QUE É FILOSOFIA DO DIREITO?
Assim
como há seres que pensam e pensadores, há pensadores profissionais e
apaixonados. Uma das características da paixão pelo pensamento é jamais se contentar
com o que alcançou e, por isso, estender o trabalho reflexivo ao infinito. Não
é incomum os que cultivam a paixão pelo pensamento construírem a sua reflexão
ao longo de toda a vida e, ainda assim, a deixarem inacabada, porque a obra de
reflexão, profunda e às vezes arrebatada, é também interminável.
Bem
ou mal-sucedido como pensador (não me cabe julgá-lo), tenho consciência de ter
sido muito mais um pensador movido pela paixão do que um profissional, embora
também tenha feito do pensar minha profissão. Quando iniciei minha reflexão
filosófica sobre o direito, no primeiro ano da Faculdade, tal foi o ímpeto do
interesse que desenvolvi pela disciplina, tal foi o encanto que provocou em
mim, que me senti compelido a dar forma de livro aos meus pensamentos, ainda durante
a Graduação. Escrevi, naquela época, O
drama do direito[1]
e, pouco depois, Filosofia do
direito positivo[2].
Outros
livros seguiram-se a esses. Mas quero aqui retomar, com maior acento, a reflexão
desenvolvida nos bancos da Faculdade, inspirada de certa forma pela inesquecível
descrição que Bergson forneceu do trabalho filosófico[3]:
Nos problemas que o filósofo pôs, reconhecemos as questões
que se agitavam à sua volta. Nas soluções que lhes forneceu, acreditamos
reencontrar, arranjados ou desarranjados, mas quase sempre não modificados, os
elementos das filosofias anteriores ou contemporâneas [...] Mas, à medida que
procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta,
vemos sua doutrina transfigurar-se. Primeiro, a complicação [das ideias]
diminui. Depois, as partes entram umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num
único ponto [...] Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinitamente simples,
tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-lo. E é por
isso que falou por toda a sua vida. Não podia formular o que tinha no espírito
sem se sentir obrigado a corrigir sua formulação e, depois, a corrigir sua
correção; assim, de teoria em teoria [...] o que ele fez [...] por meio de
desenvolvimentos justapostos a [outros] desenvolvimentos, foi apenas restituir
com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original.
Bergson
traz à luz o que o trabalho reflexivo tem de mais recôndito:o fato de se
orientar por uma intuição invariável. Não importa o quanto dure a reflexão
filosófica: ela sempre será dirigida pela intuição primordial, por aquele sopro
de inspiração que a impulsionou originalmente e que, ao longo dos
anos,permanece e tem de permanecer sempre o mesmo. Podemos afirmar que essa
intuição é o combustível que faz arder a paixão pelo pensamento.
Nada
mais verdadeiro. O pensador pode mudar em maior ou menor medida o que pensa
ao longo dos anos: a intuição fundamental de que parte não só não se altera
como parece ostentar as características de um objeto verdadeiramente imutável.
E, se
pensar é uma tarefa infinita, ao mesmo tempo, é pensar sempre a partir do mesmo
ponto. É descrever e tornar a descrever a mesma trajetória básica, com a única
diferença de que, conforme avançamos, nos entregamos a incursões cada vez mais profundas
e à exploração de um número crescente de vicinais da grande linha reflexiva
cujo princípio o sopro da inspiração um dia nos comunicou.
Por isso,
em qualquer reflexão vigorosa e desenvolvida, deve ser possível identificar com
clareza o ponto de partida, o ponto no qual, na linguagem de Bergson, a
reflexão do filósofo se contrai. Cada qual tem o seu ponto de partida. Por isso
também, cada um desenvolve trajetória própria. O impossível, o vedado sob pena
de nulidade e irrisão, é não ter ponto de partida e não ter trajetória básica.
No meu
caso, o ponto de partida foi a intuição de que a reflexão jurídica deve reconciliar-se
com Deus. Ruy Barbosa concluiu uma famosa oração, cujo original ainda se
conserva, com a afirmação mais visceral que analítica, mais confessional que
especulativa: “De quanto tenho visto no mundo, o resumo se abrange nestas cinco
palavras: não há justiça, onde não haja Deus”[4]. Essas
derradeiras linhas do discurso final do grande orador corresponderá à intuição
original de Ruy? Quem duvidará e, ainda assim, quem ousará garanti-lo?
Posso,
porém, garantir que, no meu caso, a inseparabilidade entre Deus e a justiça foi
a intuição original que orientou toda a minha reflexão. Escrevi O drama do direito e Filosofia
do direito positivo para afirmar que não há direito, nem há justiça sem
Deus.
Porém,
se o ponto de partida do trabalho dos filósofos do direito pode ser fixado de
modo tão claro, nem sempre a trajetória básica da sua reflexão mostra-se nítida.
Bergson continua a discorrer[5]:
A primeira manobra do filósofo, quando seu pensamento ainda está
pouco seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, consiste em rejeitar
certas coisas definitivamente. Mais tarde, poderá variar naquilo que afirma;
não variará muito naquilo que nega. E, se varia naquilo que afirma, é porque
[...] tendo deixado a curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente,
tornouse exterior a si mesmo. Volta para dentro de si quando volta à intuição
[original].
Na
obra de qualquer pensador, podem encontrar-se incursões em direções diversas. Isso
é próprio do pensamento e tanto mais da Filosofia. Algumas incursões, como a
que Bergson menciona, resultam em extravios. Nesses casos, a solução para o
filósofo é retornar à trajetória básica que descrevia, pois ela existe, e ele
existe para ela.
Quando
esses retornos não ocorrem ou demoram para ocorrer, trechos inteiros da
reflexão corrompem-se. No limite, o filósofo perdese, erra a vereda interior. Na
maior parte das vezes, porém, ele corrige os equívocos que cometeu.
Alguns
erros da História da Filosofia tornaram-se célebres. Em 1426, Jean Gerson denunciou
a “confusão geral das ordens de conhecimentos” que se estabelecera na Europa
cristã. Étienne Gilson descreve aquela crise do pensamento medieval[6]:
Cada uma [dessas ordens] serviase do modo de significação próprio
de certa disciplina, feito para determinado objeto, a fim de resolver os
problemas colocados por outra disciplina e outro objeto. Ele [Gerson] via os
mestres de gramática, cujo objeto é a congruidade do discurso, resolverem seus
problemas pelos métodos próprios da lógica, cujo objeto é a verdade ou a
falsidade das proporsições, enquanto os mestres de lógica pretendiam resolver
por esses mesmos métodos os problemas da metafísica, ciência que não concerne
às proposições mas às coisas, e que gramáticos, lógicos e metafísicos
acreditavam poder resolver por todos esses métodos ao mesmo tempo os problemas
da teologia, como se essa ciência não tivesse seus métodos próprios e seu
objeto próprio, que é a palavra de Deus.
Desses
equívocos resultaram contendas e confusões, em muitas áreas. A própria Reforma
constituiu uma reação à tentativa viciosa de produzir Teologia a partir da
Filosofia, com esquecimento da fonte própria daquela. Coisas semelhantes se deram,
ao mesmo tempo, em outros ramos do saber. Reflexões inteiras se equivocaram, ao
se desgarrarem da senda em que se desenvolviam. Esses equívocos generalizados afetaram
o pensamento medieval como um todo e, por meio dele, induziram o extravio de
incontáveis pensadores do fio de suas intuições originais.
De
tempos em tempos, essa espécie de equívoco relacionado à natureza de uma
reflexão se torna comum. Penso ser esse o caso da nossa época, na qual se
tornou frequente desenvolver reflexões sociológicas como se fossem filosóficas
ou adotar uma teoria particular para criar filosofias inteiras. Essas
empreitadas, embora comuns, estão fadadas ao fracasso. Não podem terminar em
contribuições relevantes para a Filosofia, já que resultam de erros na escolha
do caminho reflexivo a ser trilhado.
Quantos pretendem, à
força de evocações, extrair uma filosofia da Sociologia, quando não querem
confundir simplesmente uma disciplina com a
outra! Como no tempo de Gerson era urgente separar nitidamente as tarefas da
Gramática, da Lógica, da Metafísica e da Teologia, estamos numa época em que se
tornou necessário debelar o caos das misturas e das reduções para voltar a
fazer Filosofia como Filosofia, Direito como Direito e Filosofia do Direito
como Filosofia do Direito.
Incursões na teoria da linguagem, na Sociologia ou em outra
ciência social podem ser realizadas, com proveito, pelos filósofos do direito.
Isso é incoercível. Porém, é preciso limitá-las e, principalmente, submetê-las
a certas regras. Não é possível permitir que se desenvolvam de modo a transparecer que a Filosofia do Direito é Linguística,
epistemologia ou ou Sociologia. O que
significa que é preciso retornar sempre à Filosofia e à Filosofia do Direito,
como a clareza metodológica exige.
Neste
compêndio da reflexão filosófica interminável que tenho empreendido sobre o
direito, é meu objetivo manter a maior fidelidade possível aos princípios
enunciados acima para retornar com frequência à trajetória iniciada em meus escritos
dos anos 1980 e 1990. Para isso, deverei ater-me à intuição original daquelas
obras, que se exprime na máxima de Ruy Barbosa ligeiramente aditada: não há
direito, nem há justiça onde não haja Deus. Portanto, há direito com Deus.
Devo
ater-me, outrossim, às questões metodológicas, cuja desconsideração induz a
mistura indevida de temas e inviabiliza a reflexão ordenada. Essas questões são:
de onde partir? E como proceder a partir desse ponto?
Na
primeira parte desta série, ocupar-me-ei desses tópicos. A pergunta sobre o ponto
de partida será respondida com ajuda da filosofia perene. À segunda indagação
(como proceder a partir desse ponto?) darei a resposta da ciência moderna,
convicto de que a melhor atualização possível de uma antiga filosofia é a
adição não de especulações sobre o que pode ser, mas de descobertas sobre o que
é.
À
pergunta gravada no título desta série responderei que a Filosofia Jurídica
é a própria Filosofia[7]enquanto
se ocupa do direito e dos valores cardeais que ele afirma[8].
Porém, se o tratamento ordenado de uma matéria requer principiarmos do geral e
descermos ao particular, a reflexão sobre o direito deve partir de uma
concepção definida de Universo, sem a qual ela estará fadada a partir de uma
quimera e chegar a outra. Por isso, nesta primeira parte da séirie, discutirei
os rudimentos da concepção de mundo e de sociedade de que parto.
Bergson
forneceu parte importante da moldura em que tenho inserido a tela de minha
reflexão especial sobre o direito. Ele, com quem me encontrei, perplexo,
ao assistir às aulas de Goffredo Telles Júnior, há mais de 30 anos. Claro que,
daquele a este ponto, bebi de diversas fontes, mas sinto não me ter embriagado
com elas, nem me apartado muito de Bergson e de Goffredo. Ao contrário, ainda
ouço intrigado as palavras com que o pensador francês iniciava os alunos nos
mistérios de sua intuição primordial: “Considero que o ser vivo seja de direito
consciente; torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência adormece”[9].
Inspiradoras
palavras, santa paixão.
DEUS E A JUSTIÇA
Uma
das obras de Filosofia do Direito que causaram maior impacto nos últimos anos é Justiça – o que é fazer a coisa
certa, em que Michael Sandel combate a teoria política liberal. Na edição
em português do livro, lemos[10]:
A teoria política liberal nasceu de uma tentativa de poupar a
política e a lei de se emaranharem em controvérsias morais e religiosas. As
filosofias de Kant e Rawls são a expressão mais completa e clara dessa
pretensão.
Essa pretensão,
no entanto, não pode ser bem-sucedida. Muitas das questões mais ardentemente
contestadas de justiça e direitos não podem ser discutidas sem que sejam consideradas
controversas questões morais e religiosas.
Sandel
relata que os Estados Unidos começaram a admitir, claramente, a inusitada
orientação política que admite mesclar direito, moral e religião, a partir dos
governos de Barack Obama, que declarou, num famoso discurso sobre o papel da
religião na política, que[11]
os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem
sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass,
Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King – na
verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos – não
somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião
para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam
levar sua moral pessoal para os debates sobre políticas públicas é um absurdo.
Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela
fundamentada na tradição judaicocristã.
Em
1993, publiquei Filosofia do
direito positivo, permitam-me dizer,
sob essa exata perspectiva. Por tratar de Filosofia, o livro alicerçava
na Metafísica a posição favorável à reintrodução da temática moral e religiosa
no debate acadêmico. E a proposta que formulava não se restringia ao
reconhecimento da importância dos temas morais e religiosos para a Filosofia do
Direito, mas também para o direito positivo.
Todavia,
um problema tornava difícil a aceitação da proposta naquela época. Refiro-me às
críticas, às vezes atrozes e pouco esclarecidas, que tinham sido dirigidas
à Metafísica, nos últimos séculos. Por isso, no primeiro texto desta série, procurei
apresentar um balanço das maneiras pelas quais ainda é possível justificar a
Metafísica, após a revolução científica. Lembro-me de ter identificado dois
métodos pelos quais aquela disciplina pode ser justificada sem
apequenar o papel da Teodiceia, que cuida da questão de Deus. Pareceu-me, na
época, que ou afirmamos uma Metafísica sem Deus, ou, se queremos uma que
preserve os valores religiosos, devemos voltar-nos às propostas de Kant e de
Kierkegaard[12]:
O filósofo alemão [Kant] afirmou que “o ser supremo, segundo
aquilo que é em si mesmo, é para nós inteiramente impenetrável e até, de modo
determinado, impensável; somos assim impedidos [...] de determinar a natureza
divina, mediante propriedades, que, no entanto, são sempre tiradas da natureza
humana”.
Em
pleno Iluminismo, Kant pensava o mundo como efeito da ação divina, mas
reconhecia que Deus não pode ser conhecido em si mesmo[13]:
A natureza da causa suprema permanece-me
desconhecida; comparo somente o seu efeito, que me é conhecido (a ordem do
mundo), e a sua conformidade à razão com os efeitos também de mim conhecidos da
razão humana e dou, por isso, à causa suprema o nome de razão, sem lhe atribuir
como propriedade o que precisamente entendo no homem por esta expressão.
A
justificação da Metafísica por Kant permanece num pináculo da Filosofia, mesmo após
o desenvolvimento da ciência. Em nada se confunde com as justificações do
pensamento religioso com base em interpretações literais de crenças que
atribuem características humanas a Deus. Daí haver Kant afirmado que Deus é
incompreensível à razão e que a tradição religiosa obstinou-se num erro ao
concebê-lo com atributos humanos. Por isso, ao atualizar a Metafísica e a
Teodiceia com ela, Kant propôs que o inveterado vício antropomórfico fosse
corrigido. E, no minuto em que o fez, inseriu-se no número dos pensadores
deístas. Essa, em linhas gerais, a justificação da Metafísica por Kant.
