tentava tornar ineficaz o exemplo de vida dele:

Cerquemos o justo, porque nos incomoda e se opõe às nossas ações, nos censura as faltas [...] Vejamos se suas palavras são verdadeiras, experimentemos o que será do seu fim. Pois se o justo é filho de Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários. Experimentemo-lo pelo ultraje e pela tortura a fim de conhecer sua serenidade e pôr à prova sua resignação. Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem o visite (Sb 2:12,1720).
           
            Marx pensou a opressão como sujeição de uma classe a outra. A História mostra que a opressão de classe é um caso entre outros. Do ponto de vista subjetivo, os comportamentos opressivos talvez possam ser congregados sob pactos como o hedonista do Livro da Sabedoria ou o utilitarista, que consiste na associação e assistência recíproca para aumentar o prazer, a todo custo. 
                        Ante esse quadro, a mitigação da pobreza por donativos é útil e até necessária, mas não é o essencial. Essencial é o combate à mentalidade que alimenta a miséria. É o combate à orgia que nasce de suspirar “Breve e triste é essa vida!” e também “Nós nascemos do acaso e logo passaremos!” Há senso nessas afirmações: o senso comum, que constata que em toda a parte vigora a matéria. De fato, para o autor de Sabedoria, o que exacerba a miséria é a exacerbação do senso comum, é o fundamentalismo hedonista.
                        Essa sabedoria quase ancestral precisa ser novamente ouvida. Apoucá-la, para os povos que se organizaram em conformidade com as suas tradições, não é muito mais, nem menos que cometer suicídio cultural. Porém, ao mesmo tempo, é preciso saber atualizar as fontes e as tradições cristãs por meio de reflexões renovadas. 
                        Giorgio Agamben é um dos autores que mais têm contribuído para isso, por meio das suas reflexões sobre o homo sacer, que pode ser entendido como o homem em seu contato(ancestral e atual) com o sagrado. Não me deterei nos múltiplos pontos da obra de Agamben, mas apenas na relação que ele estabelece entre horkos (juramento) e pistis (fé).
                        Para Agamben, o juramento é a base de toda a cultura entendida não como algo próximo do instinto animal, mas como elaboração sobretudo religiosa, ética e jurídica. Por entender desse modo a cultura, Agamben localiza a sua gênese no momento pré-histórico em que aqueles três fenômenos fizeram sua aparição. Não obstante, ele reconhece que não dispomos de meios para tratar, com mínima segurança, da religião, da ética e do direito do ponto de vista pré-histórico.
                        Por esses motivos, uma das questões mais interessantes que Agamben formula é a do significado da cultura, como os documentos produzidos na transição para a História a revelam. Sem pretender extrair daqueles documentos uma prova completa, mas ouvindo atentamente o testemunho deles, Agamben sugere que, no momento crucial da transição à História, a cultura parece basearse na instituição do juramento.
                        Toda uma demonstração desse ponto e das relações entre o juramento, a religião, a moral e o direito encontra-se em Homo sacer (II, 3). Ela se constroi ao redor das antigas noções de bênção e maldição, bem e mal, certo e errado, obrigatório e proibido. Essas noções, postula Agamben, formam o que podemos considerar o patrimônio comum das culturas. 
                        Não me deterei na demonstração queAgambenrealiza do sentido de tal patrimônio, que é primorosa e firma uma autoridade, embora não uma prova. Optarei por deter-me na relação que ele enuncia entre horkos e pistis.
                        Tanto horkos como pistis constituem noções fundamentais. No entanto, o juramento é primeiro, por ser a instituição cultural básica, nem apenas religiosa, nem só juridica, mas religiosa e jurídica. Esse caráter básico do juramento, Agamben deriva o juramento da função que ele exerce na linguagem humana.
                        Do ponto de vista dos primeiros documentos históricos, o homem se ergue da natureza ao regular a instituição do juramento. Ao entender-se como ser falante, ele exerce a opção de se pôr ante o bem e o mal, ou entre eles, por meio do juramento. Jurar é afiançar a verdade de algo. Mais ainda, é prometer conduzir-se em conformidade com tal verdade.
                        Ao realizar essas coisas, o juramento institui a fé (pistis)[50]:

Dumézil e Benveniste reconstituíram, a partir de dados sobretudo linguísticos, as linhas originais da antiquíssima instituição indoeuropeia que os gregos denominavam pistis, e os romanos,  fides (em sânscrito,sraddha). A fé é o crédito com que se conta junto a alguém, como consequência do fato de que somos abandonados confiavelmente a ele, ligando-nos numa relação de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confiança que depositamos junto a alguém – a fé que damos – quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito que temos.

