Desde René Descartes, a Filosofia tem passado por um processo de renovação que parece longe de reverter-se. Embora contínuo, esse processo tem-se desenvolvido em direções variadas, sem que o propósito comum de renovar a Filosofia se dilua ou enfraqueça.
Descartes, Kant e Marx talvez tenham apresentado as propostas de renovação mais consistentes e abrangentes, desde que o período de renovação teve início. Os dois primeiros são às vezes colocados numa linha de continuidade como propugnadores de uma nova espécie de racionalismo.
Goffredo Telles Júnior escreveu: “O Cogito, ergo sum [Penso, logo existo] de Descartes constitui a proclamação da autonomia do espírito, e se encontra, por consequência, na base de todos os racionalismos” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 237). A afirmação é precisa. Dentre os novos racionalismos, uns atribuem importância maior, outros, menor ao sujeito, porém todos reservam a ele um lugar de destaque. Nessa medida, os racionalismos modernos reportam-se e permanecem devedores do Cogito cartesiano.
Não é diferente com Kant, cuja dívida para com Descartes chega a ser maior que a de outros pensadores. Nas pegadas do filósofo francês, Kant atribui ainda mais ao sujeito do que outros representantes do racionalismo moderno. Por esse motivo, ele se coloca em relação de continuidade com Descartes. Goffredo observa que o Cogito supera “o velho princípio aristotélico de que nada existe no intelecto que não haja passado pelos sentidos” (idem). Porém, somente na filosofia de Kant a exaltação do sujeito atinge patamar insuperável. Desse modo é possível considerar que as obras de Descartes e Kant iniciaram a renovação mais profunda renovação da Filosofia, nos tempos modernos, pela superação do racionalismo antigo de timbre aristotélico.
Giorgio del Vecchio resumiu nos seguintes termos a realização de Kant, no campo da Teoria do Conhecimento: "Distingue Kant as formas (subjetivas) da matéria do conhecimento. Entre as formas distingue aquelas que tornam possíveis as percepções dos sentidos (formas da intuição) e aquelas que tornam possíveis as operações lógicas (formas do intelecto). As formas que tornam possível a intuição sensível são o espaço e o tempo [...] As formas do intelecto são as categorias. Kant elaborou uma tábua dessas categorias, reduzindo-as a quatro espécies (quantidade, qualidade, modo e relação); cada espécie abrange três categorias" (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. pp. 107-108).
Pode parecer que, ao colocar a forma em oposição à matéria do conhecimento, Kant retomou o velho par de conceitos de Aristóteles. Mas a verdade é bem outra. Nem matéria, nem forma, para Kant, são o que são para Aristóteles. Na filosofia kantiana, forma da intuição ou do intelecto é um conhecimento prévio utilizado para tornar objetos cognoscíveis. De fato, o tempo e o espaço possibilitam a formação de objetos sensíveis, e as categorias, a criação dos conceitos das coisas.
Por serem imanentes ao sujeito e não ao real, as formas não põem o conhecimento em conformidade com as coisas como elas são em si mesmas. E, visto que só podemos conhecer o que as formas do conhecimento nos facultam, “não há ciência das coisas em si, mas apenas dos fenômenos [coisas percebidas]” (idem. p. 109).
Vemos que a revolução kantiana não aprofunda a obra de Descartes apenas ao colocar o sujeito no centro da reflexão filosófica, mas também ao dividir o conhecimento desse sujeito numa espécie que produz objetos e outra que não os produz. Goffredo esclarece que, para Kant, “os conceitos em geral não são formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ob. cit. Vol. I, p. 208).
Dessa explicação extraímos que as percepções e os conceitos são produzidos pelo sujeito por meio das formas. O resultado é a criação de objetos antes não cognoscíveis. Com isso, Kant diferencia a sua fundamentação do conhecimento da de Aristóteles, para quem o objeto transporta-se do mundo exterior para o sujeito (nada pode estar no intelecto sem ter antes estado nos sentidos). Isso significa que aquilo que está no mundo e aquilo que está no sujeito são o mesmo. Para Kant, não. Como Goffredo o explica, o conceito é criado pelo sujeito, que “produz o objeto, pois produção significa [...] fazer cognoscível a massa informe dos dados sensíveis” (idem. p. 219).
A ideia de um conhecimento que produz o seu objeto é inteiramente nova em Filosofia. Não existia antes de Kant. Foi criada e justificada por ele, na Crítica da razão pura. Essa fundamentação inteiramente nova do conhecimento humano, baseada nas formas da sensibilidade e do intelecto, pelas quais o sujeito cria o objeto, faz nascer um novo racionalismo, distinto do antigo, que se baseava em Aristóteles.