A
outra justificação mencionada em meu livro de 1993 foi a do filósofo
dinamarquês Sören Kierkegaard, para quem as descobertas da ciência confirmam
que Deus se insere no território do incognoscível. “Nenhuma lógica, nenhuma
demonstração real, disse Kierkegaard, dão apoio à fé”[14].
Mas, exatamente por Deus não ser conforme a razão, continua Kierkegaard, a
revelação sobre ele pode ser aceita, com base na fé, nos termos em que foi
entregue pela tradição. Se nenhuma doutrina a respeito de Deus é superior a
outra, não há por que modificarmos a que a tradição nos comunicou.
Isso
é tão mais verdadeiro quanto reconhecemos à tradição sobre Deus o papel de
núcleo de toda a cultura ocidental. Um resto de razão, aquele que antecede a
loucura, basta para entendermos que uma cultura, em sua enormidade tanto
horizontal quanto vertical, é um objeto quase tão incompreensível para o homem
quanto Deus. Isso é especialmente veraz para aquilo que constitui o núcleo das
diversas culturas.
Se
Deus é o núcleo da cultura ocidental e das que derivaram dela, como o DNA é o
núcleo da célula, devemos ter tanta confiança em extirpá-lo quanto temos em
arrancar o DNA das células do nosso corpo. E, se aceitarmos essa ponderação,
como fez Kierkegaard, aceitaremos não só a ideia de Deus, portanto o deísmo,
mas também a tradição a respeito dele, portanto o teísmo.
Este
o balanço que apresentei dos modos como é possível justificar o papel da
Metafísica na Filosofia, após o Iluminismo e a Revolução Científica. Após tê-lo
exposto, concluí[15]:
Kant pretendeu um meio-termo entre o
ateísmo e o antropomorfismo, julgando fugir assim ao dogmatismo, mas temo que o
meio-termo desejável não seja esse, e sim aquele entre o ateísmo e o próprio
dogmatismo.
Declarei
que esse “meio-termo (entre o ateísmo e o dogmatismo) é o antropomorfismo”. A
posição assim defendida corresponde à que foi[16]
advogada, com certas variações, por Kierkegaard e seus seguidores,
que resgataram o teísmo por inteiro, exceto na sua racionalidade antropomórfica
[colocando-o] “num dos únicos lugares absolutamente seguros e inatingíveis
pelas farpas da ciência: a irracionalidade.
O
trecho acima esclarece que a fundamentação desejável da Metafísica não coincide
com o dogmatismo, pois dele se afasta tanto quanto do ateísmo. Isso faz claro
que a fundamentação que eu buscava, em 1993, não era dogmática.
Por
outro lado, o meio-termo entre os extremos do ateísmo e do dogmatismo foi claramente
identificado com o teísmo. E, para definir que espécie de filosofia teísta propunha,
o texto admite que é impossível referir-se a Deus sem utilizar fórmulas
antropomórficas. Assim, ao manter-me distante do ateísmo e do dogmatismo, rejeitei
juntamente o deísmo de Kant, por ser antiantropomórfico.
Kierkegaard
reconhecia os problemas do antropomorfismo das religiões ditas superiores, mas
o fazia diferentemente de Kant, que repelia todo e qualquer recurso
antropomórfico por não satisfazer as exigências da razão. Kierkegaard, por sua
parte, percebia a inconformidade do antropomorfismo à razão, mas
o aceitava por considera-lo existencialmente imprescindível para o
homem.
O
antropomorfismo das representações religiosas é, portanto, o ponto em torno do qual
se travam as principais disputas sobre o papel de uma Metafísica que ainda
reconhece importância à ideia de Deus. A rejeição categórica do antropomorfismo
caracteriza a posição de Kant e seus seguidores. A aceitação justificada dele define
a doutrina de Kierkegaard.
O
problema é que a natureza racional do homem exige que a última posição seja
complementada de alguma maneira. É que a conta da desrazão de que Kierkegaard
debita tanto, não é infinita. A incompreensibilidade é um argumento plausível e
de peso, mas não de valor infinito. Por isso, a invocação da fé para
fundamentar a Metafísica na irracionalidade não é totalmente satisfatória para
um ser racional. As coisas ficam ainda piores quando consideramos que a
Metafísica é parte da Filosofia, na qual vigora o primado da razão, não o da
fé.
Falta, pois, algo
(um complemento) para que a fundamentação de Kierkegaard coloque-se em
condições de ser aceita. O complemento que propus, em 1993, foi a demonstração
de que as doutrinas antropomórficas mais importantes do Cristianismo não foram
refutadas pela ciência.
Essa
conclusão não se estende a todas as doutrinas antropomórficas, sem distinção.
Há mitos que atribuem traços humanos a Deus sem qualquer critério racional
claro, ao passo que outras tradições religiosas são mais semelhantes à razão. É
o caso particular da doutrina cristã da criação do Universo por Deus. Na primeira
parte de Filosofia do direito
positivo, esforcei-me para demonstrar que essa
doutrina de inegável colorido antropomórfico não foi refutada pela ciência.
O
método pelo qual conduzi a demonstração foi a crítica da causalidade[17]:
No grande complexo que Miguel Reale chamou
ontognoseológico, tanto a natureza objetiva quanto a razão humana que a estuda
e nela se inclui se organizam segundo o princípio geral da causalidade. Tudo o
que é natural é causal; apenas o sobrenatural pode não ser causal [...] A
física quântica, a teoria da relatividade e as descobertas da Filosofia da
Ciência no século XX desenvolveram uma percuciente crítica do princípio da
causalidade, não o refutando, nem exatamente o atacando, mas demonstrando o seu
verdadeiro enquadramento na natureza.
O
exame crítico da massa de relações causais do Universo é capaz de conduzir a
conclusões mais ou menos prováveis sobre a intervenção de Deus nela, se as
considerarmos à luz dos avanços científicos mais recentes. Por um lado, esse
exame demonstra que “a genial intuição de Charles Darwin, unida a um colossal
trabalho de compilação de provas em A
origem das espécies” não pode ser negada, nem “o gigantesco e habilidoso
labor de seus sucessores propondo teorias, coligindo provas, compulsando toda a
literatura, pesquisando exaustivamente em laboratório etc.”[18].
Por outro lado, ele permite concluir que a evolução não se deu às cegas e que a
instância superior do real dirigiu o processo evolutivo[19].
Esse
entendimento da evolução foi proposto, pelo próprio Darwin[20].
Poucas décadas depois, o padre e paleontólogo francês Pierre Teilhard de
Chardin deu-lhe importante desenvolvimento à luz das descobertas de sua ciência
e da Genética fundada por Mendel.
A
posição de Chardin não se confunde com a do design inteligente, pois se baseia
na noção de tenteio, que é uma espécie de acaso dirigido. Na Evolução Teísta, a
ação de Deus incide sobre o acaso, modificando-o sem o eliminar. E, como Deus
não elimina o acaso, a evolução se faz compatível com as idas e vindas, os
ziguezagues, os avanços e retrocessos, enfim com o desenho não linear de
formação das espécies que a ciência descreve. O design, por sua vez, baseia-se num plano racional contrário ao
acaso, que se choca com ele e, por isso, limita o seu papel.
Essas
as linhas gerais da crítica da causalidade desenvolvida em Filosofia do direito positivo.
Se tivesse de abranger no menor número de palavras o resultado dela, diria que
o papel de Deus na evolução reforça as tendências naturais do processo, pois em
nenhuma estrela errante está escrito que Deus, se existir e tiver intervindo na
evolução, terá feito isso contrariamente às leis naturais criadas por ele
próprio.
Desse
modo, aproximado ou preciso, não importa tanto, a crítica dos fenômenos pode
ser utilizada para evitar que a Metafísica repouse na pura irracionalidade,
como Kierkegaard sugeriu que fizesse. A crítica tem o potencial de fornecer, e
de fato fornece, um complemento à justificação da Metafísica pelo filósofo dinamarquês,
com base na demonstração de que as representações religiosas mais importantes
do processo natural, como a criação cristã, não foram refutadas pela ciência.
Claro
que eu poderia ter ingressado diretamente na discussão dos aspectos morais e
religiosos das questões jurídicas, sem desenvolver, como fiz, a crítica da
causalidade. Porém, pareceu-me que, se tivesse sido assim elaborada, a
discussão pareceria privada de um fundamento racional claro. Por isso, entreguei-me
a propor aquele fundamento, pela justificação da Metafísica com base na crítica
da causalidade.
Tenho
consciência de não haver buscado, em meu trabalho de 1993, a realização de
projeto distinto do que Michael Sandel sugeriu em Justiça. Há ressaltada
coincidência de pontos de vista em Filosofia do direito positivo e na obra de Sandel. O que
diferencia o tratamento da imbricação de direito, moral e religião que eu
desenvolvi daquele de Sandel é a justificação da Metafísica que propus como
base para ela. Vimos que Sandel fez a sua proposta repousar na crítica da teoria
liberal. Num plano profundo, porém, apoucadas as distinções comezinhas, as duas
obras desenvolvem o mesmo projeto jurídico.
A
reflexão filosófica que elaborei, em 1993, não tinha o propósito de reafirmar a
teoria política liberal. Pelo contrário, afastava-se dela. A combinação da
doutrina jurídica com temas morais e religiosos é, por si, uma agenda
antiliberal. Perde, portanto, tempo e o fio da meada quem tenta encontrar em
minhas obras um viés liberal contrário a minhas intuições originais.
Bergson
lembrou com razão que, “à medida que procuramos nos instalar no pensamento do
filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina [...] restituir com
uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original”[21]. É
o caso da proposta de combinação de direito, moral e religião que desenvolvi em
1993, a qual pouco tinha de liberal.
Decidi-me
a escrever esta série para mostrar que a propensão liberal tampouco se
desenvolveu mais tarde, de modo contrário às intuições originais de que parti.
É o que penso sobre o desenvolvimento de minha reflexão, ressalvado o melhor
juízo que outros tentaram.
O PAPAGAIO ALEX E A LIBERDADE
Bergson
considerava o ser vivo consciente. Pensava, porém, que ele se tornava
inconsciente “ali onde a consciência adormece” e que, “mesmo nas regiões nas
quais a consciência dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada,
progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os signos exteriores da
duração que caracteriza a consciência”[22].
Não
hauri essa lição de Goffredo Telles Júnior, que foi meu primeiro mestre de
Filosofia, tanto quanto a retive de Bergson. Não que Goffredo a negasse, mas
ele não chegou a generalizar a respeito da consciência, como o filósofo
francês.
Tanto
um como o outro desenvolveram a Filosofia por um método raro. Bergson e
Goffredo realizaram incursões significativas em segmentos das ciências naturais
do seu tempo. Tornaram-se, assim, filósofos empíricos.
Quando um
filósofo abraça o método empírico de trabalho, geralmente o faz com
finalidades heurísticas, ou seja, para descobrir algo novo e significativo ou,
pelo menos, para aplicar as descobertas de outros a um ou mais problemas
filosóficos. Quer, o filósofo, com essas descobertas, banhar uma antiga questão
filosófica de luz nova.
Porém,
dentre os filósofos versados em Filosofia e ciência natural, alguns realizam
isso com considerável sucesso, outros, nem tanto. Bergson, por exemplo,
defendeu toda uma série de teses filosóficas com base em dados científicos. É o
caso da presença da consciência em todo ser vivo (panpsiquismo), da ideia de
evolução criadora, que ele defendeu no livro de mesmo nome, e da minuciosa
crítica da relatividade encontrada em Duração
e simultaneidade [23].
Porém, a tese que ele pretendeu assentar por meio de provas empíricas mais
abundantes foi a da existência do espírito, que ele tentou provar em Matéria
e memória, mediante o estudo do cérebro e, em particular, de uma disfunção
conhecida como afasia.
Embora
tenha aplaudido, com entusiasmo, a tese central de Matéria e memória, Goffredo,
por sua vez, avançou desse resultado para outro, que apresentou em Direito
quântico e na Ética [24]:
É óbvio que a ordem reina no Universo. Ora, a ordem, no Universo
material, há de ser, também, uma disposição conveniente de seres. E essa
conveniência (como sucede na ordem ética) há de ser estabelecida em razão de
fins prefixados. De fato, se tais fins não existissem, nenhuma referência
haveria para estabelecer a conveniência dos meios.
O
resultado novo a que Goffredo chegou e que ele anunciou, em textos como o acima
da Ética , foi o de que o Universo é dotado de
uma ordem geral que se impõe por estruturas e comportamentos repetitivos, nos
vários níveis da natureza. Se essas estruturas e comportamentos não existissem,
os subsistemas cósmicos seriam estanques, não se comunicariam, como se
comunicam, e o Universo seria um caos.
Em Liberdade e direito, resumi
essa tese nos seguintes termos[25]:
Estruturas estereotipadas [pelas quais os subsistemas cósmicos se
comunicam] são, por exemplo, as disposições de seres ao redor de outros seres,
que se verificam tanto no nível infraatômico, com [nuvens de] elétrons
movimentando-se em torno do núcleo dos átomos, quanto no nível sidéreo, com os
planetas gravitando ao redor das estrelas e as galáxias ao redor de outras
galáxias. São também estereotipadas as ordenações de elementos químicos em
função do carbono e a ocorrência do mesmo maquinário geral nas células dos mais
diferentes seres vivos.
[...] A própria
liberdade é vista por Goffredo sob este prisma. Interessante é que, embora diga
que a liberdade se manifesta em níveis tão diferentes quanto o infraatômico e o
humano, nosso pensador se refere a uma única e só liberdade.
Ao
debruçar-me sobre a obra de Goffredo, no livro citado, concluí que ele afirmou
que a finalidade está presente em tudo, porém a consciência e a liberdade não.
Nesse ponto, ele diferencia o seu pensamento do de Bergson. É o que encontramos
na seguinte passagem de A folha dobrada [26]:
Vejo a mesma lei de finalidade regendo,
indiscriminadamente, o movimento dos elétrons nos átomos, e o curso dos sois
nos espaços siderais; as reações de afinidade e de repulsa na matéria bruta e o
curso da seiva no vegetal; as contrações da ameba numa primeira manifestação da
vida e a inspiração do poeta como canto do próprio espírito. É sempre a mesma
lei decretando a ordem em todos os domínios. Por que não havemos de acreditar
que essa é a lei da ordem universal?