                        Até que ponto a fé a que Agamben se refere coincide com a do Antigo e do Novo Testamentos? Para responder essa pergunta, precisamos recordar que a fé mencionada por Dumézil e Benveniste é a dos povos indoeuropeus e, particularmente, a dos gregos, romanos e indianos.
                        Vale lembrar que o hebraico, que descende do semítico ocidental, não se inclui no caudal das línguas indoeuropeias. Portanto, a fé judaicocristã, que plasmou a cultural ocidental, não se inscreve na descrição de Dumézil, Benveniste e Agamben.
                        No Período Helenístico e, mais intensamente, nos séculos em que o evangelho se propagou pela costa do Mediterrâneo, a dupla noção de fé descrita por Dumézil e Benveniste entrou em contato com o conceito judeu correspondente. Observamos, porém, que eles jamais se fundiram ou coincidiram.
                        Assim, quando lança mão da palavra pistis, em Romanos e Gálatas, o apóstolo Paulo não importa os sentidos gregos do termo na sua inteireza, antes transmite o sentido judaico por meio da palavra grega. Esse sentido é principalmente o da fé que temos (em Deus), como o salmista a exprime: “Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade”[51]. E de novo: “Descansa no Senhor e espera nele”[52].
                        De fato, entre os judeus e os cristãos, o último aspecto da fé (o crédito que temos com Deus) tem importância muito superior à do outro (a fé que atestamos), posto que Deus, não o homem, é a ideia fortíssima da cultura judaica. Esse sentido da fé pode ser melhor elucidado por comparação com a acepção correspondente do termo entre os gregos e os romanos[53]:

Numa guerra, a cidade inimiga podia ser vencida e destruída com a força (kata kratos), enquanto seus habitantes eram mortos ou reduzidos à escravidão. Contudo, também podia acontecer que a cidade mais fraca recorresse ao instituto da deditio in fidem, ou seja, que capitulasse, remetendo-se incondicionalmente à fides do inimigo, comprometendo-se assim, de algum modo, o vencedor a assumir um comportamento mais benevolente.

                        Isso é pistis como fé que se tem. A especificidade judaica é ter feito de pistis uma fé que se tem “em Deus”. Como Paulo a apresenta, o homem enfraquecido pelo pecado é semelhante ao povo subjugado pelas armas inimigas. Está exaurido e reduzido à incapacidade para qualquer atitude diversa da submissão. Em tal condição, o homem não tem fé a outorgar, a atestar ou a dar em penhor da verdade. Tem somente fé a receber, fé como crédito.
                        Paulo declara: “Com o coração se crê para justiça”[54]. Isso é também fé judaica: confiança tranquila e imersa em silêncio. Para os romanos, “fides é um ato verbal, acompanhado em geral de um juramento”[55]. Não, porém, para o judeu, cuja fé é secreta e imersa em silêncio. Verdade é que Paulo acrescenta, em seguida: “Com a boca se proclama a respeito da salvação”[56]. Sem dúvida, ele o afirma, mas isso já é confissão, não ainda fé. Tudo considerado, a salvação, para o apóstolo, abrange-se no enunciado hipotético: “Se, com a boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”[57].
                        Na Grécia e em Roma, a fé estava associada ao juramento. É o que Agamben demonstra. Mas e entre os judeus? Nosso autor cita Fílon para fundamentar resposta afirmativa à questão. Com a citação, ele estende a sua teoria para além dos domínios indoeuropeus. E o faz de modo consistente, pois, se o juramento (horkos) é o sacramento da linguagem e a base de toda a cultura, não somente da indoeuropeia, necessário é que os judeus o tenham também em tal conta.
                        Embora a passagem de Fílon, que viveu em ambiente fortemente helenizado, em linhas gerais, ateste a posição de Agamben, há nela diferenciais que precisam ser considerados. Fílon trata do texto em que Deus fala a Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e multiplicarei a tua descendência”[58].
                        Esse trecho do Gênesis é glosado por Fílon, nos seguintes termos[59]:

Ninguém dos que podem dar uma garantia pode fazê-lo com segurança com respeito a Deus, pois a ninguém ele mostrou sua natureza, mas a manteve escondida a todo gênero humano [...] Portanto, ele só pode fazer afirmações sobre si mesmo, pois só ele conhece exatamente e sem erros a sua própria natureza. Na medida em que só Deus pode, com certeza, comprometer-se consigo e com suas ações, por isso, e com razão, ele jurou sobre si mesmo.

                        Fílon enfatiza que Deus não só jura e realiza, lançando assim a base para a nossa fé, como jura sobre si mesmo, o que significa que se revela ao jurar. 
                        Podemos assentir com a aplicação da teoria de Agamben à cultura judaica, com base em Fílon? Sem dúvida, se o juramento, para os judeus, era antes de tudo um ato de Deus. Deus é capaz de jurar. O homem só é capaz de imitar os juramentos divinos. Esse é o provável motivo da restrição que Jesus pôs ao juramento, no Sermão do Monte:

De modo algum jureis, nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser a cidade do grande Rei; nem jureis pela vossa cabeça, porque não podeis tornar um cabelo branco ou preto”[60].

