terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (24): Equidade Versus Desigualdade

A ruptura epistemológica não é uma invenção da esquerda. Foi praticada, pela primeira vez, pelos filósofos pré-socráticos, que reformularam a visão de mundo grega de um Universo eterno composto por objetos sensíveis. Sem abandonar o materialismo dos antigos gregos, antes o reafirmando, aqueles filósofos foram capazes de acomodar até mesmo o imperceptível (como os átomos de Leucipo e Demócrito), na sua visão de mundo, alterando a maneira grega de pensar por meio da crítica racional.
No entanto, a ruptura epistemológica dos pré-socráticos foi de pequena extensão, do ponto de vista da História da Filosofia. Talvez por isso, teve de ser aprofundada, nos séculos XVIII e XIX, pelos materialistas franceses e, em maior medida, por Marx e Engels, que colocaram uma base extraordinariamente ampla de dados e teorias da História, da Antropologia, da Economia, da Política e, em menor medida, também da Física a serviço da teoria social.
Por essa extraordinária realização, o pensamento de esquerda, representado por Marx e Engels, concluiu uma ruptura epistemológica tão relevante e ampla quanto a que Platão e sua escola tinham encetado, em direção diametralmente oposta, a partir do século V a. C. Assim, não é errado, é antes necessário concluir que o pensamento metafísico e o da esquerda social foram ambos frutos de rupturas levadas ao apogeu, no primeiro caso, pela Filosofia Cristã, e no outro, por Marx e Engels.
Embora os pontos de vista materialista e metafísico sejam em ampla medida antagônicos, é inegável que eles também têm pontos de contato, a começar pela gênese em rupturas tendentes à introdução da epistème (ciência). Podem, por isso, não ser tão irreconciliáveis quanto é usual afirmar. Uma obra digna das realizações passadas das duas visões de mundo consistiria em cada qual revisar os seus pontos de vista, no campo em que é mais frágil e em que a outra mais se desenvolveu. No caso da Metafísica, essa tarefa se põe como uma revisão de seus pontos de vista sociais.
Felizmente, a tarefa já começou a ser realizada, principalmente pelos representantes da Doutrina Social da Igreja e da Teologia da Libertação. De sorte que, para empreender a revisão do pensamento cristão social, é preciso dar continuidade ao trabalho iniciado por esses movimentos, muito mais do que reconstruí-lo ab ovo.
É essa uma tarefa possível? Pode a Metafísica aproximar-se, de fato, do pensamento social? Não é mais sensato concluir que eles simplesmente se excluem? A meu ver, o direito natural é a melhor resposta a indagações como essas. Sua sobrevivência aos desafios históricos que lhe foram postos, a reafirmação constante do jus naturalis pela Igreja e pelos filósofos cristãos, sua reaparição na obra de pensadores de Radbruch a Alexy e de Reale a Dworkin parecem indicar que o direito natural constitui um terreno no qual a aproximação da Metafísica do pensamento de esquerda poderá realizar-se.
Dentre as vertentes em que o direito natural se desdobra, penso que a reflexão sobre a justiça é a que oferece as melhores perspectivas para a aproximação. E que a teoria da justiça como equidade, de Rawls, mesmo sem integrar a tradição jusnaturalista, pode ser usada como painel das preocupações contemporâneas às quais qualquer versão atualizada do direito natural deve responder. Vale, por isso, a pena considerar como o filósofo político americano lançou as bases do seu pensamento sobre a justiça.
Para Rawls, a equidade resulta da eleição de dois princípios pelos membros de uma sociedade hipotética que desconhecem seus próprios interesses individuais. Claro que Rawls não acredita que essa situação tenha-se jamais realizado. Porém, ela ajuda a aclarar o modo como concebemos a sociedade. Na situação inicial hipotética, diz Rawls, os cidadãos elegeriam os seguintes princípios fundamentais da justiça: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64).
As palavras primeiro e segundo, na citação acima, assinalam os princípios em que a justiça social se bifurca. Na situação emergente da escolha desses princípios, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos [os] valores traga vantagens para todos” (idem. p. 66). A distribuição igualitária ou desigual, porém vantajosa para todos, dos bens da vida fornece uma imagem bastante adequada da equidade como Rawls a concebe.