Porém[27],
embora reconheça a universalidade do princípio da finalidade,
Goffredo não chega a afirmar a universalidade da liberdade, nem no Direito
quântico, nem na Ética,
nem n’A folha dobrada. Pelo contrário, a liberdade é restrita pelo nosso
escritor a determinados níveis ou movimentos específicos na natureza, assim
como o movimento dos corpúsculos quânticos e os processos fisiológicos no
interior da célula viva. [Para Goffredo] somente estes movimentos seriam
livres.
O
objetivo central de Liberdade e direito é mostrar que a generalização a que a
obra de Goffredo tende, mas não realiza (a generalização da consciência e da
liberdade), pode ser realizada com segurança. A liberdade pode ser pensada como
uma faculdade de autodeterminação teleológica, que se desenvolve onde haja
teleologia. E Goffredo afirma, em alto e bom som, que a teleologia está
presente em toda parte[28]:
A liberdade sempre foi considerada uma
exceção no concerto cósmico [...] Porém, ela deve ser considerada a regra.
Todos os seres moventes são livres, porque todos se comportam teleologicamente.
Não há movimento, senão teleológico. Do mesmo modo, não há movimento, a não ser
livre.
Como
defender essa tese, a que cheguei com base nos dados empíricos apresentados em Liberdade e direito, contra o argumento
de que a pedra se move, ao ser arremessada, mas nem por isso é livre? O que quis
afirmar, naquele livro, foi exatamente a distinção entre mover-se e ser movido.
Não postulei e jamais pensei que o que é movido, a exemplo da pedra arremessada,
é livre, mas que tudo o que se move ou que tem em si a causa de seu movimento é
livre.
Como
adotei o método reflexivo de Goffredo e Bergson, esforcei-me para coligir e citar
dados científicos que demonstrassem que o que se move o faz teleologicamente,
portanto com consciência dos fins a alcançar. Reuni, pois, a conclusão de
Goffredo sobre a finalidade à de Bergson a propósito da consciência, a fim de
extrair a minha própria noção de liberdade.
Não
retornarei, aqui, às evidências apresentadas naquela obra. Limitar-me-ei a
citar pesquisas posteriores a ela que confirmam a tese de que a liberdade
encontra-se em toda a natureza.
Começarei
pelas descobertas do cientista Daniel Chamovitz, que publicou um artigo no
qual demonstra que os vegetais são capazes de cheirar e ter outras sensações
típicas do que denominamos conhecimento. De acordo com ele[29],
se colocarmos uma fruta madura e outra verde no mesmo saco, a
verde amadurecerá mais rápido [do que o faria fora do saco]. Isso se dá porque
a madura libera um feromônio responsável pelo amadurecimento. A fruta verde
cheira-o e então amadurece. Esse fenômeno acontece tanto nas nossas cozinhas
quanto na natureza. Outro exemplo de planta que cheira é o dos parasitas que
não realizam fotossíntese e dependem de outras plantas. Esses parasitas
encontram seus hospedeiros pelo cheiro.
A
consciência dos animais também foi demonstrada por Irene Pepperberg, professora
de cognição animal em Harvard cujas pesquisas com o seu papagaio Alex[30]
tornaram-se célebres. Alex aprendeu não só a repetir palavras, como os
papagaios em geral fazem, mas a usá-las por iniciativa própria, isto é,
conscientemente. Aprendeu, por exemplo, a construir frases com mais de 100
palavras em inglês.
Em
2013, o neurocientista americano Christoph Koch também publicou um artigo, que
expande a nossa compreensão da consciência. Koch relata sua experiência de convivência
com o Dalai Lama e as pesquisas que realizou sobre o que Sua Santidade lhe
disse[31]:
Este ano, notei como ele [o Dalai Lama] falava
frequentemente da necessidade de reduzirmos o sofrimento de todos os seres
vivos e não apenas de todas as pessoas. Minhas leituras de filosofia levaram-me
ao panpsiquismo, visão segundo a qual a mente (psyche) está presente em
tudo (pan). O panpsiquismo é uma das mais antigas doutrinas filosóficas.
Foi lançado pelos gregos, na época clássica, em particular por Tales de Mileto
e Platão. O filósofo Baruc Spinoza e o gênio matemático e universal Gottfried
Wilhelm Leibniz, que lançou as bases do Iluminismo, defenderam o panpsiquismo tanto
quanto Arthur Schopenhauer, o pai da Psicologia Americana William James e o
paleontólogo jesuíta Teilhard de Chardin.
Koch
citou os principais argumentos que os adversários do panpsiquismo costumam
levantar contra ele[32]:
Um é o problema
dos agregados. O filósofo John Searle, da Universidade da Califórnia, Berkeley,
o expressou da seguinte maneira recentemente: “A consciência não se pode
espalhar no universo como uma fina camada de geleia. Tem de existir um ponto em
que a minha consciência termina e a sua começa”. De fato, se a consciência está
em toda parte, por que ela não anima o iPhone, a Internet ou os Estados Unidos
da América? Além disso, o panpsiquismo não explica por que um cérebro, que é
consciente, quando posto no liquidificador e reduzido a pasta, deixa de o ser.
Koch
refuta essas objeções com relativa facilidade, mediante as pesquisas de outro
neurocientista, Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin Madison, que mostrou
que
num cérebro em que alguns neurônios estão em atividade e outros
inertes, é possível computar com precisão a extensão da rede formada por eles.
Desse cálculo, a teoria [de Tononi] deriva um número &PHgr (pronunciado
fi) [...] Pense em fi como
a sinergia do sistema. Quanto mais integrado um sistema, mais sinergia tem e
mais consciente é.
Koch propõe uma abrangência menor para a
consciência e a liberdade do que sugeri em Liberdade
e direito. Porém, o fundamental em sua obra é ter demonstrado que esses
fenômenos são muito mais disseminados do que, durante séculos, a ciência e a
Filosofia admitiram e nos levaram a admitir. Por ciência e Filosofia, entenda-se
aqui o mainstream dessas
disciplinas.
Se
ancorarmos a liberdade no conceito de consciência baseado em fi, como Koch
pretende, teremos um grau de extensão muito grande para os dois fenômenos,
porém não a ponto de abranger todo movimento. Por outro lado, se a fizermos
depender mais da finalidade que da consciência, como sugeri em meu livro, os
fenômenos terão alcance maior. Vejamos como essa última possibilidade pode ser discutida
e, quiçá, defendida.
Além
do senso comum, o óbice principal à concepção alargada de fim que Aristóteles e
Goffredo defenderam é a filosofia kantiana, que entende a finalidade como um
conceito subjetivo, pelo qual o entendimento se refere ao mundo. Como conceito,
a finalidade é desprovida de realidade. Nada há, no mundo, que corresponda a
ela. A consequência radical desse pressuposto (a finalidade) outro pressuposto
(a liberdade). Assim, na doutrina de Kant, o movimento de um animal é
considerado livre com base em pressupostos nunca comprovados.
Neste
ponto, é importante lembrar que filósofos com propensão matemática, como
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, propuseram uma arguta refutação da
concepção de conhecimento de Kant e dos neokantianos. A refutação baseia-se na crítica
dos conceitos kantianos de espaço e de tempo. Russell expôs o seu pensamento
sobre essas formas da sensibilidade nos seguintes termos[33]:
Muitas vezes [os kantianos] dizem que
espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que
fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem
ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos
a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que
podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade,
contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os
correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o
mundo fenomenal.
Russell
desconfia profundamente da tese kantiana de que o espaço e o tempo são
subjetivos. Para ele, essas formas da sensibilidade, como Kant as denominou, ou
categorias, como as chamou Aristóteles, correspondem a estruturas reais do
mundo. É fundamental sublinhar que a correspondência não se dá em pontos
acessórios ou secundários, mas na estrutura, que é a mesma no conceito e no
mundo.
Russell
explicou a correspondência entre o objeto e a percepção em linguagem matemática[34]:
Duas relações têm a mesma estrutura quando
têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que
definimos como número de relação é exatamente a mesma coisa que é obscuramente
significada pela palavra estrutura.
Nessa
obra, Russell demonstra sua confiança na superioridade da linguagem matemática
em relação à comum, cujas descrições da percepção sensorial ele classifica como
obscuras. Se as teorias do conhecimento derivadas de Kant puderem ser refutadas
do modo proposto por ele, a finalidade e os outros conceitos por meio dos quais
pensamos o mundo deverão corresponder a dados estruturais dele.
Em
outras palavras, se Russell estiver certo, a finalidade não será um conceito
criado arbitrariamente pelo entendimento: um pressuposto que um hábito
inveterado faz repousar noutro pressuposto. Será, ao mesmo tempo, um dado do
mundo real. E, se um dado real, ou negaremos que os fins sejam determinados
pelos seres que se movem ou restará considera-los livres.
Um
experimento físico ajuda a entender que o comportamento das micropartículas observa
esse padrão muito proximamente. Uma fonte emite um feixe de luz, que se divide
ao incidir num espelho semiprateado M1. Da divisão
resultam dois feixes que são, a seguir, refletidos por espelhos
comuns A e B e se reencontram num ponto P, em que está posicionado outro espelho
semiprateado M2. O experimento demonstra que o cruzamento dos raios
luminosos em P, após a reflexão nos espelhos comuns, produz uma interferência.
Amit Goswami explica[35]:
As duas ondas criadas pelo feixe que se
divide em M1 são [...] forçadas por M2 a
interferir construtivamente em um dos lados de P (onde, se colocarmos um
contador de fótons, o contador produz uma série de cliques) e, destrutivamente,
no outro lado (onde o contador nenhum clique produz). Note que [...] temos que
concordar que cada fóton se divide em M2 e viaja pelas
rotas A e B. Não fosse assim, de que maneira poderia haver interferência?
Esses
fatos indicam que os fótons que já ultrapassaram P, quando o espelho M2 é
posicionado, comportam-se coordenadamente com as partículas situadas no
espelho. Assim, o conjunto formados pelos fótons no espelho e além dele adotam o
mesmo padrão de comportamento, independentemente da posição em que estão.
O
ponto do experimento que importa à nossa discussão é que a coordenação entre
os fótons situados no espelho e além é instantânea. Tão-logo M2 é
posicionado, as partículas entram em coordenação. Não há necessidade
de tempo para que isso aconteça, o que indica que os fótons não trocam sinais
convencionais.
A
conclusão de que os fótons não trocam sinais baseia-se na premissa estabelecida
por Einstein de que qualquer sinal leva tempo para viajar no espaço. Como a
interação envolve emissão de sinais, que levam tempo para se deslocar, é
forçoso concluir que a interação dos fótons do experimento ocorre instantaneamente.
Em suma, o experimento demonstra que o comportamento de micropartículas não é
determinado por qualquer espécie de interação com objetos externos, mas apenas
por elas próprias. Exatamente o que o princípio da finalidade afirma.
A
evidência fornecida por esse experimento não tem o apelo imediato de fatos como
os que se referem à consciência das plantas e às proezas do papagaio Alex, mas
é a mais significativa devido à abrangência. Se tudo é feito de micropartículas
como os fótons, e a causa do movimento delas é tão radicalmente interna,
proveniente delas e de nenhuma outra parte, não é razoável considera-lo um
indício de que o alcance do pansiquismo é maior, muito maior do que os próprios
reinos animal e vegetal?
O resultado do
experimento dos fótons converge, espantosamente, com antigas especulações da
Metafísica Cristã. Ao longo da História, a Igreja incorporou à sua doutrina uma
metafísica na qual a finalidade tem lugar de destaque. Na Encíclica Laudato
si, publicada recentemente, o Papa Francisco declarou que “o Criador [...]
está presente no íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua
criatura, e isto dá lugar à legítima autonomia das realidades terrenas"[36].
A declaração, para mim
espantosa, está inserida no capítulo do texto papal dedicado à teologia da
criação, o que torna claro o alcance universal da "autonomia das
realidades terrenas" a que ele se refere. Minha concepção da
liberdade não se afasta, antes converge, nesse ponto particular, com a visão
católica do mundo.
Isso mostra que o
perguntar e responder filosófico sobre a liberdade não nos remete somente à
questão sobre a natureza. Por ele somos introduzidos também na questão sobre a
estrutura fundamental do mundo. O conhecimento daquela estrutura não nos
permite só saciar uma curiosidade. Torna, ao mesmo tempo, possível o discurso e
a linguagem, cujas categorias fundamentais aludem a ela. No fundo, a indagação sobre
a estrutura da natureza é a própria pergunta sobre a possibilidade da linguagem
e, por ela, da convivência humana. Sem o patrimônio comum das categorias e
outros conceitos fundamentais, não seríamos capazes de nos comunicar e viver em
sociedade. Seríamos ainda humanos?
A HIPÓTESE DE DARWIN
A Teoria da Evolução sempre constituiu uma
preocupação superior, um motivo de máxima atenção para mim. Em 2008, após quase
três décadas de reflexão sobre o tema, publiquei A hipótese de Darwin, onde expus as principais cogitações e os
resultados centrais de minha perquirição sobre o tema. Lembro-me de, na
Introdução àquela obra, ter-me referido a interpretação de Gilles Lipovetsky,
segundo o qual os acontecimentos revolucionários do século XX levaram “a
modernidade aos seus mais extremos limites”[37].
Com essa afirmação, quis
mostrar que as transformações do último século não se puseram em colisão com o
espírito da Modernidade, mas levaram as aspirações dela às últimas
consequências. Nas palavras do meu livro de 2008[38]:
De fato, se alguma mudança radical ocorreu na maneira
de os homens verem o mundo e construírem o seu destino nos últimos séculos, ela
se localizou na passagem à modernidade, não no advento de uma pósmodernidade. A
modernidade é uma tentativa de construção de sociedades voltadas à afirmação do
indivíduo, em relativa harmonia com forças externas ao mundo dos homens (forças
divinas), não um projeto antirreligioso ou uma experiência de desencantamento.
O projeto dessa construção nunca foi executado por
meio de uma ruptura total com a tradição das épocas anteriores. Pelo contrário,
o quilate revolucionário do movimento moderno deve ser aferido pelo grau de
composição entre o individualismo atual e os valores herdados do passado. A
modernidade, no fundo, é uma combinação, uma composição desses dois elementos,
o seu caráter revolucionário sendo medido pela maior ou menor concentração das
práticas novas em relação às antigas.
[...]
Esse tipo de irrupção do antigo no novo é uma característica inalienável do
movimento histórico, que não posso deixar de apontar novamente, ao lembrar uma
lição que pode parecer óbvia, mas nem sempre é respeitada pelos autores
modernos: aquela segundo a qual a atualidade não é feita pela superação total
do passado. Pelo contrário, o desafio específico de cada época é inserir os
fios das novidades históricas no tecido que a sua geração recebe dos
antepassados. Não é diferente na época em que vivemos.