                        Não jurar por Deus, nem pelas coisas de Deus não deve ser considerado o mesmo que não jurar de qualquer maneira. Jesus não veio abolir a lei, que impunha jurar[61]. Não jurar, no Sermão do Monte, significa apenas que o segundo aspecto do juramento (o da fé que damos sob garantia)deve ser considerado mais fraco. 
                        Jesus não negou, antes fortaleceu o sentido de horkos contra as vacilações de sua época. Ordenou que o juramento não fosse banalizado. Prescreveu a mais profunda consciência dele. Só Deus pode jurar consistentemente e o faz sobretudo a respeito de si, não de coisas transitórias. Nós devemos jurar, mas, como esse sentido de pistis é fraco, entre os judeus, não somos capazes de estabelecer um fato por meio de horkos. Daí a necessidade, entre os judeus, de o fato estabelecer-se por duas ou três testemunhas.
                        Nesse sentido específico, o juramento é a base da cultura judaica. Em Israel, juramento é a palavra de Deus, mais que a do homem. Da palavra jurada de Deus emana a vida humana e a vida social, em particular. A base do trono de Deus é a justiça. Por isso, é possível e até necessário que a sua palavra jurada constitua a justiça social.
                        O mérito maior de Agamben é ter mostrado o caráter sagrado de algo aparentemente tão neutro quanto a linguagem. Se a linguagem é sagrada, pois o juramento o é, a cultura como um todo é sagrada e não há dessacralização possível dela. O anseio de dessacralização que tudo permeia, no nosso tempo, é um ideal impossível, uma rebelião destinada a afundar-se ou a afundar a cultura humana.
                        Por tudo isso, a ruptura epistemológica que extrai a raiz do juramento e seu sentido teológico não pode deixar de desarraigar, ao mesmo tempo, a árvore, vale dizer, a cultura com todas as suas ramificações. Na sociedade, há estruturas caducas que carecem de ser substituídas e outras fundamentais demais para o serem. Foi o que assentei, de algum modo, em A hipótese de Darwin.
                        Assentei-o na base do darwinismo e, mais especificamente, de uma de suas correntes (continuada por Teilhard de Chardin e tantos outros), que merece ser denominada Evolução Teísta ou Darwinismo Teísta. Porém, o frágil consenso formado em torno dessa doutrina tem sido forçado a um ponto extremo. E, quando o ideal de ruptura que essa força extrema propõe contagia como uma febre, que ataca sem qualquer razão, como acontece hoje, torna-se necessário pensar seriamente se não é chegado o momento de temperá-lo, de equilibrá-lo de novo com o ideal oposto da fé. 
                        Que dizer do tempo atual? Agamben é claríssimo[62]:

Prodi abria a sua história do sacramento do poder com a constatação de que somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida coletiva sem o vínculo do juramento, e que tal mudança não pode deixar de acarretar uma transformação das modalidades de associação política. Se, de alguma maneira, tal diagnóstico for correto, isso significa que a humanidade se encontra hoje frente a uma disjunção ou, pelo menos, frente a um afrouxamento do vínculo que, através do juramento, unia o ser vivo à sua língua. Por um lado, o ser vivo agora está cada vez mais reduzido a uma realidade puramente biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado artificiosamente dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnico midiáticos, [encontra-se] em uma experiência da palavra cada vez mais vã.

            Que descrição do fundamento do nosso tempo, ou da falta dele, poderia ser mais veraz? Cogito as consequências econômicas do que Agamben escreveu. No interior das empresas dos nossos dias, no ritmo em que o instinto se fortalece, a cultura mirra, e o juramento se decompõe em desculpas, pretextos, dissimulações, trapaças e fraudes. Fingir e iludir, não como os antigos fingiam e iludiam, mas com prodígios de dissimulação e o mais imperceptivelmente possível fez-se um novo padrão de comportamento. Por uma estranha alquimia, a traição do juramento transmudou-se, ela própria, em juramento.
            “Juremos ser levianos”: não foi este o pacto dos ímpios, no Livro da Sabedoria? E não continua a ser, sob nova roupagem, o pacto dos novos salteadores, o sucedâneo do roubo, na nossa cultura?
                        “Imagine”, de John Lennon, dá boa música e sonhos. Não dá meio palmo de realidade, na medida em que extingue a religião e conserva a fraternidade num estalar de dedos. Acaba com a propriedade e conserva os povos, suprime a guerra e institui a paz universal. É a redução antropológica por excelência: o homem deixa de ser ele inteiro para ser o seu sonho. Mas, se além de sonho e a par de quimera, o homem puder ser ele próprio, será precisamente aquilo que a música de Lennon elimina ao cerrar nossos olhos e que é imperativo preservar ao abri-los.