Retenhamos o núcleo da teoria de Rawls, no qual ele aloja os princípios da justiça, que doravante denominarei número 1 e número 2. Após tê-los enunciado da maneira acima, Rawls reelabora o princípio número 2 com base no que denomina princípio da diferença. Para que as ideias não se sobreponham de modo indevido, na mente do leitor, esclareço que o princípio da diferença não se confunde com o número 1 ou o número 2 em que as múltiplas faces da justiça se subsumem. Princípio da diferença é, na verdade, a primeira metade do princípio número 2 reelaborado de maneira a afirmar: “As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades” (idem. p. 88).
O princípio da diferença encontra-se sintetizado na letra a do enunciado acima. Rawls o explica mais prolongadamente, em outras passagens: “Supondo-se a estrutura de instituições exigida pela liberdade igual e pela igualdade equitativa de oportunidades, as maiores expectativas daqueles em melhor situação são justas se, e somente se, funcionam como parte de um esquema que melhora as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade” (idem. pp. 79-80). E de novo: “Quando as contribuições das posições mais favorecidas se espalham [...] parece plausível que se os menos favorecidos se beneficiam, o mesmo acontece com os outros das camadas intermediárias” (idem. p. 87).
Nesse último trecho, Rawls esclarece que o princípio da diferença não opera só a favor dos mais desfavorecidos, mas também das classes intermediárias da sociedade. Cabe, porém, uma ressalva: “O princípio da diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a sociedade tente contrabalançar as desvantagens [de alguns em relação a outros]”. Por isso, “os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes” (idem. pp. 107-108).
Assim entendidas, as desigualdades naturais devem ser admitidas tanto quanto postas a serviço do corpo social. Para Rawls, “a distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos” (idem. p. 109).
Como operadoras privilegiadas dos dois princípios, as instituições a que Rawls se refere devem ser escolhidas logo em seguida à eleição dos princípios fundamentais da justiça. De acordo com ele, “as principais instituições dessa estrutura são as de uma democracia constitucional” (idem. p. 211).
Um diferencial específico da teoria de Rawls é a prioridade que ele atribui ao princípio número 1 (o da maior liberdade), em relação ao 2 (o da igualdade): “As pessoas na posição original são movidas por uma certa hierarquia de interesses. Devem primeiro assegurar o seu interesse de ordem superior e seus objetivos fundamentais (dos quais apenas a forma genérica lhes é conhecida), e esse fato se reflete na precedência que dão à liberdade; a aquisição dos meios que lhes permitem promover seus outros desejos e objetivos tem um lugar secundário” (idem. p. 604).
Vejamos o que estudiosos que examinaram profundamente a teoria de Rawls afirmaram a respeito dela. O economista e Prêmio Nobel Amartya Sen, que trabalhou com o filósofo americano na década de 1960, considera que ele desenvolveu uma das tradições derivadas do Iluminismo: “Há duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça entre importantes filósofos ligados ao pensamento radical daquele período [...] Uma abordagem – iniciada por Thomas Hobbes no século XVII, e seguida, de diferentes modos, por destacados pensadores, como Jean-Jacques Rousseau [assim como Kant e o próprio John Rawls] – concentrou-se na identificação de arranjos institucionais justos para uma sociedade. Essa abordagem, que pode ser chamada institucionalismo transcendental, tem duas características distintas. Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça [...] Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais” (SEN, Amartya. A ideia de justiça. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 35-36).
A segunda corrente sobre a justiça emanada do Iluminismo é a dos pensadores que “adotaram uma variedade de abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais (resultantes de instituições reais, comportamentos reais e outras influências). Diferentes versões desse pensamento comparativo podem ser encontradas, por exemplo, nas obras de Adam Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx, John Stuart Mill” (idem. p. 37).
Sen filia-se à segunda tradição. Para ele, a opção contratualista (de Rousseau, Kant e Rawls) quase sempre resulta da sobrevalorização da liberdade, o que equivale a colocá-la acima das outras virtudes: “É possível aceitar que a liberdade deve ter algum tipo de prioridade, mas uma prioridade totalmente irrestrita é quase com certeza um exagero” (idem. p. 96).
A preferência pela liberdade e a colocação dela acima das outras virtudes são bons motivos para classificarmos Rawls como um pensador liberal. É-nos difícil segui-lo nesse ponto, devido ao exagero que a defesa prioritária da liberdade implica. Michael Sandel expõe com argúcia uma das consequências dessa posição de Rawls: “Atualmente não pensamos na política como algo que tenha uma finalidade particular e independente, mas como algo aberto às diversas finalidades que os cidadãos venham a adotar [...] Nossa relutância em atribuir à justiça um determinado télos ou finalidade mostra uma preocupação com a liberdade” (SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., São Paulo: Rio de Janeiro, 2014. pp. 239-240). No entanto (é o que Sandel pensa), em muitos momentos, essa preocupação deve ceder espaço à afirmação de um télos diverso para a liberdade.