Mas a Crítica da razão pura tornou-se fundamental para a Filosofia não só por assentar que o sujeito é quem cria o objeto. Uma realização ainda mais significativa dela consistiu em demonstrar como isso ocorre, em geral e no caso particular dos juízos sintéticos a priori. O caráter exaustivo da demonstração de Kant sobre esses temas funciona, até hoje, como um penhor senão da validez definitiva, ao menos do alto quilate intelectual e da confiabilidade da sua obra. Do modo como Aristóteles lançou os cânones da Lógica Geral, que enuncia as leis pelas quais o objeto é elaborado pelo sujeito sem perder as características fundamentais que possui no mundo, Kant fundou a Lógica Transcendental, a fim de descrever a criação do objeto pelo sujeito sem qualquer relação com o modo como ele é em si mesmo. Podemos ter por assentado que o instrumento privilegiado dessa vasta criação são as formas a priori da sensibilidade e do entendimento.
A importância do trabalho de Kant para o pensamento humano investe-nos da alta responsabilidade de decidir da verossimilhança de suas partes principais, tarefa bastante difícil tanto pela complexidade como pelo nível de detalhamento a que o filósofo alemão desceu ao apresentar sua Lógica Transcendental. Porém, se soubermos identificar a chave que nos permite entrar no sistema de Kant, talvez seja possível realizar progressos nesse desafio.
Penso que a chave é, precisamente, o modo como o sujeito cria o objeto, por meio dos sentidos e do intelecto. Já tive oportunidade de afirmar que as ferramentas de que ele se vale nesse mister são as formas da sensibilidade (o tempo e o espaço) e do intelecto (as categorias). Vejamos como o sujeito utiliza esses instrumentos.
Admitamos, inicialmente, que a divisão do conhecimento numa esfera da sensibilidade e outra do entendimento seja procedente. Na verdade, ela é inevitável, já que uma coisa é conhecer por meio dos sentidos (por exemplo, ver), e outra, conhecer intelectualmente (por exemplo, formar os conceitos de ponto ou de reta). Ninguém sustentará que a visão noturna de um felino se dá pelo mesmo processo pelo qual formulamos o conceito de ponto.
Porém, o passo seguinte de Kant, no processo de demonstração da sua Lógica, vale dizer, a distinção das formas de que o sujeito se serve ao produzir os seus objetos, envolve diversos problemas. O filósofo alemão sustenta que as formas da sensibilidade são duas: o tempo e o espaço, ao passo que as categorias do entendimento são doze: três de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade), três de qualidade (realidade, negação e limitação) três de relação (substância, causalidade e reciprocidade) e três de modalidade (possibilidade-impossibilidade, existência-inexistência, necessidade-contingência).
Essas 12 categorias, Kant as derivou das 12 modalidades de juízo da Lógica Formal. Para ele, pensar é julgar. Por isso, as 12 maneiras de julgar pautam-se em 12 conceitos básicos (categorias) que orientam todo o pensar humano. Também aqui Kant procede de maneira fundamentada, já que as 12 espécies de juízo constituem uma parte firme e pouco desafiada da Lógica Formal.
O que não fica tão claro é o modo como a derivação das categorias a partir dos diferentes juízos se dá. Uma coisa é Kant extrair a negação dos juízos negativos. O raciocínio que permite essa dedução é bastante claro. A dedução da unidade a partir dos juízos universais pode ser avaliada do mesmo modo, pois o juízo universal reduz uma massa de dados à unidade.
Mas e a dedução da substância a partir dos juízos categóricos, a da causalidade a partir dos hipotéticos e a da reciprocidade dos juízos disjuntivos? São elas tão firmes quanto as anteriores? Um juízo categórico enuncia, necessariamente, uma substância? Um hipotético afirma sempre uma relação causal, e um disjuntivo, uma recíproca? A mesma espécie de dúvida pode ser formulada a propósito da dedução da possibilidade e da impossibilidade a partir dos juízos problemáticos, da existência e da inexistência, dos assertivos e da necessidade-contingência, a partir dos apodíticos.
Em todos esses casos, as categorias adotadas podem ser outras, se a avaliação da operação executada nos respectivos juízos variar. Não nos sentimos obrigados a consentir que povos tão diversos quanto um selvagem, outro bárbaro, um terceiro civilizado, um civilizado antigo, outro moderno e outro contemporâneo, sejam incapazes de conceber operações categóricas em termos não substanciais, operações hipotéticas que não envolvam causa e efeito e juízos disjuntivos que não impliquem reciprocidade. Nem nos sentimos compelidos a concluir que aqueles povos precisam inevitavelmente dominar a noção de verdade apodítica para conceberem a necessidade e a contingência ou que eles devem considerar a possibilidade e a impossibilidade mais assertivas do que a existência e a inexistência. Nada disso parece tão universalmente verdadeiro quanto Kant afirma.