 A DOUTRINA CRISTÃ SOCIAL

                        Após o fracasso das tentativas de implantação do socialismo, no século XX, a revisão do pensamento de esquerda ainda não se adiantou, se é que principiou, tamanha a desorganização das consciências resultante daquele acontecimento. Todos concordam que o ideal da igualdade sobreviveu à ruína do socialismo, como a liberdade escapara ao fracasso do liberalismo. Porém, conclusões menos abstratas e mais definitivas que essas não foram assentadas, em qualquer dos dois casos.
                        O maior legado do pensamento de esquerda é, para mim, a combinação do ideal da igualdade com a ruptura epistemológica introduzida pela substituição de um pensamento tradicional por outro científico e crítico. Diversas propostas de conciliação do pensamento cristão com esse legado têm sido formuladas. Procuro situar-me na vertente delas ou, pelo menos, de uma delas. Entre as mais bem-sucedidas, estão a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação.
                        Vivemos num tempo em que tanto o pensamento de esquerda como o de direita perderam o fascínio e não podem ser mais aplicados, muito intensamente, à sociedade. A situação, lamentável sob tantos aspectos, envolve, entretanto, um benefício: permite entrever que o caminho de construção da sociedade futura envolve a combinação de elementos do liberalismo e da esquerda social.
                        Essa combinação não remete necessariamente ao ponto médio entre eles. Tampouco nos relega à inglória tarefa de inventar o absolutamente novo. Admito a necessidade de reinventar formas de vida social, mas inventá-las a partir de um marco zero, qualquer que ele seja, não é lá tarefa humana.
                        Para combinar elementos das visões de mundo liberais e de esquerda, em vez de enxergá-las como absolutamente irreconciliáveis, é preciso encontrar os seus pontos de contato. Esse é o desafio que aceito e que procurarei responder nesta curta série. E, como não me compete partir do ponto zero, devo escolher uma das propostas de conciliação já formuladas sobre a questão social e seus desafios. Por motivos de afinidade, minha opção será pela Doutrina Social da Igreja.
                        No entanto, qualquer aproximação verdadeira da esquerda envolve não só uma forte preocupação com a igualdade, mas também com a ruptura epistemológica necessária para que o pensamento se inspire, sem se orientar pelo passado. O que me conduz ao reconhecimento de que, ao para partir da Doutrina da Igreja, devo buscar a ruptura epistemológica por conta própria, posto que o Magistério não a realiza. Mesmo assim, a crítica das teorias sociais de esquerda e direita, realizada pela Igreja, contém uma abertura para o pensamento social de ruptura que vale a pena explorar.
                        A doutrina social católica começou a ser formulada no pontificado de Leão XIII (18781903), que publicou uma série de textos sobre a questão social, dentre os quais merecem realce a Rerum novarum (1891), que contém as bases do pensamento social católico, Arcanum (1881), sobre a família e o matrimônio, Diuturnum (1881), que trata da autoridade civil, Immortale Dei (1885), acerca das relações entre Estado e Igreja, Sapientiae christianae (1890),que se detém nos deveres dos cidadãos católicos, Quod apostolici muneris (1878), a respeito do socialismo, e Libertas(1888), dedicada ao combate às falsas doutrinas da liberdade.
                        Pelas datas dessas Encíclicas, percebemos que, ao lançar a mais importante delas, a Rerum novarum, Leão já se celebrizara como o Papa da questão social. Mesmo sem ter recebido educação formal em ciências sociais, ele foi logo aclamado não só como fundador da doutrina social católica, mas como uma das mais importantes vozes da História sobre as interfaces da questão social com a moral e a religião.
                        Não muito depois de Leão, em 1931, Pio XI brindou-nos com outra encíclica social, a Quadragesimo anno, que contém uma das mais hábeis sínteses do pensamento social católico. Na parte do texto dedicada ao direito de propriedade, lemos que “o homem é anterior ao Estado” e “a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real [...] Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual”[63].
                        Nesses trechos, Pio encadeia três citações da Rerum novarum, cujo quadragésimo aniversário comemorava, a fim de transmitir o ensinamento tipicamente católico de que o direito antecede o homem e a família, e ambos, a sociedade civil. As citações têm o claro propósito de antepor o natural ao jurídico. Por isso, sugerem que o direito deve seguir os modelos de ordenação presentes na natureza.
                        Os motivos desse entendimento são claros. A natureza não se autoorganizou. Ela foi criada por Deus. Na Doutrina da Igreja, essa é uma ideia matriz. Pio, porém, a ultrapassa ao afirmar que Deus não apenas criou o Universo como inspirou nossos antepassados a forjar uma ordem social que reflete a razão natural[64]:

O que temos ensinado acerca da restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história eloquentemente demonstra. De fato, houve já uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de algum modo, dadas as circunstâncias e exigências do tempo, conforme à reta razão. E se essa ordem já de há muito se extinguiu não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se.

                        A palavra restauração sugere que a doutrina católica não tem por finalidade implantar algo novo, mas recuperar o que existiu em outras épocas. Daí a convicção que exprimi de que ela não realiza ruptura epistemológica alguma, em relação ao contexto social de hoje. E, para não pensarmos que as coisas que carecem de restauração são uns poucos elementos antigos, é importante observar que Pio se refere a toda “uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de algum modo [...] conforme à reta razão”. O ideal natural católico não é só ideal, nem só natural. Ele se realizou. Tomou a forma visível não de um ou de outro costume, mas de toda uma sociedade.
                        A que época Pio XI alude? À medieval, pois nela e só nela a Igreja realmente reinou, às vezes sobre boa parte do orbe. Não por acaso, a Idade Média é também a época a que a Igreja retorna para haurir a teologia que entende sobressair a todas as outras: a de Santo Tomás.
                        Assim concebido, o direito natural católico não se baseia apenas na ordem natural que antecede o homem, mas, também e principalmente, num modelo histórico de sociedade. O que significa que o parâmetro daquele direito não é a natureza, na sua imutabilidade, mas a sociedade, como setor dela, e uma sociedade particular, que a Igreja reputa o modelo prático da reta razão: a sociedade que existiu na Idade Média.
                        Embora a atração católica pelo medieval seja questionável, a historicização do ideal de uma sociedade, vale dizer, a sua realização parcial no plano dos fatos tem grande interesse, pois provê ao direito natural uma face histórica que, a um tempo, aumenta a sua nitidez e permite explicar as imperfeições da justiça humana sem deixar de conectá-la à que se inspira na natureza. Para a Igreja, nenhuma sociedade é um espelho perfeito da razão natural. Nem sequer a que ela toma como modelo. Porém, isso não impede que ela constitua uma manifestação privilegiada do direito natural.
                        Até aqui, não vislumbramos abertura alguma para o pensamento social de vanguarda. Porém, a Doutrina da Igreja não inclui somente a defesa de um modelo social do passado, de corte medieval, mas também a crítica das sociedades presentes. Essa é a vertente na qual ela se abre para o pensamento progressista.
                        Pio recorda que[65]

no fim do século XIX, em consequência de um novo gênero de economia, que se ia formando, e dos grandes progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez mais dividida em duas classes: das quais uma, pequena em número, gozava de quase todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao passo que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na mais calamitosa miséria, em vão se esforçava por sair da penúria.