Quer-me
parecer que a existência e a intervenção de Deus no mundo constitui a ideia
mais fundamental, dentre todas as que a modernidade herdou do passado. Ao realizar
o balanço das transformações em marcha na época atual, devemos principiar pela
observação de que, assim como a idéia de Deus não foi rejeitada na fase inicial
da modernidade, ela não precisa ser rejeitada na fase atual de desenvolvimento
avançado dos ideais modernos. É o que pretendo mostrar neste livro.
Se a
Idade Moderna se caracteriza pela afirmação do indivíduo humano, a inalienável
importância cultural de Deus impõe a necessidade de uma harmonização do
individualismo moderno e contemporâneo com elementos das mundivisões
transcendentes recebidas do passado. O indivíduo humano deve ser protegido
absolutamente, porém não se deve perder de vista que essa proteção se baseia,
também, em valores religiosos tradicionais.
Por
menor que possa parecer a influência do deísmo ou do teísmo nos meios
universitários de hoje, o entretecimento deles com o individualismo moderno é
constantemente tramado em todas as outras instâncias culturais. Numa tomada de
visão bem ampla, a cultura hipermoderna é teísta. Tão teísta que a
generalização das combinações de ideias teológicas com criações culturais
modernas torna enigmática a resistência a intervenções sobrenaturais adotada
nos meios universitários. Por que razões um único setor da cultura haveria de
se opor ao fundamento das construções em marcha em todos os outros setores? A
pergunta não tem resposta óbvia.
O
fundamental e o característico tanto da Modernidade quanto da Pós-Modernidade é
a superação e confirmação simultâneas de ideias religiosas, não a simples eliminação
delas. Se por um lado questiona e elimina um número de ideias religiosas, por
outro a Modernidade confirma doutrinas religiosas fundamentais. Esse é o método
específico pelo qual a Modernidade se constroi.
Nos
nossos tempos, vemos instituições e ideais tão antigos quanto a família, a
religião, a autoridade paterna, e valores como a benevolência e a feminidade
serem transformados de mil maneiras, sem jamais deixarem de existir e de se
revigorar. Somos autorizados por esses fatos a propor a abolição de ideias
tradicionais como Deus? Não me parece que seja o caso.
É
possível citar fatos do nosso tempo, que exemplificam a hibridação de elementos
antigos e atuais na contemporaneidade. Um deles é a influência da religião na
política norteamericana. Outro é a pressão exercida pelo movimento
criacionista, que se desenvolveu nos Estados Unidos, onde também assumiu formas
novas, como o design inteligente.
Nomes como os de Henri Morris, Duane Gish e Michael Behe estão associados às
principais etapas desse movimento. No Brasil, figuras como os ex-Governadores Anthony
e Rosinha Garotinho e a ex-Ministra e candidata presidencial Marina Silva
professaram adesão ao movimento; na Holanda, há poucos anos, a Ministra Maria
van der Hoeven defendeu o ensino do design
nas escolas. Enfim, o movimento está em ascensão, no mundo todo. Entre os
muçulmanos, há um grande grupo antievolucionista liderado por Adnam Otkar. A
Torah Science Foundation judaica tem a mesma finalidade. Trata-se de um estado
de espírito extremamente relevante, que cresceu a partir do epicentro das
sociedades desenvolvidas e se espalhou por todo o mundo civilizado.
A
esquerda rançosa insiste em empacotar isso e o mais que não compreende ou de
que discorda num só volume ao qual não hesita em assentar o rótulo conveniente
de conservadorismo. Pode de fato existir algo nefasto nesse conservadorismo.
Quero esclarecer que me
identifico com muitas ideias denominadas progressistas. Na verdade, identifico-me
com tantas delas e tenho tal anelo pelo triunfo de concepções progressistas do
mundo que escrevo para encontrar um caminho que permita transformar o
hiperurânio cosmo progressista num mundo factível e histórico.
Nesse
ponto é que a ideia de conservação se imiscui. Se for despojada do ranço
contrário à “revolução permanente” da esquerda, que acaba no giro de 360 graus,
a ideia de conservação, em vez de impedir, poderá ser útil à implantação de uma
revolução cultural orientada por ideias progressistas, uma vez que está animada
de algo essencial à viabilidade de qualquer transformação histórica.
A
incapacidade de dialogar com o passado na intensidade exigida pelo processo
histórico inviabiliza qualquer revolução. Nietzsche anunciou a falência, o
estado de putrefação do fundamento teológico-metafísico da cultura ocidental
por meio de uma expressão morte de Deus[39], que se
fez abjeta a muitas pessoas.
Creio não me equivocar
quando considero que Deus, na filosofia da morte de Deus, não é apenas um ser
real ou hipotético, mas o amplo fundamento filosófico e teológico de toda a
cultura ocidental. Deus é a base das crenças, valores e do próprio
funcionamento das instituições cristãs e seculares ocidentais. Nietzsche
anunciou o esgotamento definitivo do modelo civilizatório calcado nessa ampla
base filosófica e teológica.
O
que me levou a investigar em profundidade a Teoria da Evolução foi a percepção
de que o dogma da criação especial encontra-se no cerne da base filosófico-teológica
da cultura ocidental abalada pelo movimento da morte de Deus. Do ponto de vista
filosófico, a novidade máxima da visão monoteísta do mundo não é o Deus supremo.
É a criação do mundo por Deus, vale dizer, não um processo criador qualquer,
mas um especial, vale dizer, um ato originador intencional e movido por um
poder que não conhece limites.
Embora
a revolta contra Deus (quero dizer contra o mundo erguido sobre essa palavra)
não tenha cessado de se desenvolver durante séculos, enquanto a ideia da
criação especial não foi abalada, nas décadas que se seguiram à publicação de A origem das espécies, de Charles
Darwin, a concepção teológico-metafísica à base do mundo ocidental manteve a
sua hegemonia. A obra de Darwin deu os motivos para que o terremoto final se
desencadeasse.
Curioso
é que o terremoto ocorreu contra a vontade do autor da teoria que o
desencadeou. Darwin nunca propôs a remoção total da ideia de criação especial
herdada da tradição judaicocristã. Ele não via “qualquer bom motivo para os
pontos de vista apresentados neste volume [A
origem das espécies] chocarem os sentimentos religiosos de alguém”[40]. Mais
do que isso, Darwin pode ser apontado como precursor da doutrina da Evolução
Teísta, ao propor que a primeira ou as primeiras formas de vida foram criadas
por Deus, tendo a evolução se desenvolvido a partir daí.
No século de Laplace, Darwin não
encontrou fundamento científico para afirmar que a matéria viva se autoorganizou
a partir da matéria inanimada. Ao contrário de Laplace que, indagado por
Napoleão onde ficava Deus em seu sistema, respondeu "Não preciso dessa
hipótese", Darwin sempre demonstrou precisar da hipótese teísta. Ele até
mesmo a inseriu na Teoria da Evolução. Não se pode negar que A origem das espécies admite que a
evolução se seguiu a um ato ou a uns poucos atos de criação especial de formas
de vida por Deus. Nas palavras do próprio Darwin[41]:
Há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus
vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo
em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando
segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha
insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir.
Em outra passagem de sua mais famosa
obra, Darwin defendeu os pontos de vista dos homens de ciência que admitiam a
criação especial de uma ou de umas poucas formas de vida, opondo-os às ideias
dos cientistas que defendiam a criação especial de todas as espécies. Ao expor
o embate entre esses dois grupos de cientistas, Darwin especificou o que
pretendia dizer com as poucas formas de vida, a partir das quais a evolução
teria ocorrido. Mostrou que alguns cientistas afirmavam a criação especial de
quase todas as espécies sem responder uma série de indagações fundamentais como[42]:
A cada ato de criação foi produzido um único ou muitos
indivíduos? O número infinito de tipos de animais e de plantas que já existiram
foi criado em forma de ovos e sementes ou em forma adulta? Os mamíferos foram
criados com as marcas enganosas da amamentação materna? Sem dúvida, algumas
dessas perguntas não podem ser respondidas pelos que acreditam no aparecimento
ou criação de umas poucas ou de uma única forma de vida. Alguns autores
sustentam que é tão fácil crer na criação de um milhão como de um único ser.
Mas o axioma filosófico da menor ação, enunciado por Maupércio convida à adesão
à última tese.
Por isso o mestre da demonstração
científica concluiu[43]:
Não posso colocar em dúvida que a teoria da
descendência com modificação compreende todos os membros de uma mesma grande
classe ou reino. Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou
cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior.
Esse
texto sugere que as quatro ou cinco formas primígenas de animais foram criadas
por Deus, assim como poucas outras formas de plantas. Essa parece ter sido a
posição pessoal de Darwin sobre a origem dos ancestrais remotos dos seres
vivos. Não há grande divergência, se existir alguma, entre a posição que
defendo sobre a evolução e a que Darwin expôs em sua clássica obra.
Não
foi sem razão que Darwin exigiu para si o título de teísta: “Quando medito
dessa maneira, sinto-me atraído a observar a Primeira Causa como tendo uma
mente inteligente em algum grau análoga a essa dos homens; e mereço ser chamado
Teísta”[44].
Embora
aceitasse a designação de agnóstico recém cunhada por Thomas Huxley[45], Darwin
considerava esse termo em sentido diferente do que ele assumiu mais tarde.
Tomava-o, com toda probabilidade, num sentido compatível com a admissão de
algum grau de intervenção divina na história natural. No mínimo, podemos
admitir que o agnosticismo de Darwin era especial o bastante para comportar
alguns atos de intervenção transcendente.
Quanta
diferença em relação ao pensamento pandirecional que alguns denominam pós-moderno!
Darwin move-se em quatro ou até em oito direções. É o que um ser humano pode
fazer sem se perder: mover-se para o norte, para o sul, para o leste, para o
oeste ou ainda para o nordeste, o sudeste, o sudoeste ou o noroeste, com ajuda
de uma boa bússola.
A renúncia a mover-se em
todas as direções é fundamental para o homem. Infelizmente, os pós-modernos,
pós-capitalistas, pós-teológicos, pós-jurídicos, enfim os pós-tudo querem revolucionar
tudo ao mesmo tempo, o que implica mover-se em todas as direções: terminam por
descrever o giro de 360 graus que caracteriza o seu pensamento.
Lembro
essas coisas com o objetivo de tornar nítidas as linhas mestras da propedêutica
filosófica em que tenho balizado o meu pensamento. Não tenho a intenção de
provar qualquer coisa sobre criação ou evolução, Deus ou o ateísmo, em espaço
tão mínimo quanto o deste artigo. Publiquei A hipótese de Darwin e outros livros exatamente para fornecer tal demonstração,
nos limites da minha capacidade.
A demonstração parte da
hipótese da criação afirmada por Darwin ao desenvolver cientificamente a Teoria
da Evolução. Não só parte como é a demonstração daquela hipótese. Deixa claro,
com isso, que Darwin é, ao mesmo tempo, patrono da criação e da evolução ou,
como Teilhard de Chardin ensinou, da Evolução Teísta.
É
preciso não recebermos o preço da pós-modernidade em notas de três dólares. Pós-modernidade
nunca foi, não é e não poderá ser, no futuro, um mundo sem Deus ou sem
Teologia. Por isso é melhor receber o preço da pós-modernidade em notas de um
dólar. Dará trabalho conta-las, mas a opção envolve vantagem tão fundamental
que não é necessário alardeá-la.
A GRANDE ALIANÇA
A unidade da História da Filosofia recebe forte testemunho
do fato de que os filósofos, geralmente, definem o conteúdo do seu pensamento
por identificação, ao mesmo tempo, com escolas da Antiguidade e da atualidade.
Não é usual pensadores identificarem-se só com escolas antigas ou só com
recentes, talvez porque têm a intuição comum da continuidade que há entre elas.
Mas,
para essa continuidade ser verdadeira e não ilusória, é preciso mostrar, um
pouco melhor, em que consiste a unidade de escolas filosóficos cujo entrechoque
na História é evidente. Penso que essa unidade é, antes de tudo, explicada pelo
fato de as correntes de pensamento e seus representantes agruparem-se em dois
campos principais, com base na afinidade entre eles.
Embora
se afastem reciprocamente em tantos assuntos, as escolas também têm pontos de
contato, em razão dos quais se aproximam. Ao se aproximarem, elas dão origem tanto
a concepções de mundo quanto a famílias de concepções ou metavisões
filosóficas. As metavisões principais da História da Filosofia são a materialista
e a metafísica.
Por
razões culturais, os primeiros filósofos, conhecidos como pré-socráticos, foram
materialistas. Coube a Platão e Aristóteles desafiar o materialismo em que a
cultura grega se movia, ao promoverem a primeira reação vigorosa às mundivisões
pré-socráticas. E o método pelo qual eles levaram a cabo essa reação foi o da
Metafísica. Fica, assim, claro que a oposição entre essas duas metavisões data
dos próprios primórdios da Filosofia.
Curioso
é que a oposição não desapareceu com a morte de Platão e Aristóteles. Prosseguiu,
ao contrário, ao menos até a difusão do Cristianismo no mundo romano se
completar. Porém, no período de Aristóteles ao Cristianismo, a metavisão
dominante entre os filósofos continuou a ser o materialismo. E, em que pese o
sucesso do Cristianismo ter feito as doutrinas materialistas recuarem, da Idade
Média ao início da Modernidade, do século XVIII em diante, observamos o retorno
vigoroso da metavisão mais antiga, tanto no campo da ciência quanto no da
Filosofia.
O
agrupamento das doutrinas filosóficas a que me refiro, num território
materialista e outro metafísico, é extremamente nítido, do século VI a. C. ao V
d. C. Por causa dele, tão tarde quanto no século IV, a trajetória de Santo
Agostinho do academicismo ao maniqueísmo e deste ao neoplatonismo, até fixar-se
no pensamento patrístico, só se compreende à luz da atração que o materialismo
exerceu sobre aquele pensador cristão. E tão nítida quanto a oposição entre
materialismo e metafísica, nos dez primeiros séculos, continua a ser a que se
restabeleceu na Filosofia, a partir do século XVIII.
Mas,
se o agrupamento das doutrinas, por treze séculos, deus e com base
na polarização, em que outro período de treze séculos, a visão
metafísica reinou de modo tão inconteste. Do início do século V ao início do
XVIII, os espíritos continuaram a divergir no que tange às visões de mundo, no
entanto observamos forte convergência no tocante às metavisões. Nesse período,
onde quer que a Filosofia tenha sido cultivada, os filósofos se apresentaram
como metafísicos. E, até em terras onde o Cristianismo não prevaleceu, como
entre judeus e muçulmanos, a Metafísica não deixou de constituir o fundamento
de toda a reflexão filosófica.