Apesar da perícia dessa ponderação de Sandel, o mais forte argumento anti-Rawls talvez seja o que Amartya Sen maneja contra “a escolha única, na posição inicial, de determinado conjunto de princípios para as instituições justas necessárias para uma sociedade plenamente justa. Há interesses gerais genuinamente plurais, e às vezes conflitantes, que afetam nossa compreensão da justiça. Eles não precisam diferir [...] de forma que só um conjunto de princípios realmente incorpore a imparcialidade e a equidade, enquanto os outros não” (
SEN, Amartya. Ob. cit. p. 87).
As críticas de Sen e de Sandel à teoria de Rawls merecem, em grande parte, ser acolhidas. Porém, é preciso admitir, ao mesmo tempo, que elas não infirmam a posição básica de Rawls consistente em tornar a liberdade e a igualdade os pilares da justiça social. Pelo contrário, com as correções necessárias, a teoria da justiça como equidade continua a sintetizar extraordinariamente bem as aspirações contemporâneas sobre a justiça.
Se considerarmos a justiça uma combinação de versões atenuadas de outras virtudes, como tenho sustentado nesta série, e admitirmos que a medida das atenuações deve ser estabelecida pelas instituições, poderemos utilizar o princípio da diferença para garantir que a igualdade sócio-econômica seja menos atenuada que todos os outros valores exceto a liberdade. Dessa maneira, chegaremos a um equilíbrio entre as virtudes, de modo que nem a igualdade prevalecerá sobre a liberdade, nem esta sobre aquela.
Sob tal concepção, os impasses na aplicação dos princípios da liberdade e da igualdade não deverão ser resolvidos à maneira de Rawls, por uma prevenção favorável à liberdade, nem pela prevenção oposta, favorável à igualdade, e sim à luz das particularidades de cada caso. Assim, em algumas situações de conflito, a liberdade será privilegiada em lugar da igualdade, ao passo que, em outras, sucederá o contrário.
O arranjo de princípios que proponho como descrição da justiça não é, absolutamente, universal. Não pode, por isso, ser incorporado ao direito natural. Mas é fundamental perceber que ele tampouco é contrário ao direito natural. Nos termos da classificação proposta por Amartya Sen, poderia ser entendido como uma espécie híbrida: um institucionalismo comparativo. Porém, acima de tudo e mais simplesmente, o que proponho é um aggiornamento do direito natural. Sou tentado a afirmar, até mesmo, que esse aggiornamento permite a ruptura epistemológica que procuro.
Na verdade, o princípio da diferença, modificado de modo a elevar a igualdade ao patamar axiológico da liberdade, 
é o que faculta a ruptura. Porém, assim conduzida, a ruptura permite-nos posicionar o pensamento sobre a justiça na fronteira da Metafísica Cristã com a esquerda social. Permite mais invocar o princípio da diferença, quando a ordem social for ameaçada pelo uso desenfreado da liberdade, para instituir políticas públicas não reparatórias, mas aptas a mitigar a desigualdade. E é claro que o reequilíbrio contrário, em prol da liberdade, poderá ser também realizado, quando o princípio abusado for o da diferença.
Mostrarei em outros textos que a acumulação do capital pode ocorrer de modo a satisfazer ou não o princípio da diferença. Este é um ponto de particular importância na busca de uma teoria social mista, nem liberal, nem excessivamente à esquerda, que empreendo. Sinto a necessidade de encarecê-lo, por envolver um dos pontos mais obscuros e mal compreendidos da teoria social no nosso tempo.
Passado o choque da Revolução Industrial, a reprodução do capital disparou mecanismos que forçaram o aumento proporcional dos salários e a redução da desigualdade, em diversos países. A tradução desse fato em termos de justiça permite concluir que o capital é capaz de satisfazer o princípio da diferença, em certo número de situações. Claro que o contrário também pode ocorrer. A acumulação do capital também pode tornar-se ofensiva à justiça. Trata-se de determinar qual é a situação mais comum: a conformidade ou a inconformidade da acumulação com o princípio da diferença. Se o progresso da ciência envolve problemas, esse é de todos o mais especial da nossa época. Um problema que o capricho do tempo quis transformar em dilema.