                        No esforço de interpretar esse estado de coisas, a Igreja identifica nele a dominação econômica dos mais fracos pelos poderosos[66]:

Desde que as artes mecânicas e a indústria moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como o remoto Oriente cultivado já na Antiguidade, cresceu desmesuradamente o número de proletários pobres.

                        Fica, assim, claro que o princípio por trás da Doutrina da Igreja, o ponto em que ela se torna mais útil ao progresso social, é a identificação e a denúncia de males sociais como “violações da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores”[67]. Expressões como essas tornaram-se comuns, nos documentos da Igreja, desde o final do século XIX.
                        A justiça a que Pio se referiu é obviamente a natural, mas uma justiça natural historicizada ou encarnada, para nos valermos do evocativo termo da doutrina teológica em ela se inspira. A justiça historicizada da Igreja não é um ideal naturalizado. É algo distinto disso. É um ideal encarnado não só em Jesus Cristo, mas na sociedade constituída pelos seus seguidores.
                        Todo valor tem como um de seus atributos a realizabilidade. Isso significa que tanto os valores individuais como os sociais realizam-se, em alguma medida, na História. Não é diferente com a aparição e o desenvolvimento da justiça, numa sociedade. Também eles constituem a realização parcial de um valor, mediante a transposição do plano ideal ao da História.
                        A mesma lógica permite identificar, a contrário senso, o que se contrapõe ao ideal da justiça, no âmbito histórico: “Por muito tempo pôde o capital arrogar-se demasiados direitos. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si”[68]. Pio condenou nesses termos a traição do caráter social da propriedade. Para ele, quando essa forma de relação difundiu-se, no século XIX, “apregoava-se que, por fatal lei econômica, pertencia aos patrões acumular todo o capital, e que a mesma lei condenava e acorrentava os operários à perpétua pobreza e vida miserável”[69].
                        Todavia, uma série de ressalvas aninha-se nessas denúncias, de modo a afastar a coincidência aparente com as posições de esquerda. A primeira ressalva nos lembra que a natureza do regime capitalista “não é viciosa” e que “só viola a reta ordem, quando o capital escraviza os operários ou a classe proletária”[70].
                        Pode parecer estranho a Igreja sustentar a natureza não viciosa do capital e, ao mesmo tempo, defender a função social da propriedade. Quadragesimo anno desfaz a aparência de contradição, no trecho em que lemos[71]:

O direito de propriedade é distinto do seu uso. Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode urgir-se por vias jurídicas.

                        A justiça comutativa impõe que A não viole a propriedade de B, e B, a de A. Porém, nada sabemos de uma justiça que obrigue os proprietários a usar o que é seu de maneira altruísta. Agir com altruísmo não implica satisfazer a justiça, comutativa ou distributiva, mas outras virtudes, como a magnificência. É o que Pio sustenta. Ele tem claro que a justiça, numa concepção social, não é o mesmo que a magnificência. Aquela é tutelada pelo direito, esta não. Nunca se viu a lei obrigar o pedestre a dar esmola ao mendigo que lhe suplica. A generosidade e o altruísmo não são tuteláveis juridicamente. Por isso, como direito natural, a propriedade orienta-se ao benefício de todos, mas não compulsoriamente.
                        Essa lição não se encontra apenas em Pio, mas também em Leão, João XXIII, João Paulo II e Francisco. Enfim, está em toda parte na Doutrina Católica. A justiça envolve as outras virtudes, mas em medida atenuada. Ela é um compêndio de versões mitigadas dos outros valores.
                        Nem o liberalismo, nem o socialismo conduzem à realização da justiça. No primeiro, as classes se batem para “alcançar o predomínio econômico; depois combatem-se renhidamente por obter predomínio no governo da nação [...] enfim lutam os Estados entre si”[72]. No socialismo, as liberdades individuais são sacrificadas, sem ganhos notáveis para o conjunto social.
                        Não é difícil perceber, nessas lições da Doutrina Social, que a Igreja utiliza o flagelo crítico para condenar tanto os males do liberalismo quanto os dos regimes de esquerda. Ao condená-los, ela remove coisas bastantes para que a cisão com partes do pensamento antigo penetre no seu sistema. Porém, não leva a cabo a cisão que inicia, na medida em que não realiza a ruptura epistemológica com o modelo medieval de sociedade que adota. Mesmo assim, a Doutrina Social da Igreja torna suficientemente claro que é possível partir dela, a fim de realizar tal ruptura.
                        A ruptura epistemológica a que me refiro foi tentada, de certa maneira, pelas correntes de esquerda, no interior da Igreja Católica, entre as quais se destaca a Teologia da Libertação. Duas coisas sobressaem à primeira vista, nos autores dessa corrente teológica: sua consciência privilegiada da realidade dos pobres e o risco que assume de tornar secundária a orientação da doutrina cristã ao divino. Os teólogos da libertação sempre procuraram desenvolver consciência da condição dos pobres, sem perder controle do risco de priorização do temporal que ela envolve. Leonardo Boff encontra na encarnação do Verbo, descrita no prólogo do Evangelho de João (1:114), o princípio de tal equilíbrio[73]:

            Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus deixou sua transcendência e assumiu em Jesus de Nazaré a natureza humana em situação de carne, quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma ‘inconfundível, imutável, indivisa e inseparável’ sendo Jesus, a um só tempo, ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’ (Calcedônia, ano 451). Mas a encarnação não se limita a Jesus. Comenta a Gaudium et spes: ‘Por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem’ (nº 22).