Não
precisamos olhar para esse período intermediário, em que a tensão entre
Metafísica e materialismo se dissipou, como se um houvesse suprimido o outro. É
preferível afirmar que, ao longo da Idade Média, o materialismo tornou-se
prático, que ele se refugiou na aplicação das artes do Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e do Quadrivium
(Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). De fato, por serem vistos
como artes e terem fins práticos, esses conhecimentos permaneceram autônomos em
relação à Filosofia governada pela Metafísica. Serviram para orientar o trato
do homem medieval com a matéria e mostrar que, ao contrário do que se tornou
habitual afirmar hoje em dia, ele não apequenou a dimensão material ao ampliar
a espiritual.
Numa
metade da História da Filosofia, portanto, as escolas se agrupam, nitidamente,
nos territórios materialista e metafísico. Na outra metade, a Metafísica parece
suprimir o materialismo, não sem que ele continue a constituir, de certa
maneira, a face oculta dela. De sorte que, opostos ou conjugados, ocultos ou
manifestos, os dois constituem as metavisões principais, vale dizer,
as visões de visões de mundo filosóficas. Por isso também, ao transitarmos
entre as doutrinas filosóficas, só enxergamos as cores da paisagem na medida em
que mantemos consciência dos espectros materialista e metafísico que a
dominam.
A
História da Filosofia não pode ser bem compreendida, sem essa consciência.
Tampouco a Filosofia pode ser posta em prática sem ela. Contudo, as metavisões
também são visões do mundo. Remetem-nos e devem-nos remeter ao que é como algo real.
Filosofar é refletir sobre o mundo como ele é. Daí a necessidade de
perguntarmos o que a realidade de fato é e, no caso da Filosofia do Direito, o
que a realidade social é.
Não
pode ser considerado absurdo a Filosofia do Direito construir-se sobre uma
reflexão a respeito da sociedade. Pelo contrário, é imperativo que seja assim. Todavia,
no plano da visão social, sentimos a necessidade de utilizar categorias de
análise diferentes das que usamos para pensar a natureza. Mas que categorias
devemos utilizar e na análise de quais dados havemos de emprega-las?
Essas
questões podem ser examinadas, com particular proveito, à luz das estatísticas
divulgadas por Thomas Piketty no seu livro de 2013 intitulado O capital
no século XXI. A obra se abre com a feliz asserção de que, “para
trazer à tona a questão distributiva, é preciso começar reunindo a base de
dados históricos mais completa possível”[46].
A obra de Piketty tem
sido aclamada por fazer exatamente isso. Por reunir, pela primeira vez,
dados suficientes para uma análise ampla da desigualdade, nos últimos 200 anos.
Esses dados permitiram a Piketty tentar uma reavaliação tão ampla do capital,
no século XXI, que houve quem a comparasse à de O capital, de Karl Marx. É como se o
autor francês tivesse fornecido uma atualização completa do balanço do capitalismo
proposto por Marx no século XIX.
O
próprio Piketty refere-se a Marx como um marco da análise do capital. Não
poderia ser de outro modo. Mas surpreende que, ao tratar de um tema cuja
análise Marx esgotou na sua época, Piketty cometa deslizes conceituais sérios
sobre o economista alemão. É o que ocorre na página 223 da edição brasileira da
sua obra, em que ele se refere ao conceito de taxa de lucro, em Marx, como
sinônimo de taxa de rendimento do capital[47],
sinonímia negada, na página 58, quando Piketty declara que a taxa de
remuneração[48]
mensura aquilo que ele [o capital] rende ao longo de um ano,
qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, alugueis, dividendos,
juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem
do capital investido. Tratase, portanto, de uma noção mais abrangente do que o
conceito de taxa de lucro.
Se
a taxa de remuneração é o que o capital rende (“mensura aquilo que ele rende”),
convenhamos que não pode deixar de ser a taxa de rendimento do capital, aludida
na página 223 como sinônimo de taxa de lucro. O problema é que, na página 58,
Piketty sustenta que a taxa de rendimento ou de remuneração é um conceito mais
amplo que a taxa de lucro, o que implica confusão conceitual.
Esses
não são os únicos trechos em que Piketty tropeça, ao utilizar conceitos de
Marx. Ele se refere à “taxa de exploração, que mede para Marx a parcela da
produção de que o capitalista se apropria”[49].
Ocorre que, em Marx, a taxa de exploração não é isso. Ela é-um sinônimo da taxa
de mais-valia ou razão entre a mais-valia e o capital variável (parte do capital
despendida em salários). Em outras palavras, ao se referir ao conceito marxiano
de taxa de exploração, Piketty põe corretamente a mais-valia no numerador da
fração, mas erra ao inserir a produção no denominador.
É
difícil entender como, de uma apropriação equivocada de conceitos de Marx,
possa resultar a análise superior do capital que tantos encontram na obra de
Piketty. Principalmente, se a teorização de Marx a respeito do tema for, de
algum modo, vital para a teoria econômica. Por isso, é desde logo duvidoso e
suspeito que Piketty tenha superado, realmente, Marx.
O
que o economista francês demonstra, em seu livro, é a persistência histórica de
um tipo de desigualdade que podemos denominar proporcional. A condição da
classe trabalhadora não é retratada, diretamente, na grande maioria dos dados do
livro que exprimem aquela desigualdade. Até porque os dados mostram uma
desigualdade sempre brutal, ao passo que a condição dos trabalhadores, nos
países capitalistas centrais, melhorou a olhos vistos, nas últimas décadas. Isso
leva a concluir, desde logo, que a desigualdade retratada pela maior parte dos
dados da obra de Piketty, aquela a que ele se refere e denuncia o tempo todo, é
uma desigualdade proporcional, que não exclui o bem-estar simultâneo de todas
as classes.
Além
disso, em muitos trechos de sua obra, Piketty afirma que a única desigualdade
reduzida foi a das classes inferiores em relação à classe média. No entanto, na
página 219 da sua obra, surge a informação surpreendente de que houve “queda da
participação do capital” na renda nacional “de 3540% nos anos 18001810 para
2530% nos anos 20002010, assim como alta correspondente da participação do
trabalho, de 6065% para 7075%”. Esse dado mostra que a desigualdade se reduziu
também na comparação das classes inferiores com as superiores.
A
redução da desigualdade em benefício dos desfavorecidos é a variedade mais
importante desse fenômeno, posto que inverte a tendência de empobrecimento da classe
média, que Marx considerou uma consequência irreversível da Revolução
Industrial. De fato, para Marx, a mecanização da produção ocorrida no século
XIX levaria, inevitavelmente, à redução da participação dos salários na renda e
ao caos social.
Essa
previsão alarmante é refutada pelos dados de Piketty, que mostram que o
contrário se deu, entre o início da Revolução Industrial e o presente. Os dados
só não explicam, muito claramente, por que algo tão surpreendente teve lugar.
Digo
que não o explicam porque, como já informei, para Piketty, a redução da desigualdade,
entre 1914 e 1945, verificou-se apenas entre as classes inferiores e média. Se
uma diminuição de maior alcance se deu em período mais longo (1810 a 2010), os
mecanismos que a produziram devem ter sido distintos dos que promoveram a
igualdade na primeira metade do século passado. Do contrário, a redução de
maior alcance teria beneficiado apenas a classe média, como ocorreu com a outra,
o que não ocorreu. Retornarei a esse assunto na última parte deste trabalho.
Marx
pode (a meu ver deve) ser considerado o maior materialista da História, por haver
clara e extensamente revolucionado a metavisão pré-socrática. Porém, é irônico
que ele não o fez aumentando, mas diminuindo o alcance do materialismo ao ponto
de torná-lo um método de interpretação da História e não do Universo inteiro.
Principalmente os escritos de maturidade de Marx mostram que o seu método
permite entender os modos de produção da História e as sociedades que ajudaram
a plasmar. Porém, ao abordar o capitalismo, Marx alimentou o seu método com premissas
equivocadas. Supôs, por exemplo, que, na etapa industrial, esse modo de
produção levaria à acumulação cada vez maior do capital e à participação
cada vez menor dos salários na renda. Os dados que Piketty divulgou em seu
livro provam que o contrário disso ocorreu.
Mesmo
assim, não podemos julgar o método de Marx com base em informações que ele não
possuía e que só recentemente foram produzidas. E, se considerarmos que o
capitalismo pode produzir os resultados que Marx previu tanto quanto outros contrários,
chegaremos a conclusões totalmente novas pelo método do materialismo histórico.
Essas conclusões não incluirão mais o colapso necessário do regime e sim a
possibilidade de ele continuar a existir por tempo indeterminado.
O
embate de concepções materialistas e metafísicas marca o cenário geral da
História da Filosofia. Entre os materialismos, nenhum alcançou o valor em
realizações do de Marx. Talvez por isso, ele reúna as condições necessárias
para compor a síntese possível das duas grandes orientações filosóficas. Talvez
ele mereça tornar-se uma das sete artes de um novo tempo, em que a oposição de
Metafísica e materialismo, espírito e matéria, dará lugar à acomodação
recíproca deles. A julgar pela exaltação dos espíritos, a aliança das
metavisões é improvável. Contudo, isso torna a sua perspectiva tanto
maior.
De
todo modo, afirmar uma metafísica nunca será o mesmo que resolver os problemas
centrais da Filosofia. Do mesmo modo, estabelecer um materialismo nunca o será.
Precisamos de uma síntese superior das metavisões. Síntese que eu chamaria
grande aliança.
Mas
uma síntese de opostos não conserva a unidade e, por aí, não se viabiliza,
enquanto não define um deles como dominante. Materialismo e metafísica, matéria
e espírito: um elemento de cada par deve dominar o outro para que a síntese
deles se torne viável. Essa foi a intuição original que inspirou meu trabalho
reflexivo.
Bergson
esclareceu que, em seus começos, a obra de reflexão firma-se mais pelo que o
pensador rejeita do que pelo que afirma. Nunca rejeitei totalmente o
materialismo: este é um dado sem o qual não há entrada possível em minhas
obras. Em meus textos mais radicais de juventude, jamais deixei de propor um
compromisso. Daí meus esforços, às vezes imensos, para estudar a ciência na
qual o materialismo se ancorava e compreender-lhe as razões. Porém, não deixei
um fio de dúvida quanto à prioridade que atribuía aos postulados de uma e de
outra corrente da História. Escrevi meus primeiros livros para estabelecer esse
ponto e apenas ele.
Enquanto
os escrevia e firmava o meu ponto, sentia formar-se em mim a consciência de ter
renunciado a escrever um capítulo, qualquer que ele fosse, da História do
Pensamento. E, quanto mais isso sucedia, mais avultava em mim a consciência de
escrever, isto sim, um capítulo de minha história: o primeiro e mais nebuloso,
é verdade, mas de todos o mais fundamental.
A SOCIEDADE E O SAGRADO
Não são muitas as
doutrinas sociais hoje em voga que dialogam com a fé. Dentre as que o fazem,
merece destaque a Doutrina Social da Igreja, constituída a partir da Encíclica Rerum
novarum.
Embora a Igreja Católica
não seja a única a cuidar de questões sociais, a qualidade intrínseca da sua
doutrina a autoriza em maior medida que a maioria das outras. De sorte que se
torna natural para o estudioso tomá-la como ponto de partida do exame das
doutrinas sociais baseadas no Cristianismo.
A Doutrina Social da
Igreja tem tanto antecedentes quanto continuadores eminentes. A Teologia da
Libertação enquadra-se no último caso. Porém, outros autores têm construído uma
contribuição tão relevante e conexa à temática social católica quanto a daquela
corrente. Gianni Vattimo, no âmbito da Filosofia, René Girard e Giorgio
Agamben, na Antropologia e na Filosofia, são bons exemplos. Se recuarmos apenas
um pouco, teremos em Jean Guitton e Henri Bergson representantes da mesma
tendência, entre tantos outros, é claro.
Os mais remotos
antecedentes da Doutrina Social da Igreja são os próprios autores bíblicos. No Livro
da Sabedoria, por exemplo, incluído no cânon católico, mas não no protestante, encontramos
a seguinte dissertação sobre a causa da miséria material:
Os ímpios dizem entre si, em seus falsos raciocínios:
Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece
quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem
não existiu [...] Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das
criaturas com ânsia juvenil. Inebriemo-nos com o melhor vinho e com perfume,
não deixemos passar a flor da primavera, coroemo-nos com botões de rosas, antes
que feneçam; nenhum prado ficará sem provar da nossa orgia, deixemos em toda
parte sinais de alegria, pois esta é a nossa parte e nossa porção! (Sb 2:12, 6:10).
E arremata:
Oprimamos o justo pobre, não poupemos a viúva nem
respeitemos as velhas cãs do ancião. Que nossa força seja a lei da justiça,
pois o fraco, com certeza, é inútil (Sb 2:11).
A relevância desse texto
consiste em dissipar a névoa por meio da qual os cristãos às vezes atribuem a
miséria ao pecado, sem maiores especificações. Explicações como essas têm pouco
de satisfatórias. Em Sabedoria, deparamos uma fundamentação diversa: a opressão
do “justo pobre”, da viúva e do ancião é atribuída a um modo bem definido de
pensar e de ver o mundo. Diz o poeta que os ímpios praticam a iniquidade e se
escusam por ser a vida breve e triste.
A afirmativa tinha forte
razão de ser, num povo carente de bens e de liberdade como Israel. Naquele povo,
a impiedade não era sem justificativa. Ao abater o justo, ao pô-lo por terra, o
ímpio não apenas o tirava de cena. Tentava tornar ineficaz o exemplo de vida
dele:
Cerquemos o justo, porque nos incomoda e se opõe às
nossas ações, nos censura as faltas [...] Vejamos se suas palavras são
verdadeiras, experimentemos o que será do seu fim. Pois se o justo é filho de
Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários. Experimentemo-lo
pelo ultraje e pela tortura a fim de conhecer sua serenidade e pôr à prova sua
resignação. Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem o visite
(Sb 2:12,1720).
Marx pensou a opressão como sujeição
de uma classe a outra. A História mostra que a opressão de classe é um caso
entre outros. Do ponto de vista subjetivo, os comportamentos opressivos talvez
possam ser congregados sob pactos como o hedonista do Livro da Sabedoria ou o
utilitarista, que consiste na associação e assistência recíproca para aumentar
o prazer, a todo custo.