Não está claro que a Lógica Transcendental tenha de ser tão universal quanto a Lógica Formal. O princípio daquela lógica (a ideia de que os conceitos são produzidos pela razão) é aceitável, mas não a demonstração do modo como ele opera, ou seja, não a demonstração do modo como os conceitos são produzidos no interior do intelecto e sem conexão com o mundo externo. O que significa que o caráter universal que Kant atribuiu à sua Lógica é bastante duvidoso e, por isso, não deve ser adotado como ponto de partida para a produção de um grande número de outros conhecimentos, como é próprio de uma lógica.
Aliás, a dedução das categorias não é o único pilar da Lógica transcendental que pode ser exposto à corrosão da dúvida. A dedução das formas da sensibilidade parece ainda mais arbitrária. Não que o tempo e o espaço não intervenham na formação do nosso conhecimento dos objetos sensíveis. Percebemos os objetos externos localizados no tempo e no espaço. Mas não os percebemos, também, dotados de qualidades e em determinadas quantidades? Não os percebemos como substâncias e como portadores de propriedades acidentais? Por que a sensibilidade seria moldada pelo tempo e o espaço e não por outros conceitos básicos?
Os kantianos dirão que o espaço e o tempo são mais fundamentais que as categorias para a percepção. Dirão que o espaço não envolve medidas de extensão e o tempo, de duração, ao passo que a unidade, a pluralidade, a totalidade e as várias espécies de qualidade importam delimitação e medida. Seja. Mas perceber não é contar e qualificar? Não é perceber um, dois ou mais objetos, com estas ou aquelas qualidades? Por que o ato de perceber há de ser reduzido à disposição de objetos num espaço e num tempo tão abstratos que são concebidos antes de toda e qualquer divisão?
Seja-me permitido propor que esses fundamentos da Lógica Transcendental são muito mais sugeridos do que comprovados. Em momentos fundamentais, o sistema daquela lógica impõe-se mais pela exaustividade da exposição que é feita dele do que pela demonstração da verdade de suas assertivas. De sorte que o exame meticuloso e crítico do seu conteúdo parece desobrigar-nos da admissão do rol de formas da sensibilidade e do entendimento que Kant propõe.
Mas insisto em que o exame meticuloso confirma, por outro lado, o acerto do ponto de partida da Lógica Transcendental que afirma que o sujeito se vale de formas a priori para moldar objetos. Portanto, que as coisas ou suas formas não se transportam do mundo ao interior do sujeito. Podemos concluir, com base em fortes razões, que existem de fato formas a priori do conhecimento, as quais se caracterizam por serem criadoras de objetos. Nem todo conhecimento tem o condão de criar objetos, porém alguns certamente o possuem. A estes Kant deu o nome de formas.
Flexibilizemos, pois, o rol rígido e taxativo das formas enunciadas por Kant, afrouxemos os cordões das categorias, admitindo que elas existem, mas podem ser concebidas diversamente, por povos e pessoas também diversos. Admitamos que algumas categorias, como a unidade, a pluralidade, a existência e a inexistência têm aplicabilidade mais ampla que outras. Mas não nos afastemos jamais da noção basilar de que categoria gnoseológica é aquilo e somente aquilo que engendra um objeto. Essa é, de fato, uma lição perene da filosofia de Kant.
Veremos, nos capítulos seguintes, que a aplicação da ideia de forma a priori ao direito foi extremamente tumultuada e, não raro, inconsistente. Uma das consequências disso foi a tendência dos jusfilósofos influenciados por Kant de anunciar a descoberta das formas do pensamento jurídico. Escolas de pensamento inteiras definiram a sua fisionomia e estrutura por essa pretensão.
Porém, ao acompanhar a trajetória das ideias de Kant no período posterior, não podemos deixar de aplicar os princípios da avaliação crítica aqui apresentada. Depois de Kant tanto quanto antes dele, permanecemos com as lógicas confirmadas por demonstrações integrais e a realidade. Devemos continuar a utilizar aquelas para investigar esta. A modificação que Kant introduziu nesse processo foi a advertência quanto à subjetividade (indeterminada) dele. A advertência deve soar a cada passo que damos, no caminho do conhecimento, não para fazer-nos freá-la ou suspendê-la, mas para levar-nos a vigiar o processo pelo qual construímos nossas conclusões.