                        Boff poderia ter mencionado outras passagens da Gaudium et spes em prol de sua posição, como a que afirma que “o Verbo de Deus [...] entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a” (idem. nº 38). De fato, o princípio da encarnação não envolve só a assunção de um corpo, mas também a da História por Deus. Esse é o princípio que anima a Teologia da Libertação, se bem a compreendo. A costura que ela realiza da pobreza em Deus não é exterior, aparente ou superficial. Não é um remendo, mas um enxerto dela na natureza divina.
                        Contra os excessos dessa visão, um dos mais eminentes teólogos da libertação entre nós, Clodovis Boff, insurgiu-se, recentemente, ao propor que o princípio Cristo (o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, como fundamento da fé) não inclui a pobreza. Na linguagem do teólogo brasileiro, isso implica reconhecer a ambiguidade da Teologia da Libertação, ao identificar o pobre com Cristo em sentido absoluto e não relativo. Cristo e só Cristo é o princípio fundamental e absoluto da fé. Sem se esquecer que[74]

princípio é princípio. É coisa límpida, inequívoca, efeito da reductio ad unum. Agora, quando se começa a vacilar, falando nestes termos: ‘princípio, sim, mas mediado’, princípio fé, sim, mas também princípio misericórdia’, ‘Deus, sim, mas sempre com os pobres’ [como faz a Teologia da Libertação], pronto, acabou-se o princípio e começou a derivação.

                        Há, de fato, uma discrepância entre a ligação da natureza divina à pobreza, que a Teologia da Libertação realiza, e a interpretação mais aceite da encarnação. Duas fórmulas tradicionais sintetizam essa interpretação: o cânon de Niceia (325 d. C.) que declara que Cristo “é gerado, não criado, homoousios (consubstancial) ao Pai” e o do Concílio de Calcedônia (451 d. C.), segundo o qual é preciso

confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e perfeito em humanidade, o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade [...] um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão.