Ante esse quadro, a
mitigação da pobreza por donativos é útil e até necessária, mas não é o
essencial. Essencial é o combate à mentalidade que alimenta a miséria. É o
combate à orgia que nasce de suspirar “Breve e triste é essa vida!” e também
“Nós nascemos do acaso e logo passaremos!” Há senso nessas afirmações: o senso comum,
que constata que em toda a parte vigora a matéria. De fato, para o autor de
Sabedoria, o que exacerba a miséria é a exacerbação do senso comum, é o
fundamentalismo hedonista.
Essa sabedoria quase
ancestral precisa ser novamente ouvida. Apoucá-la, para os povos que se
organizaram em conformidade com as suas tradições, não é muito mais, nem menos que
cometer suicídio cultural. Porém, ao mesmo tempo, é preciso saber
atualizar as fontes e as tradições cristãs por meio de reflexões
renovadas.
Giorgio Agamben é um dos
autores que mais têm contribuído para isso, por meio das suas reflexões sobre
o homo sacer, que pode ser entendido como o homem em seu contato(ancestral e
atual) com o sagrado. Não me deterei nos múltiplos pontos da obra de Agamben,
mas apenas na relação que ele estabelece entre horkos (juramento)
e pistis (fé).
Para Agamben, o
juramento é a base de toda a cultura entendida não como algo próximo do
instinto animal, mas como elaboração sobretudo religiosa, ética e jurídica. Por
entender desse modo a cultura, Agamben localiza a sua gênese no momento pré-histórico
em que aqueles três fenômenos fizeram sua aparição. Não obstante, ele reconhece
que não dispomos de meios para tratar, com mínima segurança, da religião, da
ética e do direito do ponto de vista pré-histórico.
Por esses motivos, uma das
questões mais interessantes que Agamben formula é a do significado da cultura,
como os documentos produzidos na transição para a História a revelam. Sem
pretender extrair daqueles documentos uma prova completa, mas ouvindo
atentamente o testemunho deles, Agamben sugere que, no momento crucial da
transição à História, a cultura parece basearse na instituição do juramento.
Toda uma demonstração
desse ponto e das relações entre o juramento, a religião, a moral e o
direito encontra-se em Homo sacer (II, 3). Ela se constroi ao
redor das antigas noções de bênção e maldição, bem e mal, certo e errado,
obrigatório e proibido. Essas noções, postula Agamben, formam o que podemos
considerar o patrimônio comum das culturas.
Não me deterei na
demonstração queAgambenrealiza do sentido de tal patrimônio, que é
primorosa e firma uma autoridade, embora não uma prova. Optarei por deter-me na
relação que ele enuncia entre horkos e pistis.
Tanto horkos como pistis
constituem noções fundamentais. No entanto, o juramento é primeiro, por ser
a instituição cultural básica, nem apenas religiosa, nem só juridica, mas
religiosa e jurídica. Esse caráter básico do juramento, Agamben deriva o
juramento da função que ele exerce na linguagem humana.
Do ponto de vista dos
primeiros documentos históricos, o homem se ergue da natureza ao regular a
instituição do juramento. Ao entender-se como ser falante, ele exerce a opção
de se pôr ante o bem e o mal, ou entre eles, por meio do juramento. Jurar é
afiançar a verdade de algo. Mais ainda, é prometer conduzir-se em conformidade
com tal verdade.
Ao realizar essas
coisas, o juramento institui a fé (pistis)[50]:
Dumézil e Benveniste reconstituíram, a partir de dados
sobretudo linguísticos, as linhas originais da antiquíssima instituição
indoeuropeia que os gregos denominavam pistis, e os romanos, fides (em
sânscrito,sraddha). A fé é o crédito com que se conta junto a alguém,
como consequência do fato de que somos abandonados confiavelmente a ele, ligando-nos
numa relação de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confiança que depositamos
junto a alguém – a fé que damos – quanto a confiança com que contamos junto a
alguém – a fé, o crédito que temos.
Até que ponto a fé a que
Agamben se refere coincide com a do Antigo e do Novo Testamentos? Para
responder essa pergunta, precisamos recordar que a fé mencionada por Dumézil
e Benveniste é a dos povos indoeuropeus e, particularmente, a dos gregos,
romanos e indianos.
Vale lembrar que o
hebraico, que descende do semítico ocidental, não se inclui no caudal das línguas
indoeuropeias. Portanto, a fé judaicocristã, que plasmou a cultural ocidental, não
se inscreve na descrição de Dumézil, Benveniste e Agamben.
No Período Helenístico
e, mais intensamente, nos séculos em que o evangelho se propagou pela costa do
Mediterrâneo, a dupla noção de fé descrita por Dumézil e Benveniste entrou em
contato com o conceito judeu correspondente. Observamos, porém, que eles jamais
se fundiram ou coincidiram.
Assim, quando lança mão
da palavra pistis, em Romanos e Gálatas, o apóstolo Paulo não
importa os sentidos gregos do termo na sua inteireza, antes transmite o sentido
judaico por meio da palavra grega. Esse sentido é principalmente o da fé que
temos (em Deus), como o salmista a exprime: “Confia no Senhor e faze o bem;
habita na terra e alimenta-te da verdade”[51]. E de
novo: “Descansa no Senhor e espera nele”[52].
De fato, entre os judeus
e os cristãos, o último aspecto da fé (o crédito que temos com Deus) tem
importância muito superior à do outro (a fé que atestamos), posto que Deus, não
o homem, é a ideia fortíssima da cultura judaica. Esse sentido da fé pode ser
melhor elucidado por comparação com a acepção correspondente do termo entre os
gregos e os romanos[53]:
Numa guerra, a cidade inimiga podia ser vencida e
destruída com a força (kata kratos), enquanto seus habitantes eram
mortos ou reduzidos à escravidão. Contudo, também podia acontecer que a cidade
mais fraca recorresse ao instituto da deditio in fidem, ou seja,
que capitulasse, remetendo-se incondicionalmente à fides do inimigo,
comprometendo-se assim, de algum modo, o vencedor a assumir um comportamento
mais benevolente.
Isso é pistis como
fé que se tem. A especificidade judaica é ter feito de pistis uma fé que se tem “em Deus”. Como Paulo a apresenta, o homem
enfraquecido pelo pecado é semelhante ao povo subjugado pelas armas inimigas.
Está exaurido e reduzido à incapacidade para qualquer atitude diversa da
submissão. Em tal condição, o homem não tem fé a outorgar, a atestar ou a dar
em penhor da verdade. Tem somente fé a receber, fé como crédito.
Paulo declara: “Com o
coração se crê para justiça”[54]. Isso é
também fé judaica: confiança tranquila e imersa em silêncio. Para os romanos, “fides é
um ato verbal, acompanhado em geral de um juramento”[55]. Não,
porém, para o judeu, cuja fé é secreta e imersa em silêncio. Verdade é que
Paulo acrescenta, em seguida: “Com a boca se proclama a respeito da salvação”[56]. Sem
dúvida, ele o afirma, mas isso já é confissão, não ainda fé. Tudo considerado,
a salvação, para o apóstolo, abrange-se no enunciado hipotético: “Se, com a
boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”[57].
Na Grécia e em Roma, a
fé estava associada ao juramento. É o que Agamben demonstra. Mas e entre os
judeus? Nosso autor cita Fílon para fundamentar resposta afirmativa à questão. Com
a citação, ele estende a sua teoria para além dos domínios indoeuropeus. E o
faz de modo consistente, pois, se o juramento (horkos) é o sacramento da
linguagem e a base de toda a cultura, não somente da indoeuropeia, necessário é
que os judeus o tenham também em tal conta.
Embora
a passagem de Fílon, que viveu em ambiente fortemente helenizado, em linhas
gerais, ateste a posição de Agamben, há nela diferenciais que precisam ser considerados.
Fílon trata do texto em que Deus fala a Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o
Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras
te abençoarei e multiplicarei a tua descendência”[58].
Esse trecho do Gênesis é
glosado por Fílon, nos seguintes termos[59]:
Ninguém dos que podem dar uma garantia pode fazê-lo
com segurança com respeito a Deus, pois a ninguém ele mostrou sua natureza, mas
a manteve escondida a todo gênero humano [...] Portanto, ele só pode fazer
afirmações sobre si mesmo, pois só ele conhece exatamente e sem erros a sua
própria natureza. Na medida em que só Deus pode, com certeza, comprometer-se
consigo e com suas ações, por isso, e com razão, ele jurou sobre si mesmo.
Fílon enfatiza que Deus
não só jura e realiza, lançando assim a base para a nossa fé, como jura sobre
si mesmo, o que significa que se revela ao jurar.
Podemos assentir com a
aplicação da teoria de Agamben à cultura judaica, com base em Fílon? Sem
dúvida, se o juramento, para os judeus, era antes de tudo um ato de Deus. Deus
é capaz de jurar. O homem só é capaz de imitar os juramentos divinos. Esse é o
provável motivo da restrição que Jesus pôs ao juramento, no Sermão do Monte:
De modo algum jureis, nem pelo céu, por ser o trono de
Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser a
cidade do grande Rei; nem jureis pela vossa cabeça, porque não podeis tornar um
cabelo branco ou preto”[60].
Não jurar por Deus, nem
pelas coisas de Deus não deve ser considerado o mesmo que não jurar de qualquer
maneira. Jesus não veio abolir a lei, que impunha jurar[61]. Não
jurar, no Sermão do Monte, significa apenas que o segundo aspecto do juramento
(o da fé que damos sob garantia)deve ser considerado mais fraco.
Jesus não negou, antes
fortaleceu o sentido de horkos contra as vacilações de sua época.
Ordenou que o juramento não fosse banalizado. Prescreveu a mais profunda
consciência dele. Só Deus pode jurar consistentemente e o faz sobretudo a
respeito de si, não de coisas transitórias. Nós devemos jurar, mas, como esse sentido
de pistis é fraco, entre os judeus, não somos capazes de estabelecer
um fato por meio de horkos. Daí a necessidade, entre os judeus, de
o fato estabelecer-se por duas ou três testemunhas.
Nesse sentido
específico, o juramento é a base da cultura judaica. Em Israel, juramento é a
palavra de Deus, mais que a do homem. Da palavra jurada de Deus emana a vida
humana e a vida social, em particular. A base do trono de Deus é a justiça. Por
isso, é possível e até necessário que a sua palavra jurada constitua a justiça
social.
O mérito maior de
Agamben é ter mostrado o caráter sagrado de algo aparentemente tão neutro
quanto a linguagem. Se a linguagem é sagrada, pois o juramento o é, a cultura
como um todo é sagrada e não há dessacralização possível dela. O anseio de
dessacralização que tudo permeia, no nosso tempo, é um ideal impossível, uma
rebelião destinada a afundar-se ou a afundar a cultura humana.
Por tudo isso, a
ruptura epistemológica que extrai a raiz do juramento e seu sentido
teológico não pode deixar de desarraigar, ao mesmo tempo, a árvore, vale dizer,
a cultura com todas as suas ramificações. Na sociedade, há estruturas caducas
que carecem de ser substituídas e outras fundamentais demais para o serem.
Foi o que assentei, de algum modo, em A
hipótese de Darwin.
Assentei-o na base do
darwinismo e, mais especificamente, de uma de suas correntes (continuada por
Teilhard de Chardin e tantos outros), que merece ser denominada Evolução Teísta
ou Darwinismo Teísta. Porém, o frágil consenso formado em torno dessa doutrina
tem sido forçado a um ponto extremo. E, quando o ideal de ruptura que essa
força extrema propõe contagia como uma febre, que ataca sem qualquer razão,
como acontece hoje, torna-se necessário pensar seriamente se não é chegado o
momento de temperá-lo, de equilibrá-lo de novo com o ideal oposto da fé.
Que dizer do tempo
atual? Agamben é claríssimo[62]:
Prodi abria a sua história do sacramento do poder com
a constatação de que somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida
coletiva sem o vínculo do juramento, e que tal mudança não pode deixar de
acarretar uma transformação das modalidades de associação política. Se, de
alguma maneira, tal diagnóstico for correto, isso significa que a humanidade se
encontra hoje frente a uma disjunção ou, pelo menos, frente a um afrouxamento
do vínculo que, através do juramento, unia o ser vivo à sua língua. Por um
lado, o ser vivo agora está cada vez mais reduzido a uma realidade puramente
biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado artificiosamente
dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnico midiáticos, [encontra-se]
em uma experiência da palavra cada vez mais vã.
Que descrição do fundamento
do nosso tempo, ou da falta dele, poderia ser mais veraz? Cogito as
consequências econômicas do que Agamben escreveu. No interior das empresas dos
nossos dias, no ritmo em que o instinto se fortalece, a cultura mirra, e o juramento
se decompõe em desculpas, pretextos, dissimulações, trapaças e fraudes. Fingir
e iludir, não como os antigos fingiam e iludiam, mas com prodígios de
dissimulação e o mais imperceptivelmente possível fez-se um novo padrão de
comportamento. Por uma estranha alquimia, a traição do juramento transmudou-se,
ela própria, em juramento.
“Juremos ser
levianos”: não foi este o pacto dos ímpios, no Livro da Sabedoria? E não
continua a ser, sob nova roupagem, o pacto dos novos salteadores, o sucedâneo
do roubo, na nossa cultura?
“Imagine”, de John
Lennon, dá boa música e sonhos. Não dá meio palmo de realidade, na medida em
que extingue a religião e conserva a fraternidade num estalar de dedos. Acaba
com a propriedade e conserva os povos, suprime a guerra e institui a paz universal.
É a redução antropológica por excelência: o homem deixa de ser ele inteiro para
ser o seu sonho. Mas, se além de sonho e a par de quimera, o homem puder ser
ele próprio, será precisamente aquilo que a música de Lennon elimina ao cerrar
nossos olhos e que é imperativo preservar ao abri-los.
A DOUTRINA CRISTÃ SOCIAL
Após
o fracasso das tentativas de implantação do socialismo, no século XX, a revisão
do pensamento de esquerda ainda não se adiantou, se é que principiou, tamanha a
desorganização das consciências resultante daquele acontecimento. Todos
concordam que o ideal da igualdade sobreviveu à ruína do socialismo, como a
liberdade escapara ao fracasso do liberalismo. Porém, conclusões menos
abstratas e mais definitivas que essas não foram assentadas, em qualquer dos
dois casos.
O maior legado do
pensamento de esquerda é, para mim, a combinação do ideal da igualdade com a
ruptura epistemológica introduzida pela substituição de um pensamento
tradicional por outro científico e crítico. Diversas propostas de conciliação
do pensamento cristão com esse legado têm sido formuladas. Procuro situar-me na
vertente delas ou, pelo menos, de uma delas. Entre as mais bem-sucedidas, estão
a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação.
Vivemos num tempo em que
tanto o pensamento de esquerda como o de direita perderam o fascínio e não
podem ser mais aplicados, muito intensamente, à sociedade. A situação, lamentável
sob tantos aspectos, envolve, entretanto, um benefício: permite entrever que o
caminho de construção da sociedade futura envolve a combinação de elementos do
liberalismo e da esquerda social.
Essa combinação não
remete necessariamente ao ponto médio entre eles. Tampouco nos relega à
inglória tarefa de inventar o absolutamente novo. Admito a necessidade de
reinventar formas de vida social, mas inventá-las a partir de um marco zero,
qualquer que ele seja, não é lá tarefa humana.
Para combinar elementos
das visões de mundo liberais e de esquerda, em vez de enxergá-las como
absolutamente irreconciliáveis, é preciso encontrar os seus pontos de contato.
Esse é o desafio que aceito e que procurarei responder nesta curta série. E, como
não me compete partir do ponto zero, devo escolher uma das propostas de
conciliação já formuladas sobre a questão social e seus desafios. Por motivos
de afinidade, minha opção será pela Doutrina Social da Igreja.
No entanto, qualquer
aproximação verdadeira da esquerda envolve não só uma forte preocupação com a
igualdade, mas também com a ruptura epistemológica necessária para que o
pensamento se inspire, sem se orientar pelo passado. O que me conduz ao
reconhecimento de que, ao para partir da Doutrina da Igreja, devo buscar a
ruptura epistemológica por conta própria, posto que o Magistério não a realiza.
Mesmo assim, a crítica das teorias sociais de esquerda e direita, realizada pela
Igreja, contém uma abertura para o pensamento social de ruptura que vale a pena
explorar.
A doutrina social
católica começou a ser formulada no pontificado de Leão XIII (18781903), que
publicou uma série de textos sobre a questão social, dentre os quais merecem
realce a Rerum novarum (1891), que contém as bases do
pensamento social católico, Arcanum (1881), sobre a família e
o matrimônio, Diuturnum (1881), que trata da autoridade civil, Immortale
Dei (1885), acerca das relações entre Estado e Igreja, Sapientiae
christianae (1890),que se detém nos deveres dos cidadãos católicos, Quod
apostolici muneris (1878), a respeito do socialismo, e Libertas(1888),
dedicada ao combate às falsas doutrinas da liberdade.
Pelas datas dessas Encíclicas,
percebemos que, ao lançar a mais importante delas, a Rerum novarum,
Leão já se celebrizara como o Papa da questão social. Mesmo sem ter recebido
educação formal em ciências sociais, ele foi logo aclamado não só como fundador
da doutrina social católica, mas como uma das mais importantes vozes da
História sobre as interfaces da questão social com a moral e a religião.
Não muito depois de
Leão, em 1931, Pio XI brindou-nos com outra encíclica social, a Quadragesimo
anno, que contém uma das mais hábeis sínteses do pensamento social
católico. Na parte do texto dedicada ao direito de propriedade, lemos que “o
homem é anterior ao Estado” e “a sociedade doméstica tem sobre a sociedade
civil uma prioridade lógica e uma prioridade real [...] Não é das leis humanas,
mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual”[63].
Nesses trechos, Pio
encadeia três citações da Rerum novarum, cujo quadragésimo aniversário
comemorava, a fim de transmitir o ensinamento tipicamente católico de que o
direito antecede o homem e a família, e ambos, a sociedade civil. As citações
têm o claro propósito de antepor o natural ao jurídico. Por
isso, sugerem que o direito deve seguir os modelos de ordenação
presentes na natureza.
Os motivos desse
entendimento são claros. A natureza não se autoorganizou. Ela foi criada por
Deus. Na Doutrina da Igreja, essa é uma ideia matriz. Pio, porém, a ultrapassa
ao afirmar que Deus não apenas criou o Universo como inspirou nossos
antepassados a forjar uma ordem social que reflete a razão natural[64]:
O que temos ensinado acerca da restauração
e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá realizar-se sem a
reforma dos costumes, como até a mesma história eloquentemente demonstra. De
fato, houve já uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de
algum modo, dadas as circunstâncias e exigências do tempo, conforme à reta
razão. E se essa ordem já de há muito se extinguiu não foi de certo por ser
incapaz de evolucionar e alargar-se.
A palavra restauração
sugere que a doutrina católica não tem por finalidade implantar algo novo, mas
recuperar o que existiu em outras épocas. Daí a convicção que exprimi de que
ela não realiza ruptura epistemológica alguma, em relação ao contexto social de
hoje. E, para não pensarmos que as coisas que carecem de restauração são uns
poucos elementos antigos, é importante observar que Pio se refere a toda “uma
ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de algum modo [...]
conforme à reta razão”. O ideal natural católico não é só ideal, nem só
natural. Ele se realizou. Tomou a forma visível não de um ou de outro costume,
mas de toda uma sociedade.
A que época Pio XI
alude? À medieval, pois nela e só nela a Igreja realmente reinou, às vezes
sobre boa parte do orbe. Não por acaso, a Idade Média é também a época a que a
Igreja retorna para haurir a teologia que entende sobressair a todas as outras:
a de Santo Tomás.
Assim concebido, o
direito natural católico não se baseia apenas na ordem natural que antecede o
homem, mas, também e principalmente, num modelo histórico de sociedade. O que significa
que o parâmetro daquele direito não é a natureza, na sua imutabilidade, mas a
sociedade, como setor dela, e uma sociedade particular, que a Igreja reputa o
modelo prático da reta razão: a sociedade que existiu na Idade Média.
Embora a atração
católica pelo medieval seja questionável, a historicização do ideal de uma
sociedade, vale dizer, a sua realização parcial no plano dos fatos tem grande
interesse, pois provê ao direito natural uma face histórica que, a um tempo,
aumenta a sua nitidez e permite explicar as imperfeições da justiça humana sem
deixar de conectá-la à que se inspira na natureza. Para a Igreja, nenhuma
sociedade é um espelho perfeito da razão natural. Nem sequer a que ela toma
como modelo. Porém, isso não impede que ela constitua uma manifestação
privilegiada do direito natural.
Até aqui, não
vislumbramos abertura alguma para o pensamento social de vanguarda. Porém, a
Doutrina da Igreja não inclui somente a defesa de um modelo social do passado,
de corte medieval, mas também a crítica das sociedades presentes. Essa é a
vertente na qual ela se abre para o pensamento progressista.
Pio recorda que[65]
no fim do século XIX, em consequência de um novo gênero de
economia, que se ia formando, e dos grandes progressos da indústria em muitas
nações, aparecia a sociedade cada vez mais dividida em duas classes: das quais
uma, pequena em número, gozava de quase todas as comodidades que as invenções
modernas fornecem em abundância; ao passo que a outra, composta de uma multidão
imensa de operários, a gemer na mais calamitosa miséria, em vão se esforçava
por sair da penúria.
No esforço de interpretar
esse estado de coisas, a Igreja identifica nele a dominação econômica dos mais fracos
pelos poderosos[66]:
Desde que as artes mecânicas e a indústria
moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões
inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como o remoto Oriente cultivado já
na Antiguidade, cresceu desmesuradamente o número de proletários pobres.
Fica, assim, claro que o
princípio por trás da Doutrina da Igreja, o ponto em que ela se torna mais útil
ao progresso social, é a identificação e a denúncia de males sociais como “violações
da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores”[67].
Expressões como essas tornaram-se comuns, nos documentos da Igreja, desde o
final do século XIX.
A justiça a que Pio se
referiu é obviamente a natural, mas uma justiça natural historicizada ou
encarnada, para nos valermos do evocativo termo da doutrina teológica em ela se
inspira. A justiça historicizada da Igreja não é um ideal naturalizado. É algo
distinto disso. É um ideal encarnado não só em Jesus Cristo, mas na sociedade
constituída pelos seus seguidores.
Todo valor tem como um
de seus atributos a realizabilidade. Isso significa que tanto os valores
individuais como os sociais realizam-se, em alguma medida, na História. Não é
diferente com a aparição e o desenvolvimento da justiça, numa sociedade. Também
eles constituem a realização parcial de um valor, mediante a transposição do
plano ideal ao da História.
A mesma lógica permite
identificar, a contrário senso, o que se contrapõe ao ideal da justiça, no
âmbito histórico: “Por muito tempo pôde o capital arrogar-se demasiados
direitos. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si”[68].
Pio condenou nesses termos a traição do caráter social da propriedade. Para
ele, quando essa forma de relação difundiu-se, no século XIX, “apregoava-se
que, por fatal lei econômica, pertencia aos patrões acumular todo o capital, e
que a mesma lei condenava e acorrentava os operários à perpétua pobreza e vida
miserável”[69].
Todavia, uma série de
ressalvas aninha-se nessas denúncias, de modo a afastar a coincidência aparente
com as posições de esquerda. A primeira ressalva nos lembra que a natureza do
regime capitalista “não é viciosa” e que “só viola a reta ordem, quando o
capital escraviza os operários ou a classe proletária”[70].
Pode parecer estranho a
Igreja sustentar a natureza não viciosa do capital e, ao mesmo tempo, defender
a função social da propriedade. Quadragesimo anno desfaz a
aparência de contradição, no trecho em que lemos[71]:
O direito de propriedade é distinto do seu
uso. Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a
divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do
próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão
honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo
cumprimento não pode urgir-se por vias jurídicas.
A justiça comutativa
impõe que A não viole a propriedade de B, e B, a de A. Porém, nada sabemos de
uma justiça que obrigue os proprietários a usar o que é seu de maneira
altruísta. Agir com altruísmo não implica satisfazer a justiça, comutativa ou
distributiva, mas outras virtudes, como a magnificência. É o que Pio sustenta.
Ele tem claro que a justiça, numa concepção social, não é o mesmo que a
magnificência. Aquela é tutelada pelo direito, esta não. Nunca se viu a lei
obrigar o pedestre a dar esmola ao mendigo que lhe suplica. A generosidade e o
altruísmo não são tuteláveis juridicamente. Por isso, como direito natural, a
propriedade orienta-se ao benefício de todos, mas não compulsoriamente.
Essa lição não se
encontra apenas em Pio, mas também em Leão, João XXIII, João Paulo II e
Francisco. Enfim, está em toda parte na Doutrina Católica. A justiça envolve as
outras virtudes, mas em medida atenuada. Ela é um compêndio de versões
mitigadas dos outros valores.
Nem o liberalismo, nem o
socialismo conduzem à realização da justiça. No primeiro, as classes se batem para
“alcançar o predomínio econômico; depois combatem-se renhidamente por obter
predomínio no governo da nação [...] enfim lutam os Estados entre si”[72].
No socialismo, as liberdades individuais são sacrificadas, sem ganhos notáveis
para o conjunto social.
Não é difícil perceber, nessas
lições da Doutrina Social, que a Igreja utiliza o flagelo crítico para condenar
tanto os males do liberalismo quanto os dos regimes de esquerda. Ao condená-los,
ela remove coisas bastantes para que a cisão com partes do pensamento antigo penetre
no seu sistema. Porém, não leva a cabo a cisão que inicia, na medida em que não
realiza a ruptura epistemológica com o modelo medieval de sociedade que adota.
Mesmo assim, a Doutrina Social da Igreja torna suficientemente claro que é
possível partir dela, a fim de realizar tal ruptura.
A ruptura epistemológica
a que me refiro foi tentada, de certa maneira, pelas correntes de esquerda, no
interior da Igreja Católica, entre as quais se destaca a Teologia da
Libertação. Duas coisas sobressaem à primeira vista, nos autores dessa corrente
teológica: sua consciência privilegiada da realidade dos pobres e o risco que assume
de tornar secundária a orientação da doutrina cristã ao divino. Os teólogos da
libertação sempre procuraram desenvolver consciência da condição dos pobres, sem
perder controle do risco de priorização do temporal que ela envolve. Leonardo
Boff encontra na encarnação do Verbo, descrita no prólogo do Evangelho de João
(1:114), o princípio de tal equilíbrio[73]:
Que nos diz a tradição dogmática
sobre a encarnação? Que o Filho de Deus deixou sua transcendência e assumiu em
Jesus de Nazaré a natureza humana em situação de carne, quer dizer, limitada,
vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito,
aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma ‘inconfundível, imutável,
indivisa e inseparável’ sendo Jesus, a um só tempo, ‘verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem’ (Calcedônia, ano 451). Mas a encarnação não se limita a
Jesus. Comenta a Gaudium et spes: ‘Por sua encarnação, o Filho de
Deus uniu-se de algum modo a todo homem’ (nº 22).
Boff poderia ter
mencionado outras passagens da Gaudium et spes em prol de sua posição,
como a que afirma que “o Verbo de Deus [...] entrou como homem perfeito na
história do mundo, assumindo-a” (idem. nº 38). De fato, o princípio da
encarnação não envolve só a assunção de um corpo, mas também a da História por
Deus. Esse é o princípio que anima a Teologia da Libertação, se bem a
compreendo. A costura que ela realiza da pobreza em Deus não é exterior,
aparente ou superficial. Não é um remendo, mas um enxerto dela na natureza
divina.
Contra os excessos dessa
visão, um dos mais eminentes teólogos da libertação entre nós, Clodovis Boff,
insurgiu-se, recentemente, ao propor que o princípio Cristo (o Filho de Deus, a
segunda pessoa da Trindade, como fundamento da fé) não inclui a pobreza. Na
linguagem do teólogo brasileiro, isso implica reconhecer a ambiguidade da
Teologia da Libertação, ao identificar o pobre com Cristo em sentido absoluto e
não relativo. Cristo e só Cristo é o princípio fundamental e absoluto da fé.
Sem se esquecer que[74]
princípio
é princípio. É coisa límpida, inequívoca, efeito da reductio ad unum.
Agora, quando se começa a vacilar, falando nestes termos: ‘princípio, sim, mas
mediado’, princípio fé, sim, mas também princípio misericórdia’, ‘Deus, sim,
mas sempre com os pobres’ [como faz a Teologia da Libertação], pronto, acabou-se
o princípio e começou a derivação.
Há, de fato, uma
discrepância entre a ligação da natureza divina à pobreza, que a Teologia da
Libertação realiza, e a interpretação mais aceite da encarnação. Duas fórmulas
tradicionais sintetizam essa interpretação: o cânon de Niceia (325 d. C.) que
declara que Cristo “é gerado, não criado, homoousios (consubstancial)
ao Pai” e o do Concílio de Calcedônia (451 d. C.), segundo o qual é preciso
confessar
um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e
perfeito em humanidade, o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem,
composto de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai segundo a
divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade [...] um só e mesmo
Cristo, Senhor, Filho único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem
confusão.