                        Grego e latim não são português ou inglês. No contexto dos primeiros séculos, a palavra ousios e seu correspondente em latim assumem vários significados. Contudo, o tratamento que foi dado à primeira, por Aristóteles, fez com que um dos significados sobressaísse, no âmbito filosófico. Christopher Stead lembra que “a concepção tradicional supõe que o conceito de ousia tenha sido fixado pela discussão de Aristóteles nas Categorias[75].
                        Não só isso. Do modo como Aristóteles foi determinante para o estabelecimento do uso filosófico de ousia, por muitos séculos, os pais capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno) tiveram peso semelhante na definição do sentido teológico daquela palavra"A distinção entre ousia e hipóstase [...] foi pela primeira vez exposta de modo amplo pelos Padres Capadócios"[76]. Consistiu em “restringir o sentido de ousia para a espécie; o indivíduo deveria ser indicado pela palavra hipóstase”[77]. Entre os padres capadócios e Calcedônia e ainda depois, ousia passou a ser cada vez mais utilizado para indicar a espécie, e hyposthasis, para referir-se ao indivíduo.
                        Assim, quando os documentos do Concílio de Calcedônia referem-se a Cristo como consubstancial (homoousios) ao Pai e a nós, a ideia é a de alguém dotado da substância divina, a ideia é a de alguém pertencente à espécie de Deus. O mesmo pode ser afirmado da participação de Cristo na natureza humana, que implica o pertencimento à espécie humana.
                        Nesses pontos, o uso teológico concorda com o filosófico, posto que a tradição derivada de Aristóteles relaciona substância (ousios) com natureza (physis). Esse o sentido provável da fórmula de Calcedônia citada por Leonardo Boff.
                        Nenhum versículo do Novo Testamento usa a linguagem metafísica tão amplamente para afirmar a unidade do Pai com o Filho. O que há de mais próximo da linguagem de Calcedônia, nos escritos bíblicos, é “a expressão exata do ser [do Pai]”[78], que o autor de Hebreus atribuiu a Cristo. O termo grego traduzido ser, nesse texto, não é ousios, nem physis, mas hypóstasis, que não é um sinônimo daquelas. Vimos que hypóstasis indica a pessoa. O sentido evocado por essa palavra é de que Cristo não é a pessoa (hypóstasis) do Pai, mas a sua expressão exata, sua marca (semelhante à de um selo ou impressão em relevo).
                        Porém, a adoção da linguagem metafísica, pelos autores do Novo Testamento e, em maior medida, pelos pais que os sucederam, tem uma consequência que não cabe descurar: ela exclui do mistério da encarnação toda carga relacionada ao contexto ou às circunstâncias históricas. A encarnação ocorre no tempo. Foi um ponto assinalado nele. E, se assumiu as circunstâncias do tempo em que se encarnou, Cristo não pode ter feito o mesmo com as circunstâncias das outras épocas. Se penetrou pontualmente na História, ele não assumiu o restante do tempo.
                        As épocas são históricas; a assunção da natureza humana é metafísica. Cristo uniu-se à natureza do homem. Não assumiu no mesmo sentido as realidades exteriores da sua época. Como a pobreza é uma situação social, estender à História o significado dos símbolos de Niceia e Calcedônia sobre a encarnação, como faz Leonardo Boff, é um procedimento hegeliano, contrário ao sentido das fontes cristãs.
                        Não há evidências de que Jesus tenha nascido pobre, no sentido em que o termo era empregado no primeiro século. O fato de ter sido posto na manjedoura, após Maria ter dado à luz, explica-se pela falta de “lugar para eles na hospedaria”[79], não por uma condição de pobreza atestável. Deitar o filho numa manjedoura, ainda mais numa viagem e por falta de vaga nas hospedarias, não era um sinal inequívoco de pobreza, no primeiro século.
                        Naquela época, não poucas famílias da Galileia eram abastadas ou pertenciam à classe emergente, por causa do surto de construções empreendidas por Herodes, o Grande. Não há razão clara para excluirmos a família de Jesus desse número ou para afirmarmos que ele se fez pobre ao nascer. Aparentemente, Jesus só se tornou pobre, mais tarde, ao renunciar aos bens materiais a fim de levar a cabo o seu ministério.
                        Paulo aludiu a esse fato, num capítulo dedicado a riquezas materiais (2ª aos Coríntios 8). No nono verso desse capítulo, lemos que “Jesus Cristo, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos”. Riqueza é um atributo da forma de Deus, mencionada em Filipenses 2:6. É-lhe, por isso, inerente e necessária. Pobreza, ao contrário, não é um atributo da condição humana, mas uma situação contingente. Decorre da escassez de bens vitais. Entre a riqueza e a pobreza há uma antítese clara. Por isso, não é possível entender a pobreza como um dado da natureza humana.
                        Como Paulo as menciona, a riqueza é espiritual, e a pobreza, material; a riqueza é divina, a pobreza é humana; a primeira é necessária, a outra, circunstancial. Só assim, elas se opõem. Só nesses sentidos compõem a antítese que observamos. Só neles é possível que Cristo, ao encarnar-se, tenha deposto sua riqueza espiritual inerente para unir-se à natureza humana e, mais tarde, abraçar a pobreza material.
                        Se a encarnação incluísse problemas típicos da condição de riqueza ou pobreza própria de um tempo ou de todos os tempos, por que Cristo respondeu ao homem que lhe pediu que mandasse seu irmão repartir a herança com ele: “Quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?”[80]. Alguma vez Jesus se recusou a curar um doente? Não, pois libertar da doença era parte da sua missão. Contudo, ele se recusou a resolver a querela patrimonial de dois homens, a fim de mostrar que questões temporais não devem ser tratadas segundo o princípio da encarnação, nem passaram à responsabilidade de Deus, quando Cristo encarnou-se, antes permanecem sob a alçada das instituições sociais.
                        Em Betânia, quando Maria ungiu Jesus com um óleo caríssimo e foi repreendida por circunstantes, por impedir que ele fosse vendido, e o valor, dado aos pobres, Jesus afirmou: “Os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes”[81]. E acrescentou: “Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez”[82].
                        A doação aos pobres foi considerada algo santo, mas Jesus ensinou que não deve ser exagerada a ponto de implicar inversão da ordem de prioridade entre o divino e o humano, na igreja. E, para deixar tudo claro, ele erigiu o contrário da doação (o desperdício de Maria) em exemplo para pessoas de todos os lugares e de todas as épocas.
                        Um dos textos mais citados por representantes da Teologia da Libertação é a parábola do juiz escatológico. Não poucos teólogos veem no rei que separa as ovelhas dos cabritos um julgador comprometido com os pobres: “Então perguntarão os justos [as ovelhas]: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? [...] O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”[83].
                        Porém, uma série de dificuldades impede a interpretação dos teólogos da libertação, segundo a qual o rei escatológico julga com base no o comportamento das pessoas em relação aos pobres. Primeiramente, o texto é uma parábola. Já por isso, as ovelhas não são ovelhas literais, os cabritos não são cabritos, os pequeninos não são crianças, a comida não é comida, nem a bebida, bebida. Isso conduz a interpretação em direção oposta à sugerida pelos teólogos da libertação, que por comida entendem comida e por bebida, bebida.
                        O próprio Jesus afirmou que as ovelhas são os justos, e os cabritos, os ímpios. Nessa linha de pensamento, os pequeninos são os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os perseguidos, enfim todas as classes de bem-aventurados assinaladas pelo rebaixamento espiritual nesta vida[84].
                        O objetivo da digressão acima não é tomar as lições espirituais dos textos citados como fim em si mesmas, mas extrair suas implicações sociais, visto que a posição em prol da doutrina cristã social exige esclarecimentos, e eles devem ser precisos.
                        Claro que as Escrituras reservam um lugar importante para os pobres. Jesus afirmou que “os pobres sempre os tendes convosco”[85]. Com isso, lembrou que a persistência da pobreza convoca-nos a não a perder de vista e a dispensar-lhe contínua atenção. A diferença entre essa atenção e a ênfase que a Teologia da Libertação deposita no ministério aos pobres é unicamente de medida. A opção preferencial pelos pobres não pode ser levada ao ponto da atenção preferencial à matéria. Enquanto existir miséria, os cristãos estão convocados a contribuir para atenuá-la, porém não a transformar a reversão da pobreza em sua missão principal. O cuidado dos pobres e o envolvimento com a questão da miséria sempre acompanharam a pregação do evangelho. Devem continuar a fazê-lo. Mas, exatamente por acompanharem-na, elas não se colocam como o principal.