Grego e latim não são
português ou inglês. No contexto dos primeiros séculos, a palavra ousios e
seu correspondente em latim assumem vários significados. Contudo, o tratamento
que foi dado à primeira, por Aristóteles, fez com que um dos significados
sobressaísse, no âmbito filosófico. Christopher Stead lembra que “a concepção
tradicional supõe que o conceito de ousia
tenha sido fixado pela discussão de Aristóteles nas Categorias”[75].
Não só isso. Do modo como
Aristóteles foi determinante para o estabelecimento do uso filosófico de ousia,
por muitos séculos, os pais capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa
e Gregório Nazianzeno) tiveram peso semelhante na definição do sentido
teológico daquela palavra: "A distinção entre ousia e
hipóstase [...] foi pela primeira vez exposta de modo amplo pelos Padres
Capadócios"[76].
Consistiu em “restringir o sentido de ousia para a espécie; o indivíduo
deveria ser indicado pela palavra hipóstase”[77]. Entre os
padres capadócios e Calcedônia e ainda depois, ousia passou a ser cada
vez mais utilizado para indicar a espécie, e hyposthasis, para
referir-se ao indivíduo.
Assim, quando os documentos
do Concílio de Calcedônia referem-se a Cristo como consubstancial (homoousios)
ao Pai e a nós, a ideia é a de alguém dotado da substância divina, a ideia é a
de alguém pertencente à espécie de Deus. O mesmo pode ser afirmado da
participação de Cristo na natureza humana, que implica o pertencimento à
espécie humana.
Nesses pontos, o uso
teológico concorda com o filosófico, posto que a tradição derivada de
Aristóteles relaciona substância (ousios) com natureza (physis).
Esse o sentido provável da fórmula de Calcedônia citada por Leonardo Boff.
Nenhum versículo do Novo
Testamento usa a linguagem metafísica tão amplamente para afirmar a unidade do
Pai com o Filho. O que há de mais próximo da linguagem de Calcedônia, nos
escritos bíblicos, é “a expressão exata do ser [do Pai]”[78], que o
autor de Hebreus atribuiu a Cristo. O termo grego traduzido ser, nesse texto,
não é ousios, nem physis, mas hypóstasis, que
não é um sinônimo daquelas. Vimos que hypóstasis indica a pessoa. O
sentido evocado por essa palavra é de que Cristo não é a pessoa (hypóstasis)
do Pai, mas a sua expressão exata, sua marca (semelhante à de um selo ou
impressão em relevo).
Porém, a adoção da
linguagem metafísica, pelos autores do Novo Testamento e, em maior medida,
pelos pais que os sucederam, tem uma consequência que não cabe descurar: ela
exclui do mistério da encarnação toda carga relacionada ao contexto ou às
circunstâncias históricas. A encarnação ocorre no tempo. Foi um ponto
assinalado nele. E, se assumiu as circunstâncias do tempo em que se encarnou,
Cristo não pode ter feito o mesmo com as circunstâncias das outras épocas. Se penetrou
pontualmente na História, ele não assumiu o restante do tempo.
As épocas são
históricas; a assunção da natureza humana é metafísica. Cristo uniu-se à
natureza do homem. Não assumiu no mesmo sentido as realidades exteriores da sua
época. Como a pobreza é uma situação social, estender à História o significado
dos símbolos de Niceia e Calcedônia sobre a encarnação, como faz Leonardo Boff,
é um procedimento hegeliano, contrário ao sentido das fontes cristãs.
Não há evidências de que
Jesus tenha nascido pobre, no sentido em que o termo era empregado no primeiro
século. O fato de ter sido posto na manjedoura, após Maria ter dado à luz,
explica-se pela falta de “lugar para eles na hospedaria”[79], não
por uma condição de pobreza atestável. Deitar o filho numa manjedoura, ainda
mais numa viagem e por falta de vaga nas hospedarias, não era um sinal
inequívoco de pobreza, no primeiro século.
Naquela época, não poucas
famílias da Galileia eram abastadas ou pertenciam à classe emergente, por causa
do surto de construções empreendidas por Herodes, o Grande. Não há razão clara
para excluirmos a família de Jesus desse número ou para afirmarmos que ele se
fez pobre ao nascer. Aparentemente, Jesus só se tornou pobre, mais tarde, ao
renunciar aos bens materiais a fim de levar a cabo o seu ministério.
Paulo aludiu a esse fato,
num capítulo dedicado a riquezas materiais (2ª aos Coríntios 8). No nono verso
desse capítulo, lemos que “Jesus Cristo, sendo rico, se fez pobre por amor de
vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos”. Riqueza é um atributo da
forma de Deus, mencionada em Filipenses 2:6. É-lhe, por isso, inerente e
necessária. Pobreza, ao contrário, não é um atributo da condição humana, mas uma
situação contingente. Decorre da escassez de bens vitais. Entre a riqueza e a
pobreza há uma antítese clara. Por isso, não é possível entender a pobreza como
um dado da natureza humana.
Como Paulo as menciona,
a riqueza é espiritual, e a pobreza, material; a riqueza é divina, a pobreza é
humana; a primeira é necessária, a outra, circunstancial. Só assim, elas se
opõem. Só nesses sentidos compõem a antítese que observamos. Só neles é possível
que Cristo, ao encarnar-se, tenha deposto sua riqueza espiritual inerente para
unir-se à natureza humana e, mais tarde, abraçar a pobreza material.
Se a encarnação
incluísse problemas típicos da condição de riqueza ou pobreza própria de um
tempo ou de todos os tempos, por que Cristo respondeu ao homem que lhe pediu
que mandasse seu irmão repartir a herança com ele: “Quem me constituiu juiz ou
partidor entre vós?”[80]. Alguma
vez Jesus se recusou a curar um doente? Não, pois libertar da doença era parte
da sua missão. Contudo, ele se recusou a resolver a querela patrimonial de dois
homens, a fim de mostrar que questões temporais não devem ser tratadas segundo
o princípio da encarnação, nem passaram à responsabilidade de Deus, quando
Cristo encarnou-se, antes permanecem sob a alçada das instituições sociais.
Em Betânia, quando Maria
ungiu Jesus com um óleo caríssimo e foi repreendida por circunstantes, por impedir
que ele fosse vendido, e o valor, dado aos pobres, Jesus afirmou: “Os pobres
sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes”[81]. E
acrescentou: “Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado
o que ela fez”[82].
A doação aos pobres foi
considerada algo santo, mas Jesus ensinou que não deve ser exagerada a ponto de
implicar inversão da ordem de prioridade entre o divino e o humano, na igreja. E,
para deixar tudo claro, ele erigiu o contrário da doação (o desperdício de
Maria) em exemplo para pessoas de todos os lugares e de todas as épocas.
Um dos textos mais
citados por representantes da Teologia da Libertação é a parábola do juiz escatológico.
Não poucos teólogos veem no rei que separa as ovelhas dos cabritos um julgador comprometido
com os pobres: “Então perguntarão os justos [as ovelhas]: Senhor, quando foi
que te vimos com fome e te demos de comer? [...] O Rei, respondendo, lhes dirá:
Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos
irmãos, a mim o fizestes”[83].
Porém, uma série de
dificuldades impede a interpretação dos teólogos da libertação, segundo a qual o
rei escatológico julga com base no o comportamento das pessoas em relação aos
pobres. Primeiramente, o texto é uma parábola. Já por isso, as ovelhas não são
ovelhas literais, os cabritos não são cabritos, os pequeninos não são crianças,
a comida não é comida, nem a bebida, bebida. Isso conduz a interpretação em
direção oposta à sugerida pelos teólogos da libertação, que por comida entendem
comida e por bebida, bebida.
O próprio Jesus afirmou
que as ovelhas são os justos, e os cabritos, os ímpios. Nessa linha de pensamento,
os pequeninos são os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os perseguidos,
enfim todas as classes de bem-aventurados assinaladas pelo rebaixamento
espiritual nesta vida[84].
O objetivo da digressão
acima não é tomar as lições espirituais dos textos citados como fim em si
mesmas, mas extrair suas implicações sociais, visto que a posição em prol da
doutrina cristã social exige esclarecimentos, e eles devem ser precisos.
Claro que as Escrituras
reservam um lugar importante para os pobres. Jesus afirmou que “os pobres
sempre os tendes convosco”[85]. Com
isso, lembrou que a persistência da pobreza convoca-nos a não a perder de vista
e a dispensar-lhe contínua atenção. A diferença entre essa atenção e a ênfase
que a Teologia da Libertação deposita no ministério aos pobres é unicamente de
medida. A opção preferencial pelos pobres não pode ser levada ao ponto da
atenção preferencial à matéria. Enquanto existir miséria, os cristãos estão
convocados a contribuir para atenuá-la, porém não a transformar a reversão da
pobreza em sua missão principal. O cuidado dos pobres e o envolvimento com a
questão da miséria sempre acompanharam a pregação do evangelho. Devem continuar
a fazê-lo. Mas, exatamente por acompanharem-na, elas não se colocam como o
principal.
[1]
MORAIS, Luís Fernando Lobão. O drama do
direito – teoria e prática de uma visão jusfilosófica. Campinas: Julex, 1991
[2]
MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia
do direito positivo. Campinas: EV, 1993.
[3]BERGSON, Henri. O
pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 124125.
[4]BARBOSA, Ruy. Oração
aos moços. Fundação Casa de Ruy
Barbosa. p. 45. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/
artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf. Acesso em 14/01/2014.
[5]BERGSON, Henri. Ob.
cit. p. 126127
[6]GILSON, Étienne. A
Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 887.
[7]
Há amplo consenso entre os jusfilósofos no sentido de que a Filosofia do
Direito é parte da Filosofia e não do Direito (vide, por exemplo, RADBRUCH,
Gustav. Filosofia do direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 5).
[8]
Para uma apresentação do que entendo por Filosofia, seu objeto e método, remeto
o leitor aos três primeiros capítulos do livro A filosofia perene (São Paulo: Themis, 2016).
[9] BERGSON, Henri. Ob. cit. p. 105.
[10]SANDEL, Michael J. Justiça
– o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., Civilização Brasileira, p. 296.
[11]OBAMA, Barack. “Chamamento à renovação”. Citado em SANDEL,
Michael. Ob. cit. p. 307.
[12]
MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia
do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 4344.
[13]KANT, Emmanuel. Prolegômenos
a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70. p. 155.
[14]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 45.
[15]
Idem. p. 45.
[16]
Idem.
[17]
Idem. p. 51
[18]Idem. p. 47.
[19]
Idem. p. 23.
[20]
Sobre a importância de Darwin para a Evolução Teísta, vide o texto desta série intitulado “A hipótese de Darwin”.
[21]BERGSON, Henri. O
pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 125.
[24]TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ética
– do mundo da célula ao mundo da cultura. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p.
256257.
[25]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão
a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. p. 101102.
[26] TELLES JÚNIOR, Goffredo. A Folha dobrada – lembranças de um
estudante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 701702.
[27] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 127.
[28] Idem.
p. 237.
[29]COOK, Gareth.InScientific American.June, 5th,
2012.
[30]
PEPPERBERG, Irene. Alex & me. New York: Harper, 2009.
[31]KOCH, Christoph.“Is
conscience universal?” Scientific
American. 19/12/2013.
[32]Idem.
[34]
Idem.
[35]GOSWAMI, Amit. O universo autoconsciente – como a
consciência cria o mundo material. 3ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
2003. p. 100.
[36]
FRANCISCO. Laudato si. Cap. II, nº
80. Disponível em www.m. vatican.va/content/francesco/pt/ encyclicals/documents.
[37]
LIPOVETSKY, Gilles. “Pós-modernidade e hipermodernidade”. In FORBES, Jorge, REALE JÚNIOR, Miguel e FERRAZ JUNIOR, Tercio
Sampaio. A invenção do futuro.
Barueri: Manole, 2005. p. 66. Para uma exposição exaustiva do conceito de
hipermodernidade, vide, de Lipovetski e CHARLES,
Sébastien. Os tempos hipermodernos.
Grasset & Fasquelle, 2004.
[38]
MORAIS, Luís Fernando Lobão. A hipótese
de Darwin – a compatibilidade entre Deus e a evolução. São Paulo: Themis,
2008. p. 1114.
[39]
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência.
3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 135, 147148, 233234.
[40]DARWIN, Charles Robert. The origin of species. New York:
Penguin, 1958. p. 452.
[41]DARWIN, Charles. The origin of species. In
Great books of the western world. Nova York: Encyclopaedia Britannica,
1993. Vol. 49. p. 243.
[42]Idem.
p. 240241.
[43]
Idem. p. 241.
[44]
Citado em MILLER, R. Finding Darwin’s God. Nova York: Harper
Collins, 1999. p. 287.
[45]
COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus
– um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo, Gente,
2007. p. 105.
[46]PIKETTY, Thomas. O
capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 23.
[47]PIKETTY, Thomas. idem. p. 223.
[48]
Idem. p. 58.
[49]
Idem. p. 517.
[50]AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da
linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG,
2011. p. 34.
[51]Sl 37:3.
[52]Sl 37:7.
[54]Rm 10:10.
[55]AGAMBEN,
Giorgio. Ob. cit. p. 35.
[56]Rm 10:10.
[57]Rm 10:9.
[58]Gn 22:1617.
[59]ALEXANDRIA, Fílon de. Legum
allegoriae. 204208.ApudAGAMBEN,Giorgio.Ob. cit. p. 29.
[60]Mt 5:3436
[61]Lv 19:12.
[62]
Idem. p. 81.
[63]Pio XI. Quadragesimo anno.
II, 1, nº 49.
[64]
Idem. II, 5.
[65]
Idem. nº 3.
[66]Idem. II, 3.
[67]
Idem. nº 4.
[68]
Idem. II, 2.
[69]
Idem.
[70]
Idem. III, 1.
[71]
Idem. II, 1.
[72]
Idem. III, 1.
[73]BOFF, Leonardo. “Pelos pobres, contra a
estreiteza do método”. In Revista Eclesiástica Brasileira.
nº 271.
[74]BOFF, Clodovis. “Volta ao fundamento –
réplica”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271,
2008.
[75] STEAD, Christopher. A Filosofia na
Antiguidade Cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 151.
[76]
Idem. p. 165.
[77]
Idem. p. 152.
[78] Hb 1:3.
[79]
Lucas 2:7.
[80]Lc 12:1314.
[81]Mt 26:613; Jo 12:18.
[82]Mt 26:13.
[83]Mt 25:37,40.
[84]Mt 5:310.
[85]Mt 26:12.