[1] MORAIS, Luís Fernando Lobão. O drama do direito – teoria e prática de uma visão jusfilosófica. Campinas: Julex, 1991
[2] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993.
[3]BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 124125.
[4]BARBOSA, Ruy. Oração aos moços. Fundação Casa de Ruy Barbosa. p. 45. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/ artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf. Acesso em 14/01/2014.
[5]BERGSON, Henri. Ob. cit. p. 126127
[6]GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 887.
[7] Há amplo consenso entre os jusfilósofos no sentido de que a Filosofia do Direito é parte da Filosofia e não do Direito (vide, por exemplo, RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 5).
[8] Para uma apresentação do que entendo por Filosofia, seu objeto e método, remeto o leitor aos três primeiros capítulos do livro A filosofia perene (São Paulo: Themis, 2016).
[9] BERGSON, Henri. Ob. cit. p. 105.
[10]SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., Civilização Brasileira, p. 296.
[11]OBAMA, Barack. “Chamamento à renovação”. Citado em SANDEL, Michael. Ob. cit. p. 307.
[12] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 4344.
[13]KANT, Emmanuel. Prolegômenos a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70. p. 155.
[14]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 45.
[15] Idem. p. 45.
[16] Idem.
[17] Idem. p. 51
[18]Idem. p. 47.
[19] Idem. p. 23. 
[20] Sobre a importância de Darwin para a Evolução Teísta, vide o texto desta série intitulado “A hipótese de Darwin”.
[21]BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 125.
[22]BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 105.
[23] BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[24]TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ética – do mundo da célula ao mundo da cultura. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 256257.
[25]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. p. 101102.
[26] TELLES JÚNIOR, Goffredo. A Folha dobrada – lembranças de um estudante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 701702.
[27] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 127.
[28] Idem. p. 237.
[29]COOK, Gareth.InScientific American.June, 5th, 2012.
[30] PEPPERBERG, Irene. Alex & me. New York: Harper, 2009.
[31]KOCH, Christoph.“Is conscience universal?” Scientific American. 19/12/2013.
[32]Idem.
[33]RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83.
[34] Idem.
[35]GOSWAMI, Amit. O universo autoconsciente – como a consciência cria o mundo material. 3ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2003. p. 100.
[36] FRANCISCO. Laudato si. Cap. II, nº 80. Disponível em www.m. vatican.va/content/francesco/pt/ encyclicals/documents.
[37] LIPOVETSKY, Gilles. “Pós-modernidade e hipermodernidade”. In FORBES, Jorge, REALE JÚNIOR, Miguel e FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A invenção do futuro. Barueri: Manole, 2005. p. 66. Para uma exposição exaustiva do conceito de hipermodernidade, vide, de Lipovetski e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. Grasset & Fasquelle, 2004.
[38] MORAIS, Luís Fernando Lobão. A hipótese de Darwin – a compatibilidade entre Deus e a evolução. São Paulo: Themis, 2008. p. 1114.
[39] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 135, 147148, 233234.
[40]DARWIN, Charles Robert. The origin of species. New York: Penguin, 1958. p. 452.
[41]DARWIN, Charles. The origin of species. In Great books of the western world. Nova York: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 49. p. 243.
[42]Idem. p. 240241.
[43] Idem. p. 241.
[44] Citado em MILLER, R. Finding Darwin’s God. Nova York: Harper Collins, 1999. p. 287.
[45] COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus – um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo, Gente, 2007. p. 105.
[46]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 23.
[47]PIKETTY, Thomas. idem. p. 223.
[48] Idem. p. 58.
[49] Idem. p. 517.
[50]AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 34.
[51]Sl 37:3.
[52]Sl 37:7.
[53] AGAMBEN, Giorgio. Ob. cit. p. 35.
[54]Rm 10:10.
[55]AGAMBEN, Giorgio. Ob. cit. p. 35.
[56]Rm 10:10.
[57]Rm 10:9.
[58]Gn 22:1617.
[59]ALEXANDRIA, Fílon de. Legum allegoriae. 204208.ApudAGAMBEN,Giorgio.Ob. cit. p. 29.
[60]Mt 5:3436
[61]Lv 19:12.
[62] Idem. p. 81.
[63]Pio XI. Quadragesimo anno. II, 1, nº 49.
[64] Idem. II, 5.
[65] Idem. nº 3.
[66]Idem. II, 3.
[67] Idem. nº 4.
[68] Idem. II, 2.
[69] Idem.
[70] Idem. III, 1.
[71] Idem. II, 1.
[72] Idem. III, 1.
[73]BOFF, Leonardo. “Pelos pobres, contra a estreiteza do método”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271.
[74]BOFF, Clodovis. “Volta ao fundamento – réplica”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271, 2008.
[75] STEAD, Christopher. A Filosofia na Antiguidade Cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 151.
[76] Idem. p. 165.
[77] Idem. p. 152.
[78] Hb 1:3.
[79] Lucas 2:7.
[80]Lc 12:1314.
[81]Mt 26:613; Jo 12:18.
[82]Mt 26:13.
[83]Mt 25:37,40.
[84]Mt 5:310.
[85]Mt 26:12.